Processo do Juízo Local Cível de Mafra

              Sumário:

  1. A atribuição pelo art. 4, n.º 2, da Lei 68/93, a dadas pessoas, de legitimidade para arguir a nulidade dos actos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento, tendo por objecto terrenos baldios, bem como da sua posterior transmissão, vale como regra especial relativamente à atribuição de legitimidade a qualquer interessado pelo art. 286 do CC, pelo que prevalece sobre esta.
  2. Os arts. 52 da CRP e 1, n.º 2 da Lei 83/95 (acção popular), referem-se à defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais e do domínio público, e um baldio não é um bem daqueles nem do domínio público, pelo que não há acção popular para defesa dos baldios.
  3. Não pode ser considerado comparte de um baldio aquele que não reside na comunidade onde se situa o baldio, nem diz desenvolver aí uma actividade agro-florestal ou silvo-pastoril (art.1/3 da Lei 68/93).

              Acordam no tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

              A 24/08/2016, R e cônjuge dando-se como residentes em N, A, intentaram uma acção contra a Junta de Freguesia de V e de S e outros 8 réus, ao abrigo do disposto no artigo 12/2 da Lei 83/95 de 31/8, pedindo que seja reconhecido que a parcela identificada no artigo 3 da petição inicial é um baldio e a nulidade da venda respectiva feita pela 1ª ré à 2ª ré e seu entretanto falecido cônjuge; e seja ordenado o cancelamento da inscrição matricial referida e das descrições e inscrições prediais e a demolição da construção erigida pelos réus na aludida parcela, bem como dos muros também por eles ali construídos.

            Alegavam para tanto – em síntese e na parte que interessa à questão adiante referida – que a autora era proprietária de um prédio rústico, que confronta de norte e poente com uma parcela de terreno com cerca de 400 m2, correspondente àquela que na planta em anexo se encontra representada a cor amarela, incluindo o que na mesma está representado a cor cinzenta, e que tal parcela sempre constituiu, desde tempos imemoriais, um baldio, possuído e usado pela comunidade da JF.

            Depois dizem: 5 a 9: em data que não é possível precisar, mas há mais de 28 anos, a JF declarou vender verbalmente à 2ª ré e ao seu então cônjuge a referida parcela. O casal edificou uma casa na parcela, que consiste a parte representada a cinzento, onde passou a habitar, incluindo o respectivo agregado familiar, tendo-a inscrito na matriz em 16/02/1987, com a área coberta de 67,16 m2 e descoberta de 332,84 m2.

          E continuam – agora com transcrição ipsis verbis –: “10. A autora e seus antecessores na posse e propriedade do prédio identificado no art.1 desta PI acediam ao mesmo através de um caminho que está representado com a cor verde na planta anexa que constitui o doc.2. 11. E antes da alegada venda da parcela de 400 m2 à 2ª ré e respectivo cônjuge, usufruíam das utilidades respectivas, nomeadamente usando-o para exploração agrícola e florestal. 12. Tal acesso, mesmo depois dos factos referidos nos artigos 5 a 9 supra, continuou a ser possível até ao momento em que os réus erigiram um muro no local assinalado na mesma planta, impedindo desde então a passagem dos autores para o seu prédio.”

          Dizem ainda: dispõe o art. 4/1 da Lei 68/93 de 4/9, que os actos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento, tendo por objecto terrenos baldios, bem como da sua posterior transmissão, são nulos, nos termos gerais de direito, excepto nos casos expressamente previstos na referida Lei. Os baldios apenas eram prescritíveis ao abrigo do Código Civil de 1867, do Código Administrativo de 1940 e do actual Código Civil até à publicação do Dec.-Lei 39/76 de 19/1, devendo, no entanto, o eventual prazo de aquisição por usucapião ter-se consumado antes da entrada em vigor deste último diploma.

              E concluem: A alegada venda padece, consequentemente, de nulidade absoluta. A declaração de nulidade dos negócios jurídicos tendo por objecto um terreno baldio pode ser requerida por qualquer comparte – art. 4/2 da Lei 68/93 – qualidade esta de que os autores se encontram investidos. Estando os baldios fora do comércio jurídico, a aludida compra e venda padeceria, aliás, e também, da nulidade prevista no art. 280 do CC e tal nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado – art. 286 do CC – sendo que a condição de interessado não pode deixar de ser atribuída aos autores, face aos factos que se vêm alegando.

            Com a PI juntaram um documento da CM de M na qual consta, como data de abertura de um processo, a de 29/05/2006, e como requerente a autora.

            À excepção da Freguesia, os réus contestaram, entre o mais deduzindo a excepção da ilegitimidade activa dos autores (por não serem membros do Conselho Directivo do baldio, nem invocaram actuarem em representação do baldio); e impugnam parte dos factos, entre o mais, com interesse para o caso, dizendo que o edifício que a 2.ª ré e marido construíram, acabou de ser feito em 1971, tendo sido inscrito na matriz em 1987; e que desde pelo menos 1940 nunca o que é hoje o seu prédio foi utilizado pela comunidade ou por qualquer outro indivíduo a título particular.

              As partes foram convidadas a pronunciaram-se por escrito sobre as excepções deduzidas, o que os autores fizeram, concluindo pela improcedência da excepção de ilegitimidade deduzida pelos réus; depois os autores foram convidados a aperfeiçoar a sua petição inicial e a pronunciarem-se sobre outra excepção detectada pelo tribunal, o que fizeram por requerimento de 12/03/2018, entre o mais dizendo, no seu artigo 5 que “aquele terreno também foi, desde tempos imemoriais, utilizado para recolha de lenhas e de matos e, anteriormente à construção da casa por parte dos réus, também como zona de lazer pelos habitantes das mesmas freguesias; os réus responderam e a 18/09/2018 foram convidados a aperfeiçoar a contestação, o que fizeram, ao que os autores responderam a 30/10/2018.

              A 10/12/2018, o tribunal proferiu o seguinte despacho saneador, na parte que interessa:

         “Da ilegitimidade processual activa:

         Da última parte do art. 4/2-b da Lei 68/93, resulta terem legitimidade para peticionar declaração [de que a apropriação do baldio pelos réus é nula], entre as demais entidades aí mencionadas, os compartes. Sucede que a noção de comparte encontra-se vertida no art. 1/3 daquele diploma, e corresponde a, passa-se a citar: … todos os cidadãos eleitores, inscritos e residentes nas comunidades locais onde se situam os respectivos baldios ou que aí desenvolvam uma actividade agro-florestal ou silvo-pastoril [actualmente artigos 2/-b, 7/2 e 6/9-a, parte final da Lei 75/2017].

         Como escreve Jaime Gralheiro, Comentário à nova lei dos Badios, pág. 12, […] flui como consequência natural, a conclusão de que a qualidade de “comparte”, não se herda, nem se transmite por qualquer forma de direito.

         Efectivamente, “o direito de comparte radica em condições ligadas à pessoa, por ser morador ou por exercer no local uma actividade ligada à terra […]”, conforme decidiu o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09/02/1993, in Boletim do Ministério da Justiça, número 424, página 723.

         Ora, os autores declaram na petição inicial que são residentes em N, A, concelho de S, sendo que o prédio que alegam ser um baldio situa-se na União de freguesias de V e S, concelho de M. Por outro lado, omitem desenvolver qualquer actividade agro-florestal ou silvo-pastoril no reputado baldio. Donde, é evidente que os autores não são compartes daquele. Acresce que, não invocando integrar qualquer órgão do baldio ou verificar-se outra das circunstâncias mencionadas no art. 4/2 acima referido, é evidente que, ainda que demonstrassem a qualidade do prédio dos autos, sempre careceriam os demandantes de legitimidade para a presente demanda, o que desde já julgo.

         Consequentemente, não resta a este tribunal senão absolver os réus da presente instância por se verificar a excepção dilatória da ilegitimidade activa, cognoscível oficiosamente e insuprível, tudo ao abrigo do disposto nos artigos 30, 576/1-2, 577/-e, 578 e 278/1-d-3, todos do CPC, conjugado com o artigo 4/2 da Lei n.º 63/93.

         Custas da responsabilidade dos autores – cfr. artigo 527/1-2 do CPC.”

              Os autores vêm recorrer deste saneador, com as seguintes alegações:

         “Existe acordo das partes no sentido de que ocorreu uma ‘venda’ em data pelo menos anterior a 1988.

         A aferição da validade dessa ‘venda’ subsumir-se-á, assim, às disposições sobre baldios constantes do Código Administrativo vigentes até à entrada em vigor do Decreto-Lei 39/76 de 19/1 e às deste diploma até 1988.

         Ora, é indiscutível que a mesma, seja à luz das disposições do CA, seja às do DL 39/76, padece de nulidade absoluta.

         No âmbito das disposições do CA porque violadora do disposto no art. 358.

         E no que se refere ao DL 39/76, porque os terrenos baldios ali foram qualificados como estando fora do comércio jurídico (seu art. 2) e, consequentemente, ser nulo qualquer negócio jurídico tendo-o por objecto – art. 280 do CC.

         Assente que a “alienação” em apreço padece de nulidade absoluta, é manifesto que para a invocar os autores detêm legitimidade.

         O art. 52 da Constituição da República consagra o direito de petição e o direito de acção popular, nomeadamente conferindo a todos o direito de assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais (nº 3 alínea b)).

         Dando corpo àquele preceito constitucional, o art. 1/2 da Lei 83/95 – Direito de Participação Procedimental e de Acção Popular -, explicitou claramente que a mesma considerava interesses por ela protegidos, o ambiente, a qualidade de vida e o domínio público.

         O art. 2 daquela lei considera titulares de tais direitos quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda.

         Estando-se no âmbito de uma acção popular desde logo, pois, aquelas disposições conferem legitimidade activa aos autores para os pedidos formulados.

         Mas o art. 31 do CPC acrescenta que qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos tem legitimidade para propor e intervir nas acções destinadas, designadamente, à defesa do domínio público.

         A lei processual civil confere, assim, e expressamente, legitimidade aos autores para a propositura da presente acção.

         Também relevam, porém, as disposições dos artigos 280 e 286 do CPC.

         Aquele art. 280 comina com nulidade o negócio jurídico cujo objeto seja legalmente impossível, ou contrário à lei, estabelecendo o art. 286 que aquela nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal.

         A matéria alegada nos artigos 10 a 12 da PI, completada pelo alegado no nº 5 do requerimento de 12/03/2018, confere-lhes legitimidade para a presente acção.

         Ali foi alegado que a autora e os seus antecessores na posse e propriedade respectivas acediam ao prédio identificado no art. 1 da PI através do caminho explicado no respectivo art. 10, acesso que depois dos factos referidos nos arts 5 a 9 do mesmo articulado, e face ao muro erigido pelos réus deixou de ser possível.

         E mais alegaram que até à venda da parcela em questão, a autora e seus antecessores usufruíam das utilidades respectivas, usando para exploração agrícola e florestal o baldio de onde aquela parcela foi retirada.

         Esta factualidade integra o interesse exigido pelo art. 286 do CC para que tenham legitimidade para a dedução dos pedidos que formularam na acção – caso por mera hipótese académica se entenda que ela não decorre das normas da CRP, da Lei 83/95 e do art. 31 do CPC.

         A questão da legitimidade não pode, nem deve, ser subsumida como entendeu a decisão recorrida ao disposto na Lei 68/93, ou seja restringindo aos cidadãos eleitores, inscritos e residentes nas comunidades locais onde se situam os respectivos baldios ou aí desenvolvam uma actividade agro-florestal ou silvo-pastoril.

         As normas constantes daquela lei apenas se reportam aos actos de uso, fruição e administração dos baldios, situações que não se enquadram no caso dos autos.

         Mas ainda que as respectivas normas fossem aplicáveis à hipótese do presente processo, não é exacto que os autores tenham omitido desenvolver qualquer actividade daquela natureza no dito baldio, como se fez constar da decisão recorrida.

         Conforme já supra se referiu, foi alegado que a autora e seus antecessores, antes da alegada venda dos 400 metros retirados do baldio, usufruíam das utilidades respectivas, usando-o nomeadamente para exploração agrícola e florestal, utilidades de que, obviamente, deixaram de poder usufruir a partir daquele momento, – art. 11 da PI.

         E acrescentaram os autores que aquelas utilidades consistiam na recolha de lenhas e de matos, sendo também o local usado como zona de lazer, – v. nº 5 do requerimento de 12/03/2018.”

              Apenas o MP contra-alegou, defendendo a decisão recorrida.

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              Questão a decidir: se os autores não têm legitimidade para esta acção.

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              Os factos que interessam a esta decisão são os que constam do relatório supra.

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                                 Da nulidade geral e da nulidade especial

              As nulidades têm um regime geral. Mas há nulidades que não estão sujeitas a esse regime. São as nulidades especiais, admissíveis por força do art. 285 do CC (que prevê que os artigos seguintes apenas são aplicáveis na falta de regime especial).  

              O regime geral prevê que qualquer interessado pode arguir nulidades (art. 286 do CC).

              Uma das formas de estabelecer um regime especial da nulidade é a lei prever expressamente aqueles que a podem arguir, sem acrescentar que está a indicar aqueles que o podem fazer para além dos já legitimados pelo art. 286 do CC.

              (sobre nulidades e nulidades especiais ou atípicas, teve-se em conta Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, vol. II, Coimbra Editora, 1999, págs. 315 a 318, 320 a 322 e 326 a 332, Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, vol.II, 2.ª edição, Lex, 1996, págs. 382 a 391, Maria Clara Sottomayor, Comentário ao[s artigos 285 e 286 do] CC, Parte Geral, UCE, 2014, págs. 706 a 709, que indica inúmera doutrina e jurisprudência; Jorge Morais Carvalho, Os limites à liberdade contratual, Almedina, 2016, págs. 194 a 199 e anotações aos arts. 285 e 286 do CC anotado, Almedina, vol. I, 2017, págs. 350 a 356; e Carlos Ferreira de Almeida, Contratos V, Invalidade, Almedina, 2017, págs. 12 a 15, 230 a 234 e 236 a 239)

              Assim, quando a lei dos baldios [a Lei 68/93, de 04/09, com as alterações até 2014, utilizando-se a versão disponibilizada pelo sítio da PGD de Lisboa na internet; foi entretanto revogada e substituída por outra, Lei 75/2017, de 17/08, mas tal aconteceu depois de ter sido proposta esta acção; a solução não seria diferente caso se aplicasse a nova lei, face aos arts. 6/4, 6/9, 2/-b e 7; o mesmo aconteceria, também, se se aplicassem as normas dos DL 39/76 e 40/76] vem dizer no seu art. 4/2 quem são os legitimados para a arguição da nulidade que prevê no seu art. 4/1, está a dizer que o critério da legitimidade activa para a arguição da nulidade não é o do art. 286 do CC, mas sim o que ela prevê especialmente para o efeito.

              Pelo que o art. 286 do CC é afastado.

              [repare-se que na anotação de Manuel Henrique Mesquita que mais à frente se vai invocar – aqui interessam as págs. 350-351 -, o autor e também o acórdão anotado referem-se quer ao art. 286 do CC, quer ao art. 3 do DL 40/76, de 19/01, para resolver a questão da legitimidade activa de uma CM para a acção, mas tal decorreu, por um lado, da falta de aplicabilidade directa do art. 3 daquele DL, que se refere à anulação do negócio prevista no art. 1 do mesmo DL e não à nulidade; e, por outro, porque ambas as normas conduziram à falta de legitimidade]

                                                                              *

                   Da acção popular, dos bens do Estado e do domínio público

              Quanto ao direito de acção popular, previsto desde logo no art. 52 da CRP, ele refere-se, na parte que interessa, à defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais. O art. 1/2 da Lei 83/95, Direito de Participação Procedimental e de Acção Popular, refere-se, por sua vez, na parte que interessa, ao domínio público.

              Assim esta lei só podia ser vista como uma forma de estender o círculo dos legitimados para arguir a nulidade no caso dos baldios, se um baldio fosse um bem do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais ou um bem do domínio público.

              Segundo o artigo 82 da CRP, com a epígrafe ‘sectores de propriedade dos meios de produção’: “1. É garantida a coexistência de três sectores de propriedade dos meios de produção. 2. O sector público é constituído pelos meios de produção cujas propriedade e gestão pertencem ao Estado ou a outras entidades públicas. 3. O sector privado é constituído pelos meios de produção cuja propriedade ou gestão pertence a pessoas singulares ou colectivas privadas, sem prejuízo do disposto no número seguinte. 4. O sector cooperativo e social compreende especificamente: […] b) Os meios de produção comunitários, possuídos e geridos por comunidades locais; […].”

              Assim, desde logo, bens do Estado e de outras entidades públicas contrapõem-se a bens comunitários, de que são exemplo típico os baldios.

              Por sua vez, o art. 84 da CRP diz quais os tipos de bens que pertencem ao domínio público, estando a referir-se ao domínio público do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais. Não há pois bens do domínio público que sejam comunitários.

              Neste sentido, por exemplo, Manuel Henrique Mesquita na anotação ao acórdão do TR de Coimbra, de 12/04/1994, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 127, n.º 3847, págs. 342 e 343, diz que em face do DL 39/76, da actual CRP e da recente Lei 68/93, “parece inquestionável que a propriedade dos baldios pertence aos respectivos compartes”, sendo a posição contrária, de que “os baldios pertenceriam em propriedade às autarquias em cuja circunscrição territorial se situassem” “baseada principalmente na legislação anterior à revolução de 1974”, “não exist[indo] qualquer fundamento [em face do regime actual] para entender que a propriedade dos baldios pertence às autarquias em cuja área se situem. Os proprietários – proprietários segundo o regime da comunhão de mão comum ou propriedade colectiva – são inquestionavelmente os compartes.”

              E depois – pág. 344 – explica: “segundo entendimento que actualmente não suscita controvérsia, as coisas dominiais e os baldios constituem duas categorias de bens completamente distintas”, o que desenvolve de forma extensa, entre o mais com recurso ao já acima referido art. 82 da CRP, desenvolvimento que não se transcreve por já resultar, do que acima se diz, que assim se tem de entender.

              No mesmo sentido, e já citado por M. Henrique Mesquita, diz Oliveira Ascensão (Reais, 5ª edição, Coimbra Editora, 1993, págs. 173 e 174): “Como coisas comuns apareciam-nos, no Código de 1867, certas águas e os baldios. […] Quanto aos baldios, o Código de 1867 [trata-se de lapso, o autor está-se a referir ao CC de 1966] suprimiu toda a referência, tendo a orientação dominante sido no sentido de que eles se haviam tornado propriedade privada das autarquias locais. […] Esta orientação é porém invertida pelo DL 39/76, de 19/01. Aí se definem baldios os terrenos comunitariamente usados e fruídos por moradores de freguesia (art.1) […] O Tribunal Constitucional [na apreciação preventiva de um decreto da Assembleia da República] considerou que os baldios integram o sector comunitário, que é constitucionalmente garantido, e que a retirada dos baldios de tal sector tiraria sentido a este; pelo que julgou a [pretendida] passagem dos baldios ao domínio público da freguesia inconstitucional [ac. 325/89 de 04/04, no DR de 17/04/1989].”

              Ainda no mesmo sentido, Rui Pinto Duarte (Curso de Direitos Reais, 3.ª edição, Principia, 2013, pág. 64, nota 186) diz, entre o mais, que “os baldios são, certamente, o principal exemplo dos meios de produção comunitários, possuídos e geridos por comunidades locais, a que se refere o art. 82/4-da CRP.”

              Muitos outros elementos no mesmo sentido e inúmeras outras referências doutrinárias e jurisprudenciais podem ser retirados dos pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República de 24/02/1982, P001661982, e de 24/06/1999, P000531997, e dos acórdãos do STJ de 13/09/2018, proc. 512/13.6TBMNC.G1.S1, e de 15/09/2011, 243/08.9TBPTL.G1.S1.

                                                                 *

                                                    Dos compartes

              Assim, a única base legal para a decisão da questão da legitimidade activa para esta acção é realmente o art. 4/2 da Lei 63/98, pelo que, para terem legitimidade, os autores ou teriam que ser cidadãos eleitores, inscritos e residentes nas comunidades locais onde se situam os respectivos baldios, o que os autores aceitam não ser, ou teriam que desenvolver aí, ou seja, no baldio, uma actividade agro-florestal ou silvo-pastoril.

              A decisão recorrida disse que os autores não tinham alegado desenvolver no baldio uma actividade agro-florestal ou silvo-pastoril e os autores dizem que não é verdade que não o tenham alegado e remetem para o que diziam nos arts. 10 a 12 da PI.

              Mas, naqueles artigos da PI, o que os autores diziam era que antes da alegada venda da parcela de 400 m2 à 2ª ré e respectivo cônjuge, usufruíam das utilidades respectivas, nomeadamente usando-o para exploração agrícola e florestal. Ora, como a venda ocorreu, segundo os autores, pelo menos antes de 1988 e a acção foi intentada em 2016, os autores estão a dizer expressamente que, pelo menos de 1988 em diante -, mas podia ser antes – já lá iam 28 anos, nunca mais usufruíram das utilidades respectivas. E, note-se, os autores não dizem que fossem impedidos daquele uso, simplesmente reportam-no a antes da alegada venda. Mais ainda, do que dizem na parte final daquele conjunto de artigos da PI revela que a única coisa de que se queixam é da impossibilidade de acesso que faziam pelo baldio, o que só passou a acontecer com a construção do muro, que querem reabrir. Não se queixam, portanto, da impossibilidade de exercício de uma actividade que quisessem reatar.

              Assim, a decisão recorrida está certa quando diz que os autores não tinham alegado desenvolver no baldio uma actividade agro-florestal ou silvo-pastoril. Tê-lo feito há mais de 28 anos, não é estarem-no a fazer à data da petição inicial ou à data em que foi construído o muro.

              Dizem então os autores que, no art.5 do requerimento de 12/03/2018, alegaram que o local também era usado como zona de lazer. Só que os autores esquecem-se de dizer que o que aí alegaram foi que isso era feito pelos habitantes das mesmas freguesias, não disseram que fossem eles a fazê-lo, para mais não sendo eles habitantes daquelas freguesias. E, por outro lado, ‘lazer’ não é uma actividade agro-florestal ou silvo-pastoril.

              Em conclusão, os autores não são compartes do invocado baldio.

              O que quer dizer que não cabem em nenhuma das categorias de legitimados para a arguição da nulidade em causa.

              E como esta acção só tem a ver com isso e com as consequências a retirar dessa nulidade, que os autores não podem invocar, e não com a impossibilidade de acesso por um caminho que passa pelo baldio para aceder ao seu prédio, os autores não têm, como foi dito pela decisão recorrida, legitimidade para fazerem os pedidos que fazem nesta acção, porque a legitimidade processual activa, no caso, é restringida pela lei – como previsto no art. 30/3 do CPC – àqueles que estão abrangidos pelo art. 4/2 da Lei 68/93.

                                                                 *

              Os autores não se identificaram devidamente no cabeçalho da petição inicial. Nas procurações juntas identificam-se como sócia-gerente (ela) e empresário (ele). Não deram elementos para se ter conhecimento das suas situações económicas. Utilizaram uma acção popular para defesa de interesses particulares, de passagem por um prédio particular. Considera-se, por isso, que, tendo perdido o recurso, devem ser condenados a pagar metade das custas que normalmente seriam devidas, o que se diz e decide tendo em conta o art. 20/3 da Lei 83/95.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

              Os autores vão condenados em 153€ de taxa de justiça pelo recurso.

              Lisboa, 27/06/2019

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto