Processo do Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz 19

 

            Sumário:

            “O dever de restituição do prédio arrendado no estado em que o inquilino o recebeu (art.º 1043.º/1 do C.C.) […não] está associado [a] obras […] efectuadas para adaptação do prédio aos fins a que se destina por virtude do contrato. Quanto a estas, o inquilino só terá de as reverter se tal resultar das cláusulas do contrato resultantes da negociação das partes.”

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

              A e outros intentaram uma acção comum contra R pedindo a condenação deste a pagar-lhes 10.221,30€.

              Para tal, alegam, em síntese, que o réu, em 11/08/1962, arrendou uma fracção propriedade actual dos autores, na qual, na vigência do contrato, efectuou obras (sem pedido de autorização); em 03/06/2019, ao deixar a fracção, não a repôs no estado em que se encontrava à data da celebração do contrato de arrendamento; as obras de reposição foram efectuadas pelos autores, correspondendo o pedido ao valor despendido com elas.

              O réu contestou, alegando, em síntese, que as obras em causa foram efectuadas pelo senhorio como necessárias para adaptação da fracção habitacional ao fim do arrendamento comercial que ia celebrar com o réu e não foi acordado que o réu as teria de reverter quando deixasse a fracção arrendada; por outro lado, nem todas as obras feitas pelos autores correspondem a obras de reposição, elas não se encontram terminadas, e o senhorio não as fez só depois de as ter exigido ao réu e de ter obtido dois ou três orçamentos para comparação de valores; pediu a condenação dos autores como litigantes de má-fé.

              Os autores impugnaram a matéria de excepção e de litigância de má-fé alegada pelo réu; entre o mais, dizem agora que o réu pediu ao então senhorio autorização para a realização das obras antes da formalização do contrato e que as autorizou (conforme documentos 10 e 11 que os autores só vieram a apresentar 7 dias mais tarde); pedem a condenação do réu como litigante de má-fé.

              O réu respondeu a este pedido, negando a litigância de má-fé.

              Depois de realizada a audiência final, foi proferida sentença a julgar a acção improcedente e, em consequência, a absolver o réu do pedido, tal como do pedido de condenação como litigante de má fé (tal como os autores).

              Os autores recorrem de tal sentença, para que seja substituída por outra que condene o réu a pagar as obras e como litigante de má-fé, impugnando a decisão da matéria de facto e a decisão de direito.

              O réu contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.

                                                                 *

              Questão a decidir: se os factos devem ser alterados como pretendido pelos autores e se o réu devia ter sido condenado a pagar o custo das obras que os autores dizem ter realizado para reposição da fracção arrendada no estado em que se encontrava antes de a terem arrendado; bem como se o réu devia ter sido condenado como litigante de má-fé.

                                                                 *

              Factos provados:

         1/ Os autores são os proprietários e legítimos possuidores do prédio sito na Avenida […].

         2/ No dia 21/12/1961 foi dado de arrendamento ao réu o 1º andar esquerdo do referido prédio, arrendamento que ainda se encontra em vigor.

         3/ No âmbito desse arrendamento, no dia 05/01/1962, o réu solicitou ao senhorio autorização para fazer obras.

         4/ Obras que foram autorizadas por carta de 09/01/1962 (embora mencione 1961 por engano) com a condição de “No caso de V. Sra, por qualquer razão deixar o prédio, ficará obrigado a pagar todos os encargos de material e mão-de-obra, para que tudo fique como estava originalmente…”

         5/ No dia 11/08/1962, foi dado de arrendamento ao réu o 1º andar frente do referido prédio, ficando assim o réu com o arrendamento dos dois andares contíguos.

         6/ O contrato de arrendamento que as partes celebraram não permitia que o réu realizasse obras no imóvel sem que estas fossem autorizadas por escrito pelo senhorio.

         7/ Nos termos da cláusula 5.ª do contrato de arrendamento, o réu obrigou-se a entregar o andar no fim do arrendamento “sem outras deteriorações que não sejam as inerentes ao seu uso normal”.

         8/ O réu não pediu autorização escrita ao senhorio para fazer as obras que foram realizadas no 1.º andar frente.

         9/ Em 03/06/2019 o réu entregou a chave [do 1.º andar frente] aos autores.

         10/ Os autores pediram um orçamento para repor o andar no estado em que estava antes das obras aquando do arrendamento.

        11/ O orçamento contempla os seguintes trabalhos: fecho da comunicação entre as duas fracções; retirar o vinil do chão da cozinha; remover o estuque das paredes da cozinha; tirar as prateleiras chumbadas nas paredes do quarto e da casa de banho; retirar uma pedra mármore que tinha sido colocada na parede entre a sala e o quarto; fechar o “buraco” na parede entre o quarto e a sala com cerca de 1,50 x 1,50 a tijolo, rebocá-lo e estucá-lo; assentar azulejos na cozinha; repor o contador do gás; repor o contador de electricidade; detectar o esgoto e a fuga de ar da chaminé (que tinham sido tapados) da cozinha; colocar móveis inferiores e superiores na cozinha com o respectivo lava-louça e torneiras. Tudo no valor de 8.310€ a que acresce o IVA à taxa de 23%, perfazendo a quantia de 10.221,30€

         12/ O referido orçamento foi enviado ao réu na pessoa do seu mandatário no dia 09/10/2019.

         13/ O réu respondeu que entendia que não lhe cabia pagar o custo pelo pagamento das ditas obras.

         14/ O senhorio V autorizou a realização de obras de adaptação, quer no 1.º andar esquerdo, quer no 1.º andar frente.

         15/ O réu, desde 01/09/1962 (data da entrada em vigor do contrato de arrendamento do 1.º andar frente) e até à data da caducidade desse contrato (em 30/04/2019), utilizou o referido andar para o exercício da sua actividade comercial, aí confeccionando vestuário para diversas clientes, efectuando provas (num gabinete destinado para o efeito) e aí tendo instalados os respectivos instrumentos necessários à prossecução da sua actividade, tais como: máquinas de costura, peças de tecido, mostruários, revistas de moda, moldes, botões, fechos e outros acessórios.

         16/ Esta situação sempre foi do absoluto conhecimento do então senhorio V.

         17/ À data [Antes] da celebração do contrato de arrendamento com o então senhorio, este e o réu acordaram na realização de obras no 1.º andar frente, necessárias à instalação de um atelier de alfaiataria, confecções de vestuário e casa de modas, incluindo a colocação de letreiros no exterior (na varanda do locado) [a expressão rasurada e a colocada entre parênteses rectos resultam do decidido mais à frente quanto à impugnação da decisão da matéria de facto].

         18/ As obras no 1.º andar frente foram mandadas realizar pelo então senhorio.

         19/ O então senhorio contratou directamente com o empreiteiro que realizou as obras no 1.º andar frente.

         20/ O senhorio impôs ao réu que custeasse tais obras.

         21/ Aquando da realização das obras de empreitada (em 1962), as pedras da cozinha e os armários que foram então retirados da fracção do 1.º andar frente, foram guardados numa arrecadação existente no topo do edifício, a qual era propriedade do senhorio.

         22/ Tais materiais originais não foram repostos aquando da execução das recentes obras pelos autores.

         23/ No lado do 1.º andar esquerdo, a parede que resultou do fecho da passagem entre os apartamentos está ainda com tijolo e cimento à vista.

         24/ Os contadores de gás do prédio foram substituídos em 2013 e não foi, na altura, colocado um contador para o 1.º frente, visto que sobre tal locado vigorava o contrato de arrendamento para fins não habitacionais.

                                                                 *

                       Da impugnação da decisão da matéria de facto

[omite-se as 21 páginas desta impugnação por não terem interesse]

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                                 Do recurso sobre matéria de direito

              A fundamentação da absolvição do réu, pela sentença recorrida, foi a seguinte:

         Entre autores e réu vigorou um contrato de arrendamento, tendo o réu entregue as chaves do locado.

         Quanto à restituição da coisa locada, o art. 1043/1 do Código Civil estabelece que na falta de convenção, o locatário é obrigado a manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato, presumindo-se que a coisa foi entregue ao locatário em bom estado de manutenção, quando não exista documento onde as partes tenham descrito o estado dela ao tempo da entrega (n.º 2).

         Estabelece ainda o art. 1081/1 do CC, como efeito da cessação do contrato de arrendamento, entre outros, a entrega do locado com as reparações que incumbam ao arrendatário.

         Ora, no caso em apreço ficou provado que o senhorio, e não o réu, realizou as obras na fracção em causa. Logo, daí decorre que não tem o réu qualquer reparação a fazer decorrente dessas obras nem tem qualquer obrigação de reverter ou pagar o preço dos trabalhos para as reverter, pois que, tendo as mesmas sido realizadas pelo senhorio, não pode dizer-se que o réu alterou o estado em que recebeu a fracção quando a tomou de arrendamento.

              Contra isto, os autores dizem o seguinte:

         LVIII. As obras que foram levadas a cabo, tiveram exclusivamente em vista adequar o andar à actividade do ré, a título de exemplo: foi aberta uma porta entre o 1º andar frente e o 1º andar esquerdo, para que o réu e as suas empregadas pudessem circular entre os dois andares, sem ter necessidade de passarem pela escada do prédio; a cozinha foi transformada numa sala de provas, e para isso retiraram os móveis da cozinha, os azulejos, torneiras, etc.; foi aberto um “buraco” entre a sala e o quarto para que as mercadorias passassem de um lado para o outro com maior facilidade.

         LIX. E resulta da prova documental junta ao processo, que apesar da escritura de arrendamento, celebrada no notário, só ter sido assinada em 11/08/1962, o réu já era o inquilino do 1º andar frente, pelo menos desde 16/04/1962 (altura em que escreve uma carta ao senhorio a solicitar autorização para fazer obras no 1º andar frente), sendo que o orçamento das obras tem a data de 21/05/1962.

          LX. Também resulta da prova documental junta ao processo que não foi o senhorio que realizou as obras, este apenas se limitou a indicar um empreiteiro, pelo que as obras foram realizadas e pagas pelo réu.

         LXI. E como estabelece o art. 1043/1 do CC, o locatário é obrigado a restituir o locado no estado em que o recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização.

         LXII. Estabelece o art. 1081/1 do CC que “A cessação do contrato torna imediatamente exigível, salvo se outro for o momento legalmente fixado ou acordado pelas partes, a desocupação do local e a sua entrega, com as reparações que incumbam ao arrendatário.”

         LXIII. Acresce ainda que o réu escreveu uma carta ao senhorio onde relativamente às obras dizia “obras pelas quais me responsabilizo no caso de sair comprometendo-me a deixar a casa como a encontrei”.

         LXIV. Pelo que o tribunal a quo deveria ter decidido pela condenação do ré no pedido.

              O réu responde que:

         Nos §§ 78 a 83 [do corpo das alegações = conclusões LVIII a LXIV – parenteses deste TRL], os autores limitam-se a aludir (transcrevendo o seu texto, ou sintetizando-o por palavras suas) ao art. 1043/1 do CC, bem como ao art. 1081/1, ambos do CC, não dando cumprimento – objectivamente – às exigências constantes das alíneas do art. 639/2 do CPC.

              Apreciando:

              Quanto à questão prévia levantada pelo réu, diga-se que as conclusões dos autores vão um pouco mais além do que a simples alusão aos artigos 1043/1 e 1081/1 do CC, pelo que não se pode dizer que eles não tenham cumprido o ónus referido pelo réu, até porque se percebe bem a construção dos autores: a sentença diz que a acção improcede porque a fracção foi entregue ao réu já com as obras em causa e os autores vêm, naquelas conclusões, dizer que as obras foram feitas depois do réu ser arrendatário.

              O problema não é, por isso, esse.

              O que se passa é que a argumentação dos autores é absolutamente artificial e baseia-se numa conclusão sem qualquer base: apesar do contrato ter sido celebrado a 11/08/1962, o réu já seria arrendatário desde pelo menos 16/04/1962. Não fazem aqui, nem o fizeram na discussão da matéria de facto, qualquer esforço para explicar como é que o réu já era arrendatário desde esta data, apesar de só ter celebrado o contrato na outra, bem como apesar de o contrato só ter entrado em vigor em 01/09/1962 e só desde essa data o réu ter passado a utilizar a fracção (como consta do facto 15, não impugnado); nem sequer referem que ele já então já pagasse ou tivesse obrigação de pagar renda pelo arrendamento só celebrado 4 meses depois.

              A artificialidade da construção dos autores resulta também do seu comportamento processual: começam por dizer que o réu, em 11/08/1962, arrendou a fracção e que na vigência do contrato, efectuou obras sem pedido de autorização; e na resposta à matéria de excepção vêm dizer tudo ao contrário: o réu pediu ao senhorio autorização para a realização das obras antes ainda da formalização do contrato (sem dizerem que o réu já era arrendatário antes disso) e que este as autorizou.

              Seja como for, os autores não conseguiram a alteração da matéria de facto que permitiria a alteração da decisão de direito e vê-se que só com aquela poderiam obter esta.

              Posto isto, acrescente-se apenas que a decisão recorrida está correcta, isto é, está de acordo com a solução que resulta do disposto nos artigos 1043/1 e 1081/1 do CC e tem sustento na jurisprudência que já era invocada pelo réu na contestação, com o seguinte contexto, entre o mais:

         […] o dever de restituição da fracção arrendada no estado em que o arrendatário a recebeu (vd. art. 1043 do CC) está apenas associado às deteriorações pela sua utilização, e não já a quaisquer obras, designadamente, aquelas cuja reparação agora é reclamada pelos autores nos autos, as quais se destinaram apenas à adaptação pelo (então) senhorio da fracção aos fins a que se destinou por virtude de um contrato de arrendamento celebrado em Agosto de 1962.

         Quanto a essas obras, é entendimento jurisprudencial e doutrinário, que o arrendatário só terá que as reverter se tal resultar expressamente das cláusulas do contrato de arrendamento, derivadas das negociações entre as partes contratantes, sendo que, no caso em concreto dos autos, tal não foi expressamente acordado.

         […]

         (vd. neste sentido, entre outros, o ac. do STJ de 07/12/1994, proc. 085897, bem como o ac. do TRC de 27/04/2004, proc. 4230/03).

         No mesmo sentido do acima mencionado, veja-se, igualmente, o teor do ac. do TRP, proc. 10368/14.6T8PRT, de 07/04/2016 [este acórdão foi subscrito pelo relator do actual – parenteses deste TRL]: “I. “O dever de restituição do prédio arrendado no estado em que o inquilino o recebeu (art.º 1043.º/1 do C.C.) […não] está associado [a] obras […] efectuadas para adaptação do prédio aos fins a que se destina por virtude do contrato. Quanto a estas, o inquilino só terá de as reverter se tal resultar das cláusulas do contrato resultantes da negociação das partes.”

            No mesmo sentido, veja-se ainda o ac. do TRL de 22/06/2016, proc. 1009/13.0TVLSB.L1-8.

            Acrescente-se apenas que a solução ainda seria esta, mesmo que os autores tivessem conseguido a alteração do decidido quanto aos factos 18, 19 e 20. Isto é, mesmo que as obras de adaptação da fracção arrendada ao fim do contrato que ia ser celebrado tivessem sido realizadas pelo réu: mesmo assim as obras teriam sido realizadas com aquele fim e a fracção teria sido entregue já com as obras feitas, pelo que o réu nunca teria de repor a fracção no estado anterior, nem, por isso, de pagar o valor das obras que os autores dizem ter realizado para o efeito.

                                                                 *  

              Os autores ainda têm mais páginas e conclusões sobre a litigância de má-fé com que, dizem, o réu actuou, mas a matéria que suportava tal conclusão já foi analisada e já se pode concluir que as discrepâncias assinaladas entre o que o réu disse na contestação das outras acções e o que disse nesta, não permitem concluir que ele, nesta acção, tenha alterado a verdade dos factos até porque os factos alegados por ele se provaram.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

              Custas, na vertente de custas de parte (não existem outras), pelos autores (que são quem perde o recurso).

              Lisboa, 24/02/2022

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto