Processo do Lisboa – JL Cível

 

              Sumário:

              I – Tendo a autora demandado uma sociedade, mas não conseguindo provar que foi com ela que contratou os serviços em causa (tanto mais que os serviços lhe foram facturados por outra sociedade sem que a autora tivesse posto em causa essa facturação), essa sociedade deve ser absolvida do pedido.

              II – O credor não pode demandar simultaneamente o devedor, com base no art. 800 do CC, e o trabalhador desse devedor com base na execução defeituosa da prestação. Dito de outro modo: “o art. 800 não permite outra responsabilização que não seja a do devedor, ou seja, da pessoa obrigada perante o credor.”

 

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

 

              A 02/07/2017, C intentou uma acção declarativa comum contra N-Lda, MO [identificada pela autora só como M] e MF [identificada pela autora só como Drª F], pedindo a condenação das rés a pagarem-lhe 10.000€ a título de danos patrimoniais e 14.000€ a títulos de danos não patrimoniais.

              Alega para o efeito, em síntese [que já tem em conta apenas o que se discute mais à frente], que: a ré [a autora quer-se referir à 1ª ré] é proprietária de uma cadeia de serviços de depilação a laser, nomeadamente, proprietária de uma Clinica sita no CCA; a autora tomou conhecimento da existência dos serviços prestados pela [1.ª] ré; a autora seleccionou os serviços da [1.ª] ré; a autora, em Março [de 2016], decidida que estava a efectuar uma depilação definitiva a laser a ambas as pernas, no estabelecimento da [1.ª] ré, deslocou-se ao estabelecimento da [1.ª] ré; esses serviços de depilação foram executados por uma colaboradora chamada M, aqui 2.ª ré (cuja identificação mais pormenorizada se desconhece, requerendo-se a 1.ª ré a complementá-la); serviços que provocaram, na autora, pela forma como foram prestados, queimaduras e deixaram marcas e consequências permanentes; daqui decorreram danos que têm os valores pedidos.

              O que relata, quanto à 3.ª ré, que diz prestar à [1.ª] ré serviços de supervisão depois do serviço prestado, é que ela lhe telefonou, uns dias depois dos factos, e desvalorizou o que a autora lhe ia contando e recomendou produtos e espera pelos desenvolvimentos recentes e posterior contacto que não chegou a ocorrer; e que, quando 3 meses depois, a autora foi atendida pela 3.ª ré, esta recomendou de novo que aguardasse pela melhora do estado de saúde, fizesse uma espoliação e se submetesse a solário e apanhasse mais sol e que em 6 meses as sequelas desapareceriam (o que também lhe teria sido dito pela 2.ª ré); aquilo que a 3.ª ré lhe disse para fazer não era adequado como resulta do que lhe foi dito por outros médicos que a autora consultou mais tarde.

              Na parte do Direito acrescenta: […] 166: A intervenção da 3ª ré, é perfeitamente irrelevante em todo o processo causal e quanto aos procedimentos a seguir pela autora. 167: A 1ª e 2ª ré, que actuaram com um aparelho de laser, por natureza perigoso, não estavam eximidas por tal motivo de tomar as cautelas necessárias para que não tivessem ocorrido as ditas lesões.

              Não apresentou qualquer documento com qualquer contrato nem facturas/recibos dos serviços prestados.

              Devido à falta de dados de identificação das 2ª e 3ª rés, apenas foi enviada a 13/07/2017 carta para citação da 1.ª ré. No entanto, a 21/09/2017 as três rés apresentaram-se a contestar, devidamente identificadas. E fizeram-no excepcionando a ilegitimidade processual da 1.ª ré dizendo: 1.º A 1.ª ré tem por objecto social a importação, exportação, comercialização e venda por correspondência de produtos alimentares e materiais ligados a dietética, medicina, estética, higiene e bem-estar (cfr. certidão permanente de registo acessível através do código x). 2.º A 1.ª ré não presta quaisquer serviços estéticos de tratamentos de depilação a laser nem toma parte nos respectivos contratos – máxime os serviços contratados pela ora autora. 3.º A 1.ª ré é, pois, parte ilegítima na presente acção. 4.º Na realidade, é a B-Lda, a sociedade detentora das “clínicas” que, a nível nacional, efectivamente prestam os referidos serviços (cfr. certidão permanente de registo que ora se junta como documento n.º 1), 5.º E, em particular, é a B a proprietária da Clínica sita no CCA, na qual a autora se submeteu a um tratamento de depilação a laser (cfr. declaração de arrendamento do referido estabelecimento comercial que ora se junta como documento n.º 2). 6.º É, aliás, esta B que vem identificada na factura referente aos serviços prestados à ora autora (documento que se junta como n.º 3), 7.º Da qual consta o respectivo NIPC (número de identificação de pessoa colectiva), também conforme certidão permanente já junta. 8.º Assim, os serviços pelos quais a autora procura responsabilização não são, nem o foram in casu, prestados pela 1.ª ré, mas sim pela B, que não figura na presente acção. 9.º O que bastaria para que se concluísse pela ilegitimidade passiva da 1.ª ré e, assim, pela sua absolvição da instância, nos termos conjugados dos artigos 576/2 e 577/-e do Código de Processo Civil. Não obstante, e sem prescindir, 10.º Mesmo que se entenda pela legitimidade processual da 1.ª ré, dada a configuração da acção pela autora e, portanto, o seu interesse directo em contradizer – 11.º Sempre, e em qualquer caso, resultaria a falta de legitimidade substantiva da B [sic – as rés quiseram, logicamente, escrever 1.ª ré], o que impõe a sua absolvição dos pedidos. De todo o modo, no melhor espírito de colaboração com o tribunal – sem prescindir e à cautela –, ainda que, de facto, fosse a 1.ª ré a entidade prestadora dos serviços em causa: II. Introdução 12.º A presente acção não tem fundamento, estando, nessa medida, votada ao insucesso. […] 16.º A 1.ª ré [entenda-se, daqui por diante, virtualmente falando, a B] tem por objecto social a prestação de serviços estéticos de tratamentos de depilação a laser (cfr. documento junto como n.º 1). […].”

              A partir daqui, as rés passam a impugnar, dizem, a maior parte dos factos alegados pela autora, ou por desconhecerem os factos que ela alegou sem obrigação de conhecer, ou por tais factos não corresponderem ao que se passou, designadamente porque o serviço teria sido bem prestado; e a 3.ª ré não teria feito quase nada do que a autora lhe imputa. Impugnam também os documentos juntos pela autora (fotografias e facturas relativos aos danos alegados). Defendem que a 1.ª ré deve ser absolvida da instância ou, caso não, do pedido, tal como o devem ser as outras duas rés.

              Por despacho de 18/12/2017, a autora foi convidada a completar a identificação das 2.ª e 3.ª rés.

              A autora completou o formulário da PI e, na mesma peça processual, requereu a intervenção processual provocada da B dizendo que [transcreve-se quase na íntegra, apenas com simplificações]:

         “[…] tendo indicado como uma das rés N-Lda, aliás, aquela que, como muito bem vertem as rés na contestação, confessando ‘De todo o modo, no melhor espírito de colaboração com o Tribunal – sem prescindir e à cautela –, ainda que, de facto, fosse a 1.ª ré a entidade prestadora dos serviços em causa (…)’ fê-lo na convicção daquele facto, ou seja, de que a 1.ª ré seria proprietária […da] Clinica sita no CCA, onde foram prestados os serviços de que resulta o objecto do presente litigio.

         Sucede porém que não obstante aquela confissão supra das rés fosse a 1.ª ré a entidade prestadora dos serviços em causa […]. Assim, em face da confusão instalada na lide, pelo facto de a 1.ª ré alegar ter sido de facto, fosse a 1.ª ré a entidade prestadora dos serviços em causa (…) mas, não obstante ser a B a sociedade detentora das “clínicas” que, a nível nacional, efectivamente prestam os referidos serviços […] e, em particular, ser a […] proprietária da Clínica […] na qual a autora se submeteu a um tratamento de depilação a laser onde se prestaram os serviços pelos quais a autora procura responsabilização, vem a autora deduzir [aquele incidente…] com os fundamentos seguintes:

         […]

       5. E, torna-se imprescindível este incidente porque se é bem verdade que o que está em causa são os serviços prestados da Clínica […] na qual a autora se submeteu a um tratamento de depilação a laser onde se prestaram os serviços pelos quais a autora procura responsabilização, e sobre este facto duvidas não existem quer do ponto de vista da autora quer através do teor da contestação das rés;

     6. A verdade é que, estas referem por um lado que foi “a 1.ª ré a entidade prestadora dos serviços em causa”,

    7. Mas por outro que, é a B a sociedade detentora das ‘clínicas’ que […] efectivamente prestam os referidos serviços.’

       8. Assim, se de facto a 1.ª ré se prefigura como sendo quem prestou os serviços, não obstante, de direito, indica terceira pessoa responsável pelos mesmos, ainda que não a tenha chamado a juízo, como sempre poderia fazer, estamos em crer apenas com objectivo de atrasar a presente lide.

       9. Só é pois possível, neste processo e seus termos ulteriores, perceber e aferir em concreto da responsabilidade destas pessoas e sobre qual deve a mesma recair pela prática as acções que culminaram nos danos causado à autora pelos serviços prestados naquela clinica, chamado ao processo a pessoa indicada pela autora e a indicada pela ré o que aqui se faz.

       10. A autora […] tem em face do exposto supra, fundadas razões da incerteza sobre o titular passivo da relação material controvertida aqui em causa, por isso expos acima os factos consubstanciadores dessa justificada dúvida.

         […]”

              Esta intervenção – que não teve oposição das rés – não foi admitida, por razões processuais que não interessam agora, já que desta decisão não foi interposto recurso.

              Foi feita uma perícia à autora pela Delegação do Sul do Instituto Nacional de Medicina Legal, IP, com relatório junto a 11/09/2018.

              A marcação da audiência final ocorreu a 21/02/2019; esta iniciou-se a 15/05/2019 e terminou na 2ª sessão de 17/06/2019.

              A 30/08/2021 foi proferida sentença a condenar as três rés a pagarem à autora 8640€ a título de danos patrimoniais e 7000€ a título de danos não patrimoniais, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa supletiva legal, contados desde a citação, até efectivo e integral pagamento, absolvendo-as do demais peticionado.

              As rés recorrem desta sentença, para que seja revogada e substituída por outra que a absolva a 1.ª ré da instância ou, caso não, que a absolva do pedido, tal como às outras duas.

              A autora não contra-alegou.

                                                                 *

              Questões que importa decidir: se as rés não deviam ter sido condenadas no pedido.

                                                                 *

                                            Da condenação da 1.ª ré

              A autora baseia o seu pedido contra a 1.ª ré na responsabilidade contratual desta, isto é, por esta lhe ter prestado com defeito os serviços que contratou com ela (art. 798 do CC).

              Se não estiver provado que os serviços foram contratados com e prestados pela 1.ª ré, fica afastada a hipótese da condenação da 1.ª ré no pedido.

              Os factos que permitiram a condenação da 1.ª ré pelo tribunal recorrido foram os seguintes:

         Da petição inicial

         1\ A [1.ª] ré é proprietária de uma cadeia de serviços de depilação a laser espalhados por todo o país, nomeadamente, proprietária de uma Clinica sita no CCA […].

         2\ A autora tomou conhecimento da existência dos serviços prestados pela [1.ª] ré através das suas múltiplas campanhas de marketing publicitário, nomeadamente na internet e em diversas revistas de moda, de cariz social e cultural.

         3\ […] a autora seleccionou os serviços da [1.ª] ré […]

         9\ […] a autora, em Março, decidida que estava a efectuar uma depilação […] no estabelecimento da [1.ª] ré […]

         10\ […d]eslocou-se ao estabelecimento da ré, onde uma colaboradora [da 1.ª ré] chamada M, aqui 2.ª ré, lhe realizou […].

              A fundamentação da decisão destes pontos foi a seguinte:

         No julgamento dos factos vertidos sob os artigos 1 a 3 da petição inicial levou-se em consideração a certidão permanente de B-Lda, e as facturas emitidas em nome desta, em número de três.

         Não obstante, relida a “informação sobre o tratamento de depilação com laser”, na mesma apenas se faz menção a “Clinica”.

         A autora afirmou que questionadas as empregadas da clinica, as mesmas lhe mencionaram que trabalhavam sob a direcção de N, depoimento, parcialmente, corroborado pelas testemunhas E e C.

         Por seu turno, o depoimento de P por tendencioso não mereceu a credibilidade do tribunal.

         Atento o exposto, mostra-se, suficientemente, comprovado que a 1.ª ré é a responsável pela prestação de serviços de depilação a laser contratados.

         Pelo que são de considerar comprovados os factos vertidos sob os arts. 1 a 3 da petição.

         […]

    No julgamento dos factos vertidos sob os arts. 9 a 12 […] levou-se em consideração as declarações de parte da autora e as declarações de parte da ré M, técnica, que participou nas sessões de depilação a laser.

              Contra o que consta do facto 1\, as rés dizem o seguinte:

       14. Tal argumentação é infundada, consubstanciando um manifesto erro de julgamento.

       Vejamos:

    15. Decorre de forma cristalina dos documentos juntos com a contestação, nomeadamente dos documentos n.ºs 1 a 4, o seguinte:

         – A empresa B-Lda tem por objeto, entre o mais, “tratamentos de depilação a laser” (cf. documento n.º 1, junto com a contestação, que corresponde à certidão do registo comercial da referida sociedade);

        – A B é arrendatária da fração autónoma designada pela letra E, correspondente ao segundo andar, sala 2, do prédio urbano sito […] (cf. documento n.º 2, junto com a Contestação);

         – Os tratamentos de depilação a laser em causa nestes autos foram pagos pela autora à B (e não à N), que emitiu a respectiva fatura (cf. documentos n. os 3 e 4).

           16. Por outro lado, decorre também de forma evidente da Certidão de Registo Comercial da N que a mesma tem por objeto social “a importação, exportação, comercialização e venda por correspondência de produtos alimentares e materiais ligados a dietética, medicina, estética, higiene e bem-estar” (cf. certidão permanente cujo código de acesso online foi disponibilizado ao Tribunal a quo, e que ora se repete),

        17. O que, aliás, foi dado como provado pelo Tribunal a quo, constando do facto n.º 1 da Contestação apresentada pelas Rés.

        18. Por outras palavras: dos documentos juntos aos autos decorre que a) a B presta serviços estéticos de depilação a laser, sendo detentora da Clínica onde a autora realizou as sessões de depilação a laser em causa nestes autos e b) que a N tem por atividade, apenas, a aquisição e venda dos materiais ligados, entre o mais, a serviços de estética.

             19. A atividade prosseguida pela N é, aliás, corroborada pelas faturas juntas como documento n.º 7 com a Contestação.

          20. De facto, dessas faturas decorre a aquisição, pela N, de equipamentos e materiais ligados a serviços de estética, mais concretamente, a depilação a laser.

             21.  análise dos documentos acima elencados seria suficiente para que, por si só, o Tribunal a quo desse como não provado o facto constante do ponto n.º 1 da PI.

              De todo o modo, note-se ainda o seguinte:

           22. O depoimento da testemunha E não se debruça, em momento algum, sobre a identidade da empresa detentora da marca Clínica, em concreto, sobre se a mesma é detida pela 1.ª ré (cf. depoimento prestado por E 15.05.2019, entre as 14:32 e as 14:59 horas […]

            23. Pelo que não pode, como é evidente, servir para dar como provado que a N presta serviços de estética, como depilação a laser.

            24. O mesmo se diga do depoimento da testemunha C.

          25. De facto, o único momento em que a testemunha em causa identifica o local onde a autora terá sido submetida ao tratamento estético em causa nestes autos é o seguinte (cf. depoimento prestado por C em 15.05.2019, entre as 14:59 e as 15:15 horas […], minutos 00:02:34 a 00:02:40):

Advogada 00:02:34 Ela disse aonde? Onde é que fez esse tratamento?

Testemunha 00:02:36 Disse.

Advogada 00:02:36 Onde?

Testemunha 00:02:37 Na Clínica.

Advogada 00:02:39 Disse em qual?

Testemunha 00:02:40 CCA.

           26. Como decorre da transcrição acima, a testemunha em causa em momento algum identificou a 1.ª ré como sendo detentora da Clínica em causa, ou como tendo sido a empresa que prestou os serviços sob análise nestes autos.

          27. Nestes termos, o referido depoimento não pode, também, servir para infirmar minimamente o que resulta da prova documental junta aos autos.

       28. Mas atente-se finalmente no que disse a ora autora sobre a identidade da dona da Clínica (cf. declarações […] em 17.06.2019, entre as 16:07 e as 16:37 horas, […], minutos 00:21:05 a 00:21:29):

            Juíza 00:21:05 Quem era… a senhora não sabe quem era a dona da Clínica, pois não?

            Testemunha 00:21:08 A dona da clínica do, as faturas quem me passou foi a B, mas quem tinha as máquinas… porque eu, quando, eu lembro-me quando lá estava deitada, até perguntei à técnica de quem eram as máquinas. Ela, a mi/, a miúda até me disse que as máquinas eram da N e, e o pessoal.

            Juíza 00:21:26 Hum.

            Testemunha 00:21:29 Devem ter um contrato de exploração, ou de utilização de equipamento. Essa B, foi quem me emitiu a fatura, com a N. Não sei. Não sei.

             29. Ora, como resulta claro o que a autora relatou não contradiz o que consta dos documentos juntos aos autos: a N não presta serviços estéticos de depilação a laser.

            30. Esses serviços são prestados pela B que é, aliás, a detentora da Clínica onde terá sido realizado o tratamento em causa nestes autos,

             31. Motivo pelo qual as faturas pelos serviços prestados foram emitidas por esta empresa.

            32. Mais: a própria autora termina as suas declarações, a este propósito, dizendo que não sabe.

         33. Acresce ainda que o que consta da prova documental (irrefutável) foi ainda corroborado pelo depoimento do legal representante da 1ª ré, P (cf. declarações […] em 17.06.2019, entre as 15:06 e as 15:31 horas, minutos 00:01:10 a 00:05:11 e 00:15:49 a 00:16:29), ao referir que:

Juiz 00:01:10 Não conhece. Sabe… Portanto a N faz… há alguma relação entre a N e uma B – Clínicas?

Legal Representante 00:01:26 A relação… Nós N é como se fosse uma cliente da B.

Juiz 00:01:31 A N…

Legal Representante 00:01:31 Desculpe, é o contrário. A única parceria que existe da N com a B é em termos de negócio.

Juiz 00:01:43 A B é o quê, desculpe?

Legal Representante 00:01:44 Em termos de negócio.

Juíza 00:01:46 A B é cliente da N, é isso?

Legal Representante 00:01:48 Sim.

Juíza 00:01:50 Portanto, a N faz fornecimentos a esta outra sociedade, é isso?

Legal Representante 00:01:54 Faz, desculpe…?

Juíza 00:01:56 Fornecimentos…

Legal Representante 00:01:56 Sim.

Juíza 00:01:57 Fornece alguma coisa.

Legal Representante 00:01:58 Fornece.

Juíza 00:02:00 O quê?

Legal Representante 00:02:00 São os equipamentos e alguns produtos.

Juíza 00:02:08 A N prestou algum serviço à autora?

Legal Representante 00:02:12 Não.

Juíza 00:02:14 Então porque é que esta senhora terá ficado com a ideia de que seria a N a prestadora dos serviços e não… de depilação, e não a clínica?

Legal Representante 00:02:26 Não sei.

Juíza 00:02:37 Mas há sócios em comum entre uma e outra?

Legal Representante 00:02:40 Esses sócios comuns há.

Juíza 00:02:42 Há sócios em comum. São os mesmos donde?

Legal Representante 00:02:50 São empresas.

Juíza 00:02:53 São empresas que detêm outras empresas, é isso?

Legal Representante 00:02:55 Exatamente.

Juíza 00:03:13 Sabe se a N, diz-se aqui que… Sabe onde é que a autora fez algum tratamento? Tem ideia?

Legal Representante 00:03:23 Sim.

Juíza 00:03:23 …do que aconteceu?

Legal Representante 00:03:24 (impercetível) basicamente.

Juíza 00:03:27 (impercetível)

Legal Representante 00:03:27 Exatamente.

Juíza 00:03:30 Que a senhora fazia ali os tratamentos na Clínica sita no CCA.

Legal Representante 00:03:37 Exatamente.

Juíza 00:03:38 E isto não é da N, este centro?

Legal Representante 00:03:39 Não.

Juíza 00:03:39 Nem tem relação?

Legal Representante 00:03:40 Não.

Juíza 00:03:41 Não.

Legal Representante 00:03:41 A N não tem nenhum centro.

Juíza 00:03:44 Então a N faz o quê?

Legal Representante 00:03:46 A N comercializa, importa, exporta produtos. Produtos dietéticos, cosmética e equipamentos.

Juíza 00:04:26 Mas o senhor sabe alguma coisa sobre a atividade comercial desta sociedade B?

Legal Representante 00:04:37 Sei, sim.

Juíza 00:04:39 Também é gestor desta sociedade.

Legal Representante 00:04:40 Também sou gestor.

Juíza 00:04:43 Ai também gere a B, é isso?

Legal Representante 00:04:44 Também. Sou uma das pessoas que gere.

Juíza 00:05:06 E qual é a atividade então desta sociedade B?

Legal Representante 00:05:11 Bem, a atividade dela principal, e a única, são serviços de depilação a laser.

         34. Tendo explicado também, mais adiante, que:

Advogado 00:15:49 Tenho. Obrigado. Com a devida vénia. Doutor P, boa tarde. Explorando aqui um pouco mais aquilo que é o objeto da sociedade N. A N tem como objeto a prestação de serviços?

Legal Representante 00:16:05 Não.

Advogado 00:16:05 De nenhum tipo de serviços?

Legal Representante 00:16:07 Não.

Advogado 00:16:09 O CAE, é assim que se diz, CAE, não é? O CAE da N é apto para prestar serviços?

Legal Representante 00:16:13 Não.

Advogado 00:16:15 E o da B?

Legal Representante 00:16:18 É.

Advogado 00:16:19 Então, o da B prevê a prestação de serviços, depilação a laser, neste caso.

Legal Representante 00:16:23 Exatamente. Tanto que é diferente.

Advogado 00:16:29 Olhe, aqui no… explicou-nos aqui que há um consentimento informado. Não é feito o tratamento sem o consentimento informado ter sido assinado. Porque é que esse consentimento informado existe?

           35. Note-se que (i) enquanto legal representante da N tem especial razão de ciência no que respeita à atividade prosseguida pela empresa em causa, e (ii) o depoimento [sic] em causa mais não fez do que corroborar o que já decorria claro de prova documental junta aos autos e que nunca foi refutado por nenhuma outra prova.

            36. Tendo em conta a prova documental e testemunhal acima indicada, não colhe a motivação que serviu de base à decisão de considerar como provado o ponto 1 da matéria de facto constante da PI, pelo que deve o Tribunal ad quem alterar a decisão proferida quanto ao mesmo.

            37. Em face do exposto, deverá, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 662/1 do CPC, alterar-se a decisão considerando não provado o facto 1.

              Apreciação:

             O que está em causa em 1\ é a propriedade da clínica. A prova produzida pela autora não aponta minimamente para que a 1.ª ré fosse a proprietária da Clínica. O máximo que poderia decorrer da prova produzida pela autora – ou seja, as suas declarações de parte – é que as empregadas da clínica lhe disseram que “eram” da 1.ª ré, não que esta fosse a proprietária da clínica. Não tendo a autora produzida prova do facto que alegou, tal basta para que o facto não se pudesse dar como provado. Pelo que se elimina o facto.     

                                                                 *

              Quanto ao que consta do facto 2\, as rés dizem o seguinte:

           39. Note-se que, para [dar como provado o que consta de 2\], o tribunal a quo usou a mesma argumentação expendida em cima, quando tal argumentação em nada está relacionada com as supostas campanhas publicitárias realizadas pela N.

           40. Mais: este facto está inclusivamente em contradição com aqueles constantes dos pontos 9\ e 18\ da PI, também dados como provados pelo tribunal a quo, nos termos dos quais:

“9\ Assim a autora, em Março, decidida que estava a efectuar uma depilação definitiva […], no estabelecimento da [1.ª] ré, por lhe ter parecido, na altura, ter mais segurança e um melhor quadro e acompanhamento clínico e atentas as informações da sua amiga,”

“18\ Em Julho, deslocou-se novamente à mesma clínica, como previamente marcado, com a amiga que lhe havia recomendado o local […]

           41. De facto, não se compreende como pode o tribunal a quo dar por provado que a autora se dirigiu à clínica em questão por uma amiga lhe ter recomendado o local e dar em simultâneo como provado que a autora tomou conhecimento dos serviços prestados pela 1.ª ré através das suas múltiplas campanhas de marketing publicitário, nomeadamente na internet e em diversas revistas de moda, de cariz social e cultural.

           42. Mais: não existe qualquer prova nos autos, documental ou outra, de onde resulte a realização de campanhas publicitárias pela 1.ª ré, seja na internet, seja em revistas.

      43. Pelo contrário, resultou de prova testemunhal, mais concretamente do depoimento do representante legal da 1ª ré, que a Clínica não realiza qualquer tipo de campanhas publicitárias, deslocando-se os novos clientes à mesma tipicamente por recomendação de outros clientes (cf. declarações […] em 17.06.2019, entre as 15:06 e as 15:31 horas, […], minutos 00:08:19 a 00:09:46):

Juíza 00:08:19 Funciona só em Portugal, é? Ok. Diz-se aqui que a grande maioria dos clientes que lhes chegam vêm por recomendação de outros, cerca de noventa por cento. Já sei que me vai confirmar, agora como é que se confirma? É fazem inquéritos?

Legal Representante 00:08:38 Sim.

Juíza 00:08:38 Perguntam como é que… Isto é uma estatística? Está baseado em quê?

Legal Representante 00:08:43 Portanto todos, nesta área da depilação a laser, as pessoas, a maior parte das pessoas vêm mesmo sempre por alguém que já tenha efectuado algum tipo de tratamento e onde. E, basicamente, nós temos grande parte dos clientes, só para não dizer uma percentagem superior vem tudo do boca a boca. Todos os clientes que vêm são clientes que, ou que tiveram um familiar, ou que têm um amigo, que vieram à Clínica.

Juíza 00:09:22 Portanto a (impercetível) não promove campanhas publicitárias em revistas de qualquer cariz comunicando e informando o público exclusivamente através da sua página oficial.

Legal Representante 00:09:34 Nós nunca fizemos qualquer tipo de publicidade paga. Portanto revistas e isso tudo nunca tivemos. Pelo menos com o nosso conhecimento.

Juíza 00:09:43 Porque não têm necessidade, é isso?

Legal Representante 00:09:46 Sempre foi uma política nossa. Sempre tivemos, felizmente, trabalho e nunca foi preciso estar a fazer esse tipo de publicidade. Pelo menos até ao dia de hoje, claro.

           44. Atenta a (única) prova produzida a este respeito, não colhe a motivação que serviu de base à decisão de considerar como provado o facto 2.

          45. Em face do exposto, deverá, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 662/1 do CPC, alterar-se a decisão recorrida considerando não provado o facto 2.

            Apreciação:

          No facto 2\ estão em causa duas questões distintas: os serviços eram prestados pela 1.ª ré? e a forma como a autora tomou conhecimento desses serviços.

           A argumentação da ré, aqui, trata da questão do conhecimento, não da questão de quem prestava os serviços. Mas a argumentação da ré, quanto ao facto 1, já tratava desta questão de quem prestava os serviços, e será agora considerada.

              Posto isto,

              Quanto à questão do conhecimento, a fundamentação da decisão recorrida não diz qual foi a prova em que se baseou e a rés demonstram que a prova produzida foi em sentido negativo.

              Quanto aos serviços serem ou não prestados pela 1.ª ré já se viu, aquando da discussão do facto 1\, que a sentença recorrida diz que a autora afirmou que questionadas as empregadas da clinica, as mesmas lhe mencionaram que trabalhavam sob a direcção de N, depoimento, parcialmente, corroborado pelas testemunhas E e C.

              Mas as duas indicadas testemunhas, que foram arroladas pela autora, não dizem nada sobre o assunto.

              Quanto ao que é dito pela autora, refere-se directamente à questão da propriedade das máquinas. Só indirectamente se acrescenta uma referência anódina ao pessoal: “as máquinas eram da N e, e o pessoal.”

              Mas mesmo esta referência não merece credibilidade: se a autora tivesse feito perguntas sobre quem é que prestava os serviços e tivesse recebido as respostas que diz ter recebido, não se compreenderia porque é que, quando a autora recebeu as facturas em nome da B, não achou estranho e não fez a investigação dos factos para saber quem é que lhe tinha prestado serviços. Ora, a autora não alegou nada na petição inicial quanto à discrepância, nem alegou, depois de as rés, na contestação, terem apresentado facturas em nome da B, fosse o que fosse no sentido de estas serem diferentes daquelas que pagou ou de não lhe terem sido apresentadas nenhumas facturas quando pagou os serviços. Assim, como a autora recebeu as facturas em nome da B e não disse nada quanto à discrepância, é porque o facto não lhe chamou a atenção, o que necessariamente ocorreria se ela tivesse estado a fazer perguntas sobre quem é que lhe estava a prestar serviços.

              As declarações da autora aponta, por isso, no sentido de que se trata apenas de a autora estar a tentar, então, na audiência, afastar a defesa das rés quanto a uma questão em que a autora não pensou ao intentar a acção, isto é, que não seria a 1.ª ré a sociedade que lhe prestou serviços. Isto apesar de ter as facturas desses serviços passadas por uma outra sociedade (o que ela admite e consta dos factos provados sob 6 [da contestação]).

              Veja-se neste sentido que na petição inicial a autora não fala na B, nem apresenta as facturas do serviço que lhe foi prestado. E no requerimento de intervenção principal, a autora, em vez de vir reafirmar, com um mínimo de convicção, que tinha sido a 1.ª ré a prestar-lhe os serviços – sendo esta a altura própria para dizer, já que não o tinha dito na petição inicial, que as empregadas a ré lhe tinham respondido que quem lhe prestava serviços era a 1.ª ré -, o que fez foi vir tentar chamar à acção a outra sociedade, para a hipótese de ter sido esta a prestar-lhe serviços, embora à mistura faça uma interpretação insustentável da contestação das rés (transcrita acima para se poder confirmar agora que essa interpretação não tem qualquer suporte no que foi dito pelas rés: o que elas dizem tem o inequívoco sentido de anunciar de que as rés vão passar a contestar como se tivesse sido a 1.ª ré a prestar serviços, embora não o tendo sido. Não há aqui qualquer confissão), no sentido de estas terem confessado que tinha sido a 1.ª ré a entidade prestadora dos serviços em causa). Assim, também aqui a prova produzida pela autora não convence minimamente, o que impediria que fosse dado como provado que a prestadora de serviços era a 1.ª ré.

              Note-se que a autora diz que a excepção da ilegitimidade deduzida pelas rés tem o objectivo de atrasar a lide, mas esta acusação não tem qualquer correspondência com os factos, pois que as rés, apesar de duas delas nem sequer estarem devidamente identificadas nem citadas, apresentaram contestação menos de 23 dias (descontando as férias judiciais) depois da 1.ª ré ter sido citada e menos de 35 dias depois de a autora ter intentado a acção. E na parte da contestação transcrita acima, parcialmente invocada pela autora, até dão a entender que nada oporão a que a 1.ª ré venha a ser substituída pela B e daí que já contestem como se tivesse sido a 1.ª ré a prestar os serviços, o que poderia ser aproveitado quando a B entrasse na acção. Se isso não aconteceu, tal não se deveu às rés.

              Posto isto, não deixe de se dizer que o depoimento de uma das testemunhas das rés, EG, apontaria, na leitura da transcrição de parte dele feita pelas rés, no sentido de o serviço ter sido prestado pela 1.ª ré. Mas tendo em conta o depoimento no seu todo, vê-se que a testemunha ressalva que está a falar da venda das máquinas à 1.ª ré e que é por facilidade de discurso que está a falar como se fosse a 1.ª ré a prestar os serviços, mas sem ter conhecimento concreto disso (Advogado 00:04:27 Muito bem. A… em matéria… Bom, tanto em matéria de formação como aquilo que são as máquinas que são adquiridas pela N, já nos disse que é quem adquire as máquinas, já agora pergunto-lhe, sabe se a N é dona das clínicas? Testemunha 00:04:49 Se quê? Advogado 00:04:50 Se a N é a dona das clínicas? Testemunha 00:04:52 Da…? Advogado 00:04:54 Sabe se a N é a dona das clínicas? Ou isso já ultrapassa o seu conhecimento? Testemunha 00:04:57 Pois, isso não sei…; […] 00:07:06 Nós temos a… em Portugal, nós temos dois técnicos, que são mesmo funcionários da empresa, nós não subcontratamos a… empresas… técnicos que trabalham à hora ou ao dia. Nós temos dois funcionários que dão assistência a nível nacional, nós temos um que é… que trabalha quase em exclusivo para a… para a N porque a N, Clínica, nós fizemos um acordo com eles há uns anos atrás, como eles têm um número de máquinas muito elevado, a… a nossa assistência é dada em quarenta e oito horas, o normal. […] Testemunha 00:08:52 […] … e desculpe dizer N, não sei se é o correto…).

              Pelo que este depoimento, embora pudesse apontar no sentido de os serviços poderem ter sido prestados pela 1.ª ré – e no mesmo sentido aponta o facto de as máquinas serem da 1.ª ré e ainda o facto de ambas as sociedades terem a mesma sede e de nas facturas da compra das máquinas constar a 1.ª ré e como local de entrega o CCA, 2º andar, sala 2, isto é, na Clínica – não é suficiente, mesmo que conjugado com as declarações da autora, para dar como provado que assim foi, porque é perfeitamente possível que o tenham sido pela B, que foi quem os facturou, o que pode acontecer por ser ela a utilizadora das máquinas da 1.ª ré (o que aliás a autora admite nas suas declarações de parte). E relembre-se que, pelo já descrito acima, não há nenhum indício de que a 1.ª ré esteja, agora ou à data, de má-fé, querendo alijar a sua responsabilidade para a B, tanto mais que aceitou discutir toda a matéria alegada pela autora na previsão da sua possível substituição pela B.

              Em suma, procede a impugnação da decisão deste ponto da matéria de facto, decidindo-se agora pela sua eliminação.

                                                                 *

              Contra o que consta do facto 10\, as rés dizem o seguinte:

         48. Como se viu já nos pontos 12 e seguintes acima, e tendo em conta os meios de prova aí indicados, os quais se dão aqui por reproduzidos, não podia o Tribunal a quo ter dado como provado que a autora “deslocou-se ao estabelecimento da Ré”, na medida em que, como se viu, o estabelecimento em causa pertence à B e não à N.

            49. O que ora se diz não é minimamente infirmado, como já se viu, pelas declarações de parte da autora nem pelas declarações de parte da ré M, que em momento algum do seu depoimento menciona quem é a empresa detentora da Clínica aqui em causa, nem qual a sua entidade empregadora.

           50. Atenta a prova produzida a este respeito, não colhe a motivação que serviu de base à decisão de considerar como provado o facto 10\ da PI, pelo que deve o tribunal ad quem alterar a decisão proferida quanto ao mesmo.

             Apreciando:

          A argumentação das rés, quanto a 10\, procede pois, por tudo o que já se disse acima, não há prova que permita dizer que o estabelecimento é da 1.ª ré, pelo que se elimina essa parte do facto. Note-se que ‘estabelecimento’ é, em termos jurídicos, distinto da propriedade do local onde ele está instalado. A autora não empregou o termo nesse sentido. Mas, se o tivesse feito, também para esta questão vale o que se disse atrás: a autora não produziu qualquer prova de que o estabelecimento fosse da 1.ª ré.

                                                                 *

              Quanto ao Direito

              Ficando afastados os factos 1\ e 2\ e, quanto ao 10\, a parte que diz respeito à 1.ª ré (e por arrastamento o mesmo acontece relativamente aos factos 3\ e 9\), isto é, que ela fosse a proprietária da clínica/estabelecimento onde foram prestados os serviços à autora e que tivesse sido ela a prestar esses serviços, e não havendo outros factos dos quais se possa retirar a celebração de um contrato entre a autora e a 1.ª ré, deixa de existir qualquer base de facto para condenar a 1.ª ré pelas eventuais lesões que esses serviços tenham causado na autora, pelo que, sem mais, se impõe a revogação da sentença nesse parte e a sua substituição por outra que a absolva do pedido: se não se provou que a 1.ª ré prestou os serviços que estão em causa nestes autos, ela tem de ser absolvida do pedido relativa à indemnização dos danos que se dizem causados por esses serviços (e isto demonstra que a questão não é de ilegitimidade processual desta ré, que, aliás, não tem razão de ser, já que a 1.ª ré era parte na relação processual tal como configurada pela autora e daí a sua legitimidade processual: art. 30/1 do CPC).

                                                                 *

                                            Da condenação da 2.ª ré

              Note-se que não está em causa a celebração de qualquer contrato com a 2.ª ré para a prestação dos serviços de depilação.

              A responsabilidade desta 2.ª ré decorre, na versão da autora, de que a 2.ª ré, como colaboradora da 1.ª ré, teria executado os serviços que a autora contratou com a 1.ª ré.

              Isto seria suficiente para afastar a possibilidade de condenação da 2.ª ré, ou mesmo a possibilidade de ela ter sido demandada pela autora.

              É que o artigo 800/1 do Código Civil dispõe: O devedor é responsável perante o credor pelos actos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor.

              Deste artigo resulta pois a responsabilidade do devedor, não dos seus auxiliares. É o devedor que responde perante o credor, não os seus auxiliares.

              Quer isto dizer que os auxiliares de um devedor (por exemplo: um seu trabalhador) não são, nessa qualidade, responsáveis perante o credor. Ninguém se lembraria, por isso, de vir demandar o empreiteiro e junto com ele o pedreiro por uma execução defeituosa de uma empreitada.

              Não quer isto dizer que o auxiliar de um devedor não possa ser directamente responsabilizado por um lesado, mas só se este alegar, em relação a esse auxiliar, os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual (art. 483 do CC): ou seja a prática de um acto ilícito pelo auxiliar, com culpa deste, que lhe, ao lesado, tenha causado, de forma adequada, danos. E neste caso não se está perante a responsabilidade, também, do devedor.

              Pelo que se tudo o que o credor imputa ao auxiliar é a execução defeituosa da própria prestação contratada, isto é, o facto de ter sido ele a executar, como auxiliar/empregado, a prestação contratada com o devedor, então não o podia ter demandado, em conjunto com o devedor, por não ter nenhum direito contra ele, sendo pois manifesta a improcedência da acção em que o demande.  

              Neste sentido, veja-se Brandão Proença, Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, Coimbra Editora, Set2011, págs. 250/251 (≈ pág. 318 da 2.ª edição, UCEP, 2017): “Diga-se, desde já, que, contrariamente ao que sucede no domínio de aplicação do art. 500, o art. 800 não permite outra responsabilização que não seja a do devedor, ou seja, da pessoa obrigada perante o credor. Assim como terceiros, lesados pela actuação dos auxiliares do devedor, apenas podem invocar o fundamento da responsabilidade extracontratual individual ou assente na existência de uma possível relação comitente-comissário, também o credor só logrará uma responsabilidade directa dos autores directos caso prescinda da via oferecida pelo art. 800.”

              (já assim, por exemplo, o ac. do TRP de 10/04/2014, proc. 1265/13.3TBMTS, não publicado, e o ac. do TRL de 14/01/2021,  proc. 1279/13.3TVLSB.L1 ambos relatados pelo subscritor deste; neste último lembra-se, ainda no mesmo sentido, o acórdão do STJ de 23/03/2017, proc. 296/07.7TBMCN.P1.S1 – os auxiliares não são responsabilizados – e doutrina citado no acórdão: Vaz Serra, Responsabilidade do Devedor pelos Factos dos Auxiliares, dos Representantes Legais ou dos Substitutos, BMJ 72, pág. 286, e Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, vol. II, Almedina, 1990, pp. 410-411; no mesmo sentido, também, Maria da Graça Trigo e Rodrigo Moreira, anotações ao art. 800, no Comentário ao CC, Dtº das Obrigações, UCP/FD/UCE Dez2018, págs. 1112 a 1116, especialmente 4II a 4IV)

              Assim, a responsabilidade de um trabalhador de um devedor só existirá naqueles casos excepcionais em que se possa dizer verificarem-se todos os pressupostos da responsabilidade civil aquiliana e não quando ao trabalhador, chamado colaborador, apenas se lhe imputa a execução defeituosa da prestação de obrigação.

              Ora, manifestamente, não é este o caso dos autos em que à 2ª ré apenas se lhe imputa a execução defeituosa da prestação, não a realização de um qualquer acto ilícito, culposo e danoso, autónomo da execução da prestação.

              De qualquer modo, ver-se-á tudo isto mais à frente, agora a nível dos factos alegados relativamente à 2.ª e 3.ª rés, depois de se analisar a condenação da 3.ª ré.

                                                                 *

                                            Da condenação da 3.ª ré

              Tudo o que antecede é válido também para a 3.ª ré. Apesar de esta ser médica, a autora não invoca a celebração de um qualquer contrato com a 3.ª ré na base da indemnização que pede contra esta, nem um qualquer ilícito autónomo do incumprimento das prestações que decorreriam do contrato celebrado com a 1.ª ré.

                                                                       *

              Vai-se passar a ver isto, agora sob o ponto de vista dos factos, em conjunto quanto à 2ª e 3.ª rés; foi alegado e dado como provado:

              [omitem-se, por falta de interesse, as 19 páginas da impugnação da decisão da matéria de facto e respectiva apreciação e decisão]

                                          *

              Assim, os factos provados relativos à 2.ª e 3.ª rés ficam reduzidos aos seguintes:

         10\ [A autora d]eslocou-se à clínica, onde uma colaboradora chamada M, 2ª ré, lhe realizou uma espécie de briefing de esclarecimento de como funcionava o laser e de como mataria o pelo e de quantas sessões seriam necessárias para se atingir o resultado desejado.

         […]

         21\ Em 30/11[/2016, a autora] deslocou-se novamente [à clínica] para novo tratamento, desta vez acompanhada pela irmã da primeira amiga que lhe havia recomendado o local.

         […]

         49\ A autora voltou a contactar [a clínica], tendo-lhe sido informado que uma médica entraria em contacto consigo mais tarde.

         50\ O que aconteceu efectivamente mais tarde, através de uma senhora, aqui 3.ª ré, que se apresentou como médica da Clinica.

         […]

         58\ Em Fevereiro, a autora deslocou-se por sua iniciativa, [à clínica] e foi atendida pela mesma médica,

         59\ A autora ficou profundamente mal impressionada com o atendimento de que foi alvo,

         […]

              Estes factos não permitem a subsunção da conduta destas duas rés à previsão de quaisquer normas das quais pudesse resultar a condenação delas a indemnizar a autora por danos derivados de lesões decorrentes da prestação de serviços de depilação.

              Pelo que têm de ser absolvidas do pedido.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se a sentença recorrida e absolvendo-se as rés do pedido.

              Custas do recurso, na vertente de custas de parte, pela autora (que é quem perde o recurso).

              Lisboa, 24/02/2022

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto