Processo do Juízo Local Cível de Lisboa
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:
A 10/12/2018, a E-Lda, instaurou um procedimento cautelar contra C-SA, pedindo que seja ratificado o embargo extrajudicial da obra que a requerida iniciou em prédio no qual a requerente tem uma fracção arrendada e a requerida intimada a dar cumprimento ao mesmo e que seja fixado o valor indemnizatório de 10.000€ por cada dia de incumprimento.
Para tanto alega, em síntese, que é arrendatária de uma loja no prédio da requerida, onde explora um restaurante; a requerida apresentou um pedido de licenciamento para a realização de obra com o intuito de instalar um hotel no imóvel e que prevê a demolição do interior do edifício; obtida a licença, a requerida denunciou o contrato de arrendamento com fundamento na necessidade de execução da referida obra, ao que a requerente se opôs. Ainda assim, a requerida deu início os trabalhos, sendo que a obra ofende o direito de arrendamento da requerente, pois foram feitas aberturas nas janelas e no soalho do último piso do edifício e foram entupidas as caleiras, o que originou infiltrações de águas no prédio; a obra teve início em 03/12/2018 e no dia 05/12/2018, pelas 16 horas, efectuou o embargo extrajudicial da obra.
A requerida deduziu oposição, impugnando a matéria alegada pela requerente e alegando que esta não é titular de qualquer direito sobre o locado, visto que o contrato de arrendamento já cessou; as obras previstas e licenciadas para o edifício onde se encontra o locado ainda não tiveram início; o documento de embargo extrajudicial junto ao requerimento inicial não reúne os requisitos exigíveis; o prejuízo decorrente da suspensão dos trabalhos seria manifestamente superior ao prejuízo alegado pela requerente.
(aproveitou-se, até aqui, no essencial, o relatório da sentença recorrida)
Depois de produzida prova, foi proferida sentença a julgar o procedimento cautelar improcedente por não provado e, em consequência, não se ratificou o embargo realizado em 05/12/2018 pela requerente no prédio da embargada.
A requerente recorre desta sentença, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. O tribunal a quo decidiu não conceder provimento por, no seu entendimento, inexistirem indícios de obra no edifício no qual se encontra o locado.
2. A obra aprovada e em manifesta execução, por iniciativa da requerida, abrange dois prédios confinantes: o do Largo R, e aquele onde se situa a fracção ocupada pela requerente.
3. Nos termos do licenciamento camarário, concernente a um único projecto hoteleiro, foi aprovada uma única obra, que fusionará os prédios confinantes, apenas um carecendo de demolição, aquele no qual se encontra a fracção ocupada pela requerente.
4. Neste quadro, a requerida celebrou com uma sociedade de construção um “Contrato de Empreitada de demolição com contenção de fachada e escavação com contenção periférica e reforço estrutural”; sublinha-se que o único edifício que carece de demolição é aquele no qual se situa a fracção ocupada pela requerente.
5. O contrato de empreitada prevê um prazo de execução de 10 meses, isto é, a demolição do edifício deverá estar concluída até ao dia 03/10/2019.
6. A requerida celebrou o contrato de empreitada, fixando aquele prazo, com a perfeita consciência e conhecimento da existência de contratos de arrendamento em vigor.
7. É manifesto, é patente, é evidente que ao pactuar como pactuou a requerida não tem qualquer consideração pelo contrato de arrendamento em vigor.
8. O tribunal a quo, ao arrepio da realidade dos factos, dos contratos, das licenças e dos alvarás de obra, optou por valorar as declarações prestadas pelo representante da requerida e testemunho prestado por trabalhador da mesma.
9. Como é possível apurar do documento 1, que se junta às presentes alegações, as declarações que asseveravam que “a requerida (só irá) avançar com a obra no outro edifício depois de despejar os inquilinos que ainda ocupam os locados, como a requerente” não correspondem à verdade dos factos, como se procurou demostrar. Sendo, como tal, um embuste destinado a iludir o tribunal.
10. Neste quadro é cristalino que o tribunal a quo avaliou mal os factos, porquanto, não entendeu que todos os factos concorrem a favor da execução do contrato de empreitada, asseverado na ideia de que, circunstancialmente, não existiam indícios no edifício no qual se encontra o locado da requerente, o que, como se viu, na presente data não corresponde à realidade (porquanto, do julgamento até à presente data, a obra tem avançado regularmente).
11. Refira-se e sublinhe-se que a execução da obra em colação (demolição) invalidará, no imediato, a eficácia da presente acção, razão pela qual o momento de realização do embargo foi e é o momento próprio e adequado, E.V. número um do artigo 397 do CPC, “cause ou ameace causar prejuízo”.
12. Numa palavra, todos os requisitos encontram-se indiciariamente preenchidos, incluindo, o da existência de obra no locado (existia à data do julgamento a ameaça, existe hoje uma evidente concretização do planeamento de obra).
A requerida contra-alegou, dizendo, no essencial, o seguinte:
– o recurso não cumpre os diversos ónus previstos nos arts. 639 e 640 do CPC, pelo que o mesmo deve ser rejeitado;
– como diz a sentença recorrida, a ratificação do embargo exige que “esteja em curso (à data da propositura do procedimento cautelar) uma obra, trabalho ou serviço recentes e inovadores”, o que não é o caso; em abono desta decisão, constitui jurisprudência pacífica que a providência cautelar de embargo de obra nova não pode ser requerida se a obra, o trabalho ou o serviço ainda não se iniciaram (vide, por todos, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/10/1993, proc. 0063126). É o que sucede, por exemplo: nos casos em que apenas existe um mero projecto de construção (neste sentido ac. do STJ de 15/10/1998, proc. 713/98, CJSTJ1998); ou se apenas foram levados a cabo trabalhos meramente preparatórios de natureza administrativa, sem qualquer execução material (ac. do STJ de 25/11/1998, proc. 98A1064), tais como a obtenção das respectivas licenças de construção ou a deposição, no local da obra, dos materiais e equipamentos necessários à sua execução.
– não se encontra entre a factualidade provada que a requerente tenha sofrido, ou esteja em risco de sofrer qualquer prejuízo, tanto que o estabelecimento explorado pela requerente permanece em funcionamento.
– dos factos sob 20 a 25 resulta que o embargo extrajudicial não foi validamente realizado, não podendo ser-lhe atribuído qualquer efeito, pelo que não podia ser judicialmente ratificado. Com efeito, o artigo 397/2 do CPC admite que seja o próprio “interessado” a “fazer directamente o embargo por via extrajudicial”, devendo, para tanto, notificar verbalmente, perante duas testemunhas, o dono da obra, ou, na sua falta, o encarregado ou quem o substituir para a não continuar. Ora, dos factos em causa decorre que não se encontra identificada qualquer pessoa como tendo sido devidamente notificada nos termos e para os efeitos daquela norma legal, sendo insofismável que o dono da obra não foi notificado, assim como não o foi o encarregado, nem quem o substituísse; termos em que o embargo extrajudicial não foi validamente realizado, sendo ineficaz para com a requerida.
– o pretenso “auto” não cumpre o disposto no art. 400 do CPC, porquanto não descreve, minuciosamente, o estado da obra (aliás não o descreve de todo), nem indica o nome do fotógrafo que terá obtido as fotografias. No sentido do supra expendido, ac. do TR de Évora, de 09/12/2009, proc. 602/09.0TBBJA.E1 […]
– Nos termos do disposto no art. 425 do CPC “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.” A requerente não apresenta qualquer justificação para a apresentação de um documento com as suas alegações, nem aduz razão para só o fazer neste momento. Termos em que deverá o documento (fotografia), junto com as alegações de recurso, ser considerado extemporâneo e, consequentemente, ser ordenado o respectivo desentranhamento e devolução à apresentante, com a correspondente condenação em multa.
– em todo o caso, sempre se dirá que a “ratificação do embargo extrajudicial” – que foi o pedido formulado pela requerente – tem de ser aferido à luz da situação que existia à data do “embargo extrajudicial” e não em qualquer outra data, seja anterior, seja posterior; e tal situação encontra-se descrita nos factos provados, os quais não foram colocados em crise.
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Questões a decidir: as prévias da admissibilidade da junção do documento e da falta de cumprimento dos ónus previstos nos arts. 639 e 640, ambos do CPC; e a da verificação, ou não, dos pressupostos da ratificação do embargo extrajudicial.
Note-se que o pedido de uma indemnização pecuniária, ou melhor, sanção pecuniária compulsória (arts. 829-A do CC e 365/2 do CPC) é autónomo do pedido de ratificação, foi indeferido e as conclusões do recurso, tal como o próprio corpo das alegações, não tocam na questão. Pelo que, nessa parte, a decisão está transitada em julgado, não sendo objecto deste recurso (arts. 639/1 e 635/4-5, do CPC).
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Da inadmissibilidade do documento
A requerida tem razão em dizer que a ratificação do embargo se tem que decidir tendo apenas em conta os factos ocorridos até à data do embargo extrajudicial.
Ora, a fotografia que a requerente pretende juntar diz respeito a facto posterior até à própria sentença recorrida.
Pelo que, é impossível encontrarem-se preenchidos os diversos requisitos, previstos nos arts. 425 e 651, ambos do CPC, para que pudesse ser junto, na fase do recurso, o documento em causa.
Assim, o mesmo terá de ser desentranhado.
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Do cumprimento dos ónus dos arts. 639 e 640 do CPC
Como decorrerá da análise da impugnação da decisão da matéria de facto e do recurso sobre matéria de direito, as alegações e conclusões do recurso são suficientes para cumprimento dos ónus dos arts. 639 e 640 do CPC.
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Foram dados como indiciariamente provados os seguintes factos com interesse para a questão a decidir [ao ponto 13 acrescenta-se agora a parte sublinhada, decorrente da procedência da parcial impugnação da decisão da matéria de facto, como fundamentado e decidido abaixo]:
- No dia 06/03/2014, a requerente celebrou um contrato denominado de “arrendamento urbano para fins não habitacionais” com o I-IP, nos termos do qual este Instituto deu de arrendamento à requerente a fracção autónoma designada pela letra “D” do prédio urbano sito na Rua da T, tornejando para a Rua N, correspondente à Loja com entrada pela Rua N e entrada de serviço pela Rua da T descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número 00 da freguesia do S e na respectiva matriz predial sob o artigo 111 da freguesia da S.
- O contrato foi celebrado pelo prazo de dez anos, com início a 01/04/2014, podendo ser renovado por iguais e sucessivos períodos de três anos.
- A requerente explora uma unidade de restauração denominada “O” no locado.
- Pela apresentação 3151 de 18/01/2016 foi registada a aquisição da fracção identificada em 1, por compra, a favor da requerida.
- A requerida tem o propósito de desenvolver no imóvel no qual se encontra inserido o restaurante da requerente um projecto de hotelaria denominado “L”.
- O último piso encontrava-se desocupado quando a requerida adquiriu o edifício ao I-IP.
- Em Janeiro de 2016, a sociedade A procedeu a diversas sondagens ao longo de todo o edifício, para avaliar a sua qualidade estrutural.
- Para poder verificar a qualidade e estabilidade da ligação das vigas de pavimento à fachada do imóvel, foram efectuadas aberturas junto à fachada em várias localizações do edifício, por forma a que fosse possível verificar visualmente a situação das vigas sob o pavimento e a qualidade das suas ligações à fachada.
- Em 29/09/2016, a requerida apresentou junto da Câmara Municipal de Lisboa o pedido de licenciamento de ampliação número 0000/XXX/2016.
- O processo de licenciamento foi aprovado no dia 09/04/2018.
- O processo de licenciamento número 0000/XXX/2016 abrange dois prédios confinantes: o do Largo R e aquele onde se situa a fracção ocupada pela requerente.
- A obra licenciada destina-se à construção do “L” e prevê a demolição integral do interior do edifício no qual se encontra inserido o locado.
- A requerida é a dona de obra e a sociedade de construção contratada é a P-Lda, contribuinte fiscal número 111111111, prevendo-se no contrato de empreitada um prazo de execução de 10 meses, devendo a mesma estar concluída até ao dia 03/10/2019.
- No dia 08/05/2018, a requerida enviou para a requerente uma carta registada com o assunto “Denúncia justificada do contrato de arrendamento”, comunicando a extinção do arrendamento com fundamento na realização de obras de remodelação e restauro profundos, destinadas a ampliação e alteração, com demolição integral do interior do edifício, devendo o locado ser entregue à requerida no prazo de 6 meses.
- Em 11/05/2018, a requerente recepcionou a carta de denúncia.
- A requerente comunicou à requerida que não aceitava a denúncia do contrato de arrendamento.
- No dia 11/11/2018 sentiu-se vento e chuva muito fortes, tendo caído água pelo tecto do restaurante.
- Nesse dia 11/11/2018, várias janelas do último piso do edifício encontravam-se abertas, na cobertura havia aberturas sem janelas e as caleiras encontravam-se cheias de água devido ao algeroz se encontrar entupido com um material duro e compacto.
- No dia 03/12/2018 foram colocados tapumes e andaimes no edifício do Largo R.
- No dia 05/12/2018, pelas 15h08 o gerente da requerente, JF, chegou ao local de obra, tendo solicitado ao Sr. Agente da Policia de Segurança Pública, H, para contactar o Dono de Obra por forma a que se procedesse à comunicação do Embargo de Obra.
- A informação transmitida pelo Sr. Agente foi de que o Dono de Obra se deslocaria ao local.
- Pelas 16h05, o representante da requerente abordou os trabalhadores da Obra, tendo solicitado que chamassem o Encarregado da Obra, por forma a dar cumprimento ao Embargo Extrajudicial.
- Os dois trabalhadores eram os únicos que se encontravam em obra.
- O representante da requerente entregou a comunicação de embargo aos trabalhadores [no] local.
- A declaração de embargo extrajudicial não contem a identificação do notificado nem a respectiva data.
- Posteriormente, em 07/12/2018, a requerente enviou, via fax, a comunicação ao Dono de Obra.
- Até à presente data foram executados trabalhos exclusivamente no edifício sito no Largo R.
- No edifício onde se situa a fracção ocupada pela requerente não foram, até à presente data, instalados os tapumes ou os andaimes de obra.
- O estabelecimento comercial restaurante “O” explorado pela requerente permanece em funcionamento.
- Com o atraso dos trabalhos de execução da obra, a requerida teria que suportar as seguintes despesas:
- a) Multa diária de 700€ devida ao empreiteiro, após os primeiros cinco dias úteis, nos termos do número 3-b(ii) da cláusula 19ª do contrato de empreitada celebrado em 26/11/2018;
- b) Custo diário de taxas de ocupação de via pública de 61,52€ (correspondente a 22.147,50 €/ 360 dias);
- c) Custo diário de taxas municipais do alvará de construção de 203,55€ (correspondente a 146.557,65 € / 360 dias x 2 anos); e
- d) Custo decorrente do adiamento do início de exploração da unidade hoteleira que ali se pretende edificar.
- A requerente não entregou o locado à requerida, tendo esta dado entrada de procedimento especial de despejo em 29/11/2018.
- Em 10/12/2018 a requerente deu entrada do presente procedimento cautelar.
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Da impugnação da decisão da matéria de facto
Das conclusões do recurso resulta de forma suficiente que a requerente quer que se acrescente aos factos provados o seguinte:
O contrato de empreitada prevê um prazo de execução de 10 meses, isto é, a demolição do edifício deverá estar concluída até ao dia 03/10/2019.
Daqui decorre também que ela afirma que estes factos não estão dados como provados e que a prova deles resulta do contrato em causa, contrato apresentado aos autos pela própria requerida.
Com isto está dado cumprimento aos ónus impostos nos arts. 639/1 e 640/1, ambos do CPC; e, para as circunstâncias do caso, a nenhuns outros havia que dar cumprimento, designadamente aos do art. 640/2 do CPC.
Posto isto,
“Na Cláusula 15/1, com a epígrafe, prazo para a execução da empreitada e sua prorrogação, está escrito: A contagem do prazo para a execução da empreitada inicia-se na data da assinatura do auto de consignação, devendo a empreitada ficar concluída, de acordo com os projectos que integram os documentos de empreitada e sem vícios, defeitos ou irregularidades, até ao dia 03/10/2019, ou seja, no prazo de 10 meses a contar da data da assinatura do auto de consignação (doravante prazo de empreitada). […]”
Assim, não há dúvida de que se pode dar como provado que o contrato de empreitada prevê um prazo de execução de 10 meses, devendo a mesma estar concluída até ao dia 03/10/2019 (o facto de tal incluir a demolição do edifício já decorre do facto provado 12).
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Do recurso sobre matéria de direito
A sentença recorrida começa por invocar o art. 397 do CPC que, sob a epígrafe ‘fundamento do embargo — embargo extrajudicial” dispõe que:
1 — Aquele que se julgue ofendido no seu direito de propriedade, singular ou comum, em qualquer outro direito real ou pessoal de gozo ou na sua posse, em consequência de obra, trabalho ou serviço novo que lhe cause ou ameace causar prejuízo, pode requerer, dentro de 30 dias a contar do conhecimento do facto, que a obra, trabalho ou serviço seja mandado suspender imediatamente.
2 — O interessado pode também fazer diretamente o embargo por via extrajudicial, notificando verbalmente, perante duas testemunhas, o dono da obra, ou, na sua falta, o encarregado ou quem o substituir para a não continuar.
3 — O embargo previsto no número anterior fica, porém, sem efeito se, dentro de cinco dias, não for requerida a ratificação judicial.
E depois, acompanhada pela requerida nas contra-alegações, a sentença recorrida diz:
“Provou-se […] que a requerida pediu e obteve junto da Câmara Municipal uma licença para realização de obra no edifício onde está situado o locado da requerente, que prevê a demolição do interior daquele edifício, incluindo da fracção arrendada à requerente.
E, bem assim, se logrou demonstrar que essa obra de demolição ainda não teve início embora já licenciada. Sabe-se apenas que foram colocados tapumes e andaimes no edifício contiguo àquele onde labora o restaurante da requerente.
Pois bem, a “suspensão” de obra, trabalho ou serviço novo, arreda da sua previsão as obras, trabalhos ou serviços concluídos, bem como os que não constituam inovação (consubstanciados em simples reconstruções de coisa já previamente construída ou modificações ou reparações superficiais), exigindo esteja em curso (à data da propositura do procedimento cautelar) uma obra, trabalho ou serviço recentes e inovadores.
‘A providência cautelar de embargo de obra nova, consistindo na suspensão ou não continuação dela (art. 412, nºs 1 e 2, do CPC), pressupõe, por um lado, que a obra já se tenha iniciado e, por outro lado, que a obra iniciada ainda não terminou” (cfr. ac. do TRL de 03/07/2009, proc. 1/08.0TBVFC-1).
No caso dos autos, verifica-se que a requerida pretende efectivamente demolir o interior do prédio e para o efeito denunciou o contrato de arrendamento com a requerente, sendo que, em virtude da requerente não abandonar o locado de livre iniciativa, a requerida intentou procedimento especial de despejo que ainda se encontra pendente.
A apresentação do pedido de despejo é antecedente à data em que a requerente começou a colocar os tapumes e andaimes no local da obra e, bem assim, ao embargo extrajudicial.
Daqui retira-se que, embora a requerida pretenda demolir o locado e tenha já obtido licença para tanto, não executou qualquer trabalho preparatório ou antecipatório ou praticou qualquer acto do qual se possa retirar que irá iniciar tal demolição enquanto a requerente ocupar o locado. Pelo contrário, o que resulta evidente dos factos provados é que a requerida está a percorrer todos os passos legalmente previstos para primeiro desocupar o locado e só depois iniciar a demolição pretendida.
Assim, não se pode concluir que a simples obtenção de licença de demolição e construção constitua uma ofensa ou ameaça ao direito da requerente, na medida em que nem os trabalhos de demolição ainda tiveram início nem a colocação de tapumes e andaimes no edifício do Largo R constitui a ofensa ou a ameaça previstas no art. 397/1 do CPC.”
A argumentação da requerente é simples: a obra empreitada incluía a demolição integral do edifício onde está instalado o locado e ela já foi iniciada. Logo, o fundamento dado para a não ratificação improcede e por isso a ratificação devia ter sido concedida.
Ora, antes de mais e para concretizar o que se disse acima quanto à questão prévia do cumprimento dos ónus de alegação, diga-se que o que antecede – que, aliás, está desenvolvido pela requerente nas conclusões do recurso – é suficiente para dar cumprimento ao art. 639/2 do CPC: sabe-se perfeitamente quais são as normas jurídicas que estão em causa – as do art. 397 do CPC – e que o sentido que lhes foi dado pela sentença recorrida é o oposto ao que lhe é dado pela requerente, pois que este devia levar à ratificação do embargo.
Posto isto,
Considera-se que a requerente tem razão: ao contrário do que dizem a sentença recorrida e a requerida, a obra, que diz respeito a dois edifícios e que inclui a demolição integral daquele onde se localiza o locado, já se iniciou (em 05/12/2018) e tem um termo já relativamente próximo, ou seja, a própria requerida e o seu empreiteiro prevêem que a demolição do edifício esteja concluída em 31/10/2019. O facto de para já ainda só se ter, aparentemente, atingido o edifício contíguo, não quer dizer que ela ainda não se tenha iniciado, mas apenas que se iniciou por outro lado. O artigo 397/1 do CPC apenas exige, no que respeito ao requisito agora em causa, que a obra causa ou ameace causar prejuízo ao direito que se quer proteger, e não existe acto que possa preencher melhor tal previsão do que o início de uma obra que prevê a demolição integral do edifício onde está instalado o local arrendado.
