Processo do Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz 15
Sumário:
I – Quando o recorrente não especifica, nas conclusões, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, a impugnação da decisão da matéria de facto deve ser rejeitada (artigos 635/4, 639/1 e 640/1-a do CPC).
II – Actua como litigante de má fé e foi bem condenado como tal, o autor que, sabendo o que fazia e querendo-o fazer, deduziu pretensão de cuja falta de fundamento tinha perfeita consciência e contou os factos ocorridos de forma não correspondente com a realidade de modo a conseguir atingir aquela pretensão (art. 542/1-2-a-b do CPC).
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:
C e mulher intentaram uma acção comum contra E-Lda., pedindo a condenação desta a pagar-lhe 34.515€, de que ilícita e dolosamente se apropriou aquando da venda da fracção ajuizada, acrescidos de 2.761,20€ a título de juros de mora vencidos “contados à data da venda”.
Alegaram para tanto, em síntese, que:
1. Por contrato de compra e venda outorgado em 16/04/2018, os réus [sic] pelo preço recebido de 574.000€, venderam em nome da sua representada aos autores, uma fracção autónoma; 2. […F]icou a constar do contrato promessa de compra e venda que a fracção era vendida com os equipamentos que nela se encontravam à data e que constituiriam seu recheio, os quais eram vendidos pelo valor de 36.000€. 3. Os equipamentos em questão e que no dizer do vendedor constituiriam o recheio da fracção, objecto da venda nos termos da missiva, com data de 25/01/2019 dirigida pelo vendedor ao comprador, seriam “o […] aparelho de ar condicionado e todos os equipamentos que estão na cozinha e copa, equipamentos esses que sempre no dizer do vendedor, foram vendidos pelo valor acordado e formalizado no contrato promessa compra e venda, concretamente no ponto 2 da cláusula 2.ª […] 4. O que consta desse ponto 2 é que “a fracção autónoma é vendida com os equipamentos que nela se encontram actualmente e constituem o recheio, sendo o preço de tais equipamentos de 36.00€. 5. Os equipamentos que se encontravam na fracção à data da venda, todos eles da marca IKEA, eram: […] 6. Tais equipamentos […], podiam ser adquiridos pelos preços, que atrás se descriminam. 7, O que representa que o seu custo total perfaria 1485€ […]. 8. […] 9. A ré teve consciência, conforme não podia deixar de ter, que os equipamentos em apreço não tinham o valor que lhes atribuiu. 10. Nem de resto constituía prática seguida no sector imobiliário reclamar em separado o valor de equipamentos componentes que pudessem acompanhar a venda de uma fracção […], tratando-se para mais de equipamentos essenciais ao uso da fracção de tal venda objecto. 11. De acordo com o constante do contrato-promessa, a venda foi feita com a fracção que dela foi objecto despojada de todos e quaisquer materiais, objectos ou equipamentos, incluindo o aparelho de ar condicionado existente na suite e que à data em que a mesma ocorreu, por ser muito velho, já não funcionava, conforme a própria entidade vendedora admite em carta dirigida ao autor. […] 12. Ficando assim os compradores na duvida se as portas existentes na fracção, as fechaduras das mesmas e demais componentes que integravam a fracção vendida se achavam ou não abrangidas pela venda prometida. 13. Quando é certo que o vendedor, representado no contrato-promessa junto aos autos, é engenheiro civil [sic], e conhece muito bem as regras de comércio imobiliário onde sempre se moveu. 14. Sendo que, a razão por que o vendedor assim procedeu releva do facto de pretender com isso retirar do negócio benefícios indevidos, ao contrário dos compradores que sofreram os correspondentes prejuízos. Com efeito, 15. O vendedor do ponto de vista fiscal apresentou o negócio como tendo vendido a fracção pelo preço constante do contrato-promessa de compra e venda, sendo a diferença de 36.00€ constante do contrato de promessa como correspondendo ao preço pago pelos compradores pela compra dos móveis. 16. O que lhe permitiu assim fugir de forma ilícita ao pagamento das mais-valias devidas resultantes do lucro obtido com a venda. 17. Contrariamente a isso, os compradores quando vierem a vender a fracção, não verão ser considerado o preço que na verdade pagaram pela compra, com isso lhes sendo imposto um prejuízo. 18. A vendedora de tudo isto tem plena consciência, actuando assim com o objectivo de conseguir um lucro ilícito e simultaneamente de impor aos compradores um prejuízo indevido. 19. Bem como teve consciência de que a sua conduta é a todos os títulos ilícita. 20. E pode agir assim porquanto das conversações preliminares que tinha mantido com o comprador marido, havia-se apercebido, uma vez que este lhe disse que a compra da fracção prometida ia ser feita com o produto da venda de uma moradia unifamiliar de que estes eram proprietários na PG, freguesia de C do concelho de S. 21. Negocio esse já à data de tais conversações titulado por um contrato promessa de compra e venda, que contemplava um prazo de entrega da moradia objecto da venda de 3 meses. 22. Da venda resultou assim que os autores depois de uma procura incessante de uma solução habitacional em Lisboa, ficaram limitados à possibilidade de terem que fazer negócio com a ré, comprando-lhe a fracção de que esta era proprietária e que vieram objectivamente a adquirir. 23. O que depois de uma aturada procura não encontraram outra solução que melhor se pudesse harmonizar com as muitas condicionantes da sua situação. 24. O que implicava ter que deixar a questão da extorsão dos 36.000€, já atrás invocada, para mais tarde. 25. E foi assim, numa clara situação de estado de necessidade motivada pelas razoes que se alegaram, que os autores celebraram com a ré o contrato de compra e venda da fracção dos autos. 26. Sem prejuízo de nunca terem abdicado de serem ressarcidos dos prejuízos que a conduta da ré ilícita e criminosamente lhes ocasionou. 27. Pugnando pela verdade, bem como pela defesa dos seus legítimos direitos, o autor marido dirigiu à ré a carta de que se junta cópia, onde lhe exigiu que procedesse à correcção da situação que dolosa e malevolamente havia criado, carta essa que mereceria por parte da ré a resposta constante da primeira parte do n.º 2 da missiva datada de 25/09/2019, contra-argumentando em resposta que a empresa sua representada é “uma empresa totalmente idónea” […] 28. Não obstante, o pormenor, seguramente irrelevante do ponto de vista do representante da ré, de ter lesado os autores da forma como lesou. 29. Resulta assim do alegado que os 36.000€, correspondente ao valor alegado dos móveis que à data da celebração do contrato-promessa de compra e venda se encontravam na fracção prometida vender e constituíam o seu alegado recheio, deduzido do custo dos aparelhos existentes na fracção […] à data da venda, corresponde ao valor do prejuízo que a ré ocasionou aos autores 30. Pelo que deverá assim ser a ré condenada a restituir aos autores tal valor que ilícita e criminosamente lhes extorquiu com a venda do imóvel mascarando-o com uma alegada venda de móveis que constituiu mera ficção, porquanto a ré com a fracção ajuizada apenas fez entrega aos autores dos móveis reconhecidos e identificados na presente petição. 31. Dai esta acção para o efeito de o réu [sic] ser condenado a indemnizar os autores por todos os prejuízos que lhes ocasionaram correspondentes à diferença entre os 36.000€ correspondentes ao valor alegado dos móveis que à data da celebração do contrato-promessa de compra e venda dizia existirem na fracção dos autos e o valor dos bens do equipamento efectivamente existentes na fracção dos autos à data da venda e nesta petição descriminados. Com efeito, 32. Dispõe o Código Civil no seu art. 483/1 que “aquele que com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”
A ré contestou invocando a caducidade do direito do autor, por a acção ter sido intentada fora do prazo (arts. 916, 917 e 929 do CC); e, a título de impugnação, dizendo que:
7. Importa aqui referir como se processou o início do negócio. 8. Assim, o autor contactou a agência imobiliária PG, tendo em vista a aquisição da fracção em causa, tendo-lhe sido por esta comunicado o preço de venda pretendido pela vendedora, ora ré, que era de 650.000€. 9. O autor, mantendo interesse no negócio, contrapropôs o preço de 610.000€, valor que a ré não aceitou. 10. Estando criado um “impasse” na negociação, surgiu à ré, desconhecendo a mesma se proveio do autor ou da agência imobiliária, proposta de se efectuar o negócio atribuindo-se 574.000€ ao imóvel e 36.000€ aos bens móveis que lá se encontravam (equipamento e móveis de cozinha, copa, roupeiros de suite e ar condicionado), uma vez que tal solução representaria uma poupança fiscal, ultrapassando-se assim o impasse. 11. Autor e ré concordaram e subscreveram quer o contrato promessa de compra e venda em 27/02/2018, quer o contrato prometido, já juntos aos autos, em 16/04/2018. 12. Note-se que o autor pagou a título de sinal a quantia de 122.000€, para pagamento da fracção, sendo esta quantia para todos os efeitos a que seria considerada em sede de indemnização por incumprimento do contrato promessa. 13. Valor que inclui, curiosamente, a quantia atribuída aos móveis, aproveitando-se para referir que o ar condicionado, não sendo novo, funcionava, pelo que é absolutamente falso o alegado no art.11 da PI. 14. Ou seja, o autor, para efeitos de responsabilidade civil decorrente do incumprimento do contrato considera o valor de aquisição de 610.000€, e sinal de 122.000€ (que são 20% de 610.000€, note-se), mas para conseguir o objectivo evidenciado nos presentes autos considera o valor de aquisição de 574.000€. 15. É apodíctico que o valor atribuído aos móveis o foi com objectivo meramente fiscal, pois o autor reduziu a base de incidência do seu IMT de 610.000€ para 574.000€, embora a ré devesse também ter facturado o valor de 36.000€ relativos aos móveis, sabendo aquele perfeitamente que os ditos móveis dificilmente valeriam 36.000€. 16. A descoberta de tal facto dois anos depois de tomar posse da fracção e habitá-la evidencia as intenções do autor. 17. Dúvidas não restam pois de que o autor, advogado com largos anos de experiência, tinha perfeita consciência de todos os contornos do negócio, sendo certo que, quanto ao alegado no art.9, tal valor foi atribuído por acordo entre autor e ré, independentemente de quem teve a “ideia”. 18. Quem não tinha integral consciência era o gerente da ré, pois não iria correr quaisquer riscos por uma poupança fiscal resultante da mais-valia em IRC entre a compra dos móveis, 25.000€, e a respectiva venda, 36.000€, o não justificar minimamente. 19. A ré agiu de boa-fé e sua conduta não consubstancia qualquer violação ilícita de qualquer direito do autor susceptível de ser subsumida ao art.483 do CC, nem sequer qualificada como responsabilidade civil extracontratual. 20. Antes pelo contrário a conduta do autor, ao deduzir pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, não só pela objectividade dos factos, mas pela qualidade em que litiga, advogado em causa própria, é subsumível no art.542 do CPC. 21. O que determina a fixação de multa e indemnização à parte contrária, o que se requer. Concluiu pugnando pela procedência da excepção invocada e pela improcedência da acção.
O autor impugnou a matéria base da excepção dizendo que o autor não denunciou, qualquer vício, nem apontou a falta de qualidade de nada, pelo que não é invocável o disposto no art.917 do CC; com efeito, o que o autor se limitou a dizer foi que foi objecto de um acto de extorsão que lhe ocasionou danos e prejuízos, os quais identificou e veio reclamar o ressarcimento dos mesmos.
Na acta da audiência final, foi consignado, sem qualquer reclamação, que “Foram confessados os factos dos pontos 9, 10 – parcialmente, na parte referente aos valores dos negócios -, e ainda os pontos 11 e 12 da contestação.”
Depois da audiência final foi proferida sentença julgando a acção improcedente (tal como a excepção de caducidade), absolvendo a ré do pedido e condenando o autor como ligante de má-fé numa multa de 3 UC e num indemnização de 500€ a pagar à ré.
Na sentença recorrida determinou-se ainda que, após o trânsito em julgado, fosse extraída certidão dos autos e remetida à Autoridade Tributária e aos serviços do Ministério Público, para apurar a eventual responsabilidade tributária/criminal do autor e da ré, por terem ficado provados factos que poderão consubstanciar a prática de ilícitos criminais de natureza fiscal.
O autor recorreu desta sentença, terminando o recurso com as seguintes conclusões:
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- Dos mails juntos aos autos resulta que o autor agiu sempre com verdade e com transparência nas negociações que estabeleceu com a ré tendentes à compra da fracção dos autos.
- Foi a ré que por sua alta recreação e no intuito de obter aquilo a que a decisão recorrida chama sugestivamente de “poupança fiscal”, decidiu contra a verdade dos factos e contra a própria lógica das coisas dividir o preço acordado entre as partes, correspondendo uma áquilo que designou por preço de imóvel e outra a preço dos bens móveis alegadamente existentes no imóvel, quando é certo no dizer da testemunha MS, esposa do representante da ré, o imóvel fora vendido sem móveis embora a cozinha contivesse os electrodomésticos descritos nos autos e que correspondem ao “standard mínimo” usual nas circunstâncias da venda dos autos atente também o seu preço.
- Sendo certo que o autor não teve qualquer interferência em tal simulação que foi unicamente da lavra da ré.
- Esse alegado preço dos móveis foi pago pelo autor de forma não declarada uma vez que a ré não aceitava recebê-lo de outro modo a fim de com isso fugir a mais-valias.
- Assim realizando no dizer da decisão recorrida uma “poupança fiscal!”
- E assim vai a justiça em Portugal!
- O autor foi alheio a tal “branqueamento” que foi todo ele da autoria da ré.
- Tendo o autor a tal anuído unicamente porque em face dos prazos, nomeadamente do prazo de entrega que tinha assumido relativamente à sua casa da PG (S) e que vendera para poder comprar a casa dos autos, se encontrava pressionado pelo tempo.
- Não corresponde à verdade que o autor prosseguisse como objectivo uma “poupança fiscal” nem falou disso em nenhuma circunstância com a ré, não sendo igualmente certo, pelas razões aduzidas neste recurso, que tivesse beneficiado com a simulação do preço.
- Quem com tal beneficiou, isso sim foi a ré.
- E a comprová-lo o facto de o autor ter esclarecido a ré de que a proposta em que oferecia 610.000€ como preço da venda da fracção correspondia à sua última proposta.
- A partir daí foi a ré quem teve a iniciativa de contactar o autor e de contrapropor a proposta que veio a viabilizar o negócio.
- O autor em nenhum momento agiu de má-fé, nem nos passos que deu para concretizar o negócio tendente a adquirir por compra a fracção dos autos, nem posteriormente a tal aquisição nos desencontros que teve com o representante da ré e que culminaram com a história já alegada do ar condicionado nem agora ao impugnar a decisão recorrida.
- Unicamente ocorre que a Senhora magistrada recorrida desvalorizou factos que deveria ter valorizado e valorou outros que deveria ter desvalorizado em consequência do que veio a condenar o autor como litigante de má-fé quando nada nos autos tal indiciava.
- Não podendo deixar de considerar-se que tal condenação por litigância de má-fé, resulta chocante face aos factos que se encontram na base de toda a situação dos autos, já que não foi o autor que teve a iniciativa de praticar qualquer fraude fiscal por mais que a decisão recorrida a qualifique como “poupança fiscal”.
- Tendo-se unicamente limitado a aceitar a proposta formulada pela ré para a concretização do negócio.
- O facto de os bens móveis não terem o valor atribuído pela ré e de no limite nem sequer existirem porquanto integravam a própria venda indicia a má fé não do autor mas da ré que através de tal expediente quis realizar conforme realizou a malfadada “poupança fiscal”.
- A sentença recorrida ao decidir conforme decidiu condenando o autor como litigante de má fé deve ser revogada por violação do disposto no art.542, n.ºs 1, 2 e 3 do CPC e substituída por uma decisão absolutória […].
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A ré contra-alegou, alegando, em síntese da mesma, que (transcreve-se na íntegra…):
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- O autor não impugna matéria de facto pelo disposto no art.640 do CPC, nem especifica os pontos elencados no nº 1 desse artigo, pelo que a mesma não será alterada.
- O autor não cumpre o ónus de alegar e formular conclusões, violando expressamente o artigo 639 do CPC. Nas suas conclusões limita-se a uma repetição de todos os argumentos apresentados na motivação, não cumprindo a exigência de sintetização e clareza na apresentação das conclusões, sendo as mesmas deficientes e confusas.
- Na sua exposição de motivação o autor faz referência a factos provados e não provados da sentença, não impugnando nenhum deles e acabando por ser patente que os mesmos estão bem decididos.
- Quanto à litigância de má-fé, o autor confessa ao longo de toda o seu recurso que tinha conhecimento de todos os factos. Estando dessa forma ciente da falta de pretensão da acção, acrescido ao facto de ser advogado com largos anos de experiência, pelo disposto no artigo 542 do CPC, o autor litigou de má-fé.
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Questões que importa decidir: a questão prévia da falta de cumprimento de ónus processuais na impugnação da decisão da matéria de facto e no recurso sobre matéria de direito; e a de saber se o autor não devia ter sido condenado como litigante de má-fé.
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Para a decisão destas questões importa conhecer os factos dados como provados, que são os seguintes:
1. A ré estava a vender a fracção autónoma sita na Rua da Artilharia Um, n.º 0, Lisboa, pelo preço de 650.000€.
2. O autor propôs à ré o preço de 610.000€, valor que a ré não aceitou.
3. Posteriormente, autor e ré acordaram em efectuar o negócio pelo preço de 610.000€, combinando atribuir o valor de 574.000€ ao imóvel e o valor de 36.000€ a bens móveis que se encontravam no imóvel (equipamento e móveis de cozinha, copa, roupeiros de suite e ar condicionado).
4. No dia 27/02/2018, o autor e a ré celebraram o contrato-promessa de compra e venda do imóvel, tendo celebrado o contrato de compra e venda, no dia 16/04/2018.
5. Consta da cláusula 2.ª do contrato-promessa de compra e venda que:
“1 – Pelo presente contrato, a ré promete vender, livre de ónus, encargos ou outras responsabilidades, ao autor, que promete comprar, a fracção supra identificada, pelo preço de 574.000€.
2 – A fracção autónoma é vendida com os equipamentos que nele se encontram actualmente e constituem o recheio, pelo valor de 36.000€.”
6. O autor pagou, a título de sinal, 122.000€, equivalente a 20% de 610.000€.
7. O autor e a ré sabiam que os bens móveis descritos não perfaziam o montante de 36.000€.
8. Autor e ré decidiram fraccionar o preço da forma prevista em 3 com o objectivo de reduzir a base de incidência do Imposto Municipal sobre Imóveis de 610.000€ para 574.000€.
9. A petição inicial deu entrada no dia 10/07/2020.
Na fundamentação desta decisão consta:
“[…]
No que diz respeito ao facto n.º 1, a sua prova baseou-se no teor do depoimento de parte do autor, bem como no teor dos depoimentos das testemunhas VS, MS e IN, sendo que os mesmos foram todos coincidentes, nesta parte.
Quanto aos factos n.ºs 2 a 4 e 6, os mesmos foram confessados pelo autor em sede de depoimento de parte, tendo ficado consignado em acta, e não tendo sido objecto de reclamação por nenhuma das partes.
O facto n.º 5 provou através do teor do contrato-promessa de compra e venda junto a fls. 12 verso a 17 verso.
No que concerne aos factos n.ºs 7 e 8, a sua prova assentou no teor dos depoimentos VS, MS e IN, credíveis, coerentes e coincidentes, nesta parte.
Para além disso, conjugou-se o teor dos depoimentos destas testemunhas com as regras da experiência comum, sendo que não se afigura verosímil que a Ré tivesse declinado, primeiramente, a oferta do Autor de compra do imóvel por 610.000€ (cfr. facto 2), e posteriormente fosse aceitar a venda do imóvel por um preço mais baixo – 574.000€ -, sem que isso representasse algum benefício económico para si.
Ademais, acrescente-se que o depoimento de parte do Autor não foi, quanto a este aspecto, coerente, nem credível, porquanto não se coaduna com as regras comuns da experiência que o mesmo tivesse aceitado celebrar o contrato naqueles termos sem indagar a Ré do motivo dos mesmos, caso tivesse dúvidas.
Assim, o facto de mencionar que não lhe foi dada nenhuma justificação para celebrar o negócio daquele modo, e de que não tinha a consciência que se devia a benefícios fiscais, não colhe porque não é minimamente provável que o autor, ainda para mais exercendo a profissão de advogado, tivesse dúvidas acerca do objectivo da repartição dos valores entre o bem imóvel e os bens móveis.
Tanto mais que o Autor outorgou o contrato-promessa de compra e venda e o contrato de compra e venda, concordando com as cláusulas que neles estavam apostas (cfr. facto n.º 5), bem sabendo que o recheio do imóvel não valeria o montante de 36.000€.
Refira-se que o depoimento da testemunha VP não contribuiu para a prova dos factos, porquanto a mesma não tinha um conhecimento direto dos factos em discussão.
Por fim, o facto n.º 9 provou-se através da consulta dos presentes autos.
[…]”
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Da questão prévia
As normas do CPC que interessam à questão são as seguintes:
Artigo 635/4: Nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso.
O art. 639/1: o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
O art. 640/1: quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Art. 640/2 do CPC: no caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; […].
Com base na conjugação destas normas chegou-se ao entendimento, que está actualmente estabilizado, de que, em relação à impugnação da decisão da matéria de facto, tem de constar expressamente das conclusões do recurso a especificação dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados e, no corpo das alegações, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no entender do recorrente, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, CPC anotado, vol. 3.º, tomo I, 2.ª edição, 2008, Coimbra Editora, págs. 60-61, em relação as normas de idêntico conteúdo do CPC revisto em 2007 e já antes em 1995/96, lembram o preâmbulo do DL 39/95, de 15/02, onde se escreve:
A consagração desta nova garantia [duplo grau de jurisdição em matéria de facto – parenteses de LF e RM] das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação.
Este especial ónus de alegação, a cargo do recorrente, decorre, aliás, dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos das relações (resultante da nova redacção do artigo 712.º) – e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1.ª instância – possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito em julgado de uma decisão inquestionavelmente correcta.
Daí que se estabeleça, no artigo 690.º-A, que o recorrente deve, sob pena de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, impunham diversa decisão sobre a matéria de facto.” [os sublinhados são deste acórdão]
Aqueles autores lembram ainda (obra citada, págs. XVIII e 61) as Linhas orientadoras da nova legislação processual civil, Ministério da Justiça, sem data, e revista Sub Judice, 1992, IV, onde se falava na “indicação precisa, clara e determinada dos concretos pontos de facto em que diverge da apreciação do tribunal, devendo fundamentar a sua divergência com expressa referências às provas produzidas […]”
A especificação – indicação precisa, clara e determinada – dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, delimitando assim o objecto da impugnação da matéria de facto, que tem de constar das conclusões, é pois um ónus do recorrente, sob pena de rejeição do recurso.
Por tudo isto, não cabe ao tribunal de recurso andar a esmiuçar o teor das conclusões do recurso, à procura de alegações de facto que representem os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados.
Ora, lendo-se as conclusões do recurso do autor não se encontra essa exigida especificação dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados.
Assim, por exemplo, na conclusão 2 – na conclusão 1 nada há susceptível de análise – não é minimamente claro, preciso e determinado aquilo que o autor está a dizer em termos de facto, pois que, por exemplo, o autor nem sequer assume uma posição definida sobre a existência de móveis como objecto do contrato, sendo possível imaginar três versões diferentes sobre ela da parte do autor: “móveis alegadamente existentes no imóvel” [pelo que eles não existiriam], o “imóvel foi vendido sem móveis” [apesar deles existirem] e os móveis existiam e foram vendidos como parte do imóvel.
Para além disso, não se sabendo o que é que o autor está a dizer precisamente sobre a matéria de facto, não é também possível dizer, muito menos de forma clara, precisa e determinada, o que é que ele está a impugnar na decisão da matéria de facto, designadamente se é o que consta do ponto 3, ou do ponto 5/2 ou do ponto 7 ou do ponto 8 dos factos provados, ou se é mais do que de um deles, ou se não pretende impugnar nenhum deles mas sim acrescentar um outro facto aos já provados.
Mas se se decidisse aproveitar apenas a parte do que consta da conclusão 2, isto é, foi a ré que decidiu dividir o preço acordado entre as partes, correspondendo uma [parte] àquilo que designou por preço de imóvel e outra a preço dos bens móveis, tendo para isso, como se vê, que ser o tribunal a reconstruir e a delimitar aquilo que o autor está a dizer que está provado, para além de subsistir o problema de não se saber aquilo que o autor está a impugnar (se 3 e/ou 5/2 e/ou 7 e/ou 8, ou se nenhum deles), apareceria um outro, que levaria também à rejeição do recurso (art.640/1-b do CPC), pois que, no corpo das alegações, não foi indicado um único meio de prova que impusesse decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (que não se sabe qual é, na perspectiva do recurso: se algum dos factos provados, se a falta de algum facto que devia ter sido dado como provado).
E tudo isto não é, evidentemente, inocente: o autor sabe que confessou a matéria de facto constante dos pontos provados sob 2 a 4 e 6 (com os inevitáveis e óbvios reflexos nos pontos 7 e 8) e sabe que essa confissão faz prova plena qualificada desses factos contra o autor (artigos 358/1 e 359 do CC), pelo que não os poderia pôr em causa (a não ser mediante a declaração de nulidade ou anulação da confissão – Lebre de Freitas, pág. 465 do CC anotado coord. de Ana Prata, Almedina, vol. I, 2.º edição, 2019), pelo que não o quer fazer expressamente, deixando tudo impreciso e sem qualquer rigor.
Tudo isto é válido, no essencial, para as outras conclusões (relembre-se que os factos provados são apenas 9, o autor confessou 4 deles, com influência em outros 2, e dois dos três restantes resultam, entre o mais, de prova documental que o autor não põe em causa).
De qualquer modo, ainda por exemplo, veja-se:
Na conclusão 3 o autor diz que não teve qualquer interferência na simulação que foi unicamente da lavra da ré, pelo que admite a existência da simulação, sendo que a simulação é um acordo entre os dois contraentes (artigos 240 e 241 do CC). Não é pois sequer perceptível o que é que o autor está a dizer em termos de facto, e se está a impugnar factos dados como provados (com base na sua confissão…) ou se pretende acrescentar um facto. Isto vale, por maioria de razão, para a conclusão 7.
As conclusões 5 e 6 não contêm factos.
Na conclusão 4 diz-se que o alegado preço dos móveis foi pago pelo autor de forma não declarada uma vez que a ré não aceitava recebê-lo de outro modo a fim de com isso fugir a mais-valias. Não se sabe se o autor está a impugnar um ponto de facto dado como provado (qual e se o poderia fazer), ou se pretende aditar este facto (motivo pelo qual fez o pagamento como o fez, que, note-se, nada tem a ver com a celebração do contrato). E o autor, no corpo das alegações, não indicou qualquer meio de prova desse facto.
Na conclusão 8 diz-se que o autor anuiu ao “branqueamento” unicamente porque em face dos prazos, nomeadamente do prazo de entrega que tinha assumido relativamente à sua casa da PG (S) e que vendera para poder comprar a casa dos autos, se encontrava pressionado pelo tempo. Não se sabe se o autor está a impugnar algum dos factos provados (alguns provados com base na sua confissão, relembre-se…), ou se pretende aditar este. Para além disso, o autor, no corpo das alegações não indicou qualquer meio de prova desse facto (razão pela qual o autor anuiu à simulação).
Não se continua a análise das restantes conclusões, pois que a que foi feita em cima, das outras, o foi apenas a título de exemplo daquilo que resulta evidente da simples leitura das conclusões transcritas, delas se podendo dizer, sem mais, como se disse acima, que não contêm a exigida especificação dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados.
Em suma, porque, para além do mais, o autor não especificou, nas conclusões do recurso, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, rejeita-se a impugnação da decisão da matéria de facto (artigos 635/4, 639/1 e 640/1-a do CPC).
O mesmo não acontece quanto à questão da falta de conclusões no recurso sobre matéria de direito, porque o conteúdo delas é suficiente para se poder perceber o que está em causa nessa parte do recurso: a falta de fundamentos para a condenação do autor como litigante de má fé porque o autor não teria actuado como tal.
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A fundamentação da condenação do autor como litigante de má fé na sentença recorrida:
Analisada a conduta do autor, entende-se que o mesmo autuou de forma dolosa, tendo deduzido uma pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, nos termos do artigo 542/2 do CPC.
Note-se que se provou que o autor sabia que os bens móveis não tinham o valor atribuído pelas partes (cfr. facto 7), assim como que a forma como foi celebrado o negócio permitiu a poupança fiscal tanto à ré como ao autor (cfr. facto 8), objectivo que ambos prosseguiram e de que beneficiaram.
Ora, é evidente que o autor não só não devia ignorar a falta de fundamento da sua pretensão, como sabia que a mesma era manifestamente improcedente, face ao modo como celebrou o contrato com a ré.
A argumentação do autor contra esta fundamentação já foi transcrita acima, com a transcrição das conclusões. Ela baseia-se, no essencial, em alegações de factos que não estão provados e não tem em consideração factos que estão provados e que o autor não impugnou.
Seja como for…
A pretensão do autor era obter a diferença entre os 36.000€ que constam de um contrato como sendo o preço de uns móveis vendidos ao autor e o valor que eles teriam – 1485€ no máximo -, diferença essa que resultaria de uma conduta ilícita/dolosa da ré e de que esta se teria apropriado.
Afinal, com base na própria confissão judicial do autor feita em audiência final no tribunal, ficou provado que, depois de a ré não ter aceite o preço de 610.000€ pela compra de um imóvel, autor e ré vieram a acordaram em efectuar o negócio por aquele preço, combinando atribuir o valor de 574.000€ ao imóvel e o valor de 36.000€ a bens móveis que se encontravam no imóvel, de acordo aliás com os mesmos termos do contrato promessa que tinham celebrado entre eles dois meses antes. Resultando ainda dos factos provados (7 e 8) que o autor sabia que os bens móveis não perfaziam o montante de 36.000€ e que ele e a ré decidiram fraccionar aquele preço com o objectivo de reduzir a base de incidência do IMI de 610.000€ para 574.000€.
Assim não há dúvida de que, ao contrário do que o autor dizia na PI, não foi a ré que ficcionou o valor de 36.000€ por móveis que apenas valiam, no máximo, 1485€, pois que essa ficção foi acordada entre autor e ré. E o autor não podia ter direito à diferença alegada porque não havia qualquer diferença: o autor comprou o imóvel com os móveis em causa pelos 610.000€ que pagou.
Sendo assim evidente a conclusão a que a sentença chegou sobre a litigância de má fé que se poderia pôr noutros termos para não a estar a repetir: o autor, sabendo o que fazia e querendo-o fazer, deduziu pretensão de cuja falta de fundamento tinha perfeita consciência e contou os factos ocorridos de forma não correspondente com a realidade de modo a conseguir atingir aquela pretensão, preenchendo com isso, pelo menos, a previsão do art.542/2-a do CPC com base na qual foi condenado como litigante de má-fé.
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas, na vertente de custas de parte, pelo autor (que perde o recurso).
Lisboa, 21/10/2021.
Pedro Martins
1.º Adjunto
2.º Adjunto