Processo do Juízo Local Cível de Oeiras
Sumário: Provado que foi concedido crédito, houve utilização desse crédito e o montante utilizado não foi pago como devido (embora o tenha sido em parte), a situação de incerteza sobre qual o montante de capital, dos juros e das penalizações em dívida, deve ser resolvida, por força do art. 609/2 do CPC, condenando-se o devedor no que vier a ser liquidado e não absolvendo-o do pedido.
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:
A O intentou a presente acção contra, na parte que ainda interessa, a Herança jacente aberta por óbito de M, representada por N, pedindo a condenação da ré (Herança) a pagar-lhe 7750,67€, acrescidos de juros vincendos à taxa contratual e de penalização, até efectivo e integral pagamento.
Citada a representante indicada, a ré não contestou [embora tenha, a 21/12/2017, dentro do prazo de 30 dias para o efeito, vindo dizer, entre o muito mais, que não tinha advogado e que ia pedir um à segurança social que para fazer uma marcação leva mais de um mês – o que, diga-se, os factos não parecem confirmar porque depois conseguiu entregar o pedido a 09/01/2018, tendo decorrido, no máximo, 19 dias desde aquele em que a ré disse que ia fazer o pedido; entretanto, o pedido de apoio judiciário veio a ser indeferido], pelo que, por despacho foram considerados confessados os factos articulados pela autora (por força do art. 567 do CPC 567).
Seguiram-se as alegações de direito da autora e depois a sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo a herança do pedido, com base na seguinte fundamentação:
Resulta da análise das suas cláusulas que o contrato celebrado entre as partes deve ser qualificado como de “abertura de crédito” […]
A mesma solução seria alcançada por aplicação ao presente contrato da “definição” do art. 2[/1] do DL 359/91 de 21/09 (então em vigor) (a) ‘contrato de crédito’, o contrato por meio do qual um credor concede ou promete conceder a um consumidor um crédito sob a forma de diferimento de pagamento, mútuo, utilização de cartões de crédito ou qualquer outro acordo de financiamento semelhante) complementada pela regra do artigo 13 do mesmo DL.
Demonstrada a mora do de cujus (pontos 3 e 4), sabe-se também que a autora considerou o contrato definitivamente incumprido após o seu óbito, em 20/03/2017 (ponto 6).
Não se conseguindo destrinçar, do montante que a autora alegou ser “capital” em dívida (art. 17 da p.i.), que parte corresponde a aquisições de bens e serviços (única que aqui nos interessa) e que parte se refere a reembolsos dos mútuos, não se pode concluir ser devida a totalidade do “capital” invocado (e respectivos juros).
Não se sabendo – nem tendo sido alegado – qual o valor de “capital” em dívida aquando do último pagamento realizado (ponto 3), ou quais os valores das compras realizadas, não se pode determinar que juros (moratórios, ou remuneratórios, ou “penalizações”) são devidos – desconhecendo-se de que forma a autora chegou à conclusão alegada no art. 17 da p.i.).
Assim sendo, não existem factos provados que permitam concluir ser devido algum montante de “capital”, e outros de “juros e penalizações”.
A autora recorre desta sentença – para que seja anulada e em sua substituição lhe seja concedida oportunidade de aperfeiçoar a sua petição inicial, ao abrigo do disposto no art. 590 do CPC, ou, caso assim não se entenda, ser a ré absolvida da instância – terminando as suas alegações com as seguintes conclusões que são cópia integral das alegações, ou seja (transcreve-se na parte minimamente útil):
[…]
II. Na petição inicial, [a autora] indicou os elementos constitutivos da sua pretensão, indicando a natureza do contrato de crédito celebrado; com efeito, o contrato sub judice trata-se de um contrato para utilização de cartão crédito, celebrado de acordo com o preceituado no já revogado DL 359/91, de 21/09, e igualmente de acordo com o diploma regulador das Cláusulas Contratuais Gerais – DL 446/85, de 25/10.
III. Indicou igualmente a respectiva causa de pedir, assim como a data do contrato, a origem da dívida como resultante da utilização do cartão de crédito (Cartão J), a taxa de juro, a data da mora e a data do incumprimento definitivo.
[…]
VI. A sentença merece reparo quanto à alegada insuficiência da causa de pedir, designadamente na concretização dos termos contratuais.
VII. Em primeiro lugar, o tribunal a quo laborou num equívoco ao considerar o contrato sub judice apenas um contrato de abertura de crédito, quando, analisando as cláusulas gerais do referido contrato, é patente que se trata de um contrato de mútuo bancário, na vertente de um contrato de utilização de cartão de crédito.
[…]
IX. A autora não se pode conformar com a invocada insuficiência de elementos essenciais do contrato e até de facto.
X. Sem conceder, será de considerar que em sede de gestão processual, o tribunal a quo poderia ter lançado mão do disposto do convite ao aperfeiçoamento dos articulados e suprimento de eventuais irregularidades dos articulados, ao abrigo do disposto no art. 590 do CPC.
XI. Pelo que a decisão do tribunal a quo não deveria ser no sentido de julgar a acção improcedente, mas sim de dar oportunidade à autora de aperfeiçoar e concretizar pontos específicos da sua pretensão plasmada na petição inicial, ao abrigo do normativo acima indicado e dos princípios fundamentais de processo civil de aproveitamento dos actos e adequação formal.
XII. Ainda que não se entendesse conceder essa oportunidade à autora e verificar-se a insuficiência dos elementos essenciais do contrato, sempre se dirá que tal podia consubstanciar a ineptidão da petição inicial, nos termos do art. 193/2-a do CPC.
XIII. A ineptidão da petição inicial implica a nulidade de todo o processo, conforme disposto no art. 193/1 do CPC.
XIV/XV. A nulidade de todo o processo constitui uma excepção dilatória, nos termos do art. 494-b do CPC, obsta a que o tribunal conheça do pedido e dá lugar à absolvição da instância, nos termos dos art. 288/1 e 493/2 todo do CPC.
A ré não contra-alegou.
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Questões que importa decidir: se os factos provados permitiam a condenação da ré; e, caso contrário, se a autora devia ter sido convidada a aperfeiçoar a petição ou, a não ser assim, se a petição devia ter sido julgada inepta e a ré apenas devia ter sido absolvida da instância e não do pedido.
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Estão provados os seguintes factos:
1. Em 03/07/2001, o de cujus assinou a proposta de adesão junta a fl. 8 (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – tendo-lhe sido entregue um cartão “J M” (e respectivo PIN).
2. O de cujus utilizou o cartão supra para efectuar comprar em lojas J e P, escolhendo as modalidades em que pretendia pagar.
3. A partir de 05/10/2016, o de cujus não efectuou qualquer pagamento à autora.
4. O de cujus morreu em 26/01/2017, casado com N.
5. Em 20/02/2017, a autora emitiu, em nome do de cujus, o extracto junto a fls. 9v-10 (cujo teor se dá aqui por reproduzido).
6. A autora considerou o de cujus em “incumprimento definitivo” em 20/03/2017.
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Decidindo:
Embora com diferente formulação da questão, a verdade é que a autora tem razão e a sentença não devia ter absolvido a ré do pedido.
É que a situação que a sentença descreve é de indeterminação dos montantes que são devidos e de qual a parte que é de capital, qual a de juros e qual a de penalizações – no que a sentença tem toda a razão (pois que estes valores vão depender do montante de crédito que de facto tiver sido utilizado, dos pagamentos feitos, das datas da utilização e dos pagamentos, dos juros devidos e dos períodos de mora e das penalizações, tudo conjugado com o disposto, entre o mais, nas normas dos DLs 359/91 (então com as alterações do DL 101/2000, de 02/06) e 58/2013, este de 08/05, e daquilo que de facto se puder considerar como cláusulas do contrato invocáveis contra o devedor tendo em conta que se tratou de um contrato de adesão) -, tendo-se, no entanto, certeza de que existe dívida, embora indeterminada, o que resulta dos factos provados sob 1 a 3: foi concedido crédito, houve utilização desse crédito e o montante utilizado não foi pago como devido (embora o tenha sido em parte).
Ora, aquela situação de incerteza – que impede, realmente, por falta de elementos, que se determine a quantidade em dívida (que pode ser inferior ou mesmo muito inferior, à pedida, e que nunca poderá ser superior à pedida: art. 609/1 do CPC) – deve ser resolvida, por força do art. 609/2 do CPC, condenando-se a ré no que vier a ser liquidado, e não absolvendo-a do pedido.
Sobre o art. 609/2 do CPC e como pano de fundo do que se disse, veja-se Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol.2.º, 3.ª edição, 2017, Almedina, págs. 715 a 718, ≈ págs. 368 a 370 d’A acção declarativa comum, de Lebre de Freitas, 4.ª edição, 2017, Gestlegal.
A situação em causa, não tem nada a ver com a falta de elementos essenciais ou com falta de causa de pedir, de que fala a autora no recurso e que em momento algum foram invocadas pelo tribunal recorrido. Também não tem interesse, ao menos neste recurso, a questão teórica de saber se os factos consubstanciam um contrato de abertura de crédito (como a sentença referiu no início) ou um contrato de mútuo, ou mais especificamente um contrato de utilização de cartão de crédito (como quer a autora), pois que o contrato é, sem dúvida, um contrato de crédito do DL 359/91, como referido pela sentença recorrida mais à frente (a que, mais precisamente, veio a qualificar, pela referência ao art. 13 daquele DL, como concessão de crédito em conta corrente).
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Pelo exposto, considera-se o recurso parcialmente procedente, embora por fundamento diferente do invocado, revogando-se a sentença recorrida, que se substitui por esta decisão que agora condena a ré (Herança) a pagar à autora aquilo que se vier a liquidar.
Custas de parte da autora, na acção e no recurso, provisoriamente, em 50% pela ré (na eventual liquidação a percentagem será precisada definitivamente).
A ré não teve quaisquer custas de parte.
Lisboa, 13/09/2018
Pedro Martins
1.º Adjunto
2.º Adjunto