Processo do Juízo Local Cível de Lisboa

 

              Sumário:

         I – No caso dos autos existem quer declarações expressas, quer tácitas, da celebração de um contrato de arrendamento.

              II – Não há tolerância se em troca se recebe um pagamento.

            III – Nos casos do art. 1069/2 do CC, a nulidade de um contrato de arrendamento não impede que o contrato seja feito valer pelo arrendatário, servindo-lhe de título para a ocupação do imóvel e impedindo a condenação na restituição pedida ao abrigo do art. 1311 do CC.

           IV – As partes não podem, num recurso, formular pedidos que não tivessem formulado na acção (no caso do réu, em reconvenção ou em pedido de apreciação incidental).

          V – Havendo depósitos à ordem do tribunal, este tem que lhes dar destino pelo menos na sentença.

             

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo  identificados:

 

              Em 29/11/2019, A e mulher, B, intentaram a presente acção de processo comum contra R, pedindo que: 

a) sejam declarados proprietários de uma fracção que identificam;

b) seja declarado que o contrato de arrendamento celebrado em 01/03/1973, que teve por objecto aquela fracção, não se transmitiu para o réu (por óbito da então arrendatária [mãe do réu]);

c) o réu seja condenado a entregar a fracção livre e devoluta de pessoas e bens;

d) e pagar aos autor uma indemnização ou compensação por cada mês de ocupação, desde Setembro de 2019, até à data da restituição da fracção, de valor mensal não inferior a 350€.

              Para tanto alegaram, em síntese, que: são proprietários da fracção; a fracção havia sido dada em arrendamento; tendo a arrendatária falecido em 05/01/2018, o réu omitiu-lhes tal informação; quando souberam dele, os autores comunicaram ao réu, em 05/07/2019, mediante carta registada por a/r, que este recebeu, que, não tendo ocorrido transmissão do contrato, na sequência do óbito, deveria entregar a fracção até 31/08/2019; o réu recusa-se a entregar a fracção, aí permanecendo contra a vontade dos autores, sendo que tal acarreta a perda de possibilidade da sua utilização, cujo valor mensal de uso importa no montante de 350€; invocam a aplicação conjugada dos artigos 57, a contrario, do NRAU, e 1051/-d e 1053, ambos do Código Civil.

              O réu contestou, tendo impugnado o facto de não ter dado conhecimento do óbito da sua mãe e excepcionado, dizendo que, na sequência da comunicação do óbito foi acordado um novo contrato de arrendamento, mediante o qual o réu permaneceria no locado, como permaneceu de facto, mediante o pagamento da quantia anteriormente fixada a título de renda, aceite pelo autor, e que só deixou de ser paga através da ALP quando esta não quis receber mais esse pagamento, tendo o réu passado a fazê-lo através de depósito na CGD à ordem do tribunal; bem como que o contrato só não foi reduzido a escrito porque o autor disse que mais adiante tratariam disso e depois nunca o concretizou; conclui no sentido de ser julgada procedente a excepção peremptória invocada (da existência de contrato de arrendamento) e em consequência ser julgada improcedente a acção, sendo os autores condenados, a título de litigância de má-fé, em indemnização, por terem falsamente alegado a omissão do dever de comunicação.

              Os autores responderam, impugnando os factos base da excepção deduzida pelo réu, tendo também peticionado a condenação do réu a título de litigância de má-fé, por haver alegado factos cuja falta de fundamento não podia ignorar, a saber, a celebração de um contrato de arrendamento entre as partes, após o óbito da mãe do réu.

              Realizada a audiência final, foi depois proferida sentença declarando que os autores são proprietários da fracção [identificada no facto 1, abaixo] e que o contrato de arrendamento celebrado em 01/03/1973, que teve por objecto a fracção não se transmitiu para o réu; e condenando o réu a entregar a fracção livre e devoluta de pessoas e bens, imediatamente após o trânsito da presente decisão, e a pagar aos autores uma indemnização ou compensação por cada mês de ocupação, desde Setembro de 2019, até à data da restituição do locado, de valor mensal não inferior a 89,63€, que se venceu e vence pela mesma forma que as rendas, mensalmente e até efectivação da entrega; as partes foram condenadas, cada uma, em 2 UC de multa como litigantes de má-fé.

              O réu recorre desta sentença – para que seja revogada na parte em que condena o réu a entregar o imóvel locado e a pagar aos autores uma indemnização ou compensação e, enquanto litigante de má-fé, na multa no montante de 2 UC, e substituída por outra que declare a existência de um contrato de arrendamento celebrado entre as partes, pelo período de cinco anos, com início em Janeiro de 2018 – e impugnando parte da decisão da matéria de facto.

              Os autores contra-alegaram, defendendo a improcedência do recurso, no essencial com adesão às posições da sentença recorrida.

                                                                 *

              Questões a decidir: se os factos impugnados devem ser alterados no sentido do pretendido pelo réu e se deve ser julgada procedente a excepção da celebração de um contrato entre autores e réu; ou se, mesmo não sendo assim, se o réu não devia ter sido condenado a pagar o valor em que foi condenado, porque o tem estado a pagar, nem na multa por não ter incorrido em má fé.

                                                                 *

              Foram dados como provados os seguintes factos com interesse para a decisão daquelas questões [com os acrescentos, emendas, rasuras e sublinhados que resultam da discussão da impugnação da decisão da matéria de facto, assinalados com ‘TRL’; os factos são colocados por ordem cronológica para melhor compreensão dos factos e para se ter em conta o que foi apurado e decidido na impugnação da decisão da matéria de facto]:

         1- Os autores são proprietários de uma fracção susceptível de utilização independente, com entrada pelo número 00, do prédio urbano sito na Rua A, n.ºs 00 00, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número 000 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 000.

         2/3- A fracção havia sido dada em arrendamento em 01/03/1973, ao pai e à mãe do réu, Sr.ª SM; esta faleceu em 04/01/2018 [como se vê na certidão de óbito junto a 17/06/2021 – não 05/01/2018, como constava, seguindo-se o erro do autor na PI e repetido em audiência, por exemplo, na gravação das declarações do réu, minuto 24:20 – TRL].

         6- Escassos dias após o óbito da sua mãe, o réu apressou-se a comunicá-lo aos senhorios, na pessoa do autor.

         7- Durante essa mesma conversa o réu expressou ao senhorio o seu desejo de permanecer no locado através da realização de um novo contrato de arrendamento e, inclusivamente, a sua disponibilidade e interesse em adquiri-lo, se assim fosse a vontade do senhorio.

         7’ – O autor respondeu que não se preocupasse com isso, para já ficava tudo na mesma, por agora deixe-se ficar aqui na casa; depois vamos falando e que não podia fazer um contrato porque a casa precisava de muitas obras e de um certificado enérgico [acrescentado – TRL – na sequência do discutido quanto a 13 e na última parte da impugnação da matéria de facto].

         7’’ – O réu, como contrapartida pela utilização casa, passou a pagar o mesmo valor que era pago pela sua mãe através de uma conta da ALP, incluindo quando o valor foi actualizado para os actuais 89,63€ [acrescentado – TRL – na sequência do discutido quanto a 5].

         8- Os recibos continuaram a ser emitidos pela ALP em nome da mãe do réu.

         9- O réu procedeu apenas ao envio da carta com a alteração do IBAN à ALP.

         4- Mediante carta datada de 05/07/2019, o autor comunicou ao réu a caducidade do contrato de arrendamento e que o autorizava a permanecer no locado até 31/08/2019, a “título de mera tolerância.”

         10- Mediante carta de 11/07/2019, a ALP solicitou ao réu que entregasse a fracção até 31/08, na sequência da caducidade do contrato de arrendamento, decorrente do óbito da inquilina.

         10’- O réu remeteu ao autor duas cartas, uma primeira de 26/07/2019 e uma segunda de 14/08/2019, nas quais expunha a sua posição e o entendimento de que se deveria considerar ter sido celebrado um novo contrato [a repetição do número 10 vem da sentença – TRL].

         5- O réu não entregou o locado e pretende pagar, como contrapartida pela sua utilização, o valor de 89,63€ e fez o depósito do valor de 89,63€ numa conta da CGD à ordem do tribunal, reportado à renda de Set2019 [alterado pelo TRL – na sequência do discutido quanto a 5]

         11- Os autores são proprietários de uma fracção com utilização independente contígua à fracção identificada nos autos, que pretendem vender, o que apenas será possível em conjunto com aquela fracção, uma vez que não constituem duas fracções juridicamente independentes.

         12- O senhorio foi por várias vezes à fracção onde esteve com o réu e sem ele (mas com a sua autorização), chegando mesmo a levar uma agente imobiliária ao local, com o fito de o mostrar a potenciais compradores.

         13- O autor, bem ciente dos factos que resultaram provados em 6, 7, 7’, 7’’, 8 e 9 e que tolerou que o réu permanecesse na fracção temporariamente, a título de cortesia, alegou que apenas tomou conhecimento do óbito em Julho de 2019, por forma a antecipar uma eventual alegação de celebração de contrato verbal, como meio de oposição à pretensão por si deduzida [alterado – TRL – na sequência da discussão da impugnação deste facto e do facto 5].

         14- O réu, bem ciente de que o autor apenas o deixou permanecer na fracção a título de cortesia e temporariamente, alegou haver sido celebrado um contrato de arrendamento, mediante o qual o autor teria consigo acordado em fornecer-lhe o gozo da fracção, mediante o pagamento de contrapartida monetária, a título de renda, no valor mensal de 89,63€, por forma a de.

         15- O autor e o réu, estando bem cientes de que sobre si mesmos impendia o dever de alegarem com verdade e que a alegação de factos inverdadeiros ou a omissão de factos relevantes para a decisão, os faria impender na prática de ilícito, conformaramou-se com tal possibilidade.

                                                                 *

              Da impugnação da decisão da matéria de facto

              [omitem-se, por falta de interesse, as 16 páginas da discussão desta impugnação]

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                                 Da impugnação da decisão da matéria de direito

              A sentença, no essencial, tem a seguinte fundamentação:

         Os autores provaram que são os proprietários da fracção identificada nos autos e que o réu a está a ocupar, pelo que os autores provaram os pressupostos do seu direito a pedir a restituição da fracção pelo réu (artigos 342/1 e 1311 do CC). O réu apenas poderia opor-se à entrega demonstrando ser titular de título legítimo para a ocupação, o que não conseguiu fazer (o contrato com a mãe caducou: art. 1106 do CC e não se prova a celebração de um outro), pelo que improcede a oposição deduzida ao pedido de restituição.

         A conclusão da inexistência do novo contrato é complementada, pela sentença recorrida, com base na seguinte citação da obra de Pinto Furtado (Arrendamento urbano, Almedina, 7.ª ed., pág. 478): “Caducando o contrato de arrendamento não se verifica a constituição de outro contrato de arrendamento se não existirem declarações de vontade, expressas ou tácitas, nesse sentido. E não constitui expressão de declaração tácita o facto de o senhorio receber rendas de terceiro e passar recibos em nome do anterior arrendatário, já falecido, por este facto, desacompanhado de outras circunstâncias, não ser inequívoco.”

              Contra isto diz o réu:

4. A correcta apreciação da prova produzida […] teria necessariamente de levar à conclusão de que existia e existe um contrato de arrendamento entre o réu e os autores.

5. Tal decorre de se ter demonstrado que o réu foi autorizado a viver no locado durante 17 meses sem qualquer oposição, mediante pagamento mensal de 89,63€ aos autores e que desejou a redução a escrito desta relação contratual, o que não logrou por motivos única e exclusivamente imputáveis ao autor, que recusou fazê-lo.

[…]

8. Comprovado que foi o facto de a posse ser legítima, de boa-fé, a troco do pagamento de uma renda e nunca tendo sido reduzida a escrito por impossibilidade dos autores, verificam-se todos os elementos de um contrato de arrendamento, ainda que com vício de forma, pelo que este deve ser reconhecido nos termos do art. 1069/2 do CC.

              Apreciação:

              O art. 1069 do CC dispõe, sob a epígrafe ‘forma’ que:

            1 – O contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito.

         2 – Na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não seja imputável ao arrendatário, este pode provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses.

              Os factos dados como provados em 6, 7 e 7’ permitem a conclusão de que entre o autor e o réu foi celebrado um contrato de arrendamento, pois que é isso – declarações de vontade que formam esse contrato – que decorre do facto de o autor ter respondido ao réu o que foi dado como provado em 7’’ depois de o réu lhe ter perguntado o que é que se ia passar conforme já constava de 7.

              Note-se que nas respostas do autor transcritas no facto 7’, quando ele se refere a um contrato, o que está em causa é um contrato escrito, pois que a celebração do contrato já resultava das respostas anteriores. Ou seja, o que o autor está a dizer é que não celebra o contrato por escrito pelos motivos que está a indicar. Não é que não celebra o contrato, pois que aí estaria a dizer o contrário do que tinha acabado de dizer.

              Mas mesmo que não se tivessem dado como provadas essas declarações expressas, o facto de o autor ter conhecimento da morte da mãe do réu e de o ter deixado ficar na casa, recebendo valores do réu iguais aos valores que a mãe do réu pagava como contrapartida pela utilização da casa e permitindo que fossem passados recibos desses valores (factos 6, 7 e 8), podem ser vistos como factos concludentes da manifestação da vontade de ambas as partes celebrarem o contrato de arrendamento (artigos 217/1 e 1022-1023 do CC), ou seja, as tais declarações tácitas que não existiam no caso da situação referida na passagem citada da obra de Pinto Furtado.

              Isto é, aceita-se que se o autor não soubesse que a mãe do réu, arrendatária do imóvel, tinha falecido e que as rendas estavam a ser pagas pelo réu, não se poderia dizer que o facto de o autor aceitar o pagamento das rendas com a permanência do réu na casa fosse concludente da celebração do novo contrato com o réu. Só que não foi isso que se provou, mas o contrário.

              O tribunal recorrido dizia que o réu estava a ocupar a casa a título de mera tolerância, mas não há factos que lhe permitam essa conclusão que estará antes baseada no equívoco que está na base do facto 5 na redacção alterada, ou seja, que o réu não ficou na casa a pagar renda. Ora, foi o contrário que se provou, o que aliás já resultava do facto 8.

              Havendo o pagamento de uma renda, como havia (embora os recibos fossem passados com o nome da mãe do réu mas com conhecimento, pelo autor, que era o réu que a pagava, já que a mãe já tinha falecido), nunca se poderia falar em tolerância do proprietário na ocupação da casa pelo réu. A tolerância não é compatível com o recebimento de uma renda. Assim, por exemplo, Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, A autorização, 2016, 2.ª edição, Almedina, pág. 118: “A tolerância é um acto puro: ou se tolera ou não se tolera. Não se tolera contra um pagamento. […] A integração, com a tolerância, de conteúdos negociais importa a não qualificação do acto como tolerância, pelo menos a partir desse integração. […]”.

              Aliás, repete-se, até Julho de 2019 o autor nunca disse ter deixado estar o réu na casa por tolerância, nem estava na lógica da sua posição que fosse essa a situação, pois que, como dizia que não tinha conhecimento do falecimento da mãe do réu, para ele, nesta versão, o contrato que existia era o contrato com a mãe e não uma tolerância para com o réu.

                                                                 *

              Tal contrato é nulo por falta de forma, mas é existente e o réu pôde provar a sua existência porque a celebração do contrato não foi feita por escrito por o autor não se ter prestado a isso, apesar do réu lhe ter pedido que o fizesse (como decorre dos factos 6, 7 e 7’), para além de o réu nunca ter deixado de lá residir e o pagamento das rendas ter sido feito durante mais de 17 meses (art. 1069/2 do CC).

              A norma do art. 1069/2 do CC foi introduzida pela Lei 13/2019, de 12/02, mas é aplicável aos contratos já existentes à data (art. 14/2 da referida lei).        

              Ao admitir a prova da existência de título por qualquer forma admitida em direito, a lei quer dizer que [“o]s arrendatários que celebraram contratos verbais, mas que demonstrem (por exemplo, através de transferência bancária) que já pagam rendas há mais de seis meses (ainda que sem recibo de quitação) podem fazer valer o contrato (desde que a falta de redução a escrito não lhe seja imputável).” (Maria Olinda Garcia, Alterações em matéria de Arrendamento Urbano introduzidas pela Lei n.º 12/2019 e pela Lei n.º 13/2019, Julgar Online, Março de 2019, pág. 8.

              Trata-se, noutra perspectiva, de “um meio para afastar a invocação de nulidade por falta de forma” (Elsa Sequeira Santos, anotação 2 do art. 1069, no CC anotado, vol. II, 2.ª edição, Coord. Ana Prata, Almedina/CEDIS, 2019, páginas 1335-1336), ou de converter “a nulidade por falta de forma […] numa invalidade mista, deixando o senhorio de a poder invocar” (Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 9.ª edição, Almedina, 2019, pág.44), tal como deixa o tribunal de poder, oficiosamente, declarar essa nulidade ao abrigo do art. 286 do CC.

              Assim, apesar de o contrato ser nulo, ele pode ser feito valer, pelo que o réu está a ocupar a casa com base num título que o legitima a isso e por isso pode opor-se eficazmente ao pedido de restituição da mesma que lhe foi feito pelo autor.

                                                                 *

            O réu, no recurso, quer que a sentença recorrida seja substituída por outra que declare a existência de um contrato de arrendamento celebrado entre as partes, pelo período de cinco anos, com início em Janeiro de 2018.

                 Mas um recurso não é uma reconvenção.

              Ora, a existência do contrato não assumiu, no caso da contestação dos autos, a forma de uma reconvenção ou de uma questão-acção do art. 91 do CPC, já que o réu não requereu – pedido de apreciação incidental, de que fala Miguel Teixeira de Sousa, Cadernos de Direito Privado, n.º 3, pág. 33 [ou, agora, acções de apreciação incidental, Manual de processo civil, vol. I, AAFDL/CIDP, 2022, páginas 379 e 448-449] – que o julgamento da excepção constituísse caso julgado (Castro Mendes, DPC II, AAFDL, 1980, pág. 235/1 e 302/303) ou dito de outra forma, que a existência do contrato fosse declarada com força de caso julgado (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, vol. 1.º, 4.ª edição, Almedina, páginas 204-205 e 532).

                Limitou-se a deduzir uma excepção peremptória.

           Pelo que este TRL não terá que declarar nada do que é pedido pelo réu. A procedência da excepção limitar-se-á a implicar a improcedência da do pedido de restituição do imóvel.

                                                                 *

              O réu foi condenado a pagar aos autores uma indemnização ou compensação por cada mês de ocupação, desde Setembro de 2019, até à data da restituição do locado, de valor mensal não inferior a 89,63€, que se venceu e vence pela mesma forma que as rendas, mensalmente e até efectivação da entrega.

              A fundamentação desta decisão foi a seguinte:

         Quanto à questão da fixação de indemnização, decorrente da utilização não titulada da fracção, não resultou provado o valor locativo de 350€ alegado na PI.

         Porém, o réu aceita que tal valor locativo é de 89,63€ (art. 11.º da contestação).

         Assim, haverá que concluir, que os autores lograram fazer prova dos factos constitutivos do seu invocado direito a indemnização decorrente de enriquecimento sem causa, se bem que restrito ao indicado valor, uma vez que se não provou o alegado na PI.

         Em síntese, o réu, sem causa justificativa, utilizou a fracção, pelo enriqueceu à custa dos proprietários, razão pela qual terá que ser obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou (cfr. artigos 1311 e 473 do CC).

         Assim, no que respeita ao enriquecimento, não é possível a restituição em espécie, pelo que é devido o pagamento do valor correspondente ao valor de utilização/valor locativo do imóvel (cfr. artigo 479/1 do CC).

         Quanto à definição dos termos da indemnização a fixar a título de enriquecimento sem causa, rege a teoria da dupla diferença. Pelo exposto, a obrigação de restituir não pode exceder a medida do locupletamento (cfr. artigo 479/2 do CC).

         A isto acresce que nos casos de enriquecimento sem causa fundados na utilização de bens alheios o valor da restituição é o valor de exploração, aferido pelo critério do valor objectivo dos bens (cfr. acórdão do STJ de 03/10/2013, proc. 1261/07.0TBOLHE.E1.S1)

              O réu diz o seguinte contra isto:

6. […O] réu [não] enriqueceu sem causa à expensas dos autores – uma vez que sempre lhes prestou uma contrapartida pecuniária pelo uso do locado, a título de renda[.]

              Apreciação:

              Provada a existência do contrato de arrendamento, a condenação do réu no pagamento de uma indemnização por enriquecimento sem causa não se justifica: ele está a gozar da casa com uma contrapartida económica contratada. Há causa e não há enriquecimento. O valor mensal em que ele foi condenado é o valor que ele está obrigado a pagar por força do contrato. A manter-se a condenação, o réu estaria obrigado a pagar por duas vezes (por força do contrato e por força da sentença) o que, isso sim, originaria um enriquecimento para o autor.

                                                                 *

              O réu foi condenado a pagar uma multa de 2 UC a título de litigância de má fé.

              A fundamentação desta condenação foi a seguinte, em síntese:

         Resulta provado que alegou factos não verdadeiros, a saber: que foi celebrado contrato de arrendamento, após o falecimento da mãe, com os mesmos elementos quanto ao pagamento de renda, quando, na realidade, se provou que apenas ocorreu uma situação de tolerância, quanto à sua permanência temporária no locado, assumida pelo autor.

         O réu sabia que estas alegações não correspondiam à realidade dos factos e que sobre si impedia deveres de assumir alegações conformes às realidades por si conhecidas, o que não fez, tendo-se conformado com a ilicitude do respectivo comportamento, o qual teve por intenção reforçar ou sustentar a oposição à pretensão deduzida pelos autores.

              O réu diz o seguinte contra isto, em síntese, na parte que importa:

6. [… O réu] nunca agiu ou litigou de má-fé, uma vez que estava e está convicto da existência de uma relação de arrendamento e consequentes direitos e deveres para as parte que dela advêm.

[…]

              Apreciação:

              Neste acórdão já se afastaram as conclusões tiradas na sentença quanto a isto, pois que houve mesmo a celebração de um contrato de arrendamento e não se verificou uma situação de tolerância, pelo que também esta condenação não se justifica.

                                                                 *

              Os pedidos da acção, que foram julgados procedentes, não tinham sido impugnados pelo réu, nem foi ele que lhes deu causa, pelo que as custas da acção, também nessa parte, têm de ficar por conta dos autores.

                                                                 *

              Havendo depósitos numa conta à ordem do tribunal, o tribunal, findo o processo, tem que lhes dar destino (arts. 17 a 23 do NRAU – por exemplo, ac. do TRL de 04/06/2020 – proc. 7575/18.6T8SNT).

              No caso, apenas há notícia de um depósito inicial do montante da renda devida, a de Set2019, e os autores têm direito a ela, tal como terão direito a outros que tenham sido feitos na conta em causa.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando a sentença recorrida na parte em que condenou o réu a entregar aos autores a fracção identificada no facto provado sob 1 e a pagar-lhes uma indemnização ou compensação por cada mês de ocupação, por se julgar procedente a excepção, da existência de um contrato de arrendamento da fracção, deduzida pelo réu e, em consequência, improcedente os correspondentes pedidos dos autores de que o réu vai absolvido.

              Revoga-se também a condenação do réu na multa de 2 UC como litigante de má-fé.

              Custas da acção e do recurso, na vertente de custas de parte, pelos autores (que são quem perde a acção e o recurso).

              Entregue-se aos autores os valores depositados na conta à ordem do tribunal (em causa no doc.9 junto com a contestação), com os custos de levantamento e de outras despesas pelos autores.

              Lisboa, 07/04/2022

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto