Processo do Juízo Local Cível de Cascais – Juiz 2

 

           Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

           J-SA, requereu, no Balcão Nacional de Arrendamento, o despejo de O-Lda, alegando ser a proprietária e senhoria do prédio arrendado àquela e que os sócios dela, em 08/08/2011, procederam à transmissão inter vivos das posições sociais que nela detinham, o que determinou a alteração da totalidade da titularidade das posições sociais, o que, à data em que ocorreu a cessão, lhe permitia denunciar o contrato de arrendamento, o que fez, sendo que a cessação ocorreu no último dia de Novembro de 2016; pede ainda que seja declarado resolvido o contrato de arrendamento.

              O-Lda deduziu oposição, impugnando o efeito jurídico que a requerente retira dos factos alegados, pois que o regime invocado pela requerente (o art. 26/6-b do NRAU – entretanto revogado pela Lei 31/2012, de 14/08) não se aplicaria in casu, atenta a data da celebração do contrato de arrendamento (1970) e por conseguinte a autora não poderia ter denunciado o contrato com base nessas normas; e excepcionando o abuso de direito, porque o que a lei procurou evitar foi que o senhorio fosse confrontado com a realização de negócios que, na prática, envolviam ter um novo inquilino embora a sociedade fosse a mesma, deixando por isso de fora as situações que envolvam transmissões por via sucessória; ora, no caso, o anterior sócio, com a transmissão apenas pretendeu promover em vida a partilha dos seus bens, deixando aos seus netos parte do património que detinha; a requerente pretende tirar partido desta transmissão, apesar de ela não se enquadrar na prevista na lei; conclui no sentido da improcedência do pedido.

              Face à oposição o processo foi remetido para o tribunal e este deu oportunidade à autora de responder à oposição, o que ela fez entre o mais impugnando os factos base da excepção deduzida.

           Realizada a audiência final, foi proferida sentença julgando eficaz a resolução do contrato de arrendamento efectuada pela autora e improcedente a excepção de abuso de direito, e, em consequência, declarou resolvido o contrato de arrendamento, ordenou o despejo do locado e condenou a ré a entrega-lo à autora livre de pessoas e bens e no estado de conservação em que o recebeu.

            A ré recorre desta sentença – para que seja revogada e substituída por outra que declare improcedente a acção, absolvendo-a do pedido -, arguindo a nulidade dela, impugnando parte da decisão da matéria de facto e insistindo no abuso do direito.

            A autora contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.

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         Questões a decidir: da nulidade; se a decisão da matéria de facto deve ser alterada; se se verifica o abuso de direito.

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        A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos que importa consignar desde já para compreensão e decisão daquelas questões:

      1- Em 30/10/1970 foi lavrada escritura pública de arrendamento da loja localizada no rés-do-chão, com entrada pelo nºs 00, sito na Rua F, da freguesia e concelho de C, figurando a requerida como arrendatária e sendo a autora a sua actual proprietária, logo senhoria.

        2- Por contrato de cessão de quotas, datado de 21/07/2011, J e S, então os únicos sócios da sociedade requerida, declararam ceder as suas quotas a V pelo valor nominal das mesmas, respectivamente 4666,67€ e 333,33€, valores que declaram ter recebido e de que deram quitação.

       3- No mesmo contrato a ré alterou a sua denominação social para O-Lda.

     4- Os factos descritos em 2 e 3 foram registados e a gerência da ré passou a ser exercida pelo seu único sócio, V.

       5- Posteriormente, por deliberação de 01/05/2014 a gerência passou a ser exercida por P, filho de V, continuando este a ser o único sócio da ré.

       6- V era, à data em que foi celebrado o contrato referido em 2, genro de J, uma vez que era casado com M, no regime de comunhão de adquiridos (regime supletivo), casamento que foi dissolvido por divórcio decretado por sentença datada de 02/07/2014.

        7- P é neto de J, por ser filho da sua filha M.

       8- A autora em 08/11/2011 enviou a seguinte carta à ré, que a recebeu a 11/11/2011 [transcreve-se na parte que importa]:

             “[…] vem, na qualidade de proprietário e senhorio da loja […] da qual V. Exª é arrendatária, comunicar a V/ Exª a intenção de proceder à denúncia do contrato de arrendamento para fins não habitacionais celebrado em 30/09/1970, respeitando a antecedência mínima de 5 anos para a denúncia do mesmo, nos termos do artigo 1101 do Código Civil, por remissão do artigo 26 n.° 6 alínea b do NRAU, em virtude do aqui signatário ter obtido conhecimento que, na data de 08/08/2011, os sócios da sociedade arrendatária procederam à transmissão inter vivos das respectivas posições sociais que detinham na sociedade, o que determinou a alteração da titularidade em mais de 50%, relativamente à titularidade das posições sociais existente à data do contrato e da entrada em vigor da actual Lei do Arrendamento Urbano, Lei n.º 7/2001.

             Assim sendo, a cessação do contrato de arrendamento sob apreciação ocorrerá no último dia útil do próximo mês de Novembro do ano de 2016, data após a qual o imóvel deverá ser deixado integralmente livre e desocupado.”

             [A redacção deste ponto foi alterada de modo a consignar a carta em causa e o que importa do a/r da mesma, conforme docs. de fls. 18 a 20, não impugnados pela ré. A anterior redacção resumia o que consta acima]

       9- À data da celebração do contrato descrito em 2 supra, P tinha 22 anos de idade e o seu irmão B tinha 26 anos.

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                                                                    Da nulidade

              A ré diz o seguinte quanto a isto:

         I- A notificação operada pela autora é ilegal e ineficaz porquanto realizada ao abrigo de normas não subsumíveis ao regime aplicável aos contratos não habitacionais, sendo que, tratando-se de declaração receptícia esta só pode produzir efeitos nos termos em que é conhecida pelo destinatário; e,

         II- Tratando-se do exercício de um direito potestativo vinculado ficará a parte que se pretende fazer valer desse direito obrigada a alegar e provar o fundamento e aplicabilidade, estando, obviamente, o direito que se pretende fazer valer dependente de uma correta invocação.

         III- O tribunal a quo incorreu no vício de não se pronunciar sobre esta matéria, alegada pela ré em sua defesa, matéria relevante para a boa decisão da causa (art. 615/1-d do CPC).

              A autora responde, em síntese, que as normas por ela invocadas na carta do ponto 8 dos factos provados, incluindo o art. 26/6-b do NRAU, tem aplicação à situação, por força da remissão para elas feita no art. 28 do NRAU, sendo que este artigo está num capítulo do NRAU que rege para os contratos de arrendamento não habitacionais celebrados antes do DL 257/95; logo, a sentença, ao invocar o art. 27 do NRAU – o artigo inicial do capítulo onde se insere o art. 28 – está implicitamente a aderir a esta fundamentação e a resolver a questão do regime aplicável em contrário do alegado pela ré; e, assim sendo, não se verifica qualquer omissão.

              Decidindo:

              Na fundamentação de direito da sentença consta o seguinte:

         “À data da celebração do negócio supra referido estava em vigor o disposto no art. 26/6-b do NRAU, aplicável ex vi art. 27 do diploma legal, sendo que segundo estas disposições legais o senhorio podia denunciar o contrato de arrendamento através de comunicação ao arrendatário com antecedência não inferior a cinco anos sobre a data em que pretendesse a cessação (art. 1101/-c do Código Civil), desde que se verifiquem os seguintes pressupostos: […]”

              Assim, é evidente que a sentença, dizendo qual era o regime aplicável, e porquê, optou por uma posição contrária à da ré, decidindo assim a questão que ela tinha levantado. Pelo que não se verifica qualquer nulidade.

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                                 Impugnação da decisão da matéria de facto

              A sentença recorrida não considerou provadas as seguintes alegações de facto:

         I- O contrato descrito em 2 destinava-se apenas a proceder à partilha em vida dos bens de J, sendo que aquilo que foi pretendido por este foi transmitir parte do seu património aos seus netos, filhos da sua filha M e de V, tendo-o feito com conhecimento de todos os seus herdeiros legais.

         II- J não transmitiu as quotas directamente aos netos por estes serem novos e inexperientes no que respeita à gestão de uma empresa.

              O tribunal disse o seguinte para fundamentar esta decisão:

         Considerou-se o depoimento das testemunhas D (apresentada pela autora) e A e J (apresentadas pela ré);

         A testemunha D referiu ser empregado da autora e sabe que a ré não transmitiu a cedência das quotas, mas sabe que as pessoas que hoje gerem a loja não são as mesmas que a geriam antes de 2011, sendo que a loja vendia malas/carteiras e agora é um pronto-a-vestir. Disse desconhecer se existe relação de parentesco entre os actuais responsáveis da ré e os anteriores.

         A testemunha A referiu ser empregada da ré há cerca de 34 anos, que o que sabe do negócio efectuado é o que lhe é transmitido pelos seus patrões, mas sabe que actualmente que é responsável pela requerida é o Sr. V (sócio) e o P, neto do Sr. J (gerente) e diz que o Sr. V aparece às vezes na loja, sendo o P quem está sempre consigo na loja.

         A testemunha J disse que foi gerente da ré e que eram ele e a sua segunda mulher, S, os sócios da ré quando transmitiram as quotas ao seu então genro V. Embora tenha referido que aquilo que pretendeu, quer ele, quer a mulher (que não era a mãe da sua filha), foi transmitir as quotas aos netos, tal não mereceu ao tribunal ser considerado como verdadeiro, não só porque não é tal o que resulta do contrato, como também pelo facto de os netos serem ambos, à data da transmissão, adultos e, embora jovens sempre poderiam ter sido ajudados pelo pai de ambos a gerir a sociedade caso o avô e a esposa deste lhes tivessem transmitido as quotas da sociedade. Para além disso a ré não referiu tal realidade na carta de resposta à carta de denúncia do contrato, que consta de fls. 60/61. Também não se considerou que J não tenha querido vender as quotas, mas sim dá-las aos netos e que tenha comunicado a vontade de doar as quotas aos netos a todos os seus herdeiros, até porque o próprio J disse ter um outro filho (logo herdeiro), que registou mas com o qual não teve nunca qualquer contacto. Não se consideraram as declarações de parte dos sócios da autora e da ré por não terem confessado qualquer facto.

              A ré diz o seguinte contra isto:

         IV- O tribunal a quo não deu como provadas aquelas alegações de facto por ter desconsiderado a prova junta aos autos – prova documental – e ainda aquela que foi produzida em sede de audiência de discussão e julgamento;

         V- A prova produzida impunha que se considerassem provadas aquelas alegações – com especial relevância para as declarações prestadas pela testemunha J, autor da transmissão das quotas, o qual declarou que com esta transmissão visou apenas deixar a favor dos seus netos o capital social da ré -, depoimentos que não foram infirmados por qualquer outra prova e ou depoimento.

              A autora responde a isto dizendo, numa síntese muito curta feita por este TRL (apenas na parte que se refere à discussão da matéria de facto) de uma muito extensa análise da prova produzida feita pela autora, incluindo a transcrição integral dos depoimentos de todas as testemunhas em que foram sublinhadas as passagens relevantes para a questão, que, (i) realmente, as testemunhas e o gerente da ré disseram o que ela invoca, mas (ii) não há prova disso, até porque a intenção do titular da quota terá sido a de tentar transmitir a quota apenas à sua filha, em detrimento de um outro filho (que reconheceu existir) mas, para evitar as posteriores reacções deste, fez a cessão dela ao então genro.

              Decidindo:

            Apesar da convincente construção feita pela autora, o que está em causa é apenas o saber se se podem dar como provadas as afirmações feitas pela ré, isto é, em síntese, de que o titular da quota, quando a transmitiu ao seu genro, o que queria era transmiti-la aos seus netos, mas como estes eram muito novos, transmitiu-a antes ao genro (note-se que a mulher do cedente também cedeu a sua quota, mas o valor desta é insignificante, pelo que faz-se apenas referência à cedência da quota do sócio J).

           Ora, sendo certo que as testemunhas e o gerente da ré – a empregada da loja, o neto P e o ex-titular da quota – depuseram de modo a confirmar isto, ou seja, a construção feita pela ré na oposição, a verdade é que não convenceram minimamente do que disseram: se o cedente queria transmitir as quotas aos netos porque é que não o fez? A explicação dada por eles não convence minimamente e para tal basta a objecção feita pela Srª juíza. A autora encarrega-se de dar, como já foi dito, uma explicação para o efeito; trata-se de uma construção plausível, da autora, apoiada na lógica das coisas e naquilo que o mais das vezes acontece, mas sem suporte suficiente na prova produzida, já que, naturalmente, nenhuma das testemunhas da ré, nem o seu gerente, o confirmou, pois que se o fizessem estariam a dizer que se tratou de um conluio para prejudicar um dos filhos do cedente. De qualquer modo, voltando à explicação dada pela ré, que era aquela que está em causa saber se ficou provada ou não, a verdade é que, para além da objecção dada pela Srª juíza, ainda há o seguinte: o neto P, que supostamente seria o destinatário efectivo da cedência – sem que se explique como é que o neto B entra nesta alegada ‘partilha em vida’ – e que, tanto ele como a empregada da loja da ré, disseram que trabalhava na loja todos os dias, não sabia se era gerente da loja ou gerente da sociedade. Ora, para além de isto ser naturalmente inacreditável, muito mais o é tendo em conta que ele tinha já, à data do depoimento, 29 anos. Qual é o gerente efectivo e em exercício de funções há mais de 4 anos, para mais com 29 anos de idade, que não sabe que é gerente de uma sociedade? Este depoimento torna logo indubitável que se fez uma construção jurídica na oposição e que as testemunhas e o seu gerente estão a depôr para a tentar confirmar e não, minimamente, a contar factos de que tenham conhecimento. De resto, a empregada da loja limitou-se a contar – quanto à alegada real intenção da cedência – o que lhe tinha sido dito pelo seu patrão, de quem se considera quase família por já trabalhar na loja há mais de 34 anos (e daí o favor que lhe esteja a fazer em depor deste modo), e quanto ao facto de o neto P estar lá a trabalhar e como gerente, vai-o repetindo como se fosse para isso que lá tivesse ido depor. E o gerente/neto P fez o mesmo, ou seja, contou, sem nenhuma convicção, aquilo que lhe teria sido dito pelo cedente seu avô. Ou seja, nenhum dos dois primeiros demonstrou ter qualquer conhecimento real da alegada intenção do cedente. Quanto ao depoimento deste é naturalmente o de alguém que sabe que está em causa a perda do locado e que, para o evitar, tenta confirmar a construção jurídica feita na oposição, mas sem dizer nada de significativo que convencesse de que tinha agido para partilhar em vida aquela parte do seu património, transmitindo-a aos seus netos. Em suma, sendo provável que o cedente tenha transmitido a quota ao seu genro para beneficiar a sua filha em detrimento do seu filho, não se acredita na versão da ré de que tenha feito a cedência da quota ao genro mas o que queria era partilhar pelos seus netos essa parte do seu património. E não se pode dar como provada a versão provável, por um lado porque não foi ela a alegada pela ré e por outro porque nenhuma testemunha a assumiu de facto.

              Pelo que a decisão recorrida está correcta e não deve ser alterada, mantendo-se, pois, aquelas alegações de facto como não provadas.

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                                 Do recurso sobre matéria de direito

              A sentença tem a seguinte fundamentação de direito:

         Como resulta da prova produzida, em 21/07/2011, os únicos sócios da ré, J e a sua mulher S, cederam todas as quotas da ré a V, pelo valor indicado no contrato, que declararam ter recebido.

         V era à data genro de J (mas não de S) e não era herdeiro legal de nenhum deles, uma vez que era casado com a filha de J no regime supletivo de comunhão de adquiridos.

         Não se tendo provado a versão da ré, a cedência de quotas referida supra foi um acto de transmissão inter vivos, que determinou a alteração das posições sociais em mais de 50% (a alteração foi de 100%).

         À data da celebração do negócio supra referido estava em vigor o disposto no art. 26/6-b do NRAU, aplicável ex vi art. 27 do diploma legal, sendo que segundo estas disposições legais o senhorio podia denunciar o contrato de arrendamento através de comunicação ao arrendatário com antecedência não inferior a cinco anos sobre a data em que pretendesse a cessação (art. 1101/-c do Código Civil), desde que se verifiquem os seguintes pressupostos:

a) Ser o arrendatário uma sociedade;

b) Ocorrer nessa sociedade, após a entrada em vigor do NRAU, alteração em mais de 50% da titularidade da posição ou posições sociais;

c) Que tal alteração da posição relativa à situação existente à data seja efectuada inter vivos (nomeadamente, por compra e venda, cessão de quotas, doação, dação em pagamento, entre outras).

       No caso dos autos estão verificados todos os pressupostos enunciados: a ré é uma sociedade, a alteração ocorrida após a entrada em vigor do NRAU (e quando estava em vigor o n.º 6 do art. 26 do NRAU) foi superior a 50% da titularidade da posição social e foi efectuada por acto inter vivos, logo tem de proceder a pretensão da autora.

         Porque a autora exerceu legitimamente um direito, sem exceder os limites que lhe impõe a lei, a boa fé e os bons costumes ou o fim social ou económico desse direito, improcede o invocado abuso de direito – vd. art. 334 do CC.

              A ré diz o seguinte contra isto:

         VI- O direito exercido pela autora – denúncia do contrato de arrendamento por via de transmissão inter vivos, em posição superior a 50% do mesmo – não se subsume, no caso concreto, às disposições criadas pelo legislador por forma a evitar que o senhorio fosse confrontado com a realização de negócios que, na prática, envolviam ter um novo inquilino, embora a arrendatária – sociedade – fosse a mesma.

         VII- As transmissões por via sucessória estão excluídas no caso concreto tendo-se provado que a transmissão operada resulta apenas do facto de o anterior titular ter decidido promover, em vida, a partilha dos seus bens, o que fez com conhecimento dos seus herdeiros, legais ou testamentários, matéria que resultou assente da demonstração que o anterior sócio – J – é sogro e avô, respectivamente, do actual sócio e do gerente.

         VIII- É pois abusivo, provando-se esta factualidade, o recurso da autora ao presente mecanismo.

              A autora, na sequência daquilo que diz na discussão da decisão da matéria de facto, responde que: ainda que considerando a tese da ré de simulação do negócio, isto é, de que foi outorgada uma cessão de quotas onerosa (simulada), quando se pretendia uma partilha em vida (dissimulada), qualquer que fosse a sua forma jurídica, a argumentação da ré cai por terra, porque: (i) o alegado negócio simulado é inequivocamente uma cessão de quotas de mais de 50% do capital social da sociedade; (ii) não pode nunca incorporar uma partilha em vida, porque o cedente tem um outro filho; (iii) o cessionário nunca foi seu herdeiro legitimário e actualmente já nem sequer é seu genro ou parente e pode, por sua livre vontade e acto entre vivos mediante cessão das quotas a terceiro, ou mortis causa por novo casamento ou outros filhos, não querer ou poder cumprir a alegada intenção de partilha em vida daquele; (iv) não está provado nos autos, a existência de outro património do cedente que lhe permitisse ceder as quotas à linha sucessória da filha e ter bens para compensar a linha sucessória do seu outro filho; e (v) desconhece-se de facto a posição da própria filha sobre toda esta alegada questão sucessória, porque não prestou depoimento nos autos; e chama atenção para que a ré trata o ex-genro do cedente como se ele ainda fosse genro, o que é falso, visto que está provado que ele se divorciou da filha do cedente.

             Decidindo:

         A ré tem razão em considerar que o seu recurso sobre matéria de direito estava dependente da sua pretensão de alterar os factos provados; ora, tendo esta sua pretensão improcedido, naturalmente que a sua pretensão a nível do direito também terá que improceder.

            De qualquer modo, diga-se que o regime jurídico aplicável à denúncia do contrato, como já foi dito a propósito da questão da nulidade da sentença, era, de facto, o invocado pela autora e aplicado pela sentença: por força dos arts. 27 e 28 do NRAU (na versão originária e que estava em vigor à data da denúncia do contrato), os arts. 26/6 do NRAU e 1101 do CC aplicavam-se aos casos de contratos de arrendamento para fins não habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do DL 257/95, de 30/09, como era o caso. E por força do art. 26/6-b do NRAU, a autora podia denunciar o contrato, nos termos em que o fez, visto que esta norma fazia cessar o disposto no art. 26/4 do NRAU nos casos em que se verificasse a situação nela prevista que é a supra descrita.

              Por outro lado, a ré não tem qualquer razão em dizer que o art. 26/6 do NRAU foi entretanto revogado, pela lei 31/2012, porque não é assim na parte que importa, pois que a respectiva matéria se manteve em vigor, tendo apenas sido transferida para o lugar correcto, isto é, o art. 28, nºs. 3 e 4, do NRAU.

           Por fim, a construção da ré não tem razão de ser, pois que a lei não distingue as situações conforme os destinatários das transmissões possam ou não coincidir com aqueles que poderiam ser os beneficiários de uma transmissão por via sucessória. O que, aliás, facilmente se compreende, porque sempre seria possível alegar essa coincidência: cedia-se a quota a A e depois vinha-se dizer que no testamento estava previsto o legado da quota ao mesmo A. Ou seja, ao contrário do que a ré pressupõe, da transmissão sucessória podem ser beneficiários as mais diversas pessoas e não só os herdeiros legitimários.

        De qualquer modo, o que a lei quis impedir, com a exclusão dos casos de transmissão por morte, foram as transmissões que ocorrem de forma independente da vontade do anterior titular; neste sentido, por exemplo, Gravato Morais, Novo regime do arrendamento comercial, Almedina, 2006, pág. 42: “Explica-se a manutenção do regime em razão da transmissão da posição social não ser voluntária.” Ora, foi isso que no caso sucedeu quer na versão dada como provado, quer na versão da ré: a quota foi cedida por vontade do anterior sócio.

           De resto, nem (i) a ré provou a existência de uma partilha em vida (art. 2029 do CC), nem que mais não fosse porque não provou a existência de consentimento dos outros herdeiros legitimários, nem (ii) na partilha em vida há sucessão por morte (parafraseou-se Cristina Araújo Dias, pág. 21, anotação ao art. 21 do CC anotado, Almedina, 2018). Ou seja, continuaríamos na transmissão inter vivos.

         Por tudo isto, nunca se poderia dizer que a autora estava a agir com abuso de direito (art. 334 do CC), por se querer aproveitar da possibilidade de denúncia decorrente de uma situação que, se tivesse sido o resultado de uma transmissão por via sucessória, não lhe dava esse direito.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

              Custas do recurso, na vertente de custas de parte (não há outras), pela ré.

              Lisboa, 07/02/2019

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

             2.º Adjunto