Sumário:
I – O fundamento de divórcio da Lei da Família do Qatar consistente na conversão da mulher ao Islão sem que o marido, no prazo dado pelo tribunal, também se converta ao Islão, viola o princípio da igualdade de ordem pública internacional do Estado português.
II – Mas esta violação não é suficiente para que a sentença do Tribunal do Qatar não seja confirmada, pois que para isso seria necessário que o reconhecimento conduzisse a um resultado manifestamente incompatível com aquele princípio e tal não acontece, entre outras hipóteses, quando o outro cônjuge aceita o divórcio e já o tinha pedido antes num tribunal português entretanto declarado internacionalmente incompetente.
III – Ou seja, “ambos os cônjuges […] pretendem que o casamento termine e a ordem pública internacional portuguesa não se opõe a que um determinado casamento cesse por vontade de ambos os cônjuges.”
A, residente no Qatar, intentou a presente acção especial face ao seu ex-marido, B, pedindo que seja revista e confirmada a sentença de 21/06/2021, transitada em julgado, proferida pelo Plenário do Tribunal de 1.ª Instância, 4.º Circuito da Família, Tribunal de Família, do Estado do Qatar, que decretou o divórcio entre eles e fixou os efeitos do divórcio, entre eles atribuindo a guarda dos dois filhos à requerente com a fixação de um valor a título de despesas dos filhos a pagar pelo requerido (tudo conforme resulta da certidão de tal sentença junta com tradução; o casamento está registado na Conservatória do Registo Civil de Lisboa, sob o assento 000/2008).
Foi enviada uma carta registada com a/r para citação do requerido na morada da sede da entidade patronal em Doha, Qatar, porque a requerente disse que ele tinha residência em parte incerta. Mas entretanto realizaram-se diligências para encontrar a residência do requerido, com dois resultados, face aos quais a requerente veio reiterar que “o requerido não reside em Portugal desde 2013. A sua morada julga-se em parte incerta algures no Catar. Isto porque mesmo por conta do processo de divórcio apenas foi conseguida a citação do requerido na morada da entidade patronal.”
Como o a/r não foi reenviado a este TRL, reclamou-se o mesmo aos CTT; estes, em 25/03/2022, informaram que “concluídas as averiguações necessárias, informa-se que o objecto em referência foi entregue ao destinatário em 12/01/2022, de acordo com o documento do operador postal do destino em anexo.” Em anexo consta um documento de entrega, embora não ao próprio requerido.
Por dúvidas sobre a efectiva citação do requerido, a 30/03/2022 este TRL solicitou aos pais do requerido que informassem se conheciam o actual paradeiro do seu filho; no dia 04/04/2022 o requerido enviou um email a este tribunal, com cópia da carta enviada para o pai, dizendo que “a citação em anexo foi entregue no Qatar através da empresa para a qual trabalho. Entretanto, também notificaram pela morada dos meus pais a mesma citação. Assim, venho por este meio declarar que a mesma foi recebida e que não será contestada de momento.”
Perante isto, este TRL já esclareceu que considera o requerido devidamente citado e também já se sabe que o prazo da oposição já foi ultrapassado e até então não foi apresentada qualquer oposição.
O Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer favorável ao pedido.
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Apesar de uma tradução da sentença de divórcio com inúmeros erros (logo nas linhas 5 a 7, a dar o mote para toda a tradução, escreve-se que “o réu é anunciado de acordo com as leis aplicáveis para solicitar uma sentença de divórcio do réu”, o que só é compreensível com o uso de muita especulação), resulta da sentença em causa que o divórcio foi pedido pela requerente, e que o requerido (embora se traduza como “requerida”) foi citado, visto que compareceu no Tribunal do Qatar (mais tarde acompanhado de intérprete) e pediu prazo para contestar, e contestou (designadamente pondo em causa a competência internacional do tribunal).
Na mesma sentença refere-se, entre outros, o artigo 17 [The law of common nationality of the spouses at the time of divorce, or at the time of filing for divorce or separation, shall apply to both. If the nationality of the spouses is different, the law of nationality of the husband at the time of marriage shall apply ≈ A lei da nacionalidade comum dos cônjuges no momento do divórcio, ou no momento do pedido de divórcio ou separação, aplica-se a ambos. Se a nacionalidade dos cônjuges for diferente, aplica-se a lei da nacionalidade do marido no momento do casamento – todas as traduções foram feitas com base na ferramenta de tradução do google, com algumas adaptações] da Lei 22/2004, relativa à promulgação do Código Civil do Qatar [localizado através do link fornecido pela requerente: https://almeezan.qa/LawArticles.aspx?LawTreeSectionID=8880&lawId=2559&language=en], da qual resulta que se está de facto perante uma sentença que, pelo menos, respeita também ao divórcio.
Referem-se, ainda, os artigos 105, 155 e 157 da Lei da Família, Lei n.º 22 de 2006 (noutro link também fornecido pela requerente: https://almeezan.qa/LawView.aspx?opt&LawID=2558&language=en#Section_8706), os quais têm os seguintes conteúdos (transcrevem-se também outros artigos ou títulos para se perceber o contexto de tais artigos).
BOOK TWO / livro dois
Separation of Spouses / separação dos cônjuges
Part 1 / parte 1
General Provisions – disposições gerais
Article / artigo 101
Separation between the spouses may be effected by:
By the decision of the husband and is termed divorce.
Agreement between the spouses, termed “Mukhala’h” or “khul’”or (redemptive divorce).
Judicial decree, termed “faskh”(rescission).
Death of one of the spouses.
A separação entre os cônjuges pode ser efectuada por:
Pela decisão do marido e é denominada divórcio.
Acordo entre os cônjuges, denominado “Mukhala’h” ou “khul’” ou (divórcio redentor).
Decreto judicial, denominado “faskh” (rescisão).
Falecimento de um dos cônjuges.
[…]
Article 105
Rescission shall be considered dissolution of the marriage contract on the ground of a defect associated with its conclusion or subsequent intervention with the effect of preventing its continuance. Rescission shall be an irrevocable separation (ba’in), but shall not reduce the number of divorces. Every judicial separation shall be considered a rescission.
A rescisão será considerada dissolução do contrato de casamento por vício associado à sua celebração ou intervenção posterior com o efeito de impedir a sua continuação. A rescisão será uma separação irrevogável (ba’in), mas não reduzirá o número de divórcios. Toda separação judicial será considerada uma rescisão.
[…]
Art. 109
Divorce may be effected by the husband personally or his agent having a special power of attorney to that effect, or by the wife if the husband gave her such power.
Le divorce intervient par la volonté de l’époux, soit directement, soit par l’entremise d’un mandataire dûment habilité; ou encore par la volonté de l’épouse si l’époux lui a consenti le droit d’option au divorce”.
O divórcio pode ser efectuado pelo marido pessoalmente ou pelo seu agente com procuração especial para o efeito, ou pela esposa se o marido lhe deu tal poder {/ou: lhe consentiu o direito de opção pelo divórcio [no acto do casamento]}.
(a versão em francês foi retirada de Anie Montigny, Désordre dans la famille : le divorce au Qatar Discord in the family: Divorce in Qatar, https://doi.org/10.4000/cy.3757, Out2018; os [] foram colocados com base neste estudo)
[…]
Separation by Judicial Decree / separação por decreto judicial
[…]
Separation on the ground of the Wife Converting to Islam / Separação com base na conversão da mulher ao Islão
Article 155
If a wife, whose husband is not a Muslim, converts to Islam before or after consummation of marriage, the Judge shall give the husband time to convert to Islam within a period the same as the waiting period of Iddat; if no such conversion occurs, he shall decree their separation.
If spouses convert to Islam or the husband converts to Islam and the wife is Christian or Jewish, there being no forbidding causes between them, their marriage shall remain valid.
Se uma mulher, cujo marido não é muçulmano, se converter ao Islão antes ou depois da consumação do casamento, o Juiz dará ao marido tempo para se converter ao Islão dentro de um período igual ao período de espera do Iddat; se não ocorrer tal conversão, decretará sua separação.
Se os cônjuges se converterem ao Islão ou o marido se converter ao Islão e a mulher for cristã ou judia, não havendo motivos proibitivos entre eles, o casamento permanecerá válido.
Effects Of The Separation Of Spouses / efeitos da separação dos cônjuges
Iddat (Prescribed Waiting Period) (período de espera prescrito)
General Provisions / disposições gerais
Article 156
Iddat is a mandatory waiting period ensuing upon separation between spouses during which the wife shall remain without marriage.
Iddat é um período de espera obrigatório resultante da separação entre os cônjuges durante o qual a mulher deve permanecer sem se casar.
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Tendo em conta todas estas normas e aquilo que consta da sentença, apesar de a tradução, num dado parágrafo, referir que “o réu não é muçulmano e continua a ser cristão, apesar do prazo que lhe foi concedido, com o qual o tribunal termina com a decisão de anulação do casamento entre eles”, vê-se que o que o tribunal fez foi rescindir o casamento, isto é, dissolvê-lo, impedindo a sua continuação [para o futuro], com o fundamento da autora se ter convertido ao Islão e o réu se ter mantido cristão.
Refere depois, a sentença o art. 70 da Lei da Família do Qatar que dispõe sobre o “Alimony” (sustento/manutenção conjugal) que
A woman who observes a waiting period (Iddat) upon divorce or rescission shall be entitled to alimony, unless the rescission occurred because of her actions. A pregnant woman who observes Iddat shall be entitled to alimony until she gives birth.” ≈>
A mulher que observar o período de espera (Iddat) no divórcio ou na rescisão terá direito à pensão alimentícia, a menos que a rescisão tenha ocorrido por causa de seus actos. A mulher grávida que observar o Iddat terá direito a pensão alimentícia até dar à luz”.
E concedeu uma pensão alimentícia à autora, o que se traduz em dizer que houve uma rescisão/dissolução do casamento, requerida pela mulher, que tem equivalente ao divórcio decidido pelo marido (sendo uma rescisão por decreto judicial, ou divórcio judicial).
Refere a sentença, a seguir, o art. 115 da Lei da Família do Qatar, que se refere a um crédito compensatório de mulher divorciada sem a sua culpa
(A divorced woman shall be entitled to enjoyment compensation if the divorce is made by the husband without any fault on her part. A divorce for non-support due to insolvency of the husband shall be exempted from the provisions of the preceding paragraph. Enjoyment compensation shall be assessed based on the wealth of the husband and the status of the wife and shall not exceed three Years of her alimony ≈>
A mulher divorciada tem direito à compensação de gozo se o divórcio for feito pelo marido sem nenhuma culpa da parte dela. O divórcio por falta de suporte/manutenção por insolvência do marido fica isento do disposto no número anterior. A compensação de gozo será avaliada com base na riqueza do marido e no status da mulher e não excederá três anos de sua pensão alimentícia/sustento/manutenção),
e atribui-lhe esse direito, o que se traduz em sugerir que há um divórcio equivalente ao resultado da rescisão/dissolução, sem culpa da mulher.
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Por despacho de 29/03/2022 – antes, portanto, do requerido ter vindo dizer que não ia contestar -, a requerente foi notificada por este TRL para:
se pronunciar querendo sobre a eventual aplicação do disposto nas alíneas a (haja dúvidas sobre a inteligência da decisão) e f (contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português) do art. 980 do CPC, tendo em consideração que o que “consta da sentença recorrida (com uma tradução que, pelo menos, levanta dúvidas, pelos erros notórios de que enferma: entre o mais a tradução ora fala em anulação do contrato de casamento ora em divórcio), por um lado não parece permitir a conclusão de que se tenha respeitado o princípio da igualdade entre os cônjuges; e, por outro, a religião deles parece ter servido de critério à decisão (tanto que o tribunal deu ao réu um tempo para se converter ao Islão, o que não foi aproveitado e parece ter servido como fundamento da anulação do contrato de casamento o que, aliás, é diferente do divórcio), em violação do princípio da igualdade consagrado no art. 13 da Constituição da República Portuguesa (2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.)
A 13/04/2022, a requerente veio dizer que:
3. O documento de dissolução de casamento (doc. 3 junto à PI) alude à sentença judicial n.º 1223/2020, proferida em 21/06/2021, a dissolução do casamento da mulher com o marido em clara banda de discórdia “
4. Pese embora se refira a expressão “anulação do contrato de casamento”, a dissolução do casamento em clara discórdia corresponde a um divórcio, à luz da lei do Qatar e também da Lei Portuguesa.
5. Também nesse sentido a sentença – doc.2 junto à PI – alude a uma sentença de divórcio por diferenças de religião e danos, donde não foi só a religião que serviu de critério á decisão mas também os maus tratos, humilhação, violência, e outras.
6. Foi também acautelado o regime de pensão à mulher e filhas do casal como também em Portugal sucede aquando de um divórcio.
7. Apesar de no Qatar o impulso processual para o divórcio ter cabido à mulher, é também inequivocamente essa a vontade do marido expressa na acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge que intentou junto do Tribunal Judicial […], em cuja petição inicial que se junta (doc.1) alude à ruptura definitiva no casamento entre autor e ré, e que não existe qualquer propósito de retomar a vivência em comum pelo que considera existir fundamento para o divórcio nos termos da al. d) do artigo 1781.º do CC.
8. Nesse processo foi proferida douta sentença em 08/03/2021 em que o Tribunal português se considerou internacionalmente incompetente para o prosseguimento da acção de divórcio por força da residência das partes fora do território nacional, no caso o Qatar – o que decorre do doc.2 que se junta e aqui se dá como integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
9. A acção de divórcio no Qatar interposta pela Requerente, foi intentada neste Estado por o casal aí residir habitualmente, trabalhar e fazer a sua vida diária de tal forma que acabou a ora requerente por se converter à religião muçulmana.
10. Na sequência da acção proposta no Qatar foi proferida em 21/06/2021 a sentença cuja revisão ora se pretende.
11. Do contexto dos documentos e da vontade expressa das partes resulta claramente que a menção às expressões anulação do casamento e divórcio não significa tratar-se de coisas diferentes mas ser tudo a mesma coisa até pela diferença linguística tal confusão nas expressões é legítima e compreensível.
12. A lei aplicável é a SHARIA LAW que tem a sua origem na interpretação do Alcorão, e nomeadamente, o capítulo dedicado a esta área de família pode ser encontrado nos seguintes sítios da internet: […]
13.Como poderá ser verificado após uma análise da SHARIA LAW, a figura do divórcio mantém o mesmo espírito que à luz da lei portuguesa o que resulta dos vários artigos transcritos na sentença.
14. É um facto que se alude na sentença à expressão anulação do contrato de casamento mas apenas devido à conversão ao Islão da requerente pois que tal situação poderá ter implicações em futuro casamento religioso, mas não foi esse o único motivo do divórcio pois que também se refere que foi solicitada sentença de divórcio por diferenças de religião e danos.
15. Pelo exposto não restam dúvidas sobre a vontade da requerente e do requerido que consideram a ruptura da via em comum, não resultando violação do Principio da igualdade Consagrado no artigo 13º da CRP.”
A requerente juntou cópia da sentença em causa, bem como do pedido de divórcio feito pelo marido.
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Apesar do que diz a requerente, é bem claro, tendo em conta as normas invocadas e aplicadas na sentença do Tribunal do Qatar, que o fundamento com que pediu o decreto judicial /rescisão do casamento – equivalente ao divórcio que podia ser decidido pelo marido, ou pela mulher se este poder lhe tivesse sido concedido pelo marido no acto de casamento – foi o facto de se ter convertido ao Islão e o marido ser católico. Os danos a que alude eram fundamento para que o divórcio não fosse considerado devido a actos seus, de modo a que lhe fosse concedido o sustento/manutenção /alimentos e o crédito compensatório /compensação de gozo.
E o divórcio foi concedido porque a requerente se converteu ao Islão e o marido não, apesar de o Tribunal do Qatar lhe ter dado prazo para o efeito.
Portanto, tem-se um divórcio concedido porque o marido se recusou converter ao Islão, sendo que, por um lado, não há igual possibilidade para o divórcio com base no facto de um dos cônjuges se converter a outra religião que não o Islão e, por outro lado, se for o marido a converter-se ao Islão e a mulher não se converter, tal não acarreta o divórcio.
Ora, isto, tendo em conta o art. 13 da Constituição Portuguesa consubstancia uma violação da proibição da discriminação quer em razão da religião, quer em razão do sexo. O marido – já não a mulher – fica divorciado (é privado das vantagens, patrimoniais e não patrimoniais, do estado jurídico de casado), devido a uma incompatibilidade derivada de uma diferença de religião.
E a proibição de discriminação por estas razões, uma das vertentes do princípio da igualdade de todos os cidadãos perante a lei, representa um princípio de ordem pública fundamental da ordem pública internacional do Estado Português.
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De qualquer modo, o art. 980/-f do CPC exige, para que a sentença não seja confirmada, que ela “não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.” Ou seja, o reconhecimento tem de conduzir a um resultado manifestamente incompatível com aquela OPIEP.
Ora, a propósito de um outro fundamento de divórcio que vai contra aquela OPIEP por violação do princípio da igualdade, que é o repúdio da mulher pelo marido quer no direito muçulmano quer no direito judaico, tem sido dito, nos termos de João Gomes de Almeida (o Divórcio em DIP, Almedina, 2017, pág. 627) que “por força da concepção aposteriorística da OPI, podem existir casos concretos em que essa desigualdade não será suficiente para desencadear a actuação da OPI.”
Continua o autor citado:
“Pense-se, por exemplo, nos casos em que é o cônjuge mulher que pede o reconhecimento da decisão estrangeira de repúdio unilateral. Ao pedir o reconhecimento da decisão estrangeira, o cônjuge mulher está a manifestar a sua vontade de que a dissolução do casamento seja também reconhecida em Portugal. Dito de outro modo, está a demonstrar que também quer que o casamento seja considerado como dissolvido. Deste modo, a desigualdade existente em abstracto no instituto, não suscita problemas de ordem pública internacional no caso concreto, uma vez que ambos os cônjuges (ainda que o cônjuge mulher possa ter manifestado essa vontade apenas posteriormente) pretendem que o casamento termine e a ordem pública internacional portuguesa não se opõe a que um determinado casamento cesse por vontade de ambos os cônjuges (Cf., no mesmo sentido, FERRER CORREIA, 2000: 459. Afirmar-se-á, em termos mais gerais, que é necessário que o cônjuge mulher manifeste livremente, de forma expressa ou tácita, mas em termos inequívocos, a sua vontade em aceitar a dissolução do casamento. Não se considera, contudo, como manifestação tácita de vontade suficiente a não oposição ao pedido de reconhecimento de decisão estrangeira de talak apresentado juntos dos tribunais portugueses pelo cônjuge marido […]”
No mesmo sentido, María Dolores Cervilla Garzón, La aplicabilidad de las normas del Código de Familia marroquí (la Mudawana) que regulan el divorcio en España: el filtro constitucional, publicado em Cuadernos de Derecho Transnacional, n.º1 de 2018, editada por por el Área de Derecho Internacional Privado de la Universidad Carlos III de Madrid., https://doi.org/10.20318/cdt.2018.4119; [2014:313], diz:
“43. Es de observar que los Tribunales tienen en cuenta como indicio favorable al reconocimiento de efectos a las sentencias de disolución del vínculo el hecho de que sea la esposa la que tome la iniciativa en el ex aequator. Pues ello pone de manifiesto que desea la eficacia de la resolución judicial del Tribunal marroquí, es decir, que el divorcio despliegue sus efectos y sea reconocido en nuestro país (lo cual la desliga del vínculo matrimonial). Negársela y obligarla, por tanto, a estar unida con un marido al que ya no quiere sobre la base de un análisis formal y estricto del ordenamiento jurídico que sirvió de fundamento a la resolución judicial, es perjudicial a sus intereses y supone un vulneración a su dignidade como persona.”
E mais à frente:
“45. El resto de las modalidades de ruptura, en general, pasarían, sin mucho problema el filtro constitucional, siempre que realicemos, como debe ser, una interpretación flexible y estricta de esta barrera. Y ello, porque, en verdad, alguna de las causas que permiten a la esposa solicitar la ruptura (divorcio judicial o por discordia), sería, a todas luces contrarias a nuestros principios fundamentales; pero, una vez la ruptura se ha producido, negarle los efectos es más perjudicial para la mujer y atenta más a su dignidad que no reconocer dicha eficacia.”
Na decisão sumária do TRL de 07/04/2020, proc. 405/19.3YRLSB-2, do signatário desta, podem ver-se outros elementos no mesmo sentido.
Ora, no caso dos autos, não se está apenas perante um caso de o ex-marido, que não está revel, não ter deduzido oposição, mas sim de ele ter vindo dizer expressamente que não iria contestar a pretensão da ex-mulher, o que tem o significado inequívoco de aceitar a sentença de divórcio do Tribunal do Qatar (apesar de ter dito “não será contestada de momento”, pois que ele foi advertido, na citação, de que na falta de oposição, encontrando-se observados todos os requisitos exigidos pelas disposições combinadas dos artigos 980 e 984 do CPC, o Tribunal concederá a revisão).
Alias, como a requerente demonstrou, o próprio requerido pediu o divórcio em Portugal e o processo só não foi em frente porque o Tribunal português achou-se incompetente para o efeito porque os cônjuges viviam no Qatar.
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Visto que se entende que, nestas circunstâncias, a violação do princípio da igualdade que está na base do fundamento do divórcio concedido não implica que o reconhecimento da sentença conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, não interessa analisar ainda outros dois motivos que poderiam levar ao mesmo resultado (da confirmação da sentença), expostos por João Gomes de Almeida, na obra citada, pág,. 628, como seria (i) o caso de se apurar que, no caso concreto, se verificava algum dos motivos que são, segundo o Direito material português, fundamentos do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges” e (II) a situação internacional não tenha laços significativos com o Estado português.
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Posto isto, a revisão pedida é necessária (art. 978 do CPC).
Este tribunal é o competente para o efeito (art. 979 do CPC).
Não existem dúvidas sobre a autenticidade do documento de que consta o julgamento nem sobre a inteligência da decisão, nem o seu reconhecimento conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português (o que se declara tendo em vista o disposto no art. 980/-a-f do CPC).
Não existem dados que indiciem que, no processo onde foi proferida a decisão não tenham sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes, ou que a sentença provenha de tribunal cuja competência tenha sido provocada em fraude à lei, ou que esteja pendente ou já tenha sido proferida outra decisão num tribunal português (o que se declara tendo em vista o disposto no art. 980/-b-c-d-e do CPC).
Pelo que, nada obsta à revisão e confirmação da sentença revidenda.
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Pelo exposto, julga-se procedente a pretensão da requerente e, em consequência, decide-se rever e confirmar a sentença supra referida, da qual resulta o divórcio da requerente e requerido, que assim passará a ter eficácia na ordem jurídica portuguesa.
Valor da causa: 30.000,01€.
Tendo em conta o disposto no art. 14-A/1c do RCP, não há lugar ao pagamento da 2ª prestação da taxa de justiça. Isto é, tudo o que havia a pagar por este processo eram 306€, pelo que devem ser devolvidos à requerente os 306€ pagos a mais.
Transitada em julgado a decisão, comunique-a ao registo civil.
Lisboa, 04/05/2022
Pedro Martins