Processo do Juízo Local Cível de Oeiras – Juiz 1
Sumário:
O pedido reconvencional de indemnização por danos provocados pelo autor ou pela filha em alegada representação do autor, não se funda na mesma causa de pedir da acção, que é a apropriação ilícita de dinheiro do autor pela ré, nem no fundamento essencial da defesa, que é o facto de os valores em causa também serem da ré que por isso os podia utilizar ou ficar com eles; pelo que este pedido não foi, bem, admitido pelo tribunal.
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:
A intentou contra R uma acção com processo comum, pedindo a condenação desta a pagar-lhe 20.060,68€, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento, bem como a entregar-lhe um veículo automóvel propriedade do autor e documentos a ele inerentes, que contra a vontade do autor a mesma tem na sua posse.
Alega para tanto, e em síntese que no essencial vem do tribunal recorrido, que a ré, contra a vontade do autor e no benefício exclusivo da ré, fez diversos movimentos bancários com um cartão referente a conta bancária apenas provisionada pelo autor, apropriando-se do valor referido acima, que, por isso, tem a obrigação de devolver ao autor.
A ré contestou, impugnando alguns dos factos e excepcionando a compropriedade dos depósitos bancários e o facto de parte dos valores levantados terem sido em benefício do autor, sendo que a parte de um dos depósitos com que ficou corresponde à sua metade, bem como que já quis devolver o veículo mas que a filha do autor recusou a entrega; e deduziu reconvenção contra o autor, pedindo que o autor seja condenado (i) a pagar lhe 3989,50€ correspondente a metade do valor existente no outro depósito (não só por via da legal presunção, mas porque a ré também contribuiu e porque assim foi a vontade do autor); (ii) os danos não patrimoniais sofridos a que se atribui o valor de 20.000€; e (iii) como litigante de má fé e a pagar todos as despesas e encargos suportados pela ré e indemnização que vier a ser determinada pelo tribunal.
Como fundamento do pedido (ii), alega que com todo este processo o autor, quer na sua pessoa, quer através de sua filha, caus[ou] graves danos não patrimoniais à ré que se viu entrar num processo depressivo grave; por causa, primeiro das atitudes da filha alegadamente em representação do pai, o autor, e segundo pela traição do autor ao manter um relacionamento com outra mulher […]. […] a filha afastou[-a] abruptamente da vida do autor, alegadamente, por vontade do autor, ofendendo e destratando a ré […].
No despacho saneador o pedido reconvencional (ii) foi indeferido, liminarmente [ao contrário do que se passou com o pedido (I) que foi admitido liminarmente e o seu valor somado ao da acção], com o seguinte fundamento:
[…O] mesmo não é admissível, porque não fundado em nenhuma das previsões legais acabadas de citar [das alíneas (a) a (d) do art. 266/2 do CPC]
Com efeito, apenas em abstracto se poderia enquadrar na previsão da alínea (a [: Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa]), nas demais sendo claramente inadmissível, ab initio. Contudo, mesmo na alínea (a), o pedido em apreço não encontra fundamento para a sua admissibilidade liminar. Assim, a ré funda o pedido indemnizatório em supostas acções da filha do autor e ainda numa traição do autor, com outro envolvimento amoroso, factos, situações, que em nada se relacionam com o fundamento da acção indicado pelo autor, como é perfeitamente apreensível.
A ré vem recorrer desta parte do despacho saneador – para que seja revogada e substituída por outra que determine o [recebimento] dos pedidos reconvencionais (ii) e (iii) -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1- A decisão recorrida viola o disposto no art. 266/1-2-a do CPC.
2- Na medida em que indefere liminarmente o pedido de indemnização formulado pela ré e litigância de má-fé porque não são fundados em nenhuma no facto jurídico que serve de fundamento à acção.
3- O que não corresponde à realidade fáctica careada para os autos.
4- A ré elencou várias atitudes/factos vexatórios praticados pelo autor através de sua filha (que o fez em nome e representação daquele) relacionados com a causa de pedir, nomeadamente declaração de responsabilidade da [ré] no pagamento de todas as despesas do recorrido e simultâneo cancelamento de todos os cartões de débito que estavam em posse da mesma, entre outros.
5- A ré não pede uma indemnização pelos actos praticados pela filha do autor, mas sim por esta em nome daquele, nem apenas com fundamento numa traição amorosa.
6- Os factos subjacentes ao pedido de indemnização relacionam-se com os factos da petição inicial
O autor não contra-alegou.
Questão que importa decidir: se o pedido reconvencional (ii) não devia ter sido indeferido liminarmente.
Os factos que interessam à decisão desta questão são os que constam do relatório que antecede.
Apreciando:
Antes do mais, o despacho recorrido não indefere (nem implicitamente) o pedido de condenação do autor como litigante de má-fé; limita-se a não dizer nada sobre ele porque, naturalmente, é uma questão inerente a qualquer processo judicial, a ser apreciada a final, pelo que não tem de ser admitido, nem o seu valor, se a ré lhe tivesse atribuído algum, teria de ser somado ao valor da acção como pedido autónomo.
Posto isto,
O art. 266/2 do CPC estabelece “os factores de conexão entre o objecto da acção e o da reconvenção que tornam esta admissível” (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 1.º, 4.ª edição, Almedina, 2021, reimpressão de 2017, pág. 531).
O primeiro factor, previsto na primeira hipótese do art. 266/2-a do CPC, é o facto de o pedido do réu emergir “do facto jurídico que serve de fundamento à acção”, ou seja, como explicam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre: a mesma causa de pedir ou parte da mesma causa de pedir, como, por exemplo, um contrato que fosse a causa de pedir do pedido do autor (obra citada, pág. 531).
Ora, os supostos actos praticados pelo autor, por si ou através da sua filha, não têm nada a ver com o fundamento da acção, que é a apropriação ilícita, pela ré, do dinheiro do autor.
Pelo que, está afastada a argumentação da ré para tentar convencer da admissibilidade do segundo pedido reconvencional.
De qualquer modo diga-se, a benefício da discussão – embora a ré nem sequer toque nele -, que o outro factor de conexão que poderia estar em causa, era apenas o previsto na segunda hipótese do art. 266/2-b do CPC, ou seja, emergir, o pedido (ii), do facto jurídico que serve de fundamento à defesa. Ou seja, como dizem os autores citados acima, agora na página 532: “o pedido reconvencional pode fundar-se nos mesmos factos – ou parcialmente nos mesmos factos – em que o próprio réu funda uma excepção peremptória ou com os quais, indirectamente, impugna os factos alegados.)
Ora, o fundamento da defesa da ré é, no essencial, o facto de os valores em causa serem também seus e por isso poder utilizá-los ou ficar com eles em seu poder ou, no caso do automóvel, a devolução ter sido recusada. O fundamento da defesa não é o facto de o autor ou a filha a terem maltratado ou o autor a ter atraiçoado.
E a referência genérica da ré, a “todo este processo” não se encaixa sequer na questão de danos causados com a propositura da acção, que, de resto, segundo a melhor doutrina e jurisprudência, não seria objecto possível de reconvenção (vejam-se os autores e obra citados, pág. 532).
Pelo que não se encontra preenchido nenhum dos factores de conexão que poderiam ter o mínimo de cabimento no caso.
*
Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Sem custas porque a ré está dispensada delas (apoio judiciário).
Lisboa, 27/01/2022
Pedro Martins
1.º Adjunto
2.º Adjunto