Processo do Juízo Local Cível de Oeiras – Juiz 1

                                

              Sumário:

              I – Se o autor não alega todos os factos essenciais constitutivos da causa de pedir (um fundamento resolutivo do contrato de arrendamento, no caso, o do art. 1083/2-d do CC) e o juiz proferir um despacho de aperfeiçoamento que o autor não satisfaz alegando os factos em falta, deverá, na sequência, ser proferido um despacho saneador-sentença que absolva o réu do pedido (art. 595/1b do CPC), porque os factos essenciais em falta já não poderão ser alegados e por isso o destino do pedido é a improcedência.

        II – Se o autor se limita a aludir à possibilidade de ter ocorrido um outro fundamento resolutivo (no caso o do art. 1083/2-e do CC) através unicamente da utilização de um conceito técnico-jurídico constante da respectiva previsão legal, sem expor quaisquer factos, verifica-se a ineptidão da petição inicial quanto a esse fundamento resolutivo, por falta de causa de pedir (art. 186/1-a do CPC), que deverá levar à anulação de todo o processado, com a consequente absolvição do réu da instância nessa parte (art. 278/1-b e 595/1-a, ambos do CPC).

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados

              A 15/11/2018, A intentou uma acção sumária [sic] contra B e outras três pessoas [um deles com o nome trocado], pedindo que seja decretada a revogação do contrato de arrendamento celebrado entre a autora e os réus, por violação do contrato de arrendamento, bem como a restituição imediata da posse do locado à autora.

            Alega para tanto, no que importa, ser possuidora de um prédio que em 27/03/2013 deu em arrendamento [não diz a quem, mas do contrato resulta que os três primeiros réus seriam os arrendatários e o outro seria fiador], para fim habitacional, com prazo de duração limitada de cinco anos, com início em 01/04/2013; e segue: 6 – em data desconhecida da autora, os réus deixaram de residir com carácter de permanência no locado, deixando de manter aí o centro da sua vida; 7 – do mesmo modo, a autora tem razão para acreditar que os réus deixaram de receber, no locado, os seus amigos e visitas, tal como deixaram de passar nele os seus momentos de descanso e lazer; 8 – e que o mesmo tenha sido sublocado, sem seu conhecimento e ao arrepio da cláusula 8.ª do contrato de arrendamento; na parte que subordina ao ‘Direito’ diz que os factos alegados nos artigos 6 a 9 [o 9 diz respeito ao fiador] demonstram que os réus deixaram de utilizar o locado para o fim contratado, assistindo, por isso, à autora o direito à resolução do contrato, ao abrigo dos artigos 1072/1, 1083/2-d e 1084/2, todos do Código Civil.

              Os réus foram citados; apenas contestou o 1.º réu, impugnando todos os factos alegados pela autora com base para a resolução do contrato.

              Ao abrigo do art. 591/2-b-4 do CPC, foi proferido despacho a convidar a autora a aperfeiçoar a sua alegação inicial quanto ao elemento temporal constitutivo do direito invocado.

              A autora apresentou nova petição em que se limitou a acrescentar o seguinte à anterior: ao artigo 6: “tendo a autora tido conhecimento desse facto em fins de Junho de 2018” e ao artigo 7: “conforme informações recebidas de vizinhos e da porteira”.

              A 24/06/2019 foi proferido, ao abrigo do art. 595/1-b do CPC, saneador-sentença julgando a acção improcedente e absolvendo os réus do pedido, com a seguinte fundamentação, em síntese, depois de se considerarem como provados os factos relativos ao contrato de arrendamento:

         O concreto fundamento invocado pela autora reside na falta de residência com carácter de permanência dos réus no locado, vindo a autora a acrescentar que teve conhecimento desse facto em finais de Junho de 2018.

          Porém, a alegação da autora, mesmo considerando o aperfeiçoamento a que foi convidada a fazer, é manifestamente insuficiente para a alegação de facto essencial à procedência do pedido deduzido na presente acção, pelo que a acção manifestamente improcede, porque inviável.

      De facto, preceitua o artigo 1083/2-d do CC: É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente quanto à resolução pelo senhorio: […] O não uso do locado por mais de um ano […].

          Perante a alegação da autora é patente que funda o despejo com base no art. 1083/2-d do CC.

         Mas, para este concreto fundamento de despejo o preceito legal impõe que o senhorio alegue, e prove, que a falta de residência permanente no locado ocorre há mais de um ano.

          Se, como causa do pedido de resolução contratual, for invocada a falta de residência permanente no locado por mais de um ano, é sobre o senhorio que recai o ónus da prova de tal circunstancialismo (artigos 1083/2 e 342/1 do CC – ac. do TRL de 24/04/2010, proc. 1447/07.7TJLSB.L1-7].

             Em suma, perante a ausência de alegação de facto essencial, constitutivo do direito invocado pela autora – a duração da ausência de permanência no locado, por período superior a um ano – a acção é ab initio manifestamente inviável, conduzindo à sua improcedência.

                                                                 *

                A autora recorre deste saneador-sentença – para que seja revogado e para que os autos prossigam para a audiência de discussão e julgamento – terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem na parte minimamente útil e com simplificações:

B) O art. 615/1-d do CPC, consagra como causa de nulidade da sentença o juiz deixar de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.

C) No acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 22/07/2010, é referido “…O juiz deve, antes de tudo, tomar em consideração as conclusões expressas nos articulados, já que a função específica destes é a de fornecer a delimitação nítida da controvérsia. Mas não só; é necessário atender, também aos fundamentos em que essas conclusões assentam, ou, dito de outro modo, às razões e causas de pedir invocadas (…). Em última análise, questão será, pois, tudo o que respeite ao litígio existente entre as partes, no quadro, tanto do pedido e da causa de pedir, como no da defesa por excepção”.

D) Ora, o tribunal fez uma análise apressada e preconceituosa, da petição inicial, prolatando uma sentença sem ter todos os factos e elementos para uma análise séria e fundamentada da questão em apreço.

E) A apreciação e análise de uma acção não se esgotam nos articulados mas com a realização da audiência de discussão e julgamento, com o depoimento das testemunhas e as declarações ou os depoimentos de parte das partes. Conforme acima citado, tudo o que respeite ao litígio existente entre as partes.

F) O tribunal ao fundamentar a sentença só no alegado não cumprimento da prova relativa ao abandono do locado referido no art. 1038/2-d, do CC, faz a sentença padecer de omissão de pronúncia, pois não se pronuncia sobre a revogação do contrato, por violação contratual do mesmo.

G) O que é pedido na petição inicial é a revogação judicial do contrato de arrendamento por violação do mesmo, por parte dos locatários, não a acção de despejo por falta de habitação do locado. E sobre este pedido, o tribunal não se pronunciou.

H) A recorrente tem 90 anos, merece que lhe seja feita justiça e tem o direito constitucional de ver o seu pedido analisado e discutido, em audiência de discussão e julgamento.

I) O que está em questão, não apreciada pelo tribunal, é a violação do art. 1038/2-f do CC, também contemplada na cláusula 8.ª do contrato de arrendamento, pelos réus pois deixaram de habitar o locado e subarrendaram a outros, sem o consentimento da senhoria/recorrente, pelo que existe flagrante violação do contrato de arrendamento.

             O réu contestante contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso.

                                                                 *

            Questão que importa decidir: se a acção não devia ter sido julgada improcedente sem produção de prova.

                                                                 *

            Os factos que interessam à decisão desta questão são os que constam do relatório deste acórdão.

                                                                 *

              Decidindo:

                                                                  I

              Na petição, com que propõe a acção, deve o autor expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção (art. 552/1-d do CPC).

              Se não tiverem sido alegados todos os factos essenciais que preenchem a previsão normativa que atribui a pretensão que o autor faz valer em juízo, mas apenas os suficientes para identificar a causa de pedir, o juiz deve proferir um despacho de aperfeiçoamento para que o autor os alegue (art. 590/2-b-4 do CPC – Lebre de Freitas, A acção declarativa, 4.ª edição, 2017, págs. 168-170; Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, 2017, pág. 634; Paulo Pimenta, Processo civil declarativo, 2.ª edição, 2017, Almedina, págs. 152 a 156 e 237 a 255).

              Se o autor não proceder ao aperfeiçoamento da petição, o juiz, neste caso, não deve deixar o processo prosseguir para julgamento, porque sabe que a acção não poderá proceder, pois que não se poderá provar pelo menos um facto essencial para o efeito (art. 595/1-b do CPC).

           (neste sentido, Lebre de Freitas, obra citada, pág. 184, diz que “convidada a aperfeiçoar os articulados, a parte corresponde ou não ao convite do juiz; em qualquer dos casos, a acção prossegue, correndo a parte o risco, quando não aperfeiçoa ou o aperfeiçoamento é insuficiente, de que a decisão de mérito lhe seja desfavorável, por inconcludência ou falta de concretização da causa de pedir, se for o autor […]”; acrescente-se aqui que o facto de a acção prosseguir não quer dizer que ela siga para julgamento; segue para o acto subsequente que, no caso, é um despacho saneador-sentença de improcedência, porque não foram alegados os factos necessários para a procedência; de resto, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, obra citada, vol. 2.º, pág. 633 dizem que: “se o aperfeiçoamento não for suficiente ou a parte nada aperfeiçoar, o juiz proferirá novo despacho, em que tirará as consequências que se impõem, despacho este recorrível” (na lógica, aplicada ao caso, de que se tratará de um saneador-sentença que julga a acção improcedente com base nessa causa de pedir); e na pág. 642, dizem que se o juiz tiver optado por convidar as partes ao aperfeiçoamento de um articulado deficiente no despacho pré-saneador “e a parte não tiver correspondido ao convite, deve entender-se precludida a possibilidade de o fazer na audiência prévia (Montalvão Machado e Paulo Pimenta, O novo processo civil, págs. 221-222)”; no mesmo sentido, veja-se Paulo Pimenta, obra citada, especialmente páginas, 245-246 e 286).

              No caso foi isso que se passou com o fundamento resolutivo expressamente invocado pela autora, embora de forma insuficiente, qual seja, o do (i) não uso do prédio arrendado (ii) por mais de um ano (art. 1083/2-d do CC), pois que esta causa de pedir compõe-se de, pelo menos (a maioria da doutrina diz que o fundamento resolutivo pressupõe ainda que se esteja perante um incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, como consta do art. 1083/2 do CC; neste sentido, apenas por exemplo, Elsa Sequeira Furtado, no CC anotado, vol. I, Almedina, 2017, págs. 1322-1323; Menezes Leitão, Arrendamento urbano, 8.ª edição, Almedina, 2107, págs. 133-134; Maria Olinda Garcia, Arrendamento urbano anotado, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2014, pág. 34; Gravato Morais, Novo regime de arrendamento comercial, 2006, Almedina, págs. 100-101; Joaquim Sousa Ribeiro, O novo regime do arrendamento urbano, Cadernos de direito privado, 14, pág. 20-21; contra, Pinto Furtado, Comentário ao RAU, Almedina, 2019, págs. 412 a 418), os dois elementos acabados de indicar, e a autora só alegou o primeiro, mesmo depois de a autora ter sido convidado a alegar o segundo.

              Note-se que se pode dizer que o juiz nem sequer devia ter convidado a autora a completar a causa de pedir, pois que a autora na petição inicial dizia que tal acontecia desde “data desconhecida da autora”. Se a autora não a conhecia, o tribunal não lhe podia pedir para a alegar, porque seria um convite à invenção de factos. Ou seja, era manifesto, desde o início que a acção era inviável quanto a este fundamento resolutivo (mais ou menos neste sentido, dizem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, vol. 2.º da obra citada, págs. 636-637, “que o convite ao aperfeiçoamento tão-pouco deve ter lugar quando, por outras razões, seja manifestamente improcedente a acção.”)

              O recurso, se se reparar bem, não põe em causa tudo isto, o que é uma forma implícita de aceitar a decisão nesta parte.

                                                                 II

              A exposição dos factos essenciais que constituem a causa de pedir (art. 552/1-d do CPC), de que se falou acima, é uma exposição concreta de factos, não a simples alusão a uma expressão legal constante do fundamento resolutivo abstractamente previsto na lei, ou, dito de outro modo, não se pode limitar à “utilização exclusiva de expressões de conteúdo técnico-jurídico” usadas na previsão da norma.

              (Lebre de Freitas, obra citada, por exemplo, páginas 169, nota 9, e 56, 226-228, e Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, obra citada, vol. 2.º. pág. 634, e vol. 1.º pág. 353; Castro Mendes, Direito Processual Civil, III, AAFDL, 1980, pág. 48, dá o exemplo “de se pedir o divórcio indicando-se a mera previsão do art. 1779/1 do CC [o qual dizia então: Qualquer dos cônjuges pode requerer o divórcio se o outro violar culposamente os deveres conjugais, quando a violação, pela sua gravidade ou reiteração, comprometa a possibilidade da vida em comum], ou em género algum das alíneas do art. 1781 do mesmo diploma, e não factos”; Paulo Pimenta, obra citada, especialmente páginas 240-241, diz: “quando o articulado do autor contiver afirmações que reproduzem a fórmula legal invocada ou têm mera significação técnico-jurídica, importa apurar se a alegação contida na peça processual se circunscreve a tais afirmações ou se as mesmas surgem acompanhadas de outras, essas sim, de verdadeiro conteúdo fáctico. No primeiro caso, temos de concluir pela ineptidão da petição, por falta de causa de pedir, com as inerentes consequências. […]”).

              E, muito menos, tal exposição se pode limitar à afirmação da possibilidade do “facto” aludido ter acontecido.

           Ora, em relação ao segundo fundamento resolutivo que a autora, agora, no recurso, vem expressamente identificar – embora o faça como se ele fosse a única violação do contrato que teria alegado na petição inicial, qual seja, o do art. 1083/2-e do CC: a cessão, total ou parcial, temporária ou permanente e onerosa ou gratuita, do gozo do prédio, quando ilícita, inválida ou ineficaz perante o senhorio – a autora, na petição inicial, limitou-se a dizer que “tem razão para acreditar que […o locado] tenha sido sublocado […].”, ou seja, limitou-se a aludir ao fundamento resolutivo abstractamente previsto na lei, utilizando uma única expressão legal que não é de uso comum na linguagem corrente, num ponto essencial do litígio, e, pior ainda, limitou-se a dizer que tem razões para acreditar que ele ocorreu, não tendo dito que tal tenha de facto acontecido.

              Ou seja, trata-se apenas da alusão à possibilidade de ter acontecido o fundamento resolutivo abstractamente previsto na lei, nunca da exposição de factos concretos que apontassem para que realmente tal tivesse acontecido e que pudessem ser objecto de prova, de modo a, no fim, se poder dizer que, tendo ficado provados, os factos preenchiam a previsão da norma que atribui o direito à resolução do contrato.

              Assim sendo, não há, como imposto pela lei, nesta parte, a exposição dos factos essenciais que constituem a causa de pedir, pelo que falta a indicação da causa de pedir.

              Face à forma como a petição estava formulada, sem a exposição sequer de outras razões de direito para além daquelas que se referiam ao outro fundamento resolutivo (foi a autora que falou apenas no art. 1083/2-d do CPC) e com o enquadramento de todos os factos relativos à resolução neste único fundamento resolutivo (foi a autora que disse expressamente que os factos alegados de 6 a 9 demonstravam a falta de utilização para o fim contratado), não admira que o tribunal recorrido não tenha atentado que era possível um outro enquadramento do que era alegado no art. 8 da PI) e que, portanto, na sentença não se refira a este outro fundamento.

              Por não o ter feito, não reparou que o vício que afecta, nesta parte, a acção é muito mais grave ainda que o referido, ou seja, a petição, nesta parte, era inepta, por falta de causa de pedir (art. 186/1-2f do CPC), o que devia levar, não à absolvição do pedido por manifesta inviabilidade, mas à absolvição da instância por anulação de todo o processado, devido à ineptidão da petição inicial (naturalmente que insusceptível de aperfeiçoamento) – arts. 186/1-a, 278/1-b e 595/1-a, todos do CPC.

                                                                 *

        Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, revogan-do-se parcialmente o saneador-sentença que absolveu os réus do pedido quanto ao fundamento resolutivo do contrato referido ao art. 1083/2-e do CP, e substituindo-o, nessa parte, pela anulação parcial do processado e absolvição dos réus da instância quanto a essa parte, mantendo-se a absolvição dos réus do pedido quanto ao outro fundamento resolutivo (art. 1083/2-d do CC).

              Custas do recurso, na vertente de custas de parte, em 2/3 pela autora (sem prejuízo do benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos como processo) e 1/3 pelo réu contestante.

              Lisboa, 21/05/2020

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto