Processo do Juízo Local Cível de Lisboa
Sumário:
Não se provou que o espaço onde se realizou o concerto em causa nestes autos tivesse 1ha e capacidade para 20.000 pessoas, nem que as ‘entradas pagas’ fossem para aquele recinto, pelo que a autora não tinha o direito de cobrar uma percentagem de 5% a título de direitos de autor calculados com base na lotação que invocou unilateralmente.
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:
A S-CRL, fez um requerimento de injunção, relativamente a obrigação que disse ser emergente de transacção comercial, contra C-SA, pedindo a condenação desta a pagar-lhe 43.248,15€, acrescidos de juros de mora, vencidos e vincendos, até integral e efectivo pagamento.
Para o efeito alegou – tem-se em conta a versão corrigida depois de convite judicial para o efeito e transcreve-se quase na íntegra porque interessa para apurar o que estava em causa nesta acção -, que:
Ela, autora, é uma organização de direito privado criada para a gestão colectiva dos direitos de propriedade intelectual entre o mais, reconhecida como pessoa colectiva de utilidade pública por despacho ministerial de 00/00/1984, que exerce a sua actividade de harmonia com o Código Cooperativo, o Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos e respectiva legislação complementar; nos termos do artigo 6/1-j dos seus Estatutos, compete à autora, entre outras atribuições, a de “agir, em representação dos seus cooperadores e beneficiários, assim como dos autores estrangeiros que represente, perante as autoridades judiciais, policiais e administrativas competentes, no exercício e na defesa dos direitos de propriedade intelectual de que eles sejam titulares, tanto de carácter patrimonial como moral, nos casos de usurpação, contrafacção ou todos aqueles em que esses direitos hajam sido violados ou se mostrem ameaçados, requerendo a adopção de todas as medidas conducentes à sua eficiente protecção e ao seu integral respeito, designadamente através da propositura e acompanhamento de acções judiciais, providências cautelares, processos de natureza criminal, recursos administrativos ou quaisquer outros adequados, para o que goza de capacidade judiciária activa e legitimidade processual.”; compete igualmente à autora, ao abrigo do art.6/1-g dos seus Estatutos, “gerir em representação dos seus cooperadores e beneficiários e bem assim das entidades estrangeiras a que se refere o art. 5/3, as obras e prestações de cujos direitos sejam titulares, independentemente do seu género, forma e expressão, mérito e objectivo, qualquer que seja o modo de utilização e exploração ou o processo técnico, analógico ou digital, da sua reprodução, distribuição ou comunicação, actualmente conhecido ou que de futuro o venha a ser.” Sendo que “para efeitos do art. 5/1-3g do precedente número, compete à Cooperativa autorizar, em representação dos titulares de direito de autor sobre as obras e prestações que constituem o repertório da Cooperativa, a sua utilização e exploração sob qualquer forma e por qualquer meio e processo, analógico ou digital, fixar as respectivas condições, com ou sem prévia consulta aos titulares desses direitos, e fiscalizar a sua utilização e exploração.” (cfr. art. 6/2-a dos mencionados Estatutos).
A ré, por sua vez, no âmbito da sua actividade, promove a Feira Nacional de…, em …, onde, entre outras actividades, são utilizadas obras intelectuais, musicais ou literário-musicais, através da realização de espectáculos de música – concertos – nos quais se incluem obras musicais pertencentes ao repertório de gestão da autora.
Para utilização das referidas obras, a ré deve solicitar, previamente, autorização à autora, em representação dos titulares de direitos autorais; devendo a autora comunicar à ré quais as condições para que aquela possa utilizar as obras protegidas constantes do seu repertório. Nessas condições inclui-se o montante a pagar pela referida utilização. Tal montante é calculado pela autora de acordo com as informações transmitidas pela ré, nomeadamente quanto às formas de utilização, montante pago pelas entradas no recinto e respectiva lotação do mesmo. Ou seja, para efeitos de fixação dos direitos de autor a pagar pelos espectáculos de música ao vivo, como aquele que a ré promoveu, aplica-se uma fórmula constante das tabelas de execução pública em vigor, correspondente a 5% sobre a lotação completa do recinto x o preço dos bilhetes. Como era, aliás, conhecimento da ré.
Assim, e de acordo com as informações transmitidas, foi em 16/06/2014 emitida a factura n.º 30/4206/14, no valor de 9100€ (cfr. doc. 1, que se junta) a qual se venceu em 01/07/2014 sem que o respectivo montante fosse pago.
Contudo, veio-se a verificar que, concretamente para o dia 14/06/2014 para o concerto de C, a autorização emitida pela autora era para uma lotação inferior à que efectivamente existia; pelo que, após comunicação à ré, e com o seu consentimento, procedeu-se à emissão de nova factura no valor de 5100€ (factura n.º 30/1321/15, emitida em 28/01/2015, cfr. doc. 2 que se junta), para regularização da autorização anteriormente emitida, a qual, de igual forma, vencida em 12/02/2015, não foi paga.
Posteriormente, já no ano de 2015, deslocou-se a funcionária da Delegação Regional de… ao espaço em causa para verificação do mesmo e, bem assim, para reunir com a ré para que fosse possível apurar os montantes a cobrar para a Feira Nacional de… para esse ano.
Nesse sentido, foi em 20/07/2015 emitida a factura 30/6280/15, no valor de 28.408,80€, que se venceu em 04/08/2015, sem que até hoje tenha sido paga (cfr. doc. 3 que se junta).
Apesar de interpelada, a ré não procedeu ao pagamento das facturas supra identificadas.
A ré deduziu oposição ao requerimento de injunção, dizendo que [utilizou-se a síntese feita pelo tribunal recorrido, com pequenos aditamentos]:
Reconhece ter recebido as facturas, mas por considerar excessivos e sem encontrar fundamento e justificação para os valores pretendidos, procedeu à devolução das duas últimas facturas; deixando de estar na sua disponibilidade para pagamento e sem que tenha havido qualquer resposta ou oposição da autora às referidas devoluções, aceitando-as; por sua iniciativa e pedido, após a emissão da 1.ª factura, realizaram-se durante o ano de 2014 várias reuniões de trabalho entre representantes de ambas as partes, nas quais se se procurou esclarecer a base jurídica e forma de cálculo utilizada pela autora, que suportasse os valores que facturou e que, pela presente acção, pretende sem fundamento receber; o recinto onde decorre a Feira Nacional de…, o Centro Nacional de Exposições em…., é um parque de exposições com uma área superior a 40 hectares, não havendo separação física ou de acesso entre toda área do recinto, onde se desenvolvem as inúmeras actividades da feira, nomeadamente para os concertos ao ar livre e outras manifestações culturais ali realizadas. Os próprios bilhetes ou ingressos vendidos, permitem ao visitante da feira, movimentar-se por todo o recinto, durante todo o dia, desde a abertura do recinto às 10h da manhã, até ao seu encerramento, que decorre na madrugada seguinte. Dando acesso a toda a área de restauração, exposição, divertimento, encontros, congressos e, também, aos concertos que ali decorrem, como complemento de toda a programação da feira. Consequentemente, não é possível à autora, a menos que o faça de forma arbitrária, como faz, estabelecer a lotação a partir da qual calcula o valor dos direitos de autor de cada espectáculo. Segundo a autora, o concerto de 13/06/2014, do cantor C, teve um número de 60.000 espectadores, mas o número total de entradas pagas e não pagas foi de 53.177, o que revela o total desfasamento da realidade. Conclui pela improcedência da acção e absolvição do pedido e, bem ainda, pela condenação da autora como litigante de má-fé.
Face à oposição da ré o processo foi remetido para o tribunal e distribuído como AECOP e depois, por despacho judicial, corrigido para processo comum já que respeita a valor superior a metade da alçada dos tribunais da relação (art. 10/2 do DL 62/2013, de 10/05, e arts. 193, 196 e 210/-b do CPC).
A 29/02/2016, o juízo local cível de Lisboa declarou-se materialmente incompetente para o julgamento desta acção, com base, em síntese, no seguinte:
De acordo com o artigo 111/1-a da Lei Orgânica do Sistema Judiciário (Lei 62/2013, de 26/08), compete aos tribunais da propriedade intelectual, além do mais, preparar e julgar, as acções em que a causa de pedir verse sobre direito de autor e direitos conexos. Tendo em linha de conta a estrutura do pedido e da causa de pedir formulados na acção, certo é estarmos perante um litígio relativo a questões emergentes de direitos de autor. Assim, a competência para conhecer da referida acção não se inscreve nos tribunais comuns, como pretende a autora, mas no tribunal de propriedade intelectual.
Tendo sido determinada, a pedido da autora, a remessa dos autos para o tribunal de propriedade intelectual, este também se declarou incompetente para o julgamento da acção, com base, em síntese simplificada, no seguinte:
In casu, a autora vem pedir a condenação da ré no pagamento de quantias facturadas por aquela e que esta não liquidou, relativas à autorização para a utilização de obras musicais pertencentes ao repertório de gestão da autora em espectáculos de música (concertos) organizados pela ré.
Da análise da petição inicial resulta que a pretensão da autora assenta no incumprimento dos termos da autorização acordada com a ré para a utilização das referidas obras musicais, sendo que a ré não pagou as quantias facturadas pela autora, alegadamente calculadas em função das informações transmitidas pela ré, nomeadamente quanto às formas de utilização, montantes pagos pelas entradas no recinto e lotação do mesmo, aplicando a fórmula correspondente a 5% sobre a lotação completa do recinto X o preço dos bilhetes.
Segundo ali se alega, através da referida autorização acordada assumiu a ré a obrigação de pagar à autora, enquanto representante dos titulares de direito de autor, as quantias relativas à utilização das respectivas obras musicais, a calcular em função das informações que aquela lhe devia prestar e segundo a mencionada fórmula.
Assim, o que está em causa é o alegado incumprimento da autorização acordada com a ré, sendo, pois, a causa de pedir da acção, constituída, não pelo direito de autor (mero fundamento de facto da acção), mas sim pela concreta situação de incumprimento contratual que foi invocada.
Não se discute, pois, o direito de autor de que a autora é titular, enquanto entidade de gestão colectiva que tem a seu cargo o repertório das aludidas obras musicais, mas o incumprimento atrás descrito.
Aliás, a posição assumida pela ré na contestação versa precisamente sobre os cálculos efectuados pela autora, que estão na base das quantias facturadas, pondo aquela em causa aspectos como a lotação do recinto do espectáculo e o número de bilhetes vendidos e fazendo apelo ao que foi sendo acordado pelas partes em relação aos apontados critérios, em negociações havidas entre ambas, não discutindo o direito de autor invocado pela autora.
Segundo o ac. do TRL de 24/03/2015: “o critério de delimitação de competência do tribunal da propriedade intelectual, nos termos do disposto naquele art. 111/1-a – deve procurar-se no acto de declaração do direito, exigida pela controvérsia em causa na acção, e não apenas na sua circunstância, não bastando a referência ou o versar sobre direito de autor e direitos conexos, sendo também necessário que esteja em causa a declaração desses direitos” (proc. 448/14.3YHLSB.L1-7).
Ora, a resolução do litígio a que respeitam os presentes autos não passa pelo conhecimento de questões de existência de um direito de autor, da alegada violação e respectivas consequências, passando simplesmente por determinar se ocorreu incumprimento da ré, no tocante aos montantes facturados pela autora e que esta diz corresponderem aos termos acordados pelas partes, observando os critérios a que ambas se obrigaram.
Levantado oficiosamente o conflito negativo de competência, foi o mesmo decidido pelo Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa no sentido da competência material do juízo local cível (com base nas considerações tecidas naquele ac. do TRL de que tinha sido relator).
Depois de realizado o audiência final, foi proferida sentença, julgando a acção parcialmente procedente e condenando a ré a pagar à autora 37.508,80€ [ou seja, a 1.ª e a 3.ª facturas] a título de capital, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação, até efectivo e integral pagamento.
A ré recorre desta sentença – com o fim de ser totalmente absolvida do pedido -, terminando as suas alegações com as seguintes duas conclusões:
1. Os factos considerados não provados de C a L, deveriam ter sido “considerados pelo tribunal a quo como geradores de prova, nos termos antes alegados”.
2. A contradição existente na sentença determinará a nulidade da mesma, no que respeita à parte do pedido da autora que procedeu.
A autora contra-alegou dizendo, em síntese, que:
Analisado o recurso, não é possível, para a autora, responder à matéria objecto de recurso, já que a mesma não se encontra delimitada pela ré, já que não conclui de forma sintética, nem indica os fundamentos por que pretende que tal sentença seja alterada (conforme dispõem os artigos 637/2 e 639/1 do CPC e igualmente a jurisprudência nacional supra citada); nesse sentido, deverá o recurso interposto pela recorrente, ser indeferido; de qualquer modo, a sentença deve ser mantida, porquanto ficou suficientemente provado que as facturas emitidas pela autora e enviadas à ré não foram liquidadas por esta; que as mesmas foram emitidas de acordo com informações transmitidas pela própria ré, relativamente ao espaço em que é realizada a Feira Nacional de…; e que foram aplicadas as tabelas mínimas de execução pública definidas anualmente pela autora e que permitem que os cálculos dos montantes a pagar estejam definidos de acordo com as características do espaço em que são utilizadas as obras.
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Questões que importa decidir: se o recurso deve ser indeferido, isto é, se não está em condições de ser apreciado; se deve ser alterada a decisão da matéria de facto como pretendido pela ré e se a sentença é nula ou se, em consequência da eventual alteração da decisão da matéria de facto, o pedido devia ter sido considerado totalmente improcedente.
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Do indeferimento do recurso
Ao contrário do que diz a autora, o recurso da ré, como se irá vendo, é claro quanto ao seu objecto e fundamentos e observa, quase sempre, os ónus processuais respectivos (arts. 639/1 e 640, ambos do CPC), designadamente indica, nas próprias conclusões, os concretos pontos de factos que estão em causa, tal como no corpo das alegações indica os concretos meios probatórios que têm a ver com aquelas impugnações, a decisão que devia ser proferida sobre elas e desenvolve, mesmo que minimamente, a razão para falar na contradição da sentença apontada sinteticamente no recurso. E quando não o faz de forma suficiente, tal terá as consequências que depois serão apontadas e não a rejeição do recurso.
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Foram dados como provados os seguintes factos [acrescentam-se já os pontos 21-A, 22 e 23 por força do que se decidirá abaixo] que interessam à decisão destas questões:
1. A autora é uma cooperativa criada para a gestão colectiva dos direitos de propriedade intelectual e a defesa e a promoção dos bens culturais.
2. A ré, no âmbito da sua actividade, promove a Feira Nacional de…, em…, onde, entre outras actividades, são utilizadas obras intelectuais, musicais ou literário-musicais, através da realização de espectáculos de música – concertos – nos quais se incluem obras musicais pertencentes ao repertório de gestão da autora.
3. Para utilização das referidas obras, a ré solicita, previamente, autorização à autora, em representação dos titulares de direitos autorais.
4. A autora comunica à ré quais as condições para que aquela possa utilizar as obras protegidas constantes do seu repertório.
5. Nessas condições inclui-se o montante a pagar pela referida utilização.
6. Tal montante é calculado pela autora de acordo com as informações transmitidas pela ré, nomeadamente quanto às formas de utilização, montante pago pelas entradas no recinto e respectiva lotação do mesmo.
7. Para efeitos de fixação dos direitos de autor a pagar pelos espectáculos de música ao vivo, como aquele que a ré promoveu, aplica-se a fórmula correspondente a 5% sobre a lotação do recinto x o preço dos bilhetes.
8. De acordo com as informações transmitidas, foi em 16/06/2014 emitida a factura n.º 30/4206/14, no valor de 9100€ – conforme documento junto a fls. 89, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
9. A factura identificada em 8 venceu em 01/07/2014 sem que o respectivo montante fosse pago.
10. A autora emitiu a factura n.º 30/1321/15, a 28/01/2015.
11. A factura venceu a 12/02/2015 e não foi paga.
12. No ano de 2015, deslocou-se a funcionária da delegação regional de… ao espaço em causa para verificação do mesmo e, bem assim, para reunir com a ré para que fosse possível apurar os montantes a cobrar para a Feira Nacional de… para esse ano.
13. Foi em 20/07/2015 emitida a factura 30/6280/15, no valor de 28.408,80€.
14. A factura venceu a 04/08/2015, sem que até hoje tenha sido paga – conforme documento junto a fls. 91 a 94, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
15. Apesar de interpelada, a ré não procedeu ao pagamento das facturas supra identificadas.
16. A ré é uma sociedade anónima que tem por objecto social a realização e promoção de feiras, eventos e exposições.
17. Na prossecução do referido objecto, a ré promove e realiza anualmente, desde a sua constituição em 1989, a Feira Nacional de…, no Centro Nacional de Exposições em….
18. A referida feira é um evento de carácter sectorial e de âmbito nacional representativo dos sectores agrícola, pecuário, florestal e agro-alimentar, no âmbito do qual se realizam inúmeras actividades relacionada com aquele sector, nomeadamente, exposições, concursos, conferências, entre outros.
19. Para além da vertente socioprofissional, as edições da Feira Nacional de… incluem, normalmente, uma programação lúdica, realizando-se espectáculos de música ao vivo.
20. Por considerar excessivos e sem encontrar fundamento e justificação para os valores pretendidos, a ré procedeu à devolução da factura n.º 30/6280/15, – conforme documento junto a fls. 27/28, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
21. Por iniciativa e a pedido da ré, após a emissão da primeira factura, realizaram-se durante o ano de 2014 várias reuniões de trabalho entre representantes de ambas as partes.
21-A. Entre elas, a de 22/10/2014 e a de 20/11/2014, para fixação da lotação do recinto onde a ré realizou os concertos que deram origem aos pagamentos peticionados pela autora (nas 2.ª e 3.ª facturas).
22. Há espaços próprios na feira, mas não há acesso próprio para cada espaço; não estando os espaços vedados, pode-se entrar em todos eles – incluindo aqueles onde ocorrem os espectáculos – com um único bilhete, que vale para todo o recinto da feira.
23. Os bilhetes permitem ao visitante movimentar-se por todo o recinto, desde abertura às 10h, até ao seu encerramento, que decorre às 3h da madrugada seguinte, excepto nalguns espaços que vão fechando antes (às 20h, 22h30, 24h).
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Da impugnação da decisão da matéria de facto
I
Apesar do teor da conclusão 1, a ré nada diz sobre aquilo que não foi considerado como provado em C e começa pela alegação que não foi considerada provada em D.
Em D considerou-se que não se tinha feito prova de que não havia separação física ou de acesso entre toda [a] área do recinto, onde se desenvolvem as inúmeras actividades da feira, nomeadamente para os concertos ao ar livre e outras manifestações culturais ali realizadas.
Para esta, como para todas as outras alegações de facto não dadas como provados – e todas elas tinham sido feitas pela ré -, a fundamentação da decisão recorrida limitou-se a dizer o seguinte:
Foram assim considerados por sobre os mesmos não ter recaído qualquer prova.
Contra isto, diz a ré:
Fez-se a prova “de não haver separação física ou de acesso entre a área do recinto onde se desenvolve a feira e os concertos ao ar livre e outras manifestações culturais”, quer pelos documentos juntos pela ré, quer pelo depoimento da testemunha T, arrolada pela autora:
(Gravação: 29:40 a 30:09)
Advogado da ré: Quem entra na Feira pode entrar das 10h de um dia até à 3h do outro, pode ver os espectáculos, pode não ver os espectáculos, as zonas não estão vedadas, circunscritas, não têm acesso próprio. Tem conhecimento desta realidade?
Testemunha: Sim, tenho!
E conclui a ré:
O que antecede é relevante para determinar do direito da autora receber a quantia peticionada, considerando a excepção deduzida pela ré, de arbitrariedade e falta de fundamentação na lotação dos espectáculos praticada pela ré.
Decidindo:
O art. 640/1-b do CPC impõe, sob pena de rejeição, a especificação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
A referência genérica que a ré faz “aos documentos juntos pela ré” é, visto que não observa o disposto naquela norma, irrelevante.
A passagem apontada do depoimento da testemunha T – testemunha da autora – confirma a pergunta feita pelo mandatário da ré, mas esta não tem o sentido que a ré aqui lhe dá, isto é, de confirmar o que foi dado como não provado em D.
Tem, sim, o sentido de se pode entrar com um único bilhete nos vários espaços em que a feira se divide, já que eles não estão vedados nem têm acesso próprio.
O mesmo resulta dos documentos que, oficiosamente, o tribunal tem em conta: o de fl. 25 (supõe-se que seja o doc.2), o de fl. 26 (supõe-se que seja o doc.3), o doc. 8 (fl. 34) e o doc 14 (fl. 52), apontam no sentido de que há espaços próprios – exposição de máquinas, exposição de animais, campos de cultivo, espaço criança, espaço AIFF, restaurantes, tasquinhas, naves A, B e C, zona exterior, oficinas/armazém, grande hall, grande auditório/estúdio, claustros, área de exposição descoberta, bancadas e grande ringue, zona de lotes, parque infantil, dois palcos –, o que implica separação. O que não há é acesso próprio a cada espaço, espaços que não estão vedados, podendo-se entrar em todos eles – incluindo aqueles onde ocorrem os espectáculos ou concertos – com um único bilhete para todo o recinto da feira.
É isto então que deve ser dado como provado, como ponto 22, já que pode ter interesse para a solução da questão de direito: há espaços próprios na feira, mas não há acesso próprio para cada espaço; não estando os espaços vedados, pode-se entrar em todos eles – incluindo aqueles onde ocorrem os espectáculos ou concertos – com um único bilhete, que vale para todo o recinto da feira.
II
Em E e F considerou-se que não se tinha feito prova de que:
– os próprios bilhetes ou ingressos vendidos, permitem ao visitante da feira movimentar-se por todo o recinto, durante todo o dia, desde a abertura do recinto às 10h da manhã, até ao seu encerramento, que decorre na madrugada seguinte.
– dando acesso a toda a área de restauração, exposição, divertimento, encontros, congressos e, também, aos concertos que ali decorrem, como complemento de toda a programação da feira.
Diz a ré que:
Fez-se prova de que os bilhetes ou ingressos vendidos, permitem ao visitante da feira movimentar-se por todo o recinto, desde a abertura até ao seu encerramento que decorre na madrugada seguinte.
E isso “através dos documentos juntos pela ré na oposição deduzida sob n.º 2 e 3, corroborados, uma vez mais pela testemunha, T:
(Gravação: 36:37 a 37:46)
Advogado da ré: As condições de acesso, ou seja a compra do bilhete que permite o acesso a todo o recinto, sem controlo de horas, sem controlo específico para a realização daqueles espectáculos, manteve-se igual na feira de 2014 e 2015?
Testemunha: Sim, julgo que sim, do conhecimento que tenho, sim!
E a ré termina dizendo que deve considerar provada “a inexistência de venda de bilhetes exclusivos para os espectáculos promovidos pela ré.”
Decidindo:
Já decorre da fundamentação do decidido em II, que, no essencial, é como a ré diz. De tal modo que o ponto 22, acrescentado, já diz, quase tudo o que a ré pretende. Acrescentar-se-á, apenas, como ponto 23, tendo em conta os dois documentos referidos, 2 e 3, para além do depoimento da testemunha indicada, que: os bilhetes permitem ao visitante movimentar-se por todo o recinto, desde abertura às 10h, até ao seu encerramento, que decorre às 3h da madrugada seguinte, excepto nalguns espaços que vão fechando antes (às 20h, 22h30, 0h).
III
Em G considerou-se que não se tinha feito prova de que: do registo da bilheteira do Centro Nacional de Exposições, verifica-se que o número total de entradas pagas e não pagas se cifrou em 53.177.
Diz a ré (transcreve-se quase na íntegra para evitar que se atraiçoe o pensamento da ré):
A decisão não considera os documentos 10 a 12 juntos pela ré em sede de oposição, mais confundindo o que nele se prova.
Os documentos juntos, cuja autenticidade não foi posta em causa nem pelo tribunal nem pela autora, claramente indicam que aquele número de bilhetes se refere às entradas pagas no ano de 2014.
Os documentos reportam-se ao entendimento vertido nos artigos 26 e seguintes da oposição, e para além do ano de 2014, reportam-se igualmente ao ano de 2015, que igualmente integra o objecto do litígio.
Os documentos demonstram, de forma clara e inequívoca as excepções que a ré deduziu relativamente ao número de entradas pagas nas feiras que promoveu e, com base nos documentos juntos, logrou provar.
Consequentemente, não tendo sido posta em crise quer a autenticidade dos documentos juntos, quer o conteúdo dos mesmos, não podem os factos de que fazem prova deixar de ser atendidos pelo julgador e considerar-se por isso como provados.
Decidindo:
O art. 640/1-c do CPC impõe, sob pena de rejeição, que o recorrente especifique a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Ora é evidente que a confusa alegação da ré deixa para o juiz (e para a parte contrária) a conclusão de quais os factos que os meios de prova invocados fazem prova (segundo ela). Ou seja, não se sabe quais os factos que a ré quer que se dêem como provados nesta parte. Aliás, essa confusão já vinha também dos arts. 26 e segs [não se sabe até onde a ré quer ir, mas é provável ou possível que seja até ao art. 41] da oposição acima invocados pela ré.
Assim sendo, esta impugnação é rejeitada de imediato.
De qualquer modo, diga-se o seguinte:
Tendo em conta o que a ré escreve nos arts. 26 e 33 da oposição, o que a ré dizia é que que no dia 14/06/2014 tinha havido 53.177 visitantes e contraponha a isto o facto de a autora ter calculado os valores pedidos com base em 60.000 visitantes (veja-se o art. 23 da oposição).
Mas é evidente que não era isto que a autora tinha feito: ela tinha calculado os espectadores do concreto de C em 20.000, com base em um espectador por cada 0,5m2, tendo o recinto 1ha, ou seja, 10.000m2. Daí que, a 6€ o bilhete, vezes 20.000 espectadores, o total dava 120.000 que, multiplicado pelos 5% referidos no ponto 7 dos factos provados, dá os 6000€ pedidos pela autora: 900€ numa primeira factura e 5100€ na segunda factura.
Ora, sendo assim, contrapor aos 20.000 espectadores calculados pela autora os 53.177 visitantes referidos pela ré, é um contra-senso na perspectiva da lógica da ré, porque, assim, até se podia concluir que a autora poderia ter pedido um valor ainda (muito) mais elevado.
Isto mesmo que fosse considerado que daqueles visitantes apenas 26.693 correspondiam a compradores de bilhetes, incorrendo de novo aqui a ré em erro de cálculo que prejudica toda a sua argumentação (arts. 30 e 31 da oposição).
É que 26.693 bilhetes x 6€ x 5% é igual a 8007,90€ e não 807,90€. Isto é, mesmo nesta versão reduzida da ré, ela teria de pagar mais do que aquilo que a autora lhe pediu em relação ao concreto de C, que foi de 6000€.
IV
Em H considerou-se que não se tinha feito prova de que: a autora sabe e sempre soube da impossibilidade de quantificar a lotação dos concertos promovidos pela ré.
A ré diz que:
Em H dá-se por não provada a impossibilidade de quantificar a lotação dos concertos promovidos pela ré. Ora, da prova produzida em juízo conclui-se o contrário. Atente-se nas declarações da testemunha T, arrolada pela autora:
(Gravação: 30:10 a 30:45)
Advogado da ré: Acha que é possível, com rigor, determinar o número de pessoas que está efectivamente a assistir a um determinado espectáculo sobre o qual depois é calculado…
Testemunha: As áreas estão definidas. As lotações vocês podem apenas fazer previsões, no final podem apurar as lotações no fim do evento.
Face ao que se deve considerar provada a impossibilidade de cálculo de lotação para efeito de cobrança de direitos de autor nos termos defendidos pela autora.
Decidindo:
A testemunha – o único meio de prova invocado pela ré – de modo algum confirma o que a ré quer que fique provado, como se vê até da transcrição feita. E é evidente, de acordo com a experiência e a lógica das coisas, que é sempre possível quantificar a lotação de um espectáculo. O que poderá ser difícil, mas também não impossível, é quantificar o número real de pessoas que assistiram realmente aos concertos, mas isso é outra questão, que a ré não levantou, nem as facturas levantam e de resto tem pouca importância.
V
Em I considerou-se que não se tinha feito prova de que: a 20/11/2014 em reunião havida na sede da ré em…, a autora propôs acordo para fixação da lotação do recinto onde normalmente se realizam os concertos e demais animação.
A ré diz que:
Em I deu-se como não provada a reunião havida entre autora e ré em que a autora propôs acordo para fixação da lotação do recinto onde a ré realizou os espectáculos que deram origem, segundo a autora, aos pagamentos por ela peticionados.
Ora, para além do documento 5 junto pela ré em sede de oposição, a testemunha T, prestou o seguinte depoimento:
(Gravação: 33.12 a 33.25)
Advogado da ré: A C-SA, nunca lhe transmitiu “este espectáculo consideramos que tem x de lotação?
Testemunha: Penso que foram realizadas várias reuniões, várias reuniões nesse sentido, para tentar chegar a esses números. Pronto.
Deve ser considerada provada a existência da reunião, aliás mais do que uma entre autora e ré, com o propósito de chegar a um acordo relativo à lotação a fixar e a ser objecto de cobrança pela autora.
Decidindo:
Aquilo que a ré quer que se dê como provado não foi aquilo que a decisão recorrida disse não estar provado nem o que a ré tinha alegado.
Reduzida a pretensão da ré ao § final da argumentação que antecede, aceita-se acrescentar, como ponto 21-A (por a matéria ter a ver com o ponto 21), tendo em conta o depoimento da testemunha e o documento invocados, que: entre elas a de 22/10/2014 e a de 20/11/2014, para fixação da lotação do recinto onde a ré realizou os concertos que deram origem aos pagamentos peticionados pela autora (nas 2.ª e 3.ª facturas).
VI
Em J e K considerou-se que não se tinha feito prova daquilo que tinha sido alegado pela ré, isto é, que:
– solução [a referida em I] que a autora indicou como sendo recorrente com outros promotores, em relação aos quais seja evidente a quantificação da lotação em determinado recinto.
– acordo esse em que, fixando a lotação, teria efeitos para os valores calculados para o ano de 2014, que sofreriam revisão em conformidade.
A ré diz que:
Em j e k considera-se não provado o recurso à fixação de lotação de recintos pela autora como prática recorrente desta, e bem assim, integrar esse acordo, a revisão dos valores inicialmente facturados pela autora, desde 2014.
Os documentos 4, 14, 15, 16 e 18 juntos pela ré em sede de oposição não foram considerados para efeito de prova e deviam ter sido.
Mais, atente-se no depoimento da testemunha T, arrolada pela autora, a este propósito:
(Gravação: 33.47 a 37.22)
Testemunha: Esse processo passou pelas minhas mãos, eu reuni inclusive com o Sr. Dr., lá no C-SA, onde falámos, eu fui lá para conhecer o recinto e onde tivemos algumas conversas relativamente às lotações, às áreas… exactamente…
Advogado da ré: Tem conhecimento de que houve várias reuniões entre a S-CRL e o C-SA, representantes de um lado e do outro, no sentido de chegar a um entendimento relativamente à lotação, uma vez que não havia concordância?
Testemunha: Sim tenho!
Advogado da ré: Sabe se foi proposto algum valor de lotação no âmbito dessa negociação?
Testemunha: Foram feitas várias propostas.
Advogado da ré: Mas propostas de um lado, do outro?
Testemunha: Ambas as partes, tentou-se chegar a acordo, e falou em lotações, tanto de uma parte como da outra.
Advogado da ré: Portanto é possível para a S-CRL, ou é admissível, que se fixe a lotação por acordo?
Testemunha: Não é uma prática comum, isto é uma tentativa de se chegar a um acordo.
Decidindo:
É evidente que os documentos invocados pela ré de modo algum fazem prova do que ela afirma. Aliás ela não os descreve nem argumenta para tentar comprovar o que afirma. O doc.4 é uma devolução de factura. Do documento 14, a fl. 52, resulta apenas que o advogado da ré queria chegar a um acordo no sentido do aqui referido. Mas a proposta de uma parte não é igual a um acordo entre duas partes. O doc. 15 é uma carta da autora a, no essencial, recusar a argumentação da ré e a devolver uma factura devolvida e a insistir pelo pagamento nos termos anteriores. O doc. 16 é uma extensa carta do advogado da ré, a exprimir surpresa… o que logo demonstra que não pode servir para demonstração de qualquer acordo. O doc. 18 é nova carta do advogado da ré a dar conta das posições anteriores. Como é que daqui pode decorrer a prova do acordo?
Quanto ao depoimento da testemunha invocada, dele apenas decorre que é possível chegar a acordo, entre a autora e aqueles que pedem licenças, para a fixação da lotação de um recito. Desse depoimento não decorre, pois, a prova nem daquilo que na decisão recorrida não se deu como provado, nem daquilo que a ré quer que se dê como provado.
VII
Em L considerou-se que não se tinha feito prova de que: o que determinou, logicamente e com a anuência e consentimento expresso da autora, o não pagamento da factura n.º 30/4206/14, a 16/06/2014, no valor de 9100€.
A ré diz que:
A decisão não considera a correspondência trocada entre a autora e a ré, nomeadamente na oposição sob doc. n.ºs 4, 14 , 15, 16 e 18, que efectivamente fazem prova do acordo existente relativamente ao não pagamento das facturas trazidas a juízo pela autora e dele fazem prova.
Decidindo:
É evidente que não estando provado o que consta de J e K, também não fica provado o que consta de L, que estava na dependência daquilo. E, por outro lado, é evidente, por aquilo que já se disse a propósito dos documentos invocados pela ré, que eles não provam, minimamente, o que a ré quer.
*
Em suma, em consequência da parcial procedência da impugnação decisão da matéria de facto, são acrescentados aos factos provados os referidos acima com os pontos 21-A, 22 e 2 (já colocados no lugar respectivo).
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Do recurso sobre matéria de direito
Tudo o que a ré diz, nesta parte, para alem da conclusão 2, é, apenas o seguinte, na parte útil, mas mantendo a construção da ré:
Entende a ré existir contradição na sentença de que recorre no que respeita à condenação do pagamento dos montantes relativos a 2014 e 2015.
Aquilo em que a sentença fundamenta a improcedência parcial do pedido da autora, ou seja a impossibilidade e insustentabilidade dos cálculos, é aplicável ao remanescente do pedido que, desta forma terá que ser considerado igualmente improcedente.
Revelando mesmo dúvidas e assumindo como inicialmente assumiu, e bem, não ser da competência do tribunal julgar a matéria controvertida, acabou o tribunal a quo por cingir-se ao pedido e forma processual inicialmente formulado e utilizado pela autora, o pagamento de facturas através de uma injunção, não considerando em matéria de prova, o que ao fim e ao cabo, afastaria o processo do seu verdadeiro objecto: a aplicação dos direitos de autor e direitos conexos.
*
Para se perceber esta argumentação da ré é necessário ter em conta todas as posições que foram sendo assumidas no processo e também a seguinte fundamentação de direito da sentença recorrida [a 1.ª parte dela colocada na fundamentação da matéria de facto, a 2ª na fundamentação de direito], em síntese simplificada [as partes entre parenteses rectos foram colocadas por este acórdão]:
1ª
No que se reporta à factura 30/1321/15 (fls. 90) impõe[-se] explicar a razão pela qual foi dado como provada a sua emissão e nada mais. Ora, a autora apenas demonstrou que emitiu esta factura [trata-se da 2.º factura]. No entanto, a factura per si não prova, como não provou a ratio do seu conteúdo. […] A factura não somente não integra qualquer contrato ou obrigação em consequência de imposição ou acordo de vontades, como o não substitui ou prova. E não é, manifestamente, a mera referência nela contida que identifica o negócio celebrado e, consequentemente, o facto jurídico de que nasceu o direito de crédito. “A autorização emitida pela autora era para uma lotação inferior à que efectivamente existia.” E como o apurou? “Após comunicação à ré e com o seu consentimento foi emitida nova factura” [diz a autora mas] os autos vieram demonstrar o contrário. O que também, desde logo, coloca em causa, a forma como aferiram da lotação.
De qualquer forma, a autora não demonstrou esta factura, a sua razão de emissão.
Repare-se que, para as duas outras facturas, a testemunha T tentou circunscrever as mesmas, sendo que para a 1.ª nenhuma dúvida é apresentada (nem em bom rigor é posta em causa pela ré, a mesma apenas inicia o processo de reclamação aquando da recepção da 2.ª factura) e existe quanto ao seu valor[; já] a segunda, efectivamente, acarreta duvidas. Para as quais, este âmbito material não é o competente. Não obstante, estas duas facturas, de 9100€ e 28.408,80€, foram “explicadas” com base nas tabelas de direitos de execução juntas em sede de audiência de julgamento. Acresce que, se impõe também salvaguardar e aludir [à] seguinte questão: alegou a autora e demonstrou, não só com o depoimento da sua testemunha, mas também com o acordo da ré, de que, os montantes a pagar eram calculados de acordo com as informações da ré transmitidas anteriormente à realização da feira. Pertinente a questão da razão da disparidade entre o ano de 2014 e o ano de 2015. Mas o que é certo é que a ré não demonstrou a falência do cálculo da lotação. Assim, temos por um lado uma testemunha [T, da autora] a explicar a formula de calculo coadjuvada com as referidas tabelas mínimas e, por outro lado, a ré a falar em lotação em termos abstractos e uma testemunha [o director executivo da ré] “arreliada” e muito incomodada por não compreender a factura e, por conseguinte, obstaculizar o respectivo pagamento. Nada mais.
Ora, nas acções destinadas a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, ou no caso, obrigações legais (protecção de direitos de autor e direitos conexos) – sendo certo nem por isso com permissão de arbitrariedade – compete ao credor a alegação e prova dos factos constitutivos do direito que se arroga (art. 342/1 do CC), competindo, por sua vez, ao devedor a alegação e prova dos factos impeditivos, modificativos e extintivos do direito alegado (art. 342/1 do CC), o que a ré não fez.
2ª
A questão a decidir na sentença consiste, pois, em saber se a ré deve ser condenada a pagar à autora as quantias por esta peticionadas.
A questão coloca-se unicamente quanto às facturas de 9100€ e de 28.408€, pois quanto à de 5100€ a mesma não se mostra provada.
A autora tem como objectivo gerir os direitos de autor.
Por seu turno, a ré, é uma sociedade anónima que tem por objecto social a realização e promoção de feiras, eventos e exposições.
Para a concretização da programação lúdica naqueles eventos, a ré, teve, necessariamente de solicitar autorização à autora, a qual foi taxada nos termos das duas facturas em causa.
Resultou dos autos que a ré não procedeu ao pagamento das duas facturas nem até ao seu vencimento nem posteriormente.
A autora provou, como se lhe impunha a existência da obrigação, ou seja, de que foram autorizados os direitos de autor que a ré pretendeu usar e usou e que a ré não procedeu ao seu pagamento na data do seu vencimento e a ré não provou, como se lhe impunha, que o não cumprimento da obrigação não foi culpa sua.
Logo, deve ser condenada no pagamento das duas facturas.
*
Decidindo:
Antes de mais diga-se que a possibilidade de celebração de contratos tendo por objecto a autorização para a utilização de obras musicais, com a contrapartida do pagamento de determinados valores a título de direitos de execução, entre entidades gestores desses direitos, representando os respectivos titulares, e os utilizadores dessas obras, resultava, à data (2014/2015) de alguns artigos da Lei 83/2001, de 03/08:
(arts. 3/1-a: As entidades [de gestão colectiva do direito de autor e dos direitos conexos – art. 1] têm por objecto: a) A gestão dos direitos patrimoniais que lhes sejam confiados em relação a todas ou a algumas categorias de obras, prestações e outros bens protegidos; art. 4/-e-j: princípios: A actividade das entidades respeitará os seguintes princípios e critérios de gestão: […] Equidade, razoabilidade e proporcionalidade na fixação de comissões e tarifas; […] j) Informação pertinente, rigorosa, actual e acessível aos terceiros interessados na celebração de contratos; art. 14: As entidades devem informar os interessados sobre os seus representados, bem como sobre as condições e preços de utilização de qualquer obra, prestação ou produto que lhes sejam confiados, os quais deverão respeitar os princípios da transparência e da não discriminação”)
e de alguns outros artigos do Código do direito de autor e dos direitos conexos, parte integrante do DL 63/85, de 14/05, então na versão que lhe foi dada pela Lei 82/2013, de 06/12, tal como publicada no sítio da Procuradoria-geral Distrital de Lisboa:
(Art. 40, n.ºs 1 e 2: 1 – O direito de autor abrange direitos de carácter patrimonial e direitos de natureza pessoal, denominados direitos morais. 2 – No exercício dos direitos de carácter patrimonial o autor tem o direito exclusivo de dispor da sua obra e de fruí-la e utilizá-la, ou autorizar a sua fruição ou utilização por terceiro, total ou parcialmente. Art. 68, n.ºs 1 e 2: 1 – A exploração e, em geral, a utilização da obra podem fazer-se, segundo a sua espécie e natureza, por qualquer dos modos actualmente conhecidos ou que de futuro o venham a ser. 2 – Assiste ao autor, entre outros, o direito exclusivo de fazer ou autorizar, por si ou pelos seus representantes: […]. Art. 72: Os poderes relativos à gestão do direito de autor podem ser exercidos pelo seu titular ou por intermédio de representante deste devidamente habilitado. Art. 73: 1 – As associações e organismos nacionais ou estrangeiros constituídos para gestão do direito de autor desempenham essa função como representantes dos respectivos titulares, resultando a representação da simples qualidade de sócio ou aderente ou da inscrição como beneficiário dos respectivos serviços. Art. 108/1 – A utilização da obra por representação depende de autorização do autor, quer a representação se realize em lugar público, quer em lugar privado, com ou sem entradas pagas, com ou sem fim lucrativo).
Isto tudo tal como já assumido no processo, em várias decisões nele produzidas de que acima se deu conta. Sendo que a causa de pedir das pretensões formuladas pela autora têm assim apenas a ver com os direitos que possam advir do contrato invocado e não do exercício de outros poderes que se pudessem considerar terem-lhe sido atribuídos pela lei (designadamente pela Lei e DL já citados), pois que não foram esses, claramente, aqueles que a autora exerceu neste processo (apesar de os invocar com abundância no seu requerimento/petição inicial).
Posto isto,
Em Junho de 2014 a autora enviou uma factura à ré dos direitos que esta tinha de pagar pela utilização de obras que a autora gere. A ré não pagou essa factura, nem a devolveu.
Essa factura dizia respeito, entre o mais, ao pagamento dos direitos por um concerto que tinham sido calculados com base numa lotação possível de 3000 lugares/bilhetes com o valor de 6€ por bilhete [= 18.000€ x 5% = 900€]. Isto tendo em conta a condição geral válida também para a tabela 9 dos recintos ao ar livre reflectida no ponto 7 dos factos provados: com entradas pagas efectua-se a cobrança de 5% da importância correspondente à lotação completa do recinto com os mínimos acima referidos.
Por queixa do artista que realizou aquele concerto, a autora concluiu que o concerto tinha tido muitos mais espectadores do que aqueles que estavam em causa naquela lotação (doc.9, fls. 35 a 39).
Desde Julho de 2014, a autora tentou convencer a ré a fornecer-lhe dados para o envio de uma factura que correspondesse aos direitos pelo número de espectadores da lotação real (doc.9, fls. 35 a 39). Como não conseguiu chegar a acordo com a ré, em Janeiro de 2015 enviou-lhe uma segunda factura com o valor correspondente à diferença entre os direitos pedidos na primeira factura e aqueles que julgava serem devidos com base no número de bilhetes que seria possível vender para ocupar a área real do espaço em causa, ou seja: 1ha = 10.000m2 x 1 por 0,5m2 = 20.000 espectadores x 6€/bilhete = 120.000€ x 5% = 6000€. A primeira factura tinha, nesta parte, o valor de 900€, pelo que a segunda teve o valor de 5100€, com o total já referido de 6000€.
A ré também não pagou esta factura (de 5100€).
Em Julho de 2015, depois de uma nova feira realizada pela ré, a autora enviou uma terceira factura, relativa aos espectáculos e concertos de 2015. Relativamente a quatro concertos, dados no espaço em causa em 4 dias seguidos (de 6 a 13 de Junho de 2015), fez aquele mesmo cálculo.
A ré entende que não tem de pagar direitos calculados sobre um número de espectadores possíveis para uma dada lotação e como se todos eles fossem espectadores que tivessem pago bilhetes para aquele concerto.
*
Posto isto,
Já resulta do que antecede, que em relação à primeira factura, de 2014, a ré não tem nem tinha nenhum motivo para não a pagar, tanto que não a devolveu nem disse nada quanto a ela até vários meses depois de a ter recebido. Na oposição à pretensão da autora neste processo, a ré vem dizer que as conversações que decorreram na segunda metade de 2014 conduziram a um acordo que tinha que ter influência sobre o valor da factura de 2014. Mas não só não provou qualquer acordo, como não provou que fosse possível essa influência retroactiva, nem que ela alguma vez tivesse estado na mente de qualquer das partes, nem, muito menos, que essa possível influência retroactiva tivesse alguma lógica: a 1.ª factura tinha sido calculada em termos perfeitamente normais, sem qualquer alteração tentada unilateralmente pela autora.
Quanto à segunda factura, a rectificativa do valor da primeira, muito haveria a dizer – para além do já dito na discussão da matéria de facto e daquilo que facilmente decorre do que acabou de ser dito e daquilo que resultará do que se dirá a seguir em relação à terceira factura -, mas não tem interesse dizê-lo, visto que a sentença recorrida, que foi de absolvição da ré quanto a essa factura, transitou nessa parte.
Quanto à terceira factura: quer a testemunha da ré, engenheiro director executivo da mesma, quer a ré, quer o tribunal, dão grande enfase à alegada grande diferença de valores pedidos pela autora em 2015 comparados com os de 2014. Sugerem uma progressão escandalosa e incompreensível entre a 1ª, 2.ª e 3.ª factura. Mas sem qualquer razão. A 2.ª factura de 2014 já foi explicada. E a factura relativa aos espectáculos e concertos de 2015 tem praticamente os mesmos valores da 1.ª factura de 2014, excepto no que se refere, tal como no caso da 2.ª factura, aos valores pedidos por 4 concertos de 2015. Se descontarmos os 4 concertos de 6, 9, 12 e 13 de Junho de 2015, cada um deles com os valores de 6194,70€, e por cada um deles aplicarmos o valor inicial de 900€, a factura de 2015, de 28.408,80€ passa para 7230€, ou seja, menos que os valores pedidos em 2014 (de 9100€). Portanto, a justificação para as diferenças é clara e o problema que se põe é, no essencial, o mesmo que em relação à 2.ª factura.
Esse problema é o seguinte: a autora podia unilateralmente entender que o valor de direitos a pagar pela ré, pelos concertos, não devia ser o pagamento correspondente a uma lotação calculada sobre 3000 pessoas a pagarem um bilhete de 6€, mas sim um valor calculado como se a lotação possível fosse de 20.000 pessoas a pagarem um bilhete de 6€ para entrarem no recinto para ouvir o concerto?
Em relação à alteração consubstanciada pela 2.ª factura a autora alegava que tinha procedido à alteração com o consentimento da ré e não o provou minimamente.
Em relação aos valores pedidos pela 3.ª factura, a autora não alegava nada de útil: dizia, como se viu, que “já no ano de 2015, deslocou–se a funcionária da Delegação Regional de… ao espaço em causa para verificação do mesmo e, bem assim, para reunir com a ré para que fosse possível apurar os montantes a cobrar para a Feira Nacional de… para esse ano. Nesse sentido, foi em 20/07/2015 emitida a factura 30/6280/15, no valor de 28.408,80€ […].” Ora, daqui não resulta que a ré disse que a lotação era aquela, ou que aceitou que o fosse, ou que aceitou que a autora pedisse os valores correspondentes à mesma, ou seja o que fôr. Há um vazio absoluto de alegação. Embora a autora pareça pressupôr que era necessário um acordo para o efeito, nada diz sobre a existência do mesmo, passando à frente da questão. Não se sabe, pois, qual a razão que a autora dá para considerar que tinha o direito de impor a nova base de cálculo dos direitos a pagar pela ré pelos concertos daquela semana de 2015.
Ora, mesmo que fosse possível, pela via da integração do contrato (art. 239 do CC), criar uma regra contratual que dissesse que quando as informações dadas pela ré não correspondessem à realidade, a autora poderia calcular os direitos e facturá-los com base em dados verdadeiros, mesmo isto não daria à autora a possibilidade de facturar à ré como o fez. Por um lado, porque não se provou – porque a autora nem sequer o tinha alegado – que o espaço em causa fosse de 1ha e tivesse capacidade para 20.000 pessoas. Por outro, porque se provou que os bilhetes pagos eram para entrar na Feira e não no espaço onde teve lugar o concerto (factos dos pontos 22 e 23). Ou, dito de outra perspectiva, as ‘entradas pagas’, expressão constante da condição geral supra referida, que está reflectida no ponto 7 dos factos provados, diz ou só pode dizer respeito a entradas pagas para o recinto em causa. Não tem sentido cobrar percentagens sobre entradas pagas para a feira toda, porque não há nenhum facto que permita dizer que as pessoas que pagam para entrar na feira vão ao concerto.
Assim, da 3.ª factura há que retirar os valores de 6194,70€ para cada um dos 4 concertos de 6 a 13 de Junho de 2015 e substituí-los por 900€ x 4 correspondentes aos direitos calculados com base nas informações que a ré tinha dado à autora e que tinham servido de cálculo para os valores de 2014.
Isto porque, quanto aos demais valores da 3.ª factura, a de Julho de 2015, a ré não tinha razões para os discutir, tendo em conta, por um lado, que foi dado como provado e não foi posto em causa que os direitos a pagar pela ré resultam de informações prestadas previamente à autora pela ré a que depois são aplicados valores que constam de condições da autora (factos 3 a 8) a que se segue a facturação, naturalmente de acordo com aquelas informações e estas condições; e que, por isso, por outro lado, só aquilo em que era patente que havia desacordo é que se pode dizer, com certeza, que não resultou de informações fornecidas pela ré à autora, mas de dados unilateralmente considerados pela autora (factos dos pontos 12, 20, 21 e 21-A).
*
Da contradição da sentença?
A diferença entre o agora decidido e a sentença recorrida tem então a ver com o facto de esta considerar que os factos dos pontos 3 a 8 demonstram a existência de acordo entre a autora e a ré para os cálculos dos direitos pedidos, enquanto aqui se está a considerar que esses factos provam esse acordo só em parte, isto é, esse acordo não abrange, claramente, a matéria dos pontos 12, 13, 20, 21 e 21-A em que é nítido que os dados que serviram de cálculo aos direitos da autora não foram, quanto aos concertos de 6 a 13 de Junho, fornecidos pela ré, mas sim unilateralmente colocados pela autora.
Mas daqui não resulta que exista contradição na sentença, mas sim aquilo que este tribunal considera um erro de julgamento: a sentença considera que não pode condenar a ré pela 2.ª factura de 2014 por não ter havido acordo entre a autora e a ré quanto aos valores em causa, e considera que é possível condenar a ré pelos valores relativos aos concertos de 6 a 13 de Junho de 2015 por ter havido acordo quanto a eles, tal como em relação à primeira factura.
O facto de não haver a contradição apontada, não impede que a argumentação implícita tenha sido considerada e tenha conduzido à constatação do erro de julgamento apontado agora.
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Custas quanto à acção
A autora pedia 42.608,80€. A ré vai condenada a pagar 16.330€. Logo, a autora perdeu relativamente a 26.278,80€, isto é, 61,67% do total, e a ré em relação a 38,33%.
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Custas quanto ao recurso
A ré foi condenada a pagar 37.508,80€. A ré queria, com o recurso, ser totalmente absolvida do pedido, mas vai condenada a pagar 16.330€, o que representa 45,54% daquele valor. A autora, por sua vez, perdeu em relação a 54,46% do mesmo valor.
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Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso, revogando-se a sentença na parte em que ordena o pagamento total da 3ª factura, substituindo-a por esta decisão em que se condena a ré a pagar à autora, relativamente a essa factura, apenas o valor de 7230€, ficando assim a condenação da ré a ser a seguinte: a ré vai condenada a pagar à autora 16330€ [9100€ da 1.ª factura e 7230€ da 3.ª factura], acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação, até efectivo e integral pagamento.
Custas de parte da ré, na acção, pela autora em 61,67%.
Custas de parte da autora, na acção, pela ré em 38,33%.
Custas de parte da autora, no recurso, pela ré em 45,54%.
Custas de parte da ré, no recurso, pela autora em 54,46%.
Lisboa, 13/09/2018
Pedro Martins
1.º Adjunto
2.º Adjunto