Processo  do Juízo Central Cível de Angra do Heroísmo

              Sumário:

              Ao menos no caso do art. 238/1-e do CIRE o juiz não pode suspender o incidente de exoneração do passivo restante à espera da decisão de outros processos/incidentes para então proferir despacho liminar de indeferimento ou de admissão do pedido, devendo proferir decisão apenas com os elementos que constarem já do processo ou forem fornecidos até ao momento da decisão.

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

              A e P, casados entre si, depois de terem sido declarados insolventes, deduziram, a 21/09/2017, antes da realização da assembleia de credores, pedido de exoneração do passivo restante.

      Dois dos credores (dois bancos) pronunciaram-se desfavoravelmente (sem motivarem tal posição) e o mesmo veio a fazer, mais tarde, o Administrador da Insolvência este com a seguinte fundamentação:

             […]

         2 – Conforme já explanado no relatório elaborado nos termos do disposto no artigo 155 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o incumprimento generalizado das obrigações assumidas reporta-se inícios de 2014, nomeadamente nas responsabilidades assumidas junto do Banco1-SA, à qual corresponde 69,73% dos créditos reconhecidos nos presentes autos;

         3 – Por escritura pública datada de 01/09/2014 altura em que já se verificava a situação de insolvência dos devedores, procederam à transmissão de parte do património que detinham, sem qualquer contrapartida pecuniária, bem como, para sociedade na qual o pai da insolvente mulher exercia as funções de Administrador único indiciando tal facto acto de disposição/dissipação voluntariamente danosa para os credores da insolvente, e teve enquanto único objectivo retirar da sua disponibilidade patrimonial registral o bem imóvel em causa, na medida em que os insolventes permaneceram a residir no imóvel alienado até à presente data, e sobre o qual recai ainda hipoteca voluntária reconhecida nos autos a favor do Banco2-SA.

           4 – Pelo supra exposto, e verificados os pressupostos constantes do art. 238/1-d-e do CIRE, quer pela não apresentação à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, e ainda pelo seu agravamento com a dissipação voluntária danosa de parte do património que dispunham para salvaguarda dos credores, o AJ pronuncia-se desfavoravelmente […]

        Os insolventes vieram pronunciar-se sobre o que tinha sido dito pelo AI, impugnando, entre o mais, a alegação de que a alienação tinha sido feita sem qualquer contrapartida pecuniária (e terão, segundo diz o despacho recorrido que se transcreve a seguir, apresentado documentação para provar isso) e as conclusões que o AI retira dos factos que alega, e deram notícia de terem impugnado a resolução da venda do imóvel efectuada pelo AI.

         A 22/06/2016 foi decidido que a decisão a proferir neste incidente de exoneração do passivo restante aguardasse pelas decisões a proferir na acção de impugnação da resolução feita pelo AI e em sede do incidente de qualificação da insolvência já instaurado.      

                Isto com a seguinte fundamentação, em síntese (depois de se dizer que não foram alegados factos de onde se possa retirar a verificação dos requisitos legalmente exigidos para preenchimento do art. 238/1-d do CIRE):

        Os insolventes impugnaram o facto de a alienação não ter tido qualquer contrapartida pecuniária e, no decurso da assembleia de credores, bem como com a acção de impugnação da resolução, foi apresentada documentação tendente a confirmar esta sua alegação.

            Como resulta do excerto da fundamentação da posição do sr. AI, pese embora o prédio em questão tenha sido alienado pelos insolventes, certo é que se mantém a hipoteca sobre ele constituída em benefício de um dos credores dos insolventes, para além de que foi resolvido tal negócio em benefício da massa insolvente.

               A resolução deste negócio foi já impugnada.

       É manifesto que a decisão a ser proferida em tal acção de impugnação terá, ou poderá ter, repercussões relativamente ao pedido ora em apreço, bem como o que vier a ser decidido em sede de incidente de qualificação da insolvência, já instaurado; isto para efeitos do previsto no art. 238/1-e do CIRE.

        Os insolventes vêm recorrer de tal despacho – para que seja revogado e substituído por despacho inicial de exoneração do passivo restante, que, concomitantemente, declare encerrado imediatamente o processo de insolvência, para este fim, iniciando-se aí o período de 5 anos de cessão do rendimento disponível dos insolventes aos credores -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

        1- Ao abrigo do disposto no art. 239/1 do CIRE, estava o tribunal a quo obrigado a proferir despacho inicial de exoneração do passivo restante dos insolventes.

         2- Do conteúdo do art. 243/1 do CIRE retira-se que o despacho inicial de exoneração do passivo restante é sempre meramente provisório, nunca definitivo; ele pode ser revogado pelo tribunal sempre que se mostre verificada alguma ou algumas das circunstâncias previstas nas diversas alíneas do art. 243/1.

      3- Se, na pendência do período da cessão de rendimentos, for apurada a existência das circunstâncias referidas nas alíneas b, e e f do art. 238/1 do CIRE ou for proferida decisão do incidente de qualificação da insolvência desfavorável aos insolventes, estará o tribunal em condições de recusar, em definitivo, a exoneração do passivo restante.

       4- Uma vez que a culpa dos insolventes, no âmbito dos incidentes de resolução em benefício da massa insolvente e de qualificação de insolvência, não se presume – como diz, e bem, nesta parte, o tribunal a quo, no despacho recorrido -, ela não pode fundamentar o adiamento do despacho inicial de exoneração do passivo restante; deve isso sim, na dúvida, determinar uma decisão favorável, que tem, como acima se disse, carácter meramente provisório;

      5- Veja-se a este propósito o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 30/06/2015, proferido no âmbito do proc. n.º 1140/11.6TBLRA.C1.

       6- Assim, o tribunal a quo tinha que seguir um de dois caminhos possíveis: indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante – hipótese que foi, desde logo, expressamente afastada pelo próprio tribunal – ou proferir despacho inicial de exoneração – sendo que, nesta última hipótese, poderia sempre e em qualquer caso revogar essa decisão, nos termos dos arts 243 e 246 do CIRE, nomeadamente, caso venham a ser proferidas decisões desfavoráveis aos insolventes no âmbito dos incidentes de resolução em benefício da massa insolvente e de qualificação de insolvência.

          7- Dos arts 235, 236/1, 237-b e 239/1, conjugados entre si e com o art. 230/1-e do CIRE, resulta que no despacho inicial de exoneração do passivo restante se encerra imediatamente o processo de insolvência para este efeito, iniciando-se aí o período de 5 anos de cessão do rendimento disponível do insolvente aos credores.

        8- De outro passo, o encerramento para este efeito do processo de insolvência não impede o prosseguimento dos incidentes ainda pendentes.

        9- Assim sendo, deve interpretar-se restritivamente os arts 230/1-e, 233/7 e 239/2 do CIRE, no sentido de que com o despacho inicial de exoneração do passivo restante se encerra imediatamente (e mesmo automaticamente) o processo de insolvência, para este fim, iniciando-se aí, com aquele despacho, o período de 5 anos de cessão do rendimento disponível do devedor aos credores, sem que tal impeça que o processo continue para apreensão, liquidação e rateio pelos credores dos bens do devedor, especialmente os que já foram apreendidos antes para a massa insolvente (os que resultem do período de cessão são sempre rateados pelos credores nos termos dos arts 241 e 242 do CIRE).

       10- Por isso, a decisão recorrida tinha que observar a aplicação ao caso dos arts 230/1-e, 233/7 e 239/2, do CIRE, com a redacção em vigor, conjugados com os arts 1, 13 e 18 da CRP e os princípios nestes inscritos da dignidade da pessoa humana, da igualdade e, sobretudo, da proporcionalidade […], pois que, como os insolventes desenvolvem no corpo das alegações, está-se no âmbito da insolvência de pessoas singulares, onde se impõe o fresh start, decorrente da dignidade da pessoa humana, já que não se consente que, por regra, uma pessoa singular fique insolvente para toda a vida, impedida de gerir e fruir normalmente o seu património num determinado território. A exoneração do passivo restante, nos termos previstos na lei, é um equilíbrio razoável e necessário entre os direitos dos credores e a viabilidade económica e social do próprio devedor insolvente.

              Não foram apresentadas contra-alegações.

                                                                 *

              Questão a decidir: se em vez de pôr o incidente a aguardar as decisões da acção e do incidente referidos, o tribunal recorrido devia ter logo proferido despacho inicial da exoneração do passivo restante.

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              Decidindo:

                                                                  I

              Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, segundo o princípio geral consagrado no art. 235 do CIRE.

              O pedido para esse efeito deve ser feito no máximo até ao termo da assembleia de apreciação do relatório [elaborado pelo AI conforme o art. 155 do CIRE], ou, no caso de dispensa da realização desta, até 60 dias subsequentes à sentença que tenha declarado a insolvência (art. 236/1 do CIRE). Segue-se a possibilidade de pronúncia dos credores e do AI sobre aquele pedido (art. 236/4 do CIRE), eventualmente com um prazo de 10 dias para o efeito, e depois é proferido ou um despacho de indeferimento liminar do pedido (art. 238/2, do CIRE) ou um despacho a dar início [despacho inicial] ao período de cessão do rendimento disponível (art. 239/1 do CIRE).

              Segundo o art. 230/1-e do CIRE, prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento, quando este ainda não haja sido declarado, no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante referido no art. 237-b, ou seja o tal despacho inicial.

              O art. 233/7 do CIRE acrescenta que o encerramento do processo de insolvência nos termos do art. 230/1-e, quando existam bens ou direitos a liquidar, determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível, isto é, sem prejuízo, por isso, logicamente, da continuação do próprio incidente da exoneração e do da liquidação dos bens. Norma que foi expressamente acrescentada pelo DL 79/2017, de 30/06, para resolver uma divergência jurisprudencial e doutrinária sobre a questão (neste sentido, e dando conta desta divergência, veja-se, por último, o ac. do TRP de 13/09/2018, proc. 4419/10.0TBVLG-G.P1; essa divergência já era exposta por Alexandre Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, Almedina, 2015, págs. 540-542, e a questão já era discutida por Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE anotado, Quid Juris, 2015, págs. 828-829).

              Depois disto há três situações diferentes a considerar, na parte com interesse para o caso:

              (i) pode dar-se a cessação antecipada do procedimento de exoneração, isto é, antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, se se apurar a existência de alguma das circunstâncias referidas no art. 238/1-b-e-f, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente, ou a decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência (art. 243/1-b-c do CIRE);

              (ii)  não tendo havido lugar a cessação antecipada, o juiz decide nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor e a exoneração pode ser recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior (art. 244 do CIRE);

              (iii) a exoneração do passivo restante é revogada provando-se que o devedor incorreu em alguma das situações previstas no art. 238/1-b e seguintes [Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2016, pág. 574, diz que esta referência ao art. 238 é lapso, devia ser ao art. 243 do CIRE e dir-se-ia que tem razão], ou violou dolosamente as suas obrigações durante o período da cessão, e por algum desses motivos tenha prejudicado de forma relevante a satisfação dos credores da insolvência; a revogação pode ser decretada [Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada, págs. 872-873, dizem que a lei quis dizer ‘requerida’, sendo lapso manifesto a referência a ‘decretada’, e parece evidente que têm razão] até ao termo do ano subsequente ao trânsito em julgado do despacho de exoneração; quando requerida por um credor da insolvência, tem este ainda de provar não ter tido conhecimento dos fundamentos da revogação até ao momento do trânsito (art. 246 do CIRE).

                                                                 *

                                                                 II

              Do que antecede decorre que:

       – o período de cessão do rendimento disponível deve iniciar-se rapidamente (referindo que várias das alterações introduzidas no CIRE pela Lei 16/2012 visaram uma maior celeridade processual, veja-se Adelaide Menezes Leitão, Insolvência de Pessoas Singulares…, Estudos em Homenagem ao Prof. Lebre de Freitas, vol. II, Coimbra Editora, Julho 2013, pág. 517): daí que o despacho a indeferir liminarmente o pedido ou a admiti-lo deve ser proferido num prazo muito curto e em momentos especificamente determinados e, proferido que seja, o processo de insolvência é encerrado, precisamente para dar início ao período de cessão do rendimento disponível.

            – os fundamentos do art. 238/1-e do CIRE que permitiriam o indeferimento liminar, podem vir (i) a permitir a cessação antecipada do período de cessão iniciado se apenas tiverem sido conhecidos pelo requerente da cessação após o despacho inicial ou forem de verificação superveniente, (ii) a permitir a recusa da exoneração depois de vindo o período de cessação, (iii) a permitir a revogação da exoneração (tal não implica que se deva qualificar aquele despacho como provisório, como pretendem os insolventes; ele é um despacho definitivo, de início do período de cessão, que pode ser cessado antecipadamente; isso não o torna provisório).

           Por fim: este despacho ao menos no caso do art. 238/1-e do CIRE é proferido apenas com os elementos de prova que constarem do processo ou forem fornecidos até ao momento da decisão. Assim o diz expressamente essa alínea.

          Tem-se afirmado que pode haver produção [posterior] de prova sobre os motivos do indeferimento (veja-se, como base de tal posição, o ac. do TRL de 16/09/2010, proc. 21680/09.6T2SNT-C.L1-2), mas, ao menos no caso desta alínea (e), a norma é clara no sentido contrário.

           Também se afirma – Catarina Serra, obra citada, pág. 574, e Alexandra Menezes Leitão, em Pré-condições para a exoneração do passivo restante…, Cadernos de Direito Privado, n.º 35, Julho/Set2011, págs. 65-68 – que o juiz pode, ao abrigo do art. 11 do CIRE, averiguar os factos se o julgar necessário; mas o artigo 11 só se refere ao processo de insolvência, não genericamente aos seus incidentes e depois especifica um deles, qual seja o da qualificação da insolvência, o que logo aponta para que ele não se aplica aos outros incidentes da insolvência; para além disso, o art. 11 pode ser posto em confronto com o art. 9 que, ao contrário do art. 11, fala do processo de insolvência, “incluindo todos os seus incidentes”; no sentido restritivo, de o art. 11 do CIRE não se aplicar aos outros incidentes da insolvência, veja-se Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada, pág.120; no mesmo sentido parecem ir Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, CIRE anotado, Almedina, 2013, págs. 38-39, embora referindo vária jurisprudência em sentido contrário; assim, esta norma não se aplica a este incidente de exoneração.

          Perante isto tudo, acrescente-se que o regime em causa não prevê (i) a possibilidade de adiar o momento em que os credores e AI se devem pronunciar sobre o pedido de exoneração, sendo que esse momento, se tiver havido assembleia de credores, é nessa mesma assembleia que deve ocorrer; nem (ii) a possibilidade de os insolventes responderem à pronúncia dos credores e do AI. Tudo ao contrário do que ocorreu no caso dos autos, contrariando a necessária celeridade do incidente em causa.

                                                                 *

                                                                 III

          Posto isto, pode-se concluir que não está na lógica do sistema – principalmente depois da posição tomada pela lei (DL 79/2017) quanto à divergência sobre as consequências do despacho a dar início ao incidente e a encerrar o processo – a suspensão (art. 269 e segs do CPC) da instância antes do despacho inicial de indeferimento ou de admissão do pedido da exoneração do passivo restante.

              Mesmo que esta conclusão possa ser discutida em relação às outras hipóteses do art. 238/1 do CIRE, ela é indiscutível no caso desta alínea (e). A lei quer que o juiz decida a questão de indeferimento ou de admissão de imediato, com os elementos que tem no processo. Por isso, o art. 243/1-c do CIRE diz que o juiz deve recusar a exoneração, fazendo cessar antecipadamente o procedimento, se, depois, se vierem a apurar factos que têm a ver com o caso do art. 238/1-e do CIRE (daí que Alexandre Soveral Martins, obra citada, pág.536, lembre que “o juiz irá decidir sobre [a admissão d]o pedido de exoneração do passivo restante sem ter ainda decidido que a insolvência é culposa” [o parenteses recto foi acrescentado por este acórdão do TRL]).

              Para aqueles que invocam o art. 11 do CIRE para permitir ao juiz a averiguação oficiosa dos motivos de indeferimento, lendo a expressão processo de insolvência de modo a abranger também todos os seus incidentes, ou pelo menos este, diga-se que esta conclusão – da impossibilidade de suspensão – seria ainda mais linear por força do art. 8/1 do CIRE (“a instância do processo de insolvência não é passível de suspensão, excepto nos casos expressamente previstos neste código”), já que a expressão processo de insolvência teria que ser lida com a mesma amplitude. A verdade, no entanto, é que a necessidade de coerência sistemática, leva a que este artigo, tal como o art. 11, não possa ser lido deste modo, tendo em conta o que dispõe o art. 9 do CIRE.

                                                                 *

                                                                IV

              Dito de outro modo, o despacho recorrido compreender-se-ia se, depois de iniciado o período da cessão de rendimentos, já não se pudesse fazer cessar o incidente, apesar de se vir a verificar que havia motivos para o ter indeferido inicialmente.

              A suspensão do processo – e é nisto que se consubstancia o despacho recorrido, embora não se tenha assumido como tal – permitiria que aqueles motivos de indeferimento liminar do pedido de exoneração fossem esclarecidos num processo e num incidente que já estavam correr e onde os mesmos são, de algum modo, objecto deles.

              A verdade, no entanto, é que, por um lado, aqueles motivos de indeferimento – apurados na acção de impugnação e no incidente de qualificação – podem servir, mesmo depois de proferido o despacho inicial a dar início ao período de cessão, para, (i) antecipadamente ao fim do prazo normal da cessão, se recusar a exoneração, (ii) também para a recusar findo aquele prazo normal e (iii) ainda para a revogar mesmo depois de concedida a exoneração.

              Assim sendo, o fim prosseguido pelo despacho recorrido, já é atingido pela lei com o regime fixado e não tem razão de ser estar a tentar atingi-lo de outro modo.

           Dito de outra maneira: querendo a lei que o período de cessão se inicie, no máximo, por volta de 70 dias depois de declarada a insolvência (diz-se por volta porque pode haver várias razões para esse prazo ser ultrapassado: adiamento da assembleia, despacho de aperfeiçoamento do pedido de exoneração, eventuais diligências probatórias por alguma razão processual, mas não no caso da al. e do art. 238/1, etc.), por isso prevendo momentos específicos para ser proferido o despacho a encerrar o processo e a fazer iniciar o período de cessão, a suspensão da instância, à espera da decisão da acção de impugnação e do incidente de qualificação da insolvência, pode levar a que o início do período de cessão ocorra só muito depois, talvez mesmo anos depois, defraudando por completa o regime criado pela lei.

           E entretanto a vida dos insolventes ficaria à espera de tais decisões, eventualmente por muito tempo, numa necessária instabilidade e incerteza, que não teria vantagens para ninguém, já que os credores entretanto não vão poder receber aquilo que poderiam receber durante o período de cessão (embora este argumento, só por si não tenha muito peso, já que, ao menos no caso dos autos, os insolventes nem se propõem ceder nenhum rendimento), tudo permitindo que, ao menos em dadas condições, se pudesse dizer que a situação criada poria em causa os valores constitucionais invocados pelos recorrentes.

              É que, como diz Paulo Mota Pinto, “a exoneração do passivo restante tem como finalidade permitir a recuperação da liberdade económica do devedor em caso de sobre-endividamento, e, assim, mediatamente também ainda a protecção do seu direito ao desenvolvimento da personalidade, desde que o devedor não tenha incorrido em condutas culposas relacionadas com a insolvência, e que esta não seja uma situação recorrente. Nessa medida pode dizer-se que […] serve ainda a realização de valores constitucionalmente consagrados.” (Exoneração do passivo restante: fundamento e constitucionalidade, III Cong. de DI, Almedina, 2015, pág. 179 e mais à frente, nas págs. 190-191). Para além de que, como ainda diz este Prof., também os credores terão “normalmente interesse em que o devedor peça uma exoneração do passivo restante, caso não lhe seja possível pagar, até para voltar a ter incentivo para o exercício de uma actividade profissional, e para poder voltar a recorrer ao crédito.” (obra e local citados).

              Note-se que esta solução não corre necessariamente em benefício do insolvente, já que, recusada antecipadamente a exoneração do passivo restante, depois de iniciado o período de cessão, o insolvente pode ter estado a ceder parte dos seus rendimentos para pagamento aos credores, e os valores em causa não lhe serão devolvidos com a recusa da exoneração.

                                                                 *

                                                                 V

              Embora os insolventes pretendam que este tribunal da relação se substitua ao tribunal recorrido e profira desde já despacho a deferir a admissão do pedido, tal não é objecto deste recurso, em que a decisão recorrida se traduziu apenas na suspensão do processo. Terá que ser o tribunal recorrido, com os elementos já existentes no processo – que nem sequer constam deste apenso – que terá de deferir, ou não, a admissão do pedido. Ou seja, nem sequer é certo que o tribunal recorrido tenha que deferir, podendo indeferir se, com aqueles elementos, concluir nesse sentido.

                                                                 *

      Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revogando-se o despacho recorrido, devendo em substituição dele ser proferido um outro que indefira liminarmente o pedido ou defira a sua admissão.

          Sem custas (tendo pois os insolventes, que ganharam o recurso, direito à restituição daquilo que pagaram a título de taxa de justiça, mas não pela massa insolvente que não pugnou pela suspensão do processo nem a defendeu depois de ter sido decretada).

              Lisboa, 08/11/2018

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto