Processo 23481/17.9T8LSB do Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz 20

                    Sumário:

                   I – Quando o recorrente, nas conclusões do recurso, não indica um único ponto de facto que considere incorrectamente julgado, a impugnação da decisão da matéria de facto deve ser imediatamente rejeitada (art. 640/1-a do CPC).

            II – Não se tendo alterado a decisão da matéria de facto e não tendo o recorrente concluído com a indicação de fundamentos por força dos quais a decisão da matéria de direito pudesse ser alterada, o recurso tem de improceder.

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

                  A instaurou acção especial de inabilitação por anomalia psíquica relativamente a sua irmã B.

              Tramitado o processo, inclusive com as adaptações processuais impostas pela entrada em vigor do regime jurídico do maior acompanhado, aplicável aos autos, acabou por ser proferida sentença, que decretou o acompanhamento da requerida, com, para além do mais, a medida de administração total dos seus bens.

              A requerida recorre desta sentença – “para que seja revogada e consequentemente serem restituídos à requerida os direitos sobre a gestão plena da sua vida e dos seus bens” -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (começam no n.º 97, a seguir ao n.º 96 do corpo das alegações; no n.º 1 do corpo das alegações diz: O presente recurso tem como objecto toda a matéria de facto […]).

  1. Ora o Sr. juiz a quo partiu para este julgamento com uma certeza fundamentada numa petição inicial fabricada sobre pressupostos falsos, e que por si só eram frágeis, e que foram sendo coerentemente explicados pela recorrente,
  2. A Constituição estabelece no seu artigo 26/1 que “A todos são reconhecidos os direitos.., ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, … e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”, acrescentando-se no seu n.º 4 que “A privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem efectuar-se nos casos previstos na lei…” Este direito fundamental à capacidade civil está relacionado com a aptidão de uma pessoa para ser sujeito de direitos e deveres, de modo a estabelecer relações jurídicas. A capacidade civil, tal como está constitucionalmente configurada, acaba por ser a medida jurídica de uma pessoa.
  3. Esta sentença é violadora, de outro princípio constitucional que este regime de acompanhamento visou proteger, o da dignidade da pessoa humana, art 1º da CRP,
  4. A decisão a quo está assim ferida de inconstitucionalidade,
  5. Confrontado com isto este tribunal não se pode eximir de aplicar o direito,
  6. Vem também nesta senda o acórdão do Tribunal da Relação do Porto no processo 13569/17.1T8PRT.P1 dizer que “Tal implica que o decretamento de uma medida de acompanhamento decorra de uma impossibilidade suficientemente forte e não meramente indiciária de uma pessoa maior encontrar-se de modo pleno, pessoal e consciente impedida de exercer os seus direitos e cumprir os seus deveres no âmbito da sua capacidade jurídica e relativamente aos seus interesses pessoais (130 e 138 Código Civil). Para o efeito, o tribunal deve partir da presunção de que toda a pessoa adulta está habilitada a governar a sua pessoa e os seus bens, tendo as medidas de acompanhamento um carácter excepcional, de acordo com o princípio da intervenção mínima no âmbito da restrição dos direitos fundamentais (18/2 Constituição). Deste modo, uma medida de acompanhamento de uma pessoa maior só se justifica quando esta revelar uma inaptidão básica para autogovernar e autodeterminar a sua vida, tanto pessoal, como patrimonial, existindo factores que, de um modo global ou particular, reduzem ou eliminam a voluntariedade e consciência dos seus actos, em função dos seus juízos de capacidade, os quais devem ser aferidos em concreto e não em abstracto. Assim, sempre que uma pessoa tenha a capacidade mental mínima para tomar decisões racionais e desempenhar tarefas como um agente racional, não se justifica qualquer medida limitadora da sua capacidade jurídica, podendo até serem implementadas outras medidas de apoio, mas fora do âmbito do acompanhamento legal, como a assistência pessoal, os cuidados informais ou o acolhimento familiar.
  7. Mais se disse que “Por outro lado, as medidas de acompanhamento devem ser sujeitas a um teste de proporcionalidade, determinando-se em concreto o que é necessário, adequado e na justa medida para preservar os interesses legítimos da pessoa acompanhada e não de qualquer outra (145/1 CC) – como sejam os interesses patrimoniais de terceiros, inclusivamente de familiares. Para que tal ocorra, o tribunal deve partir de um critério realista da capacidade natural na formação da livre vontade da pessoa que vier a beneficiar das medidas de apoio, mormente da sua capacidade mental e da heterogeneidade desta, mas não de critérios abstractos e ficcionados a partir de modelos estanques, como são aqueles que partem de uma leitura exclusivamente médica. Para o efeito, será de ponderar todas as circunstâncias endógenas e exógenas que em termos funcionais reduzem ou eliminam as suas aptidões mentais de autonomia pessoal (capacidade básica de autogoverno e autodeterminação) para dirigir a sua pessoa, administrar os seus bens e celebrar actos jurídicos em geral.”
  8. Com esta sentença foi vorazmente extrapolado o princípio da livre apreciação.

              A requerente contra-alegou, entre o mais deduzindo a questão prévia da rejeição liminar do recurso dizendo que:

  1. […] a recorrente, não põe em causa a matéria de facto dada como provada, nem aplicação do direito aos factos.
  2. […] apenas, refere que a sentença viola o disposto nos artigos 1 e 26 da CRP.
  3. Ora, as alegações de recurso definem-se pelas conclusões. Sucede que, as conclusões apresentadas são ininteligíveis e vazias de conteúdo.
  4. As conclusões […] não contêm qualquer concreto pedido de modificação das respostas dadas sobre a matéria de facto,
  5. Nem contêm qualquer concreto pedido de alteração da decisão.
  6. Limitam-se a pôr em causa a decisão recorrida com base em abstractas violações de princípios constitucionais.
  7. Veja-se, a este propósito, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 15/11/2018: “I – Definindo as conclusões do recurso o seu objecto, deve a recorrente nelas indicar os concretos pontos de facto cuja alteração pretende bem como o sentido e termos dessa alteração, sob pena de rejeição do recurso nessa parte. II – A recorrente ao não especificar os concretos meios probatórios constantes do processo ou do registo, que impunham decisão diversa da recorrida sobre os pontos de facto da matéria de facto que pretendia impugnar, limitando a transcrever declarações truncadas e a mencionar documentos, tendo por referência os tópicos que elencou, não cumpriu o ónus imposto na alínea b) do n.º 1 do art. 640 do CPC.”
  8. A recorrente não cumpriu a obrigação decorrente do disposto no referido artigo 640 do CPC.

         […]

  1. A Recorrente, nas suas conclusões, não especificou os pontos de facto que considera incorrectamente julgados.
  2. E, consequentemente, não especificou a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

         […]

  1. A recorrente não especificou também os concretos meios probatórios constantes do processo que impunham decisão diversa da recorrida.
  2. A recorrente limitou-se a referir no corpo das suas alegações – não concluindo – de forma genérica o depoimento por si prestado, reproduzindo alguns excertos retirados do seu contexto.
  3. A recorrente, limitou-se a transcrever declarações truncadas, e, mesmo assim, muito poucas e não reportadas a concretas questões de facto.

                                                                       *

              Questão que importa decidir: a prévia da rejeição liminar do recurso e a de saber se não devia ter sido decretado o acompanhamento da requerida.

                                                                 *

                                                  Da questão prévia

              As normas do CPC que interessam à questão são as seguintes:

         Artigo 635/4: Nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso.

         O art. 639/1: o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.

         O art. 640/1: quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

         Art. 640/2 do CPC: no caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; […].

              Com base na conjugação destas normas foi estabilizado o entendimento de que, em relação à impugnação da decisão da matéria de facto, tem de constar expressamente das conclusões do recurso os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados.

              Não constando das conclusões de recurso a indicação de um único ponto de facto que o recorrente considere incorrectamente julgado, a impugnação da decisão da matéria de facto deve ser imediatamente rejeitada.

              Assim, as contra-alegações estão parcialmente correctas, ou seja, estão correctas mas limitadas à impugnação da decisão da matéria de facto, não a todo o recurso.

                                                                 *

              Pois que a decisão da matéria de facto não foi impugnada, este acórdão, quanto aos factos que interessam à decisão do recurso sobre matéria de direito, remete para a decisão da 1.ª instância que decidiu a matéria de facto, ao abrigo do art. 663/6 do CPC.

*

Do recurso sobre matéria de direito

              Não tendo havido lugar à alteração da decisão da matéria de facto, as conclusões do recurso sobre matéria de direito são inócuas, pois que não consubstanciam fundamentos por força dos quais a decisão pudesse ser alterada, como se vê de seguida:

              A conclusão 97 é uma apreciação genérica sobre o ponto de partida do juiz que proferiu a decisão recorrida, inconsequente, pois que não diz em que é que esse ponto de partida influenciou a decisão recorrida.

              A conclusão 98 contém meras transcrições de normas constitucionais e considerações abstractas sobre elas.

              As conclusões 99 a 100 são acusações genéricas de inconstitucionalidades, sem indicação do modo pelo qual a sentença recorrida teria incorrido nelas. Esclareça-se, aqui, que no corpo das alegações não consta qualquer menção a inconstitucionalidades ou sequer à Constituição, pelo que estas “conclusões” não são conclusões nenhumas já que não são a síntese de fundamentos que tenham sido indicados no corpo das alegações.

              A conclusão 101 é uma acusação sem qualquer sentido, pois que o tribunal recorrido “não se eximiu de aplicar o direito”.

              As “conclusões” 102 e 103 são meras transcrições de um acórdão relativamente a um outro caso, não se dizendo qual a aplicação que poderiam ter neste caso as considerações transcritas e porquê.

              A conclusão 104 é uma acusação genérica que teria a ver com a impugnação da decisão da matéria de facto, que já foi rejeitada.

              Assim, em violação do disposto no art. 639/1 do CPC, não há a indicação de um único fundamento por força do qual a decisão da matéria de direito pudesse ser alterada, nem essa alteração é imposta pela inexistente alteração da matéria de facto.

              Com estas conclusões de recurso, não se fica sequer com um indício daquilo que o tribunal decidiu e porquê e das razões pelas quais a requerida entende que devia ter sido decidida outra coisa. As conclusões do recurso não têm qualquer tentativa de se debruçarem sobre o caso, sobre o qual não lançam a menor luz.

              Admitir que, a partir destas conclusões do recurso se pudesse iniciar a discussão sobre a correcção da decisão recorrida, seria o mesmo que admitir que bastasse interpor um recurso, dizendo-se que a decisão recorrida devia ser revogada, para que o tribunal de recurso, sem fundamentos da parte para o efeito, pudesse estar a apreciar uma decisão e a pudesse revogar.

                                                                 *

              Pelo exposto, rejeita-se a impugnação da decisão da matéria de facto e julga-se o recurso improcedente.

              Custas, na vertente de custas de parte, pela recorrente (por ter sido ela que perdeu o recurso – isto sem prejuízo do que vier a ser decidido quanto ao pedido de apoio judiciário: art. 4/7 do RCP).

              Lisboa, 21/10/2021

Pedro Martins

1.º Adjunto

2.º Adjunto