Os acórdãos invocados, quer pela requerida, quer pela sentença recorrida, servem antes de apoio à posição contrária a por elas defendida: não existe um mero projecto, já se iniciou a execução material da obra e ela ainda não terminou.
E não importa que ainda não se tenham verificado prejuízos, basta a mera ameaça deles e esta existe no início da obra que prevê a demolição do próprio locado onde está em funcionamento o estabelecimento do requerente (daí que Lebre de Freitas no CPC anotado com Isabel Alexandre, vol. 2.º, 3ª ed., 2017, Almedina, pág. 164 parte final da nota 4, considere controvertida a existência do prejuízo como requisito autónomo).
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Não sendo este, por isso, um obstáculo à ratificação do embargo, importa ver, no entanto, se se verificam os outros requisitos, sendo um deles, o da existência de um direito que é posto em causa pela obra iniciada.
Contra aquilo que a requerida dizia, a sentença recorrida diz que esse direito existe, com a seguinte fundamentação:
“A averiguação do preenchimento dos requisitos de que depende o decretamento da providência tem, necessariamente, que ser realizada de forma superficial ou sumária – summaria cognitio – exigindo-se apenas que o direito do requerente se apresente de forma verosímil ou provável, não sendo necessário formular um juízo de certeza, sem entrar a fundo na apreciação do direito do requerente, matéria que se reserva para a apreciação da acção definitiva.
Basta, pois, a aparência da existência do direito, situação que tem sido designada por fumus boni juris.
Importa, posto isto, averiguar a probabilidade do direito alegado pela requerente.
Dos factos acima descritos retira-se a conclusão de que está indiciariamente provado o direito de gozo da requerente sobre a fracção locada, resultante do contrato de arrendamento celebrado.
Não obstante a requerida ter já procedido à comunicação à requerente da denúncia de tal contrato, a verdade é que essa cessação da vigência do arrendamento é litigiosa, encontrando-se pendente procedimento especial de despejo no Balcão Nacional do Arrendamento que ainda não determinou a execução do despejo, pelo que sempre se conclui ser a requerida titular do referido direito, pois continua a ocupar o locado titulada pelo arrendamento.”
No entanto, mais simplesmente, está suficientemente indiciado que o arrendamento existe, isto é, que não foi extinto, porque nem sequer podia ser extinto com o fundamento invocado pela requerida.
Com efeito, o direito de denúncia para demolição, nos contratos de arrendamento para fins não habitacionais, existe apenas nos casos em que o contrato tenha duração indeterminada (é o que resulta da conjugação das normas dos arts. 1110/1, 1101/-b e 1109, todos do Código Civil, na redacção dada pela Lei 6/2006, de 27/02, mantida, no que importa, pela Lei 31/2012, de 14/08). Não existe nos casos de contratos de duração determinada (neste sentido, por exemplo, Jorge Pinto Furtado, vol. II, 2011, 5ª edição, Almedina, 2011, págs. 993/994, embora para uma redacção diferente da lei, mas que, na parte que importa, é igual; e também Fernando de Gravato Morais, Novo regime de arrendamento comercial, Almedina, Set2006, págs. 125 a 128).
Ora, no caso, o contrato de arrendamento é um contrato de duração determinada.
Assim, não se podendo concluir que o arrendamento se extinguiu, a requerente tinha um direito pessoal de gozo no ocupação do locado que lhe dava direito a embargar extrajudicialmente a obra, que ameaça destruir totalmente o local que lhe foi arrendado (art. 397/1 do CPC).
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Dos requisitos legais do embargo extrajudicial
A requerida diz que o embargo não cumpriu os requisitos impostos pelos arts. 397/2 e 400/1 do CPC: porque não estaria identificada qualquer pessoa que tenha sido devidamente notificada para o embargo, porquanto não descreve, minuciosamente, o estado da obra (aliás não o descreve de todo), nem indica o nome do fotógrafo que terá obtido as fotografias.
Ora, não tem razão desde logo porque o art. 397/2 do CPC apenas exige, para o embargo extrajudicial, uma simples notificação verbal do notificado para não continuar a obra.
Neste sentido, com vário apoio doutrinal e jurisprudencial, veja-se o ac. do TRL de 14/01/2011, proc. 2235/10.9TJLSB.L1-7: I – O embargo extrajudicial, consistente no simples aviso verbal dirigido ao responsável da obra para a não continuar […]. II – Essa intimação, meramente verbal e produzida particularmente pelo interessado na presença de duas testemunhas, não carece, para ser válida e eficaz, de ser reduzida a qualquer documento escrito, que a descreva.
Ou seja, nenhum dos requisitos do art. 400 do CPC se aplica ao embargo extrajudicial, que é apenas uma notificação verbal.
De resto, quanto à identificação da pessoa notificada do embargo, a lei não impõe, sob pena de nulidade, essa identificação, nem o podia fazer porque pode acontecer que não seja possível fazê-lo; quando, como é o caso, existe falta de colaboração do dono da obra, que não comparece apesar de contactado telefonicamente para o efeito, nem existe encarregado da obra, é natural, também, que não seja possível identificar os trabalhadores que substituam o encarregado da obra, porque os embargantes não têm poderes de autoridade para exigir a identificação das pessoas que lá se encontrem. O que importa é que tenham sido notificados do embargo pessoas que, sem dúvida, se possam considerar trabalhadores da obra, e que lá não se encontrasse o dono da obra, nem o encarregado da mesma, factos a estabelecer na decisão da matéria de facto, como ocorreu no caso dos autos, sem impugnação dela nesta parte (tudo como decorre suficientemente dos pontos 20 a 25 dos factos provados).
Quanto à descrição da obra, o caso diz respeito a uma obra que se tinha iniciado naquele momento com a colocação de andaimes (facto 19) e é isso que resulta do auto feito pela requerente; o qual, conjugado com as fotografias, sempre teria que ser mais do que suficiente… para outros efeitos, designadamente para estabelecer a eventual violação do embargo, pois que possibilita a confrontação do que existia com o que foi feito posteriormente; e, na dúvida, tal correrá contra a embargante que não poderá fazer prova da violação do embargo.
Assim, conclui-se que não se verifica nenhum vício no auto de embargo extrajudicial.
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Quanto à questão do prejuízo que o embargo pode causar, que, segundo diz a requerida, na contestação, seria manifestamente superior ao alegado pela requerente:
O prejuízo da requerida poderia ser tomado em consideração, ao abrigo do art. 401 do CPC, mas tal prejuízo, decorrente dos factos provados que constam do ponto 30 resultam do próprio contrato de empreitada voluntariamente celebrado pela requerida, para a realização da obra que se considera ilícita porque põe em causa o direito da requerente no pressuposto de que já não existe quando existe. Por outro lado, a obra que se embargou irá, se permitida a sua continuação, implicar a destruição do local arrendado, na prática levando à sua extinção irremediável. Considera-se por isso que o prejuízo causado à requerida com a impossibilidade de continuar a obra não é, de forma alguma, consideravelmente superior ao da requerente.
O prejuízo da requerida também poderia ser considerado ao abrigo dos arts. 374/2 e 376do CPC, obrigando à prestação de caução pela requerente como condição da concessão da providência. Mas face ao já assinalado, considera-se que não se justifica que assim se decida, pois que a actuação da requerida tem como pressuposto que o direito da requerente não existe, e aqui já se chegou a conclusão diversa.
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Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, pelo que se revoga a sentença recorrida e se substitui por esta decisão que agora ratifica o embargo extrajudicial levado a cabo pela embargante no dia 05/12/2018, no prédio da embargada (que incluiu os dois edifícios contíguos), ou seja, ratifica-se a intimação da requerida para que não continue a obra que já resulta do embargo extrajudicial.
Cumpra-se (isto pela secretaria já no tribunal recorrido) o disposto no art. 400/1 e 2 do CPC (ratificação do embargo por meio de auto).
Notifique (esta parte é pelo TRL) este acórdão à requerente e à requerida (à própria requerida e ao seu mandatário).
Custas do procedimento e do recurso, na vertente de custas de parte (não existem outras), pela requerida (por ter perdido quer o procedimento quer o recurso).
Retire do processo e restitua à requerente o documento junto com o recurso, com 0,5 UC de multa (arts. 443/1 do CPC e 27/1 do RCP).
Lisboa, 09/05/2019
Pedro Martins
1.º Adjunto
2.º Adjunto