Recurso de Conservador – Processo do Juízo de Comércio de Lisboa – Juiz 3
Sumário:
I- Só têm de ser enviadas cartas registadas aos membros [sócios] das sociedades comerciais, a dar-lhes conhecimento dos procedimentos administrativos de dissolução, quando eles constem, com nome e morada, do registo – art. 8/5 do RJPADLEC.
II- De qualquer modo, tendo a carta registada enviada para a sociedade sido recebida pelo único sócio e gerente da sociedade, este deve considerar-se como notificado.
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:
O Sr. Conservador da Conservatória do Registo Comercial de Lisboa declarou a dissolução e o encerramento da liquidação da H-Lda.
H, único sócio e gerente da sociedade, interpôs recurso contencioso desse despacho.
O recurso foi julgado improcedente por sentença do Juízo de Comércio de 21/07/2018.
O sócio vem recorrer desta sentença – para que seja revogada e substituída por outra que determine a anulação da decisão de despacho do Sr. Conservador -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões úteis:
2- A sentença recorrida dá como provado que não foi enviada nenhuma carta de notificação ao sócio.
3- Tal facto é só por si suficiente para impor uma decisão diversa.
4- O artigo 8/1-a do Regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais (= RJPADLEC) dispõe que “Quando não sejam requerentes, são, consoante o caso, notificados para os efeitos do procedimento a sociedade e os sócios, ou os respectivos sucessores, e um dos seus gerentes ou administradores.”
5- A notificação do sócio recorrente foi completamente omitida.
6- O facto de o sócio recorrente ter assinado o aviso de recepção da notificação enviada para a sociedade não equivale à sua notificação.
7- Tal falta de notificação não é irrelevante, sobretudo se levarmos em consideração que o motivo que fundamentou o início do processo administrativo de dissolução da sociedade em causa foi precisamente a falta da apresentação das contas relativas aos anos de 2012 a 2016.
8- Nos termos do artigo 246/1-e [do Código das Sociedades Comerciais = CSC], a aprovação das contas do exercício e do relatório de gestão, compete exclusivamente aos sócios.
9- Atenta a insuficiência dos dados constantes da matrícula, o Conservador, por prudência, deveria ter consultado e recolhido tais dados junto da administração fiscal, dando assim cumprimento ao disposto no artigo 8/1-a do RJPADLEC.
10 a 13- A apresentação das contas em Fevereiro de 2018 relativamente aos exercícios de 2012 a 2016 nunca se poderá entender por extemporânea, uma vez que o prazo previsto no artigo 9/1-b do RJPADLEC nunca chegou a iniciar-se, pois que ele se inicia com a notificação efectuada nos termos do artigo 8/1-a do RJPADLEC e esta, relativamente ao sócio recorrente, nunca chegou a ser efectuada.
14- Ao decidir-se a dissolução e liquidação da sociedade, quando se provou que esta sempre laborou e ainda labora, não se assegurou a protecção da própria sociedade, nem de terceiros que com ela se relacionam, desvirtuando completamente o instituto do procedimento para dissolução e liquidação administrativa das sociedades.
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Questão a decidir: Se deve ser mantida a decisão de dissolução e encerramento da liquidação da sociedade.
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Foram dados como provados, os seguintes factos com interesse para a decisão desta questão:
1- H-Lda. é uma sociedade por quotas, pessoa colectiva n.º 000000, com sede em….
2- Tem por objecto social o comércio de veículos novos e/ou em segunda mão, reparações gerais de veículos e máquinas agrícolas, importação e exportação de veículos e serviços de pronto socorro.
3- Tem o capital social de 30.000€, divido em duas quotas no valor nominal de 15.000€ na titularidade de H [que é também o seu gerente, como consta da certidão da matrícula da sociedade – o que se acrescenta ao abrigo dos arts. 663/2 e 607/4, ambos do CPC].
4- Na matrícula da sociedade consta como morada do sócio ‘A’.
5- O procedimento administrativo de dissolução da sociedade foi instaurado em 03/07/2017, com fundamento no não registo da prestação de contas durante dois anos consecutivos.
6- Pelo av. 1 of. de 24/07/2017 foi averbada na matrícula da sociedade a pendência da dissolução administrativa.
7- Em 24/07/2017 foi publicado na página das publicações do Ministério da Justiça, em cumprimento do disposto no número 4 e 8 do art. 8 do RJPADLEC e art. 167/1 do CSC, o aviso à sociedade, aos credores, sócios e gerentes de que teve início o procedimento administrativo de dissolução, tendo o aviso todos os elementos previstos naquele art. 8/2.
8- Por carta recebida em 12/10/2017, a sociedade foi notificada do início do procedimento administrativo.
9- No aviso de recepção encontra-se aposta assinatura com o nome de H.
10- Em 02/02/2018 foi proferido despacho final declarando a dissolução e encerramento da liquidação da sociedade.
11- Em 02/02/2018 foi publicado um aviso na página das publicações do MJ notificando os credores, sociedade, accionistas, administradores e demais interessados de que foi proferido o despacho final no procedimento administrativo de dissolução, autuado sob o n.º 4905/2017, referente à sociedade supra identificada, com a decisão de dissolução e encerramento da liquidação, e o consequente cancelamento da matrícula da mesma. Mais ficam notificados de que dispõem do prazo de 10 dias a contar desta notificação para impugnar judicialmente, querendo, a referida decisão, nos termos do art. 12 do RJPADLEC.”
12- Por carta recebida em 14/02/2018, a sociedade foi notificada do despacho final referido em 10.
13- No aviso de recepção encontra-se aposta assinatura com o nome de H.
14- Não foi enviada nenhuma carta de notificação ao sócio H.
15- O recurso de impugnação foi remetido à CRC de Lisboa por carta registada em 26/02/2018.
16 a 20- Pelas menções dep. 50, 56, 57, 58 e 59 de 20/02/2018 (a 1.ª) e 26/02/2018 (as outras quatro) foram depositadas as prestações de contas referentes aos anos de 2012 a 2016.
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I
Se o sócio devia ter sido notificado por carta registada
Dispõe o artigo 8/5 do RJPADLEC – anexo III do DL 76-A/2006, de 29/03 – que: “A realização da publicação prevista no número anterior é comunicada à entidade comercial e aos respectivos membros que constem do registo, por carta registada.”
Ou seja, para além de os sócios (para este efeito considerados membros por força do art. 2/2 do regime em causa) serem notificados através da publicação do aviso previsto no art. 8/4 daquele regime e do art. 167/1 do CSC, os que constarem do registo são ainda notificados através de carta registada.
Naturalmente que, para se poderem considerar constantes do registo, os elementos de identificação dos mesmos devem ser os suficientes para o efeito. Quem se quer dar a conhecer de modo suficiente a poder ser comunicado através dos elementos fornecidos, dá também a sua morada completa. Ora, o único sócio da sociedade deu (os registos efectuam-se a pedido dos interesses, que preenchem modelos previstos para isso: art. 28 do Código do Registo Comercial) como sua morada apenas a localidade de ‘A’, que é, como é notório (o que se diz para os efeitos do art. 4121 e 5/1-c do CPC) uma freguesia do concelho de S e não a localização completa da residência do sócio.
Por isso, não se pode considerar, para os efeitos daquele art. 8/5, ou seja, para o efeito de lhe poder ser enviada, para notificação, ainda uma carta registada, que o sócio constasse do registo.
Pelo que, ele não tinha de ser notificado pessoalmente por carta registada.
Foi isto que a sentença recorrida decidiu, dizendo que:
“[…A] morada do sócio constante da matrícula é uma morada incompleta. Com efeito, no registo consta apenas a indicação da localidade (A).
Ora, não se exige ao Conservador que diligencie no sentido de apurar a morada actual e completa, mas apenas que proceda à notificação, com base nos elementos de que dispõe, i.e. da morada constante no registo. Estando esta morada manifestamente incompleta, a carta seria devolvida. […]”
II
A carta foi recebida pelo único sócio e gerente da sociedade.
Daí que, naturalmente, a sentença recorrida ainda diga: “[…] Acresce que, foi o Recorrente quem recebeu as cartas dirigidas à sociedade. Por conseguinte, entende-se que no caso em apreço não houve omissão desta formalidade.”
O que é evidente: se as cartas foram recebidas por ele não pode deixar de ter conhecimento do seu conteúdo e por isso tem-se por notificado.
Diz o sócio gerente que “se assim fosse, nunca existiria necessidade, nos casos de sociedades unipessoais de proceder a tal notificação, uma vez que, na maioria dos casos, a pessoa do sócio e gerente se confundem (quase) com a própria sociedade.”
Mas esquece que como as cartas dirigidas às sociedades podem ser recebidas por qualquer empregado que se encontre na sede ou local onde funciona normalmente a administração (art. 223/3 do CPC) ela não tem necessariamente de ser recebida pelo sócio-gerente e, por isso, se justifica que, ainda assim, se possa enviar carta especialmente para o sócio-gerente mesmo nas sociedades unipessoais.
De qualquer modo, no caso, as cartas foram recebidas por ele próprio que, assim, não pode fazer de conta que não as conhece e que, por isso, não foi notificado.
III
Da (des)necessidade de consulta da morada do sócio-gerente junto da administração fiscal
Na mesma linha de se continuar a considerar não notificado, o sócio-gerente insiste de que devia ter sido feita esta consulta.
Mas, perante o que já se disse, é evidente que não: o Sr. Conservador sabia que o próprio único sócio-gerente da sociedade tinha recebido as cartas e por isso não se justificava que andasse a averiguar a morada do sócio-gerente para lhe remeter novas cartas. Por outro lado, a lei só impõe que sejam notificados aqueles que constam (de forma suficiente) do registo e tal não se verifica e isso por facto que não pode deixar de ser imputado ao próprio sócio gerente.
Por fim, como é evidente, e foi fundamentadamente explicado pela Sr.ª juíza, a norma do art. 9/7 do RJPADLEC não tem nada a ver com o caso.
IV
A extemporaneidade da apresentação da constas
Finalmente, a 20/02/2018, a sociedade dignou-se apresentar as contas de 2012 a 2016 (ficando a faltar, de qualquer modo, as de 2010 e 2011).
Só que o fez depois da decisão final do procedimento, que tinha ocorrido a 02/02/2018, devidamente publicitado nesse mesmo dia, e devidamente notificado à sociedade por carta de 14/02/2018, recebida pelo próprio único sócio-gerente.
Ou seja, contas absolutamente extemporâneas, que nunca poderiam dar origem ao renascimento de uma sociedade já dissolvida e liquidada e por isso extinta, sendo por isso irrelevantes as considerações tecidas pelo sócio gerente sobre os fins do RJPADLEC.
Isto para além de que, como explica a sentença recorrida, o prazo para a regularização do depósito das contas tinha terminado a 13/11/2017 (por força do art. 9/1-b daquele regime) e não tinha sido solicitada nenhuma prorrogação.
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Pelo exposto, o recurso é improcedente.
Custas, na vertente de custas de parte (não há outras), pelo recorrente.
Lisboa, 24/01/2019
Pedro Martins
1.º Adjunto
2.º Adjunto