Processo do Juízo de Execução de Almada – Juiz 2

              Sumário:

         I- Se a obrigação exequenda é determinada por dois contratos, parte do título executivo, e o embargante fiador não é parte no 2.º, ela não pode ser executada contra este.

              II- Se a tentativa de vincular o fiador pelo 2.º contrato se baseia numa cláusula do 1.º em que ele dá o seu acordo à alteração da taxa de juro, dos prazos e moratórias que sejam posteriormente acordadas entre credor e mutuários, ela não procede, porque tal cláusula é nula já que não permite a determinação concreta da obrigação principal a que, nesse caso, o fiador ficará vinculado, nem estabelece limites ou critério para isso (art. 280/1 do CC).

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

        A E veio requerer uma execução contra dois mutuários de 17.000.000$ (= 84.795,64€) e F, fiador daqueles, com base numa escritura notarial de compra e venda, mútuo com hipoteca e fiança datada de 03/03/2000, com alterações acordadas com os mutuários em 16/10/2008, “com alargamento do prazo do empréstimo e capitalização dos valores em atraso, nos termos do doc.6” (documento da E); a quantia exequenda, no que importa a estes autos, é de 81.328,60€ de capital, mais 7931,23€ de juros vencidos desde 01/11/2013 a 23/05/2017, mais 361,60€ de comissões.

              O fiador veio deduzir oposição à execução, com vista à sua extinção, alegando, em síntese, não ter dado o seu acordo, nem tão-pouco tomado conhecimento, às alterações efectuadas ao contrato de mútuo no âmbito do qual assumiu a qualidade de fiador, pelo que elas não lhe são oponíveis; não obstante constar do contrato de mútuo uma cláusula nos termos da qual dava o seu acordo às alterações contratuais que se viessem a fazer, a mesma é nula por indeterminabilidade do seu objecto, o que acarretaria nulidade parcial da fiança, nos termos do artigo 292 do Código Civil (acórdão do TRL de 06/12/2005, proc. 4858/2005-6; AUJ do STJ de 23/01/2001; ac. do STJ de 06/12/2011, proc. 669/07.5TBPTM-A.E1.S1; e ac. do TRL de 31/01/2012, proc. 1979/09.2TBTVD-A.L1-1); a alteração contratual gerou uma novação; concluiu, assim, que, como a quantia exequenda se funda na configuração contratual resultante da alteração, não pode tal quantia ser abrangida pela fiança, que apenas abarca o contrato primitivo, sem a posterior alteração; diz ainda que o requerimento executivo faz alusão ao alargamento do prazo do empréstimo, à capitalização de juros e a 03/11/2013 como sendo a data do incumprimento, embora nada disso conste do doc.6 e da nota de débito junta, pelo que desconhece se houve outras alterações contratuais, tanto mais que seria incompreensível que, tendo o contrato sido executado durante 17 anos, apenas tenham sido pagos 3467,04€, o que apontaria para o alargamento do prazo de amortização do empréstimo.

          A exequente contestou, excepcionando o conhecimento pelo fiador das alterações do contrato por lhas ter comunicado; e impugnando de direito: as alterações são oponíveis ao fiador dada a existência daquele acordo do fiador e porque, de qualquer modo, a alteração contratual surgiu na sequência do incumprimento do contrato e não abrangeu o âmago do mesmo, tendo apenas sido alteradas as taxas de juro e o spread, nomeadamente uma redução daquelas e um aumento deste, com redução a praticamente metade da taxa de juro global, consagrando condições mais favoráveis para os mutuários e fiador, ou seja, a posição do fiador não é agravada, mas sim beneficiada; a fiança não é indeterminável, porquanto o contrato estabelece os critérios de determinação da dívida; a alteração do contrato não consubstanciou uma novação; mesmo que a posição do fiador fosse agravada, então o mesmo deveria responder nos termos do contrato primitivo, sem as posteriores alterações; reconhece que fala no alargamento do prazo do empréstimo, em capitalização de juros e na data de 03/11/2013 como data da última prestação paga, mas diz que são tudo lapsos do requerimento executivo ou da nota de débito.

      Depois de realizada a audiência final, foi proferida sentença a julgar procedentes os embargos, extinguindo-se a execução relativamente ao embargante, nos termos do artigo 732/4 do CPC.

              A exequente recorre desta sentença; nas alegações, com cerca de 9 páginas de corpo, no essencial idênticas às 5 páginas de conclusões, descreve os factos de uma forma que não é coincidente com os factos dados como provados na sentença recorrida, embora não diga que impugna a decisão da matéria de facto, quer indicando os concretos pontos que considera incorrectamente julgados, quer indicando os concretos meios probatórios que imporiam sobre os pontos de facto decisão diversa da decisão recorrida; a nível de direito, a exequente considera que (em síntese feita por este TRL):

         i- tendo o fiador dado o seu acordo a quaisquer modificações da taxa de juro e bem assim às alterações de prazo ou moratórias que viessem a ser convencionadas entre a E e os mutuários, a E não tinha de chamar o fiador a assinar as alterações contratuais;

            ii- tal cláusula em nada “indetermina” o objecto da obrigação;

         iii- o objecto da execução respeita à dívida do mútuo na parte em que a fiança tem objecto determinado e onde não se levanta qualquer dúvida sobre a sua validade, sendo que o art. 292 do CC diz que a nulidade ou anulação parcial não determina a invalidade de todo o negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada”, o que caberia ao fiador provar, o que ele não fez;

    iv- as alterações contratuais assinadas pelos mutuários não importaram a extinção da obrigação do fiador, porquanto as partes expressamente acordaram que tais alterações não eram uma novação da obrigação e porque as alterações contratuais, mormente, spread e alargamento do prazo para pagamento do capital, não são condição para se aferir que tais alterações “indeterminaram” o objecto do contrato;

           v- as alterações contratuais em causa não se tratam de alterações de substância do contrato ou dos seus limites, apenas foi renegociado o spread e a taxa de juro;

         vi- a alteração do contrato, não obstante o aumento do spread, a partir do momento em que reduz praticamente para metade a taxa de juro, está, globalmente, a consagrar condições mais favoráveis para os mutuários e fiador, pelo que, o fiador não é beliscado minimamente por esta alteração.

              O fiador contra-alegou no sentido da improcedência do recurso.

                                                                 *

              Questão a decidir: se os embargos não deviam ter sido julgados procedentes.

         Como também diz o fiador, do descrito acima quanto ao teor das alegações do recurso, conclui-se que não há qualquer impugnação da decisão da matéria de facto. Para a haver, a exequente teria que ter cumprido os vários ónus que decorrem dos arts. 639/1 e 640/1 e 2 do CPC, o que manifestamente não fez. Assim sendo, os factos que importam para a decisão da questão a decidir são apenas os dados como provados pela sentença recorrida, retirados os pontos 3 e 4 por dizerem respeito a um outro contrato em que o fiador não era parte e que não foi executado contra ele [os sublinhados foram colocados por este acórdão]:

1- Consta de documento intitulado «contrato de compra e venda, mútuo com hipoteca e fiança», e subscrito por todos os sujeitos indicados infra, entre outros, os seguintes dizeres:

No dia 03/03/2000, no Cartório Notarial de S, perante mim […] respectivo notário, compareceram como outorgantes:

1.º M e L, casados (…) na qualidade de sócios gerentes em exercício e representação da M&L-Lda (…);

2.º Os mutuários A e A […];

3.º V, na qualidade de procurador da E,

4.º O executado embargante.

Declararam os 1.ºs em nome de sua representada: – Que pelo preço de 17.000.000$, já recebido, vendem aos 2.ºs, em comum e partes iguais, o seguinte: Fracção autónoma letra G […].

Disseram os 2.ºs: – Que aceitam esta venda para sua habitação própria e permanente

E por eles e o 3.º foi mais dito: – Que por esta mesma escritura, a E concede aos 2.ºs […], um empréstimo de 17.000.000$, importância de que eles se confessam desde já devedores. Este empréstimo reger-se-á pelas cláusulas constantes da presente escritura bem como pelas que constam de um documento complementar elaborado nos termos do n.º 2 do art. 64 do Código do Notariado.

Declarou o 4.º: – Que se responsabiliza como fiador e principal pagador por tudo quanto venha a ser devido à E em consequência do empréstimo aqui titulado, dando desde já, o seu acordo a quaisquer modificações da taxa de juro e bem assim às alterações de prazo ou moratórias que venham a ser convencionadas entre a credora e a parte devedora e aceitando que a estipulação relativa ao extracto da conta e aos documentos de débito seja também aplicável à fiança. Que conhece também perfeitamente o conteúdo do referido documento complementar.

Disse o 3.º: – Que para sua representada aceita a fiança prestada.

2- Consta de documento complementar, que constitui parte integrante daquele contrato, datado de 03/03/2000, subscrito pelas partes indicadas, entre outros, os seguintes dizeres:

Parte credora: E; parte devedora: os dois primeiros executados; parte fiadora: o executado embargante.

4.ª (taxa de juro) 1 – O empréstimo vence juros à taxa correspondente à média aritmética simples das taxas LISBOR a seis meses, apurada com referência ao mês imediatamente anterior ao do início de cada período semestral de vigência do presente contrato (média essa designada por indexante), acrescida de um diferencial de 2,125%, com arredondamento para o 1/16 avos por cento imediatamente superior, o que se traduz actualmente na taxa de juro nominal de 5,750% a que corresponde a taxa efectiva de 5,904%.

6.ª (mora) – Em caso de mora, os respectivos juros serão calculados à taxa mais elevada de juros remuneratórios que, em cada um dos dias em que se verificar a mora, estiver em vigor na E para operações activas da mesma natureza (actualmente 9,544%, ao ano) acrescida de uma sobretaxa até 4%, ao ano, a título de cláusula penal».

7.ª (capitalização de juros): A credora reserva-se a faculdade de, a todo o tempo e independentemente de qualquer regime especial aplicável, capitalizar juros remuneratórios correspondentes a um período não inferior a três meses e juros moratórios correspondentes a um período não inferior a um ano, adicionando tais juros ao capital em dívida, passando aqueles a seguir todo o regime deste.

8.ª (prazo de amortização) – prazo para amortização do empréstimo é de 30 anos, a contar de hoje.

9.ª (prestações) 1 – O empréstimo será amortizado em 360 prestações mensais constantes com bonificação decrescente, de capital e juros, vencendo-se a 1.ª no correspondente dia do mês seguinte ao da celebração deste contrato e as restantes em igual dia dos meses seguintes; 2 – O montante das prestações será oportunamente comunicado pela credora; 3 – No caso de virem a ser alterados o regime da amortização, o prazo de duração do empréstimo, a bonificação ou a taxa de juro, e no caso de a parte devedora proceder antecipadamente ao reembolso parcial do empréstimo, a credora fará novo cálculo das prestações a pagar, cujo montante comunicará à parte devedora.

12.ª (responsabilidade pelas despesas) 1 – Ficam de conta da parte devedora as despesas resultantes de qualquer avaliação que a credora mande efectuar ao imóvel hipotecado bem como todas as despesas relacionadas com a segurança e cobrança do empréstimo, incluindo, designadamente, honorários de advogados e solicitadores e as derivadas da celebração deste contrato e seu distrate, do registo da hipoteca e seu cancelamento ou renúncia. 2 – Se a parte devedora não pagar atempadamente qualquer das mencionadas despesas, poderá a credora fazê-lo, se assim o entender, tendo esta, nesse caso, direito ao reembolso.

15.ª A parte devedora obriga-se: a) a não dar ao imóvel hipotecado destino diferente do que ficou indicado, nem o desvalorizar por qualquer forma; b) a pagar pontualmente as contribuições por ele devidas; c) a tê-lo seguro à vontade da credora e a só por intermédio desta e com o seu acordo alterar o referido seguro; d) a reforçar a garantia prestada se a credora o exigir.

18.ª Fica convencionado que o extracto de conta do empréstimo e os documentos de débito emitidos pela E e por ela relacionados com este empréstimo serão havidos, para todos os efeitos legais e, designadamente, para efeitos do disposto no art. 50 do CPC, como documentos suficientes para prova e determinação dos montantes em dívida, tendo em vista a exigência, justificação ou reclamação judicial dos créditos que deles resultarem, em qualquer processo [este TRL transcreveu também esta cláusula – que consta do documento que serviu de prova das restantes -, porque a cláusula em discussão nos autos lhe faz referência e para assim se poder perceber o que se diz a propósito dela].

5- Foi subscrito pelos dois 1.ºs executados e pela exequente um documento datado de 16/08/2013 sob o assunto: empréstimo n.º 00350759016701785 Alteração e actualização das condições contratuais com, entre outras, as seguintes cláusulas:

Alteração de spread – O “spread contratado” passará para 2,500% a partir da prestação seguinte à data da recepção desta carta pela E, o que se traduz actualmente na taxa de juro anual nominal (TAN) de 2,836%. A esta taxa corresponde a taxa anual efectiva (TAE) de 2,873%. A TAN e a TAE são calculadas nos termos do DL 220/94, de 23/08.

Novação – A presente alteração não implica a novação do crédito, mantendo-se com plena eficácia todas as demais condições constantes do contrato inicial, que não sejam contrárias ao ora estipulado.

Âmbito das alterações – As presentes cláusulas acrescem, alteram e substituem as correspondentes cláusulas do contrato de mútuo com hipoteca e fiança relativo ao empréstimo em referência. Em tudo o que não se mostre incompatível com as presentes alterações, mantêm-se plenamente em vigor as cláusulas e condições constantes do contrato ora alterado.

6- O documento referido em 5 está apenas assinado por mutuante e mutuários, encontrando-se o local da assinatura do fiador em branco.

7- O embargante não teve conhecimento das alterações contratuais.

8- Consta da nota de débito emitida pela E com o n.º 00000/2017, entre outros, os seguintes dizeres:

N.º operação: 0000

Data do contrato: 03/03/2000

Montante em dívida/ em cobrança: 89.621,43€

Desdobramento da dívida:

Capital: 81.328,60€

Juros de 03/11/2013 a 23/05/2017: 7.931,23€

Despesas: 0,00

Comissões: 361,60€

A partir de 23/05/2017 exclusive, a dívida será agravada diariamente em 11,95€, encargo correspondente a juros calculados à taxa de 5,259%, acrescida das despesas extrajudiciais que a E efectue de responsabilidade do devedor. De harmonia com o artigo 8.º do DL 58/2013, de 08/05, aquela taxa incluiu a sobretaxa de 3% ao ano. Sobre os juros e comissões a cobrar incidirá imposto do selo à taxa em vigor, se aplicável.

9- Consta da demonstração da nota de débito n.º 00000/2017, entre outros, os seguintes dizeres:

N.º operação: 0000

Capital contratado: 84.795,64€

Saldo após última prestação paga: 89.087,59€

Data última prestação paga: 30/04/2015

Total da nota de débito: 89.621,43€

Detalhe da Nota de Débito [omitido por dificuldades de formatação] 

*

              A sentença recorrida, na parte que importa, disse o seguinte:

         Coloca-se a questão de saber se é válida a parte da cláusula do contrato de 03/03/2000 em que o fiador diz dar desde já o seu acordo a quaisquer modificações da taxa de juro e bem assim às alterações de prazo ou moratórias que venham a ser convencionadas entre a credora e a parte devedora.

         Ora, a este propósito pronunciou-se o ac. do TRL de 31/01/2012, proc. 1979/09.2TBTVD-A.L1-1, no sentido da nulidade de cláusula idêntica:

     1 – É nula parcialmente a fiança na parte em que a fiadora de obrigações resultantes de empréstimo, se assume desde logo como garante outrossim de responsabilidades resultantes de posteriores alterações que, sem sua intervenção, venham a ser convencionadas entre os adquirentes de fracção autónoma e o banco (v.g. modificações da taxa de juro).

     2 – Daí que, resultando a quantia exequenda, não dos termos do contrato inicial validamente afiançado pela executada, mas antes da configuração contratual decorrente de posterior aditamento, não pode considerar-se a mesma abrangida pela fiança, ficando assim excluída a responsabilidade da oponente/executada pelo respectivo pagamento.

     3 – Concluindo, a responsabilidade da fiança não se estende às obrigações moldadas pela versão contratual resultante de aditamento celebrado sem a intervenção da fiadora”.

         Efectivamente, de acordo com o art. 280/1 do CC, é nulo o negócio cujo objecto seja indeterminável. Exige-se, portanto, a determinabilidade do objecto, que não necessariamente a sua determinação. Significa isto que o objecto do negócio deverá ser determinável, ainda que não seja determinado.

         Ora, a cláusula supracitada não permite, a quem presta a fiança, «avaliar no futuro o conteúdo da sua obrigação, conhecer os seus limites ou, pelo menos, os critérios objectivos que lhe facultem tal conhecimento».

         Assim, há que concluir que a fiança prestada pelo embargante é parcialmente nula.

         Cumpre, agora, retirar as consequências desta nulidade parcial (art. 292 do CC) para o presente caso.

         A quantia exequenda é resultante, não do contrato de mútuo primitivo, mas sim do contrato de mútuo com as alterações subsequentes, conforme facto 5. E provou-se que o embargante não deu o seu assentimento às referidas alterações (facto 6).

         Ora, considerando esta falta de assentimento, bem como a nulidade da cláusula que prevê as posteriores alterações sem o consentimento do fiador, necessariamente se conclui que a quantia exequenda não poderá ser abrangida pela fiança prestada pelo embargante, porquanto essa fiança não contempla as posteriores alterações.

      Conclui, portanto, o tribunal que o embargante não responde pela quantia exequenda.

               Decidindo:

              Por força do art. 10/5 do CPC, toda a execução tem de ter por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva.

             Esse título é, no caso dos autos, composto, para além do mais, por dois contratos, com base nos quais a obrigação que se pretende executar foi determinada.

               O fiador só é parte no contrato de 2000, não no outro, que é de 2008.

            Logo, a obrigação exequenda foi determinada também com base num contrato que não vincularia o fiador (art. 406 do CC) e, por isso, não poderia ser executada contra ele.

              Só que, no 1.º contrato consta a tal cláusula pela qual o fiador dá o seu acordo a quaisquer modificações da taxa de juro e bem assim às alterações de prazo ou moratórias que venham a ser convencionadas entre a credora e a parte devedora (a parte restante da cláusula, que faz referência ao conteúdo da cláusula 18 do documento complementar, não tem interesse para a questão, porque um novo contrato não é um extracto de conta nem um documento de débito…).

             Assim, por força desta cláusula, o fiador também estaria vinculado, reflexamente, pelas modificações das taxas de juro e de prazos e moratórias.

               Pelo que a questão passa a ser a da validade desta cláusula.

         Ora, se ela fosse válida, a obrigação do fiador passaria a ser, objectivamente, totalmente indeterminada e indeterminável, pois que não determina a medida dessas alterações e modificações, nem estabelece um critério ou um limite para elas. A credora e os mutuários poderiam alterar os prazos do contrato, de 30 para 50 ou 100 anos, e os juros para 10, 20 ou 30%, duplicando ou triplicando o valor total da dívida. Assim sendo, conclui-se pela sua nulidade (art. 280/1 do CC).

            A exequente diz que no 2.º contrato só se alterou, ou melhor, diminuiu a taxa de juro e se alterou, ou melhor, aumentou, o spread. Ou seja, ter-se-ia melhorado, reflexamente, a posição do fiador, pois que a obrigação principal teria diminuído.

              Mas, desde logo, não foi isso que aconteceu. Dos factos dados como provados não resulta que tenha havido qualquer alteração da taxa de juro, mas apenas aumento do spread. A taxa de juro global passou a ser menor, porque a taxa de juro era, então, bastante menor, mas isso não resultou da alteração do contrato, sim da evolução natural das taxas de juros.

              Ou seja, a exequente está a alterar os factos. O 2.º contrato é um aumento do spread e, por isso, piora, e não melhora, as condições contratuais vindas do 1.º contrato. Por força das circunstâncias, e não do contrato, a taxa de juro global é actualmente inferior à inicial. Mas é inferior actualmente, não havendo qualquer garantia de, no futuro, não aumentar. E o aumento do spread, junto com essa possibilidade de aumento da taxa de juros, representa um acréscimo particularmente significativo do risco dos mutuários e, por isso (art. 627 do CC), do fiador (o que é particularmente claro, hoje, em Portugal, depois de tudo aquilo que ocorreu nos últimos anos com os swaps).

         De qualquer modo, para a validade da cláusula, não importa o que de facto aconteceu, mas o que era possível acontecer se ela fosse considerava válida, permitindo a vinculação do fiador por acordos estranhos futuros.

              A nulidade desta cláusula retira a base da vinculação do fiador pelo 2.º contrato, não importando, por isso, que não leve à nulidade total do 1.º contrato, sendo, por isso, irrelevante a discussão à volta do art. 292 do CC ou saber se houve ou não novação da obrigação.

                De qualquer modo, diga-se ainda o seguinte:

            A decisão recorrida seguiu expressamente um acórdão do TRL que decidiu um caso em que se discutia exactamente a mesma questão e nos mesmos termos e em que a exequente era a mesma destes autos. Acórdão que já era citado na oposição à execução. Por tudo isto, a exequente não podia deixar de ter conhecimento de tal acórdão. Ora, apesar de o poder fazer, pois que, como se pode ver, no caso não se verificava a dupla conforme e o valor da execução permitia o recurso, a exequente não dá notícia de ter recorrido de tal acórdão (sendo que se o tivesse feito com êxito não deixaria de dar conhecimento disso; para além disso, não há rasto de qualquer recurso desse acórdão, nem na base de dados da DGSI/IGFEJ, nem nos sumários dos acórdãos do STJ no sítio deste na internet), nem argumentou, neste recurso, contra ele.

              Por sua vez, o ac. do TRL, quanto à questão da indeterminabilidade da cláusula em causa, apoiava-se no ac. do STJ de 06/12/2011, proc. 669/07.5TBPTM-A.E1.S1, também já citado na oposição à execução, que se referia a uma cláusula com este teor: os fiadores declaram que dão “desde já o seu acordo a quaisquer alterações ao contrato designadamente da taxa de juro, prazo, moratórias ou outras que venham a ser fixadas ou convencionadas”.

              Diz o ac. do STJ: “com ela, o preenchimento dos termos da relação garantida é deixado nas mãos dos intervenientes no contrato de que emerge a relação garantida, sendo certo que os garantes, mormente a recorrente, não têm possibilidade de controlar as alterações que, depois da sua assinatura, venham a ser acordadas entre a credora e os devedores. E, por isso, nos termos do art. 280/1 do CC, as garantias cujo objecto é indeterminável são nulas, já que o que o ordenamento jurídico quer impedir é que a concretização das prestações devidas por força da garantia seja remetida ao puro arbítrio de outrem. Sendo, assim, nula toda a cláusula em apreço.”

           É certo que a exequente teve entretanto o cuidado de alterar a cláusula em questão, e agora ela já não diz que o fiador dá “desde já o seu acordo a quaisquer alterações ao contrato designadamente da taxa de juro, prazo, moratórias […]” mas sim que “dá, desde já, o seu acordo a quaisquer modificações da taxa de juro e bem assim às alterações de prazo ou moratórias […]”.

              No entanto, como é evidente, o sentido desta tentativa de contornar a limitação legal, ou seja, o sentido desta cláusula é exactamente o mesmo do da anterior, como resulta do que já se explicou, e o ac. do TRL teve o cuidado de perceber.

              Por outro lado, o que não deixa de ser sintomático da correcção do mesmo, este acórdão do TRL serviu de suporte à descrição do regime da vinculação do fiador pelas alterações contratuais decorrentes do acordo entre credor e mutuários no direito português, feita por Duarte Brito de Goes, André Fernandes Bento e Ana Sofia Rendeiro na obra colectiva International Bank and Other Guarantees Handbook, de 2017:

         “[…A]n amendment to the contract under which the Underlying Obligations arise shall have to be consented by the Guarantor in order for the latter to continue to be bound by the Guarantee, especially if the amendment results in more onerous terms to the Principal (e.g., increase of payment obligations, more demanding covenants) or is an extension of the Underlying Obligation’s maturity date (nota 65: Decision of the Appeal Court of Lisbon dated of 15/05/2014, proc. 1232/11.1TBCSC-A.L1-2, available in dgsi.pt.) [= Uma alteração ao contrato ao abrigo do qual as obrigações subjacentes surgiram terá de ser consentida pelo garante para que este continue a estar vinculado pela garantia, especialmente se a alteração resultar em termos mais onerosos para o principal].

         In order to circumvent this limitation, guarantees often include a clause under which the Guarantor gives its consent to any amendments of the Principal’s Underlying Obligations. However, such clause has been deemed null and void, as a result of breach of a civil law principle according to which guarantees shall reasonably specify the obligations in relation to which they are granted (nota 66: Lisbon Appeal Court, 31/01/2012, proc. 1979/09.2TBTVD-A.L1-1, available in dgsi.pt.) [= Para contornar esta limitação, as garantias incluem frequentemente uma cláusula sob a qual o garante dá seu consentimento para quaisquer alterações das obrigações subjacentes do principal. No entanto, tal cláusula foi considerada nula e sem efeito, como resultado da violação de um princípio de direito civil, de acordo com o qual as garantias deverão especificar razoavelmente as obrigações em relação às quais são concedidas (a tradução foi adaptada, por este acórdão, da tradução automática dada pelo Google)].

              Ainda no sentido da necessidade do consentimento do fiador a acordos entre o devedor e o credor que lhe sejam desfavoráveis, lembre-se o que é dito por Manuel Januário da Costa Gomes quanto às transacções modificativas:

         Se a transacção ocorre entre credor e devedor, a transacção só se comunica à obrigação fidejussória se for favorável ao fiador; essa é uma consequência da acessoriedade da fiança, resultando directamente dos arts. 631, 634 e 637; de outra forma, a responsabilidade – e o risco – do fiador seria aumentado à sua revelia. E em nota acrescenta: Uma transacção que se revele mais gravosa para o fiador conduz a situações delicadas: a obrigação fidejussória continua a ser acessória, pelo que, em rigor, pese embora a transacção, o fiador pode recusar-se a cumprir em condições mais gravosas (Assunção fidejussória de dívida, Almedina, 2000, pág. 1035).

              Quanto à indeterminabilidade da cláusula em causa nestes autos, embora noutra perspectiva, veja-se ainda o ac. do STJ de 27/11/2003, proc. 03B3841 (lembrado por Elsa Vaz Sequeira, na anotação 7 ao art. 280 do CC, Comentário ao CC, UCP, 2014, pág. 694):

         Ocorre uma situação de negócio jurídico de conteúdo indeterminado e indeterminável, por exemplo, quando alguém se obriga a pagar a outra o que esta ou um terceiro quiser, ou seja, quando não tenha sido determinado o objecto do negócio jurídico e as partes não tenham convencionado critérios objectivos idóneos tendentes à respectiva determinação […], ou seja, não podem as partes, ad nutum, deixar tudo ao arbítrio de uma delas ou de terceiro. Aproximando os enunciados princípios ao contrato de fiança, dir-se-á que o fiador não deve ficar à mercê do devedor principal ou do credor no que concerne à obrigação principal. A proibição da indeterminabilidade do objecto da obrigação de fiança visa evitar tal vacuidade e generalidade que exponha o fiador ao risco de afectação patrimonial derivada da imprudência do credor outorgante em contratos derivantes de obrigações principais e de o devedor principal multiplicar as suas obrigações só em razão de ter garantido o pagamento (ac. do STJ de 15/06/94, BMJ 438, pág. 471).

           Por fim, diga-se que é impossível, nesta execução, convolar a obrigação exequenda para uma obrigação moldada apenas com base no 1.º contrato, nem que mais não fosse pela forma como aquela obrigação foi determinada pela exequente (vejam-se, para além do mais, todos os problemas que resultam das questões da capitalização, da duração do prazo e da data do incumprimento, que a exequente imputa a erros do requerimento executivo e dos documentos juntos por ela). Para além disso, excluído do título parte dele, ou seja, o 2.º contrato, o 1.º, só por si, não contém elementos suficientes para valer como tal, também porque os documentos anexos, que completam o título, se reportam a um período muito posterior à alteração desse 1.º contrato pelo 2.º contrato e portanto a este e não àquele.

              Assim, a decisão recorrida está correcta e deve ser confirmada.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

              Custas, na vertente de custas de parte (não existem outras), pela exequente (que foi quem perdeu o recurso).                                                   

              Lisboa, 21/02/2019

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto