AECOP (superior Alçada 1ªInstª) 14149/20.0YIPRT – Juízo Local Cível de Loures – Juiz 2
Sumário:
I – “O artigo 394 do CC não se aplica nos contratos celebrados com recurso a cláusulas contratuais gerais e, em geral, aos contratos de adesão.” (contratos não negociados). Mas, para quem assim não entender, no caso, perante a existência de documentos que podem servir de um início de prova por escrito, a inadmissibilidade de prova testemunhal, decorrente das normas do artigo 394/1 do CC, não se aplica.
II – As cláusulas confirmatórias valem, quando muito, apenas como mero início de prova, pelo que os predisponentes têm que fazer prova da comunicação e informação das cláusulas contratuais gerais de que se pretendem prevalecer, o que logicamente implica que se possam dar como não provadas afirmações que constam daquelas cláusulas, não obstante o disposto nos artigos 374, 376, 358/2 e 393/2 do CC.
III – “Se as partes querem aguardar a verificação do evento de carácter futuro e incerto para que o negócio comece a produzir os seus efeitos, a condição é suspensiva; se as partes querem que o negócio produza logo os seus efeitos, subordinando-se, porém, à verificação de certo evento, sob pena de extinção, então a condição é resolutiva.” O caso dos autos refere-se a uma condição suspensiva.
IV – As cláusulas especificamente acordadas que não respeitem a forma legal, ainda que, nos termos do artigo 221/1 do CC, sejam nulas, não deixam de ter o efeito de afastar as que com elas forem incompatíveis (como resulta do artigo 7 do RJCCG).
V – Pode-se defender que também o artigo 221/2 do CC não é aplicável aos contratos não negociados. Mas, para quem assim não entender, o artigo 221/2 do CC é aplicável aos contratos extintivos e, por isso, eles só devem ser reduzidos à mesma forma legal necessária para a celebração do contrato extinguido “se as razões da exigência especial da lei lhes forem aplicáveis” o que, tendo em conta a forma como a jurisprudência, com o apoio da doutrina, o tem aplicado, não acontece normalmente quando o contrato extintivo (cuja prova terá de ter em conta as normas dos artigos 393, 394 e 395 do CC nos termos em que a doutrina e a jurisprudência os tem interpretado) se limita a extinguir ou reduzir as obrigações dos contraentes.
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:
A-Lda, requereu uma injunção contra R para obter dela o pagamento de 7.653,20€.
Em síntese, alegou que no âmbito da sua actividade de prestação de serviços na área de agência de viagens, operadores turísticos, representação de marcas e gestão de cartões de desconto, celebrou com a ré em 25/11/2019 um contrato de prestação de serviços, n.º 16114, tendo emitido uma factura no valor de 7498€; instada, sucessivas vezes, para o fazer, a requerida não efectuou qualquer pagamento relativo ao contrato e à factura, estando em dívida nesse valor com juros desde 25/11/2019.
A requerida deduziu oposição, alegando, em síntese, que a requerente assenta o seu pedido na deturpação e omissão de factos de que o seu único sócio tem conhecimento pessoal e directo, para tentar obter às suas custas um enriquecimento sem causa justificativa; assim, omite a requerente, propositadamente, que a assinatura constante do acordo foi feita sob condição resolutiva: a não aprovação de um crédito para pagamento do preço; com efeito, apesar de o preço ter sido fixado em 7498€, a requerida disse que não tinha disponibilidade financeira para efectuar tal pagamento e, por isso, não estava interessada; neste contexto, foi o próprio legal representante da requerente que assumiu o encargo de viabilizar o financiamento da operação; não tendo sido aprovado o crédito, não existe contrato; para além disso, em momento algum recebeu a factura em causa nos autos; por outro lado, ainda que fosse de considerar o contrato válido, certo é que a própria requerente o incumpriu porquanto nunca emitiu e entregou os cartões que permitiam o acesso aos descontos (nem mesmo os provisórios, os quais deveriam ter sido entregues no momento da outorga do acordo); ainda, nas cláusulas/condições do contrato a requerente prevê a possibilidade de livre resolução do contrato nos termos previstos no DL 24/2014, de 14/02, na sua redacção actual (DL 78/2018, de 15/10); todavia, no acto de assinatura do contrato, nem em momento posterior, a requerente entregou à requerida o formulário de livre resolução do contrato, contrariando a lei e o previsto na cláusula/condições 6.4; a requerente incumpriu com os deveres de comunicação e informação, decorrente da celebração de um contrato de adesão ao qual foram apostas cláusulas contratuais gerais; invoca que a actuação do legal representante da requerente viola os princípios gerais de boa-fé negocial a que está obrigado por lei: com efeito, todo o processo que levou à assinatura do acordo demorou várias horas, teve vários interlocutores, não permitindo a formação de uma vontade livre e esclarecida; acresce que no dia 27/11, a requerida após uma leitura mais calma e cuidada do referido documento/contrato, e na sequência da troca de algumas mensagens por SMS com o sócio gerente da requerente, voltou à sede da empresa para obter alguns esclarecimentos relativamente ao clausulado/condições do documento; perante alguma insistência da requerida para ver esclarecidas algumas cláusulas, o sócio gerente da requerente apresentou um aditamento ao contrato DC com a alteração da redacção de algumas clausulas, designadamente a 1.4 e 2.5. Ao perceber que não obteria os esclarecimentos pretendidos, a requerida informou o sócio gerente da requerente que pretendia revogar o contrato e que só aderiria aos serviços da empresa com a negociação e celebração de outro contrato, quando e se o financiamento fosse aprovado; em consequência, o sócio gerente da requerente respondeu que “tudo bem” e com o próprio punho traçou na fotocópia da requerida 2 linhas oblíquas e a vermelho ao longo das páginas do contrato; questionado pela requerida sobre a necessidade de fazer o mesmo no original do contrato, o sócio gerente da requerente foi buscá-lo e com o próprio punho traçou 2 linhas obliquas e a vermelho ao longo das páginas do contrato, e escreveu a palavra “anulado”; ainda assim, no dia de 04/12/2019, o sócio gerente da requerente telefonou à requerida a informar que o processo de adesão estava pronto e que precisava de lhe falar; nessa data, foi recebida pelo sócio gerente da requerente que lhe comunicou que o financiamento que havia sido pedido para o contrato nº 16114 não tinha sido aprovado, mas tinha outra proposta/solução: pagamento com cartão visa do valor de 5290€, mediante a entrega/abdicação à DC de mais duas semanas de férias das 5 (4+1) a que tinha direito, ficando nesta segunda proposta com apenas a semana de férias (vermelha) a preços especiais, abdicando assim das quatro semanas anuais de acordo com clausula 3.9.1 do contrato; esta proposta foi imediatamente rejeitada pela requerida, até porque o contrato já estava “anulado”, desde 27/11/2019; a requerida saiu das instalações convicta de que nada mais a ligava à requerente: o primeiro contrato estava anulado e não aceitou assinar um novo contrato; perante o comportamento assumido pela autora, pretende a sua condenação como litigante de má fé.
Dada a oposição, a injunção foi convolada numa acção especial de cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato.
A agora autora exerceu o contraditório quanto à matéria de excepção, alegando em síntese que agiu sempre de boa-fé perante a ré em todo o processo contratual, não omitindo dados relevantes para a formação da vontade da contraparte; não transmitiu informação enganosa à ré sobre todas as condições do contrato em referência, de forma a influenciar a conclusão do contrato; o contrato foi lido à ré e explicado o seu conteúdo que foi livremente aceite por esta e assinado sem qualquer reserva; é falso que o contrato em referência tenha ficado sujeito a condição de aprovação do crédito, não existindo qualquer condição resolutiva, fazendo depender a validade do contrato da aprovação do crédito da parte da cliente do autor; qualquer cliente do autor, onde se inclui a ré, quando celebra o contrato referenciado nos presentes autos, tem plena consciência no que se refere ao modo de pagamento, tendo completo conhecimento de que ou paga na integra a totalidade do valor do contrato, ou paga em prestações seja a crédito ou não, ou resolve o contrato no prazo legal estipulado no respectivo clausulado; por outro lado, é falso que o autor não tenha entregado à ré os cartões provisórios.
(este relatório reproduz quase na íntegra o relatório da sentença recorrida)
Depois de realizada a audiência final, foi proferida sentença, julgando a acção improcedente, por não provada, e absolvendo a ré do pedido. A autora foi condenada, como litigante de má-fé, na multa de 5 UC e no pagamento de uma indemnização de 350€ à ré (art. 543/1-a do CPC.
A autora recorre desta sentença, impugnando a decisão de vários pontos da matéria de facto e a decisão sobre a matéria de direito, bem como a sua condenação como litigante de má fé, sendo estas as questões a decidir.
A ré contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.
*
Foram dados como provados os seguintes factos que interessam à decisão daquelas questões:
1. A autora dedica-se à prestação de serviços na área de agência de viagens, operadores turísticos, representação de marcas e gestão de cartões de desconto.
2. No dia 25/11/2019, a ré recebeu um contacto telefónico da [sic] destinada a promover as actividades da autora.
3. No contacto referido em 2, foi comunicado à ré que a autora lhe tinha atribuído um voucher com oferta de uma viagem.
4. Para efectuar o levantamento do prémio a ré deveria dirigir-se às instalações da autora […].
5. Nesse mesmo dia (25/11), cerca das 20h30, a ré foi às instalações da autora e foi recebida por uma pessoa que lhe apresentou a empresa e que justificou a razão da oferta do voucher.
6. Nesse primeiro contacto pessoal, uma empregada da autora comunicou à ré que a oferta se destinava a promover os serviços da empresa, nomeadamente na área das viagens e lazer.
7. Neste contexto, e tendo em vista aferir da possibilidade da celebração de um acordo, foram solicitadas à ré informações sobre a sua situação profissional e pessoal, bem como interesses turísticos.
8. Foi ainda a ré questionada se era sócia do IC.
9. Posteriormente, foi perguntado à ré se estaria interessada em aderir ao cartão de descontos DC.
10. A ré esclareceu, nesse momento, que a sua adesão estaria dependente dos valores/custo dos serviços apresentados.
11. A ré foi encaminhada para o legal representante da autora.
12. Depois de descrever os serviços prestados pela empresa, o legal representante da autora propôs a celebração de um negócio nos seguintes termos: a jóia de entrada para o DC, a qual ascendia ao valor de 12.498€; a compra pela autora do cartão do IC detido pela ré por 5.000€.
13. Assim, caberia à ré proceder ao pagamento de 7.498€.
14. O legal representante da autora esclareceu que, quanto à aquisição, trataria de toda a burocracia junto do IC.
15. A ré comunicou ao legal representante da autora que não tinha recursos financeiros para proceder ao pronto pagamento do valor referido em 13.
16. Mais esclareceu que tinha alguma dificuldade no acesso ao crédito.
17. Neste contexto, o sócio gerente da autora apresentou uma solução de pagamento a crédito: 84 prestações no valor de 130€/mês.
18. O valor/número de prestações apresentado teve em consideração uma simulação efectuada pelo legal representante da autora junto da Unicre e tendo ainda em consideração a declaração de IRS da ré.
19. Mais garantiu o legal representante da autora que a empresa trataria do processo de concessão de crédito.
20. Não devendo a ré aceitar qualquer contacto directo de empresas de financiamento.
21. A ré anuiu na celebração do acordo, caso a proposta referida em 13 e 17 viesse a ter aprovação de uma instituição de crédito/financeira.
22. Tendo tomado conhecimento da posição referida em 21, o legal representante da autora apresentou à ré o contrato nº 16114.
23. Para tratar do pedido de financiamento, a autora deu à ré para assinar uma declaração de autorização e cobrou o pagamento de 165€.
24. Pagamento que a ré fez no momento, por multibanco, e a que corresponde a factura nº 119000/000085, datada de 17/12/2019.
25. O acordo referido em 22 apresentava-se sob a forma de um formulário.
26. No rosto do documento o legal representante da autora preencheu manualmente os espaços relativos à identificação da ré, beneficiários, valor do contrato e forma de pagamento.
27. No verso do acordo constam as respectivas condições, as quais foram previamente elaboradas pela autora e impressas, não tendo sido alvo de negociação entre as partes.
28. A ré apôs a sua assinatura no rosto e no verso do documento n.º 16114.
29. O acordo não foi celebrado em duplicado, pelo que à ré foi entregue uma cópia.
30. No dia 27/11/2019, após a leitura do documento referido em 22, e na sequência da troca de algumas mensagens por SMS com o legal representante da autora, a ré voltou à sede da empresa para obter alguns esclarecimentos relativamente ao clausulado/condições do documento.
31. Na sequência das dúvidas apresentadas, a autora apresentou um aditamento ao contrato DC com a alteração da redacção de algumas cláusulas, designadamente a 1.4 e 2.5.
32. Não tendo ficado satisfeita com as explicações apresentadas, a ré comunicou ao legal representante da autora que não pretendia prosseguir com o acordo, e que só aderiria aos serviços da empresa com a negociação e celebração de outro contrato, quando e se o financiamento fosse aprovado.
33. Em consequência, o sócio gerente da autora nada teve a opor e traçou 2 linhas obliquas e a vermelho ao longo das páginas daquele que foi apresentado como sendo o original do contrato, e escreveu a palavra “anulado”.
34. No dia 04/12/2019, o legal representante da autora telefonou à ré a informar que o processo de adesão estava finalizado e que precisava de lhe falar.
35. A ré deslocou-se à sede da autora, e foi-lhe comunicado que o financiamento não tinha sido aprovado.
36. Neste contexto, a autora, através do seu legal representante, propôs que a ré efectuasse pagamento com cartão visa do valor de 5290€, mediante a entrega/abdicação à DC de mais duas semanas de férias das 5 (4+1) a que tinha direito, ficando nesta segunda proposta com apenas a semana de férias (vermelha) a preços especiais, abdicando assim das quatro semanas anuais de acordo com a cláusula 3.9.1 do acordo.
37. Esta proposta foi rejeitada pela ré.
38. No dia 14/12/2019, a ré recebeu um telefonema do legal representante da autora, a perguntar se já tinha tomado alguma decisão sobre a adesão ao DC.
39. A ré retorquiu que o contrato nº 16114 tinha sido anulado.
40. Em resposta o legal representante da autora redarguiu que tinha na sua posse o original do acordo.
41. Para esclarecer o assunto, a ré dirigiu-se à sede da empresa e foi-lhe exibido o contrato nº 16114, sem qualquer rasura ou menção à anulação.
42. Por fim, o legal representante da autora comunicou à ré que esta poderia proceder ao pagamento de 1000€ em cartão visa e os restantes 4290€ em maio, também em cartão visa; o que também não foi aceite.
43. A ré não recebeu, até à propositura da acção, qualquer factura para pagamento do preço.
44. No dia 25/11/2019, a ré em conjunto com a autora assinou uma declaração complementar ao contrato número 16114 que tem o seguinte teor: […] Declaro que o contrato supracitado me foi lido, explicado, esclarecido, frente e verso do mesmo antes de o subscrever. Declaro também que me foi informado e salientada a cláusula do direito de livre resolução do mesmo, da qual tomei conhecimento e que me foi entregue o formulário para os devidos efeitos no acto do contrato. Assim sendo, declaro ter total conhecimento do teor e do conteúdo deste contrato, ou de qualquer outro aditamento referente ao mesmo…”.
45. A ré não apresentou qualquer reclamação ao autor, quer verbal quer por escrito, a pedir os cartões definitivos.
*
Factos não provados [apenas aqueles que interessam face à impugnação da decisão da matéria de facto – TRL]
[…]
2. A autora procedeu à entrega à ré de cartões de desconto, provisórios ou definitivos, seja no dia de assinatura do contrato (25/11/2019) seja em momento posterior.
[…]
4. No acto de assinatura do contrato, ou em momento posterior, a autora entregou à ré o formulário de livre resolução do contrato.
5. O acordo referido no facto 22 foi integralmente lido à ré e explicado o seu conteúdo.
6. A cláusula 6.4 do contrato número 16114 foi explicada à ré por NC, legal representante do autor, que da mesma ficou ciente.
7. A ré ficou esclarecida quanto ao teor da declaração referida no facto 44.
*
A convicção do tribunal recorrido foi assim fundamentada:
“[…]
Relativamente à actividade a que se dedica a autora, não existe qualquer litígio entre as partes.
Como não existe qualquer litígio quanto aos pontos 25 a 29 (em qualquer caso, este ultimo ponto é totalmente confessado pelo legal representante da autora).
A questão que separava os intervenientes processuais prendia-se com a celebração de um acordo e os respectivos termos. Ora, a prova produzida em juízo é totalmente esclarecedora sobre esta matéria. Com efeito, as provas documental, testemunhal e declarações de parte formam entre si um acervo claro, objectivo, coerente e concordante.
Desde logo, o legal representante da autora foi totalmente claro (apesar de na resposta à oposição se ter impugnado esta matéria), sobre o modo como é efectuado o contacto, sobre a concessão de um voucher, sobre a existência de uma apresentação que a pessoa (possível cliente) tem de assistir para poder usufruir desse prémio (pontos 2 a 9). Mais foi claro quanto ao passo subsequente, que consiste na negociação do cartão de descontos. Coincide com tudo aquilo que a ré afirmou em sede de declarações de parte, ainda que esta tenha sido mais circunstanciada quanto a factos e concreta quanto a datas (pontos 4 a 9 e 11).
E mais acrescentou o legal representante da autora que a ré lhe transmitiu que não poderia proceder ao pagamento da jóia a prestações, porquanto a autora não aceita essa forma de liquidação. Isto significa tão-só que o processo apenas avançaria com financiamento de entidade terceira.
Já nesta fase inicial das declarações (e de toda a produção de prova) é possível verificar que o legal representante da autora sabia das dificuldades financeiras da ré e que esta apenas poderia vincular-se ao acordo com a aprovação de um crédito (e com uma prestação baixa). Estava, portanto, bem ciente de que para a ré esta era uma condição essencial à eficácia/validade do acordo (ponto 10, 15, 16 e 21; matéria esta que é igualmente confirmada de forma precisa e objectiva pela ré).
Aliás, essa informação é transposta para o formulário junto a fl. 47 (doc. apresentado pela autora em audiência): 84 prestações x 130€ (da operação resulta um valor bem superior ao preço acordado, o que traduz a existência de juros remuneratórios). Foi o legal representante da autora a assumir a concessão do crédito nestas condições (considerando as tabelas da Unicre) – pontos 17, 18 e 19 (matéria que também foi confirmada pela ré nas suas declarações).
Sobre o facto constante em 20, a sua comprovação ficou a dever-se não apenas às declarações de parte dos intervenientes processuais, como da mensagem constante do documento de fl. 51 (ultimo balão): “Combinado, sem problema. Mas isso da C não atenda. Depois explico (…)” (documento apresentado pela autora).
Em suma, bem sabia/sabe o legal representante da autora que foi neste contexto que a ré assinou o acordo referido em 22 (assinatura essa que nem sequer é contestada pela ré).
No que se reporta aos termos do acordo que inicialmente foi proposto (pontos 12 a 14) o tribunal teve em consideração a apreciação crítica de dois meios probatórios. As declarações do legal representante da autora, pela negativa, revelaram-se pouco claras e concludentes. Foi evasivo quanto aos termos do negócio que foram apresentados. Escuda-se numa versão pouco detalhada e simplista: o valor do negócio seriam os 7.498€.
Já as declarações de parte da ré apresentaram-se, na sua globalidade, claras, objectivas, circunstanciadas, com correcções espontâneas, e com referência a elementos supérfluos. Tudo sinais de isenção e credibilidade. A sua versão dos factos apresenta-se totalmente verosímil. Conhecendo aquele que é o padrão de actuação neste tipo de contratação, o cliente é muitas das vezes aliciado com propostas de descontos, de modo a tornar no negócio mais apetecível e/ou irrecusável.
Neste contexto, entendemos ser de validar as realidades descritas entre 12 e 14.
Foi igualmente com base nas declarações de parte da ré, das testemunhas P e M e dos documentos de fls. 58 e 59 (factura e extracto de conta – docs. 2 e 3), que o tribunal fundou a sua convicção quanto aos pontos 23 e 24. Formam entre si um acervo coerente e lógico, não sendo colocados em crise por outros meios probatórios.
Pontos 30 a 33:
Relativamente aos acontecimentos que se sucederam à assinatura do acordo, o tribunal teve em consideração as declarações de parte da ré, as quais revestiram as características acima descritas. Estão devidamente secundadas no depoimento das testemunhas P e M, que expuseram os factos de modo claro, objectivo e espontâneo. Trata-se de pessoas que privam de perto com a ré.
É notório da análise do documento de fl. 49, que ilustra uma mensagem enviada pela ré ao legal representante da autora, que esta não tinha ficado totalmente esclarecida com os termos do acordo: “preciso de alguns esclarecimentos adicionais sobre o contrato” – mensagem de 27/11, balão 1.
É natural que assim fosse. Bastará verificar que as condições gerais do acordo estão em letra pequena e de difícil percepção. Se aliarmos ao facto de toda o ambiente da contratação se ter desenrolado de noite e depois do expediente laboral, facilmente concluímos que a ré não tivesse dado, nesse momento, grande relevância a todas as cambiantes do acordo e que se tivesse centrado naquela que era a prestação principal (que tipo de viagem poderia beneficiar) e perceber se teria capacidade para pagar o preço e em que condições. Aliás, perante um clausulado daquele tipo, e no contexto descrito, a ré assumiu aquele que é um comportamento também ele típico neste tipo de casos: ignorância racional. O consumidor perante uma informação complexa e perante a perspectiva de perder tempo na análise do clausulado, opta por se manter na ignorância (tal sucederá sempre que o custo da informação é demasiado alto e os benefícios demasiado baixos; não existe um incentivo para recolher informação e tomar decisões informadas – Anthony Downs, 1957, An Economic Theory of Democracy).
Aliás, apenas assim se justifica a emissão de um aditamento o contrato (fls. 60; doc. 4), o qual não se encontra assinado por qualquer das partes. Teremos de presumir que as explicações apresentadas e o próprio aditamento não foram suficientes para desfazer as dúvidas da ré.
Por sua vez, a testemunha P foi claro quanto a pelo menos uma das clausulas da discórdia: a que se reporta ao custo das despesas administrativas (clausulas 2.4/2.5). São precisamente essas que constam do aditamento o contrato (fls. 60; doc. 4). Foi esta testemunha que aconselhou a ré a pensar melhor sobre a sua vinculação ao contrato; fê-lo enquanto amigo da ré.
Ora, na linha do referido pela ré, confirmou o legal representante da autora uma reunião no dia 27/11. Mas aqui o representante legal da autora adoptou uma postura mais reservada e calculista, passando a fazer recorrente alusão ao período de 14 dias de livre resolução que não foi respeitado.
Cumpriria, assim, aferir qual foi o objecto da reunião de 27/11. Um primeiro sinal é-nos revelado pela prova documental. Como se disse, a mensagem junta a fl. 49 (documento junto pela autora), e imputada à ré, esta refere expressamente que “preciso de alguns esclarecimentos adicionais sobre o contrato (…)” – balão 1.
Conjugado com a prova testemunha produzida, verificamos qual era a intenção da ré. Com efeito, a testemunha P (vereador da C.M.), que prestou um depoimento claro, preciso, objectivo sereno e espontâneo, esclareceu que no dia 26/11 falou com a ré e alertou-a para a existência de algumas cláusulas que poderiam ser consideradas como abusivas. Mostrou-se igualmente preocupado com a repercussão que a assunção de mais uma obrigação poderia ter na gestão do património da ré. No mesmo sentido se pronunciou M. Trata-se de pessoas que pela sua proximidade pessoal e profissional acompanharam de perto o desenvolvimento dos factos. É certo que se trata de conhecimentos obtidos por via indirecta, decorrentes do contacto que tiveram com a ré. Mas constituíram, considerando a forma espontânea, objectiva e desapaixonado dos relatos, auxiliares relevantes para aferir da robustez das declarações de parte da ré.
Das declarações de parte da ré, dos depoimentos das testemunhas P e M, do contexto descrito e do documento de fl. 57 (doc. 1 apresentado pela ré), resulta de forma consistente que é altamente plausível que tenha sido declarado que não havia interesse no prosseguimento do contrato. E que, nessa sequência, aquilo que foi apresentado como sendo o contrato original tenha sido dado como “anulado”. Sobre aquele que será o original, adiante nos pronunciaremos.
Em todo o caso, a ré deixou a “porta aberta” para a celebração de um novo acordo, desde que satisfeitas as exigências relativas à concessão de um crédito com a prestação baixa.
Pontos 34 e 35:
O legal representante da autora admitiu em sede de declarações de parte que, em momento posterior à celebração do acordo e da reunião de 27/11, soube que à ré não foi possível recorrer ao crédito, o que terá ocorrido em 03/12 (pontos 34 e 35). E mais sabe que a ré sempre disse que, neste contexto, jamais se poderia vincular definitivamente ao acordo.
E sabe ainda, porque assim o admitiu em sede de audiência de julgamento, que fez nova(s) proposta(s) (“sugeriu outras possibilidades”). Tal terá ocorrido em 04/12.
A ré confirma este segmento dos acontecimentos.
Já o conteúdo concreto das outras possibilidades apenas pôde ser alcançado de forma consistente com recurso às declarações de parte da ré, a qual acrescentou que não poderia aceitar qualquer hipótese de acordo que não passasse pelo financiamento bancário com prestações reduzidas (pontos 36 e 37). Observamos, pois, uma linha de discurso da ré totalmente coerente.
Matéria de apreciação difícil e sensível prendia-se com o ocorrido na reunião de 14/12 (38 a 42), e que tem estreita ligação com os factos 32 e 33. Na formação da convicção, o tribunal teve em consideração as declarações de parte da ré. Apresentou, como se disse, esclarecimento sobre os factos de forma clara, objectiva, circunstanciada, com correcções espontâneas, e com referência a elementos supérfluos. Manteve esta coerência mesmo depois de lhe terem sido pedidos diversos esclarecimentos. Esta robustez, em termos de validade epistémica, está suportada no depoimento das testemunhas acima mencionadas, e pelos motivos já indicados.
De notar ainda que a prova documental aponta para uma linha de actuação coerente e lógica da ré. Com efeito, as mensagens que acima fomos fazendo referência, são claras quanto à existência de divergências quanto ao teor do contrato, quanto à dificuldade do financiamento, quanto à preocupação da ré em ver resolvido este problema (em 02/12, remeteu uma mensagem ao legal representante da autora manifestando incómodo e apreensão quanto à insistência da financeira C – fl. 51; balão 1). Ou seja, a ré sempre teve uma participação activa e interessada, o que não se compadece com alguém que se pretende furtar ao cumprimento do acordo.
Acresce que a versão da ré é ainda mais verosímil porquanto, como confessou o legal representante da autora, o contrato é assinado apenas com um exemplar. Não há duplicado (o que a ré também confirmou; o acordo não faz qualquer referência à existência de duplicados). Perante este tipo de procedimento, e considerando que o original fica na posse do proponente (autora) e que ao aderente é entregue uma cópia, não é difícil de conceber que o original possa ser replicado diversas vezes (bastará uma simples impressora a cores).
Ora, o documento de fl. 47 apresentado pela autora em sede de julgamento apresenta uma gramagem superior à habitual para uma folha A4. É usual a utilização deste tipo de folha quando se pretende vincar a importância do acto. Este documento/formulário está, sem qualquer margem para dúvida, preenchido a tinta azul. Estes elementos fazem crer que este é o documento assinado pela ré na noite de 25/11.
Já aquele que a ré pensa ser o original (fl. 57, doc. 1) é, na verdade, uma cópia a cores: é uma reprodução mecânica integral e sofisticada do documento de fl. 47. Não tem, aparentemente, qualquer diferença. Apenas é possível perceber que se trata de uma cópia depois de confrontar com o original. Em suma, facilmente a ré poderia ser induzida em erro: o documento anulado era, na verdade, uma cópia.
Aliás, o legal representante da autora é cauteloso ao pronunciar-se sobre a reunião de dia 27/11, tendo apresentado um mero fragmento da realidade (sem querer contextualizar ou comprometer-se com uma versão concreta). Afirmou que comunicou à ré que o contrato, nesta via, não iria prosseguir (o que dá suporte ao depoimento da ré quanto ao facto transposto em 32). Mas foi muito pouco claro como iria prosseguir e em que termos. E se aceitava que não iria prosseguir qual seria o motivo pelo qual a ré teria de [sic] 14 dias para resolver livremente o contrato?
Há outro dado que acrescenta credibilidade à posição assumida pela ré. Em momento algum nega que tenha assinado o acordo. Admite ainda que assinou a declaração complementar ao contrato – ponto 44 (disse que tinha assinado dois documentos). Tem, pois, uma posição totalmente transparente. Nas declarações de parte a ré expôs-se sem reservas. Respondeu espontânea e cristalinamente sem pensar nas possíveis consequências negativas das respostas apresentadas. Os elementos de prova sustentam a sua versão dos factos.
Em contraponto, o comportamento assumido pela autora é opaco. Como vimos, das declarações de parte do legal representante da autora resulta de forma evidente que sabia que a ré teria de recorrer ao crédito para poder vincular-se ao acordo. Diz o legal representante da autora que no dia 27/11 comunicou à ré que o contrato não podia seguir por aquela via. Mas no dia 28/11 (doc. fl. 50; balão 1), envia uma mensagem à ré afirmando que o “processo está pronto”. Neste contexto, trata-se de uma mensagem equívoca e capciosa, o que motivou a resposta da ré em 02/12 (doc. fl. 51, balão 2): “há novidades sobre o meu processo?” é legitima a interrogação da ré: falamos do contrato ou do financiamento? Não era o mesmo assunto? O documento de fl. 53 confirma a reunião em 04/12. Este procedimento confuso e capcioso é traduzido pela testemunha P, que esclareceu o estado de espirito da ré: mesmo depois da anulação, a ré nunca ficou descansada. O que tem tradução na mensagem de 14/12 (doc. de fl. 55) enviada pela ré ao legal representante da autora, ainda antes da reunião: “desculpe mas neste momento estou profundamente desiludida e apreensiva”.
É certo que estamos perante factos que ocorreram ente duas pessoas. Mas o tribunal suportou a sua convicção no meio probatório que maior garantia de credibilidade demonstrou ter: as declarações de parte da ré.
Como se disse, acresce que há elementos acessórios que lhe dão sustentação: todo o contexto que acima se descreveu é coerente com estas premissas; a testemunha P revelou conhecer, indirectamente, a proposta de viabilização do acordo (42); as mensagens de fls. 54 e 55 revelam a intenção de realizar uma reunião (a qual o legal representante da autora confirmou, ainda que com outros contornos, os quais não merecem qualquer credibilidade em face daquilo que já se afirmou).
Relativamente à emissão da factura, dificilmente a ré a poderia ter recebido, porquanto não existe a menor prova de que esta tenha sido emitida. O legal representante da autora falou em factura proforma, a qual, como é sabido, é um documento meramente informativo/descritivo e que não tem qualquer valor contabilístico ou fiscal (no giro comercial traduz uma mera simulação). Mas nem essa foi junta aos autos. Indirectamente acaba por confirmar a falta de emissão da factura.
Quanto ao ponto 45, trata-se de matéria que não é sequer contestada pela ré. Aliás, se esta afirma que não celebrou qualquer contrato e que nunca pretendeu usufruir de qualquer serviço, é natural que não tenha apresentado qualquer reclamação quanto à falta de emissão dos cartões.
*
Quanto à matéria não provada, fizemos notar que não existe qualquer prova da emissão de uma factura em sentido próprio. Como se disse, o legal representante da autora fez referência à suposta emissão de uma factura proforma. Mas nos autos não consta qualquer elemento que permita validar esta afirmação. Bastaria juntar o documento; o que não sucedeu.
Do mesmo modo não existe qualquer dado que permita afirmar com algum grau de segurança que os cartões de desconto, sejam eles provisórios ou definitivos, tenham sido entregues. Na verdade, não conhece o tribunal a aparência desses documentos, dado que nem sequer foram exibidos. Por outro lado, das declarações de parte da ré resulta que existia ainda alguma indefinição sobre o aspecto e formato dos cartões. O legal representante da autora confirmou que pediu um cartão à ré por o considerar muito elegante e por querer reproduzi-lo. Mas foi ele mesmo que acabou por confirmar que nunca foram elaborados os cartões definitivos: a sua elaboração era pedida em bloco (lote), pelo que demoravam 2 a 3 meses.
Sobre o ponto 3, constitui uma decorrência lógica da posição assumida pela ré. Ao afirmar que nunca celebrou um contrato, não seria a falta de emissão dos cartões que a impediu de usufruir dos serviços. Em rigor, esta alegação deverá ser entendida como um defesa indirecta, no sentido de, caso se comprove a existência e eficácia do acordo, ter havido uma impossibilidade objectiva de gozar as utilidades que a convenção visava proporcionar. Mas neste campo concreto, não é claro que os cartões seriam uma condição sine qua non para a utilização dos serviços; ou se seria suficiente fazer referência ao contrato. A prova neste campo foi insipida.
Quanto aos pontos 4 a 7 que se prendem essencialmente com o dever de prestar informação relevante sobre o contrato, teremos de assinalar desde logo que a existência de uma declaração subscrita pelo aderente é totalmente inócua para comprovar o cumprimento desta obrigação. Exige-se um comportamento activo e diligente de modo a que toda a informação relevante para a tomada de decisão seja conhecida.
Ora, tal como resulta da presente fundamentação, a negociação centrou-se essencialmente na apresentação dos serviços prestados e respectivos benefícios, bem como na forma de pagamento. Já a mensagem de 27/11, balão 1, é elucidativa quanto ao cabal esclarecimento do teor do acordo antes da sua celebração (fl. 49): ”preciso de alguns esclarecimentos adicionais sobre o contrato.”
Neste enquadramento e perante a insuficiência da prova, teríamos que dar como não provado o cumprimento dos deveres de informação.
O mesmo raciocínio é válido quanto à entrega da declaração de livre resolução.
Para além de a prova ser totalmente exígua, constatámos que todo o processo de negociação e vicissitudes ocorridas em momento posterior (até 14/12) indicia ter sido pouco transparente, e faz duvidar fortemente do cumprimento desta obrigação. Aliás, não é crível que a ré tendo pretendido resolver o contrato, como se demonstrou, não tenha utilizado o formulário que supostamente lhe tinha sido disponibilizado.
Aquilo que a prova induz é que a autora foi arrastando todo o processo para poder argumentar com a caducidade do prazo de 14 dias (livre arrependimento). Foi notório nas declarações do legal representante da autora a constante referência a esse prazo. O que está em consonância com a evidente incapacidade que a ré sentiu em parar a “bola de neve” em que se viu envolvida (traduzida nas suas declarações de parte).
Esta torrente em que a ré se viu envolvida, teve tradução igualmente no depoimento da testemunha C. Não tendo conhecimento directo dos factos, relatou o seu caso pessoal no âmbito de um contrato que celebrou com a autora.
*
A demais matéria não é alvo de resposta dado que tem carácter conclusivo, está inserida nos círculos de esclarecimentos da matéria integrada nos factos provados, constituem considerações de direito ou não têm relevância para a decisão a tomar nos autos.”
*
Da impugnação da decisão da matéria de facto
A autora diz que discorda da matéria de facto dada como provada em 21, 22, 32 e 33 e não provada em 2, 4, 5, 6 e 7 da sentença recorrida.
A fundamentação da posição da autora é a seguinte:
A ré não impugnou a letra e a assinatura apostas no contrato número 16114 e na declaração complementar ao contrato número 16114, juntos aos autos. E não impugnou a genuinidade dos referidos documentos.
O legal representante do autor prestou declarações de parte e explanou que a ré assinou o contrato número 16114 e a respectiva declaração complementar ao contrato, não ficando sujeito à condição de aprovação de crédito, esclarecendo que a empresa no âmbito da sua actividade profissional celebra contratos com os clientes não sujeitando qualquer contrato à condição de aprovação de crédito, são os próprios clientes é que decidem se pagam a pronto ou a crédito, independentemente do contrato produzir efeitos jurídicos para as partes. Confirmando que o formulário de livre resolução do contrato foi entregue à ré conforme contido na declaração complementar ao contrato número 16114, documento este assinado pelo punho da ré. Declarando que foram entregues os cartões provisórios. E que foi comunicado à ré todo o teor do contrato. Não procedendo a ré à resolução do contrato conforme lhe teria sido explicado. O legal representante do autor esclareceu que não traçou duas linhas oblíquas e a vermelho ao longo das páginas daquele que foi apresentado como sendo o original do contrato, não escrevendo a palavra anulado (declarações de parte de NC, gravação dia 24/06/2021, 20210624143513-5992168-2871229, das 1:35 às 1:04:08).
A testemunha M, colega de trabalho da ré, narrou que esta lhe transmitiu que tinha assinado um contrato e que o ia pagar em prestações de 130€/mês. Que a ré lhe teria transmitido que os 130€ mensais era um valor que conseguia chegar lá, aceitou e assinou. A testemunha referiu que questionou a ré porque é que se ia meter no contrato considerando que já era sócia do IC obtendo como resposta que a proposta lhe pareceu bem quando assinou a primeira vez e era uma maneira de viajar mais barato. Relatou que a ré anulou o contrato antes de saber se lhe tinha sido concedido crédito (gravação dia 24/06/2021, 20210624155601-5992168-2871229, das 2:32 às 15:07)
A ré prestou declarações de parte esclarecendo que é sócia do IC desde 2007, e sabia as regras, tendo assinado um contrato semelhante com a autora. Confirmou ter assinado o contrato número 16114 e a declaração complementar ao mesmo, em que declara que o contrato supracitado lhe foi lido, explicado, esclarecido, frente e verso do mesmo antes de o subscrever. Declara também que lhe foi informado e salientada a cláusula do direito de livre resolução do mesmo, da qual tomou conhecimento e que lhe foi entregue o formulário para os devidos efeitos no acto do contrato, declarando ter total conhecimento do teor e do conteúdo do contrato, ou de qualquer outro aditamento referente ao mesmo. A ré explanou que o contrato em referência foi anulado posteriormente (gravação dia 08/07/2021, 20210708101213-5992168-2871229, das 3:53 às 1:23:20).
Da conjugação das declarações de parte do legal representante do autor e da ré com o depoimento da referida testemunha, e os documentos juntos aos autos, resulta que a ré celebrou o contrato número 16114 com o autor, não o impugnando, considerando que a ré apesar de ser sócia do IC entendeu que o contrato em referência lhe concederia mais benefícios possibilitando-a viajar mais barato. Na declaração complementar ao contrato número 16114 junta aos autos e não impugnada, está vertido que à ré foi explicado e esclarecido o teor do contrato em referência, reconhecendo esta que lhe foi entregue o formulário de livre resolução do contrato e que foi informada do respectivo conteúdo. A ré possuindo formação académica e sendo sócia do IC desde 2007, sabia o que estava a assinar e a contratualizar, subscrevendo o contrato número 16114 e a declaração complementar ao mesmo, por sua livre e espontânea vontade, não tendo sido coagida ou ludibriada para o efeito.
A ré em sede de declarações de parte confirmou ter celebrado o contrato 16114 com o autor, e que posteriormente foi anulado, todavia, não fez prova da referida anulação, considerando que a resolução do contrato é feita por documento escrito, nomeadamente através do formulário de livre resolução do contrato, por carta ou por email.
Estabelece o artigo 374/1 do CC que “A letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado, ou quando esta declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe serem atribuídas, ou quando sejam havidas legal ou judicialmente como verdadeiras.”
Nos termos do disposto no artigo 376/1 do Código Civil “O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento”, e o seu número 2 consagra “Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante”.
Conforme estabelecido nos artigos 374/1 e 376, números 1 e 2, do CC, o contrato e a declaração complementar ao mesmo, juntos aos autos, fazem prova plena para os devidos efeitos legais.
Pelo exposto, os factos provados e descritos em 21, 22, 32 e 33 devem julgar-se não provados, e os factos não provados e descritos em 2, 4, 5, 6 e 7 deverão julgar-se provados.
Para os efeitos do estabelecido no artigo 640 n.ºs 1 e 2 do CPC os referidos factos foram incorrectamente julgados como provados.
Nestes termos, devem os factos em referência serem alterados conforme supra exposto.
A ré contra-alegou extensamente, defendendo a improcedência da impugnação, no essencial na linha do decidido com base na sua oposição.
Apreciação:
Como se vê da transcrição feita, a autora não cumpriu o ónus que está a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto (art. 640/2-a do CPC) de, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados.
Limitou-se a escrever uma série curta de afirmações que teriam sido feitas pelas 3 pessoas que refere, durante as respectivas declarações e depoimentos, que tiveram, respectivamente, a duração de 1h04m08s, 15m07s e 1h23m20s, sem localizar essas afirmações em passagens da gravação (ao contrário do que a ré fez), nem mesmo dizendo que elas tinham dito o que a autora escreve, podendo, pois, ser simples interpretações pessoais que a autora fez do que aquelas podem ter dito, não se sabe em que ponto das suas declarações e depoimento.
Assim sendo, rejeita-se os três meios de prova apresentadas pela autora para pôr em causa as 9 decisões de pontos da matéria de facto.
De qualquer modo, diga-se que não tem a mínima credibilidade a argumentação da autora, face à demonstração inequívoca da correcção do decidido quanto a todos aqueles pontos feita na completa fundamentação das decisões da matéria de facto recorridas.
Não se vai repetir aquela fundamentação, com a qual se concorda sem qualquer reserva, salientando-se apenas – para dizer as coisas de outro modo – que, havendo uma factura de 165€, paga pela ré, para o serviço a prestar pela autora no processo de financiamento (pagamento ocorrido através da conta bancária da ré a 26/11/2019 e factura emitida a 17/12/2019), é inconcebível que a autora pretenda que se acredite na versão do seu gerente, ou seja, que o pagamento do preço da compra do cartão já era devido a 25/11/2019. Ninguém compra uma coisa a crédito a pagar em 84 prestações e está em dívida do preço da compra a partir desse mesmo dia, quando o financiamento para esse contrato de compra ainda nem sequer foi pedido, sendo que esse pedido tinha ficado de ser feito pelo credor/vendedor/autora, pelo qual recebeu os tais 165€ no dia a seguir (vejam-se os factos 2 a 19, 23 e 24, que a autora não impugnou). Mais ainda quando se sabe que ainda depois disso a autora apresentou uma proposta de alteração do contrato de venda (facto 31, também não impugnado pela autora) e no dia 04/12/2019 a autora disse que o financiamento não tinha sido aprovado (factos 34 e 35, também não impugnados) e fez uma proposta de alteração em que o preço devido pelo cartão passava a ser de menos de metade do inicialmente previsto (facto 36 também não impugnado). Ainda para mais quando não há prova de que o cartão (mesmo que provisório) tenha sido entregue, nem de que foi emitida qualquer factura pela venda do cartão (factura que a autora nunca juntou – como é dito pela fundamentação recorrida e repetido/frisado pela ré).
A versão do legal representante da autora não convence, pois, minimamente, pois que não explica nenhum destes factos, sendo que na resposta à matéria de excepção a autora se tinha limitado a impugnar os factos alegados pela ré que, essa sim, desde sempre, explicou todos os factos e todos os documentos relacionados com eles, servindo estes, pois, de corroboração evidente de tudo o que ela disse.
A insistência da autora em repetir que a ré assinou o contrato e a declaração complementar (confirmatória) – só nesta parte da impugnação da decisão da matéria de facto a ideia é repetida quatro vezes e muitas mais vezes será repetida no recurso sobre matéria de direito –, acompanhada da referência aos artigos 374 e 376 do CC, não tem sentido, como argumento contra o decidido, pois que o tribunal recorrido deu expressamente como provado (factos 28 e 44) a celebração do contrato e a assinatura da declaração complementar e fez referência a isso na fundamentação das decisões impugnações.
A insistência da autora, para ter outro valor, teria de ter – mas não tem – outra argumentação adjuvante, que seria, para já a nível de facto, a seguinte:
Não se poderiam dar como provados os factos – 21, 22, 32 e 33 – relativos à condição resolutiva do negócio ou os factos relativos à extinção do contrato com base em depoimentos de testemunhas (artigos 394/1 e 395 do CC) ou, fazendo uma interpretação actualista da norma, com base em declarações favoráveis da parte interessada na prova dos factos, na medida em que, no que para aqui importa, essas declarações de parte são um testemunho (de parte).
Esta argumentação pode ser afastada do modo que a seguir se vai expor, mas, antes disso, lembre-se que o artigo de Filipe Cassiano dos Santos, O contrato de instalação de lojista em centro comercial (e a aplicação do art. 394 do CC quando celebrado por adesão), Cadernos de direito privado, Out/Dez2008, n.º 24, especialmente páginas 6 e 7 e 17 a 20, já demonstrou que o art. 394 do CC não se aplica quando o contrato é celebrado por adesão (argumentando nesse sentido também com o art. 7 do RJCCG): “a norma [do art. 394 do CC] supõe, quanto ao seu âmbito de aplicação, que se trata de convenções contrárias ao conteúdo de documentos que formalizam contratos negociados.” Ana Prata, nos Contratos de adesão e cláusulas contratuais gerais, 2.ª edição, Almedina, 2021, pág. 294, aplaude este entendimento, mas, por lapso, diz que ele foi seguido pelo ac. do STJ de 13/09/2007, proc. 07B1857, quando este acórdão tem a posição contrária e foi o alvo de crítica do artigo de Filipe Cassiano dos Santos citado acima).
Mas, mesmo que o artigo 394 do CC se aplicasse, a fundamentação da decisão da matéria de facto teve o cuidado de referir vários documentos que podem servir de um início de prova por escrito dos factos relativos à condição. Ora, quando há este início de prova, tem-se entendido que a inadmissibilidade decorrente das normas do artigo 394 do CC não existe (apenas por exemplo, por facilidade e por últimos, vejam-se as anotações de Rita Gouveia, no Comentário ao CC, da UCP/FD/UCE, 2014, páginas 888 a 892, e de Lebre de Freitas, CC anotado, vol. 1, Almedina/CEDIS, 2019, 2.ª edição, páginas 512 a 514, e a Acção declarativa, 2017, 4.ª edição, Gestlegal, páginas 323 a 328, especialmente 325, nota 7).
Tal como não existe a inadmissibilidade decorrente do art. 395 do CC (aplicável apenas quando estiver em causa facto extintivo de relação obrigacional oriunda de contrato reduzido a escrito: Lebre de Freitas, A em A acção executiva, 2017, 7.ª edição, Gestlegal, pág. 210, nota 32: “factos extintivos de obrigação cuja constituição se prove por documento revestido de prova probatória plena”), não só quando existe um início de prova por escrito, como também quando circunstâncias objectivas tornem verosímeis os factos extintivos (Lebre de Freitas, obra citada, pág. 514). Pelo que o tribunal recorrido a partir daí já podia utilizar os depoimentos e as declarações de parte, tal como já podia utilizar, para o efeito, as declarações de parte não interessada naquela prova (pois que em relação a estas já não haveria as razões que permitiriam a sua consideração, para este efeito, como testemunho de parte, aproximando-se, materialmente, mais da confissão).
Por outro lado, prevendo o art. 7 do RJCCG, que “As cláusulas especificamente acordadas prevalecem sobre quaisquer cláusulas contratuais gerais, mesmo quando constantes de formulários assinados pelas partes”, mesmo que não se siga a posição de Cassiano dos Santos, tem de se admitir que tem de ser possível provar a existência de tais cláusulas com o recurso a testemunhas, ao menos no âmbito das excepções assinaladas (o que aquele acórdão do STJ de 2007 admite), como a do início de prova por escrito, excepção que já se demonstrou acima estar preenchida. Mesmo que tais cláusulas sejam nulas por falta de forma, o que já é uma questão de direito a tratar mais à frente.
Neste sentido, veja-se Almeida Costa e Menezes Cordeiro: “Estas [as CCG] devem considerar-se, pois, sempre prejudicadas, mesmo quando se apure que o acordo específico é nulo, por falta de forma, o que implica a aplicação do regime geral dos contratos. Trata-se de uma manifestação, paralela a outras do nosso sistema jurídico, da relevância secundária de um contrato inválido. […] Segundo as normas relativas ao ónus da prova, a demonstração da existência do contrato singular, com uma determinada configuração, quer dizer, englobando ou não acordos específicos, pertence a quem o alegue (art. 342 do CC)” (CCG, anotação, Almedina, 1990, reimpressão, pág. 26). No mesmo sentido, Ana Prata, obra citada, páginas 291 a 294, que lembra ainda, na pág. 291, embora a critique, a posição ainda mais permissiva de Miguel Nuno Pedrosa Machado, Sobre CCG e conceito de risco, RFDUL, 1988, pág. 89 e seguintes, especificamente pág. 113 [págs. 40-41 da edição em separata], nota 56: “podendo tais acordos, individuais […] ser anteriores, concomitantes ou posteriores à conclusão do contrato, e sendo indiferente que sejam escritos ou verbais, expressos ou tácitos […], o problema é remetido para o ónus da prova do contrato individual ou singular.”
Quanto aos factos não provados 4, 5, 6 e 7 (o 2 não consta de qualquer daqueles documentos), a insistência da autora naquelas afirmações, junto com a referência aos artigos 374 e 376 do CC, traduz-se em dizer que o documento complementar faz prova plena delas e – completando este TRL a argumentação da autora – que, por isso, não poderia ser produzida prova contra elas por força do art. 393/2 do CC.
Mas, se é verdade que as afirmações em causa constam daquele documento e se trata de um facto relevante e por isso foi dado como provado no ponto 44, no entanto, tais afirmações corporizam cláusulas contratuais gerais confirmatórias que apenas têm o valor de início de prova, quando não forem de considerar, desde logo, nulas nas relações com os consumidores por força do art. 21/-e do RJCCG.
(sobre isto, entre outros, os acórdãos do TRL de 28/06/2012, proc. 2527/10.7TBPBL.L1-2, do TRL de 13/10/2016, proc. 28382/15.2YIPRT.L1-2, do TRL de 14/09/2017, proc. 9065/15.0T8LSB-2, do TRL de 09/07/2020, proc. 2268/19.0T8LSB.L1-2, relatados pelo relator deste, e a doutrina aí referida – entre outros, Araújo Barros, anotação 10 do art. 5 e anotação ao art. 21/-e do RJCCG e o ac. do STJ de 04/05/2017, proc. 1961/13.5TVLSB.L1.S1 (Lopes do Rego): VI. A inserção no documento de confirmação do contrato de permuta de taxa de juro, antes da respectiva assinatura, de uma cláusula de feição manifestamente pré determinada e padronizada, segundo a qual o aderente declara estar plenamente conhecedor do conteúdo e do risco da operação, confessando terem sido prestados pelo banco todas as informações e esclarecimentos solicitados para tomada consciente da decisão de contratar, nomeadamente o facto de o aderente, no caso de evolução desfavorável das condições de mercado, poder registar uma perda financeira líquida com a operação não pode ter o efeito de desvincular o Banco do ónus de demonstrar o cumprimento adequado do dever de informação, cominado imperativamente pela norma do n.º 3 do art. 5.º do DL 446/85 – valendo apenas (nos casos em que tal cláusula não é absolutamente proscrita, por se estar no domínio das relações com consumidores) como elemento sujeito a livre apreciação das instâncias” – e, agora, a tese de doutoramento de Irina de Fátima Henriques Lopes Pinto, Os deveres de comunicação e de informação no âmbito das cláusulas contratuais gerais, UAL, Julho de 2020 Lisboa [Ora, uma cláusula de confirmação, aposta num contrato pré-redigido, no qual o aderente não tem a possibilidade de influenciar o seu conteúdo, devido ao facto de não existirem negociações prévias, sendo que lhe resta a opção de, por um lado, aceitar o seu conteúdo ou, por outro, não contratar, é caracterizada como sendo uma CCG. Assim sendo, o seu utilizador terá o dever de provar o cumprimento do dever de comunicação de forma efectiva e adequada daquela cláusula (entre outras). E não poderá ser através de uma cláusula de confirmação que se dá como provado o cumprimento desse dever. Se assim fosse, bastaria, sem mais, todos os contratos conterem uma cláusula de confirmação para que o seu utilizador tivesse cumprido os deveres de comunicação e de informação que lhe são legalmente exigidos. Ora, esta situação seria bastante vantajosa para os interesses dos utilizadores das CCG, por um lado, e subverteria todo o espírito de protecção do aderente nesta tipologia de contratos, por outro. – páginas 145-151, especialmente 150-151; a autora vai mais longe que aqueles acórdãos e considera que as cláusulas de confirmação nem sequer valem como início de prova], e o artigo de Daniel Bessa de Melo, Das cláusulas confirmatórias nos contratos de adesão, perspectivas acerca da auto-responsabilidade do aderente no confronto dos deveres de informação do predisponente, Revista Julgar online, Dez2021, nº. 2, páginas 1 a 53, especialmente págs. 42 e segs., estudos estes que referem outra jurisprudência no mesmo sentido, podendo ver-se ainda, por mais recente e ainda no mesmo sentido, o ac. do TRL de 27/05/2021, proc. 12753/19.7YIPRT.L1-2).
Pois que, de outro modo seriam defraudadas as exigências de comunicação e de informação constantes do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais (DL 446/85, de 25/10), já que bastaria uma cláusula contratual geral confirmatória para incorporar no contrato e fazer valer todas as outras cláusulas. Ou seja, também em relação às cláusulas confirmatórias tem de valer a exigência de prova de comunicação e de informação do seu teor, a cargo do predisponente das mesmas, no caso, a autora (artigos 5/3 e 6 do RJCCG), sem o que elas se consideram excluídas do contrato (art. 8/-a-b do RJCCG).
Valendo pois como mero princípio de prova, tal implica que, depois, o tribunal tenha que se pronunciar sobre o que foi alegado (pelo predisponente) para que elas possam ter eficácia e, se não ficar convencido sobre esses factos, os tenha de dar como não provados, apesar dos artigos 374, 376, 358/2 e 393/2 do CC (neste sentido e concretizando as considerações feitas acima, veja-se o ac. do TRL de 23/11/2006, proc. 8950/2006-6, lembrado por Araújo Barros, na obra e local citados: II – Constando das condições gerais do contrato de adesão, cláusula referindo que os signatários se consideram “completamente informados do teor e consequências do presente contrato” tal não constitui uma declaração com força probatória plena, sendo susceptível de ser contrariada por prova testemunhal.), que foi o que o tribunal fez com os factos não provados 4, 5, 6 e 7.
Numa construção diferente, mas com o mesmo resultado prático, o ac. do TRC de 10/09/2013, proc. 968/09.1TBCBR-A.C1, considera que: “2. Em contrato de crédito ao consumo que é simultaneamente um contrato de adesão, a cláusula onde conste que a adquirente recebeu cópia do contrato, não faz prova plena da efectiva entrega do mesmo ao consumidor, ainda que não tenha sido arguida a falsidade quer do contrato quer da assinatura nele aposta e notarialmente reconhecida. 3. Efectivamente, nos casos sobreditos, tal cláusula previamente elaborada não pode ser tida como declaração da contraente adquirente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 376/1 do CC. 4. Na verdade, atenta a prévia elaboração do contrato pela financiadora, as cláusulas contratuais gerais ali apostas, só podem valer como “declarações atribuídas ao seu autor [exequente/predisponente – TRL]” relativamente a esta. 5. Como tal, é admissível a prova testemunhal sobre esta questão produzida e que levou a julgadora a considerar como não provada tal entrega.”
Pelo que é totalmente improcedente a impugnação da decisão da matéria de facto.
*
Do recurso sobre matéria de direito
A sentença julgou a acção improcedente com base na seguinte fundamentação, em síntese:
A factualidade invocada pela autora seria abstractamente constitutiva de um contrato de prestação de serviços, nos termos do qual e ao abrigo do disposto nos artigos 1154, 1156 e 1167/-b do CC incumbiria à ré o pagamento do preço face aos serviços que viessem a ser prestados pela autora.
Todavia, no caso presente suscita-se desde logo a eficácia do acordo. Como resulta de forma evidente da matéria de facto provada, a ré aceitou vincular-se o acordo desde que o seu financiamento fosse alvo de aprovação. Essa realidade foi transposta para o acordo, já que se prevê de forma expressa que o montante a pagar seria pago em 84 prestações de 130€. Tal operação ascende a um financiamento total de 10.920€.
[…]
Ora, apesar de não se encontrar inserida no acordo escrito, não é menos verdade que estamos perante uma condição que foi aceite por ambas as partes e tida como essencial para a formação do consenso.
Aliás, considerando o modelo contractual em análise, em termos práticos dificilmente tal cláusula poderia ter sido transposta para a minuta do acordo, uma vez que estamos perante um típico formulário de adesão, em que o consumidor se limita a aderir sem possibilidade de discussão das condições gerais que estão descritas no verso do documento. Com efeito, atendendo à matéria dada como assente, este acordo consubstancia um verdadeiro contrato de adesão, sujeito à regulamentação, além do mais, do DL 446/85, de 25/10. Trata-se de um clausulado tipo, cujas condições gerais vêm impressas (no verso do documento) sem possibilidade de alteração do conteúdo pelo aderente, e cujas condições particulares (impressas na frente do documento) apenas permitem a alteração de determinados campos: elementos de identificação; definição do montante e modo de pagamento.
[…]
Em todo o caso, a consagração de prestações cujo valor é composto por capital e juros remuneratórios faz presumir que a intenção das partes foi submeter a eficácia do acordo à concessão de financiamento bancário – artigo 236 do CC.
Em todo o caso, independentemente dos especiais deveres de esclarecimento e informação que impendem sobre os proponentes sempre que estejam em causa cláusulas contratuais gerais, impõe-se igualmente fazer referência ao princípio da boa-fé.
Nos termos do disposto nos artigos 762/2 e 227/1 do CC, tanto o credor como o devedor devem proceder de boa fé, ou seja, com lealdade e correcção, no exercício dos seus direitos e no cumprimento dos seus deveres. Impõe-se, assim, a cada uma das partes uma conduta honesta e conscienciosa, a fim de que não resultem afectados os legítimos interesses da outra.
[…]
No caso em apreço, entendemos que é possível extrair, mesmo sem grande esforço interpretativo, duas realidades: o negócio estava dependente da concessão de crédito; que na data da assinatura do contrato não havia qualquer juízo sobre a verificação efetiva dessa condição. Aliás, nem poderia existir dado que nenhuma entidade bancária ou financeira foi consultada previamente; apenas foi efetuada uma simulação destinada a aferir da viabilidade abstrata da pretensão.
Perante estes factos, é notório que ambas as partes assumiram que a produção dos efeitos do contrato estava dependente da verificação de um pressuposto, que caso não se verificasse tornaria ineficaz a convenção: ocorrendo, no futuro, um determinado facto (impossibilidade de financiamento), o contrato deixaria de produzir os seus efeitos.
Esta estipulação remete-nos para o instituto da condição (resolutiva) prevista no artigo 270 do CC. Neste caso, verificada a condição, o efeito resolutivo surge de forma automática e independente de qualquer vontade das partes.
Nesta matéria a posição da autora é equívoca e pouco transparente; move-se num jogo de sombras. Nos seus articulados, limita-se a assumir uma posição de mera validade formal, ou seja, de que o contrato foi assinado sem reserva, que o preço foi aceite, que foi assinada uma declaração complementar a assumir que todos os deveres foram cumpridos, ou que não houve resolução nos termos previstos no acordo.
Todavia, como se viu, a realidade é bem mais rica em termos factuais do que aquilo que a autora diz ou quer fazer crer.
Aquilo que nos parece censurável é que a autora tem (e tinha) todos os dados para perceber que o litígio não seria tão simples como pretendeu ilustrar. Com efeito, junta prova documental onde é inequívoco que havia divergências quanto a algumas das cláusulas; que, ao contrário do referido na resposta às excepções, a aprovação do crédito era uma matéria essencial para a ré. Ainda para mais quando foi a própria autora que assumiu a responsabilidade pela condução do processo de obtenção do crédito e quando sabe que a ré pagou 165€ para esse efeito (sugerindo até que a demandada não aceitasse qualquer contacto de financeiras).
Acresce que resulta das declarações do legal representante da autora que era evidente que a ré não tinha forma de se vincular ao acordo sem um financiamento com condições especiais, isto é, com prestação baixa. A autora parece querer ignorar todo este circunstancialismo, centrando-se apenas na exterioridade formal do Direito (mesmo neste campo, apresenta claras incongruências). É censurável que adopte esta posição dado que “o contrato, enquanto instrumento de cooperação entre pessoas, não é imune a valorações axiológicas, designadamente a ideia de que as partes contraentes são parceiros honrados e honestos, cujo comportamento contratual se quer sério e deferente” – Gil Valente Maia, Boa-fé e responsabilidade civil decorrente da violação de deveres acessórios de conduta: o critério do ‘perímetro contratual’ na delimitação do regime de responsabilidade aplicável, Revista Julgar Online, pág. 16, Janeiro 2020.
Em suma, entendemos que ao contrato foi aposta uma condição resolutiva (artigo 270 do CC). Assim, tendo sido impossível a obtenção de financiamento, facto que foi do conhecimento da autora, o contrato ficou resolvido ipso jure. Depois da extinção da convenção, não se vislumbra que tenha havido novo acordo de vontades.
Será, pois, desnecessário aferir de outros comportamentos imputáveis à autora, relacionados com a “anulação” do acordo. Em rigor, tendo sido considerado como assente esta realidade, sempre teríamos de considerar que teria havido revogação do contrato.
*
Sem prejuízo da solução que antecede, na sequência daquilo que fomos afirmando sobre a existência de um contrato de adesão celebrado com um consumidor, entendemos ser relevante, até para enquadramento dos factos em discussão, que ao caso dos autos sempre seria aplicável o disposto no artigo 11 do DL 57/2008, de 26/03 (práticas comerciais desleais).
Com efeito, a matéria de facto provada indicia a existência de uma prática comercial susceptível de distorcer o comportamento do consumidor ou a sua aptidão para tomar a decisão de contratar. O comportamento assumido pela autora, e o contexto em que o foi (depois do horário laboral; durante diversas horas, prolongando-se até cerca da meia-noite; pessoa que à época contava com 65 anos – segundo se encontra vertido no voucher), traduz uma insistência impertinente e inoportuna, que levou a uma tomada de decisão pouco esclarecida (assédio). Essa insistência foi-se prolongando, pelo menos até estarem decorridos os 14 dias da livre revogação do acordo.
Apesar de não ter sido pedida a invalidade do acordo (artigo 14 do mencionado diploma), este enquadramento é relevante para melhor perceber a fragilidade da posição da ré.
*
Em face da solução apresentada, como se disse, entende-se inútil apreciar as demais questões suscitadas na contestação e que legitimariam a falta de pagamento do valor peticionado em juízo.
*
Para pôr em causa a improcedência da acção, a autora diz o seguinte (nas conclusões XXXI a XXXVIII do recurso, igual ao texto do corpo das alegações que apenas inclui, a mais, a referência a um acórdão do STJ de que transcreve frases que não têm interesse para o caso):
O contrato celebrado entre autor e ré consubstancia um contrato de adesão regulado pelo DL 446/85. A ré assinou o contrato e a declaração complementar ao mesmo, declarando ter tomado conhecimento do conteúdo do contrato e que o mesmo lhe foi explicado e esclarecido as condições gerais constantes do mesmo, não impugnando ou reclamando das condições contratuais.
A ré na qualidade de sócia do IC há aproximadamente 14 anos, e com formação académica na área da engenharia possuía todos os elementos para em consciência saber que estava a aderir a um conjunto de cláusulas contratuais apresentando um conhecimento real e efectivo.
A ré aceitou as cláusulas contratuais gerais vertidas no contrato, assinando-o para o efeito, conforme estabelecido no artigo 4 do DL 446/85. O autor cumpriu com o dever de comunicação e de informação a que estava obrigado nos termos dos artigos 5 e 8 do DL 446/85
A ré assinou o contrato e a declaração complementar a este, de forma livre e consciente, não existindo os vícios descritos nos artigos 246, 247 e 251 do CC.
Pelo exposto, existe violação dos artigos 236, 406, 762/2 do CC e dos artigos 4, 5 e 8 do DL 446/85, que se invoca com as legais consequências.
A ré contra-alegou defendendo a improcedência do recurso, no essencial com base nos mesmos fundamentos da sentença recorrida.
*
Apreciando:
O recurso da autora, quanto a matéria de direito, não tem praticamente qualquer conexão com a fundamentação da sentença recorrida. Limita-se – excepto no 2º§ que se refere a factos não provados e é por isso irrelevante – a repetir que a ré assinou o contrato e a declaração complementar, com conhecimento das cláusulas, não as impugnando e sem vícios na formação ou na declaração da vontade, [pelo que] a sentença, [ao absolvê-la] teria violado uma série de normas.
Ora, isto não tem, repete-se, no essencial, nada a ver com a fundamentação de facto ou de direito da sentença recorrida, que reconhece a celebração do contrato, só que diz que ele tem outra configuração, isto é, é um contrato sujeito a uma condição resolutiva.
Na sentença, seguindo-se a alegação da autora no requerimento de injunção, fala-se num contrato de prestação de serviços e no preço de serviços prestados.
A questão parece ter pouco relevo e percebe-se, por isso, que se lhe tenha dedicado pouca atenção, mas, dado o que se dirá à frente, é necessário saber qual é o tipo de contrato em causa; ora, perante os factos provados, principalmente o que vem aflorado nos factos 1, 6 e 36, dir-se-á que se está antes perante um contrato de aquisição de cartões de desconto, sujeito ao regime dos direitos de habitação turística, previsto nos artigos 45 a 53-B, especialmente tendo em conta o art. 45/2-b, do DL 275/93, de 05/08, com as alterações subsequentes do DL 180/99, de 22/05, do DL 22/2002, de 31/01, do DL 76-A/2006, de 29/03, e do DL 37/2011, de 10/03, destinado a ser coligado com um contrato de crédito ao consumo, sujeito ao regime abrangido pelo art. 1 do DL 133/2009, de 02/06, tendo em conta as definições do art. 4 do mesmo DL.
Ambos os contratos estão sujeitos à forma escrita: art. 48/1 do DL 275/93 (com as alterações subsequentes, todas em vigor na data da celebração do contrato) e art. 12/1 do DL 133/2009.
Por outro lado, é um contrato a que foi aposta uma condição, como o revela a conjugação dos factos 10 a 19, 21 a 23, 28, 34 a 38. Mas trata-se de uma condição suspensiva e não resolutiva (art. 270 do CC), neste pequeno ponto estando-se pois em desacordo com a sentença recorrida (que seguiu a ré e que a ré segue nas contra-alegações do recurso).
Como é explicado por Ana Afonso, Comentário ao CC, Parte Geral, UCP/FD/UCE, 2014, páginas 662-663
“Conforme o acontecimento futuro e incerto desencadeia a produção ou a resolução dos efeitos do negócio jurídico, a condição diz-se suspensiva ou resolutiva. O critério distintivo destas duas modalidades condicionais reside, pois, no modo como a eficácia do negócio condicional é afectada pelo evento condicionante. […]
[…] Determinar quando estamos perante uma condição suspensiva ou resolutiva é um problema cuja solução reside na interpretação da vontade das partes, isto é, se as partes querem aguardar a verificação do evento de carácter futuro e incerto para que o negócio comece a produzir os seus efeitos, a condição é suspensiva; se as partes querem que o negócio produza logo os seus efeitos, subordinando-se, porém, à verificação de certo evento, sob pena de extinção, então a condição é resolutiva. […]”
Os efeitos principais do contrato celebrado eram a obrigação do pagamento do preço contra a entrega dos cartões que davam os descontos à autora. Ora, é claro que a ré só queria ficar obrigada a pagar o preço se lhe fosse concedido o financiamento de que a autora ainda ia tratar e, dada a forma como os factos se passaram, a autora sabia disto. Não há quaisquer factos que demonstrem que a autora e a ré quiseram que a ré logo ficasse com os cartões de desconto para os utilizar, caso em que decerto teriam previsto o que é que teria de ser feito para a restituição dos descontos efectuados (e teria de haver prova da sua entrega); tal como não há factos que demonstrem que a autora e a ré quiseram que a ré ficasse logo obrigada ao pagamento de cada uma das prestações do preço, pois que nem podiam ainda saber ao certo quanto é que seria o valor de cada uma delas (o financiamento ainda não tinha sido pedido pela autora), nem previram o que é que aconteceria aos valores entretanto pagos se o financiamento não fosse satisfeito.
Para uma situação oposta, em que a condição, aí sim, era uma condição resolutiva, veja-se o ac. do TRL de 25/03/2021, proc. 615/19.3T8LSB.L1 (deste mesmo colectivo): “I – A cláusula de um contrato-promessa em que se prevê que caso o financiamento bancário para aquisição do imóvel prometido vender não venha a ser aprovado com o montante mínimo de 240.000€ ou concedido pelo banco financiador até ao dia 02/08/2018, por qualquer motivo, caducará imediatamente o presente contrato, obrigando-se o promitente-vendedor a reembolsar em singelo ao promitente-comprador o valor do sinal de 20.000€, é uma condição resolutiva do contrato-promessa (art. 270 do CC) […]”
Isto – a conclusão de que a condição era suspensiva e não resolutiva – não alteraria o resultado da sentença: já se sabe que o financiamento não foi aprovado (facto 35). Pelo que, em vez de se dizer que, devido à verificação da condição resolutiva (não aprovação do financiamento), os efeitos do contrato cessaram e a autora deixou de ter direito ao preço, dir-se-ia que, devido à não verificação da condição suspensiva (a aprovação do financiamento) os efeitos do contrato nunca se vão produzir (ineficácia definitiva) e, por isso, a autora nunca terá o direito ao preço pedido nesta acção.
E em qualquer destes casos ter-se-ia de discutir agora qual o valor da condição, sabendo-se que o contrato foi reduzido a escrito e ela não consta desse escrito. Isto para se saber se o caso podia ser decidido com base na existência de um contrato condicional.
Como já resulta do referido acima, a conclusão da inexistência do direito da autora seria atingida por qualquer uma das duas soluções que são defendidas quanto à aplicação dos arts. 221/1 do CC aos contratos de adesão): numa delas, dir-se-ia que como a condição devia também ter sido reduzida à forma legal escrita, a cláusula seria nula (art. 221/1 do CC). Mas isto, por força do art. 7 do RJCCG – que imporia a prevalência da cláusula da condição (apesar de nula) sobre a inexistência da condição no contrato de adesão escrito -, teria o efeito de impedir que o direito da autora se pudesse vencer, pelo que a autora nunca poderia vir a adquirir o direito. Como diz Ana Prata, concretizando a posição de Almeida Costa e Menezes Cordeiro, “as cláusulas especificamente acordadas que não respeitem a tal [a legal] forma, ainda que, nos termos do art. 221 do CC, sejam nulas, não deixam de ter o efeito de afastar as que com elas forem incompatíveis.” Já na tese de Cassiano dos Santos (e de Pedrosa Machado), que parece preferível, isto é, da não aplicação dos artigos 221 e 222 do CC aos contratos não negociados, o contrato valeria como contrato condicionado apesar de a cláusula não ter sido reduzida a escrito.
*
Apesar disso, não é nenhuma destas a solução pois que entretanto, antes da não verificação da condição suspensiva, a autora e a ré revogaram (por vontade de ambas) o contrato, como decorre dos factos 32 e 33, acordo válido por força do art. 406/1 do CC.
Mas tal levanta a questão da validade de tal acordo de revogação do contrato. Só se ele for válido é que pode ser tomado em consideração.
Seguindo-se a posição já referida de Cassiano dos Santos e de Pedrosa Machado, a conclusão seria a da validade do contrato extintivo, visto que se trata de um contrato não negociado, a que as normas do art. 221/2 do CC não se aplicariam.
Mas, a não se seguir esta posição, a questão teria de ser discutida nos termos gerais, o que se passa a fazer.
Pedro Romano Martinez, Da cessação do contrato, 2.ª edição, Almedina, 2006, páginas 111 e 112 (e no mesmo sentido, em termos gerais para a cessação do contrato, nas págs. 97-98), diz que: “Relativamente ao acordo de revogação vale a regra geral de liberdade de forma, constante do art. 219 do CC. […] O negócio jurídico de revogação não está, sequer, sujeito à forma do contrato a que se pretende pôr termo […].” Cita neste sentido o ac. do STJ de 29/04/1992, publicado na RLJ 125, pág. 86, com anotação de Henrique Mesquita nas páginas 92 e segs, e o ac. do STJ de 25/11/1999, publicado na CJSTJ99, tomo III, pág. 113. Como fundamentação, o referido ac. do STJ de 29/04/1992 diz que, como é óbvio, os artigos 221 e 222 do CC não são aplicáveis à revogação dos contratos (pág. 91 da citada RLJ 125). É também esta a posição de Manuel de Andrade: “A forma prescrita para o negócio jurídico não compreende só as suas cláusulas essenciais, mas também as estipulações acessórias – típicas ou atípicas. […] Já não se estende, porém, aos negócios – chamados abolitivos – tendentes a anular, revogar ou destruir um precedente negócio solene ou a relação jurídica dele derivada” – cfr. Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, 1960, págs. 143 (4.ª reimpressão, Almedina 1974).
Carvalho Fernandes, TGDC, vol. II, 2.ª edição, Lex 1996, pág. 202 diz que “o preceito [art. 221/2 do CC] não é de aplicar aos pactos abolitivos ou extintivos,” remetendo para Castro Mendes, TG, vol. II, pág. 56, Oliveira Ascensão, TG, vol. III, pág. 201 [da edição de 1983-84], e Pires de Lima e Antunes Varela, CC, vol. I, ed., pág. 212. Para esta tese, tendo em conta a remissão que Carvalho Fernandes faz para a pág. 201 da obra de Oliveira Ascensão, “Em princípio, os negócios solenes devem ser modificados ou extintos por forma idêntica ou mais solene que a adoptada para a sua constituição” (mas Oliveira Ascensão, na pág. 205 da mesma obra e edição, já chegava à mesma conclusão que se citará mais à frente). Carvalho Fernandes faz referência à posição contrária de Carlos Mota Pinto, que se citará mais à frente.
A anotação de Henrique Mesquita (págs. 92 a 96, 100 a 103 e 158 a 160 da citada RLJ ano 125), que emitiu um parecer que esteve na base daquele acórdão do STJ, não diz que os artigos 221 e 222 não se apliquem aos pactos extintivos ou abolitivos, antes pelo contrário, seguindo a posição de Carlos Mota Pinto e Rui de Alarcão.
Castro Mendes, DC/TG, Vol. III, AAFDL, 1979/80, páginas 108-109, diz expressamente que a solução se deve extrair dos artigos 221/2 e 222/2 do CC.
Oliveira Ascensão, DC/TG, vol. II, Coimbra Editora, 1999, pág. 60, n.º 35, no âmbito do tratamento das normas dos arts. 221 e 222 do CC e depois de estudo da questão, diz que: “Daqui concluímos que a exigência da forma só se estende ao acto extintivo se a razão dessa exigência abranger também este”, o que se traduz na aplicação da regra do art. 221/2 do CC.
Assim, vê-se que quer a tese de Romano Martinez, apoiada no acórdão do STJ de 29/04/1992, e de Manuel de Andrade (liberdade total de forma), quer a posição oposta de Carvalho Fernandes (imposição da mesma forma que para o contrato de que resulta a obrigação) não têm a maior parte dos apoios invocados.
Existe uma terceira posição contrária – maioritária ou quase unânime hoje em dia – que é a de considerar aplicável o art. 221/2 do CC (e 222/2, mas ao caso este não interessa como já se viu) aos pactos extintivos ou abolitivos nos termos expostos por Carlos Mota Pinto, que vem, no essencial, de Rui de Alarcão e de Vaz Serra, e que tem o apoio de Henrique Mesquita (que cita os dois primeiros autores) e de Manuel Pita (e também, como se viu, de Castro Mendes e de Oliveira Ascensão; e também de Anselmo de Castro, A acção executiva, Coimbra Editora, 1970, nota 1 da pág. 289) e, acrescente-se, do outro acórdão do STJ citado por Romano Martinez, ou seja, o de 25/11/1999, publicado na CJSTJ99, tomo III, páginas 113 a 116, espec. 114-115 (com sumários, diferentes, no sítio da DGSI sob proc. 99B943 e no sítio do STJ sob o n.º 943/99).
Esta posição, nos termos da 4.ª edição da TGDC, Coimbra Editora, 2005, páginas 431-432, de Carlos Mota Pinto, é a seguinte (já incluindo, em nota, o referido acórdão do STJ de 25/11/1999, e a posição de Vaz Serra):
“Quanto aos pactos modificativos (adicionais ou contrários a cláusulas acessórias ou essenciais constantes do documento) e aos pactos extintivos ou abolitivos [nota: que são necessariamente estipulações posteriores. Acerca dos contratos extintivos ou abolitivos (contrarius consensus, cf. infra (…)], o n.º 2 do artigo 221.º dispensa-os da forma legal prescrita para a declaração, se as razões da exigência especial da lei não lhes forem aplicáveis. A aplicação deste critério será segura nalguns casos. VAZ SERRA considerava que os pactos pelos quais se altera a área do prédio vendido, ou aumenta ou se agrava as obrigações (p. ex., fiança), cuja constituição a lei sujeita a forma, devem considerar-se abrangidos pela exigência de forma legal; mas não já quando o pacto cancele ou reduza as obrigações de alguma ou de ambas as partes (sujeição a um prazo da obrigação de pagar o preço, remissão do preço, limitação da obrigação do fiador, etc.) [nota: Entendendo que as razões que impõem a exigência legal de forma escrita para contrato-promessa não são aplicáveis à sua revogação por acordo, cfr. o acórdão do STJ de 25/11/1999, in CJ-STJ, 1999, III, pág. 113]. Noutras hipóteses, porém, poderá haver lugar a dúvidas.”
O ac. do STJ de 25/11/1999 diz:
b) Resta saber a forma da revogação ou distrate de um contrato. Tratando-se, como se trata, de um contrato que a lei sujeita a forma escrita – art. 410/2 do CC – deverá entender-se que a sua revogação pelas partes tenha de fazer-se pela mesma forma?
E depois de citar a passagem acima transcrita de Manuel de Andrade continua:
“Rui Alarcão, no anteprojecto que elaborou para o CC sobre a forma dos negócios jurídicos, escreve:
‘Não deve considerar-se sujeito à forma requerida o pacto que o extinga, desde que as circunstâncias objectivas do caso o tornem verosímil, salvo se a razão da exigência da forma exigir a subordinação de tal pacto a essa forma’ – Separata do BMJ n.º 86, págs. 23
O CC consagrou a doutrina de Manuel de Andrade temperada com a proposta por Rui Alarcão:
No que concerne às estipulações posteriores ao documento – em que se incluem os factos extintivos ou abolitivos – ctr. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 1980, pág. 478 – estabelece o nº 2 do art. 221 que só “estão sujeitos à forma legal prescrita para a declaração se as razões da exigência especial da lei lhes foram aplicáveis.
c) Como o distrate ou contrarius consensus de um contrato-promessa de cessão de quota celebrado, segundo a lei – art. 410/2 – por escrito, é uma estipulação posterior a esse documento, só estará sujeito a documento assinado pelas partes se as razões da exigência legal da forma lhe forem aplicáveis.
As razões legais da redução a escrito do contrato-promessa não são aplicáveis ao distrate desse contrato.
Neste sentido, Vaz Serra, escreve:
“Tratando-se de estipulações acessórias que extinguem ou limitem as obrigações derivadas do contrato, tais estipulações não são, em regra, abrangidas pela exigência legal de forma para o contrato, visto que, destinando-se a evitar que as partes contraiam levianamente obrigações, esta razão não é aplicável [às estipulações acessórias] que excluam ou limitem essas obrigações – cfr. RLJ ano 110, págs. 8.
3 – As considerações expostas sobre a revogação, o distrate ou contrarius consensus e da não sujeição à forma do contrato celebrado, se este é um contrato-promessa, em conjugação com a matéria fáctica fixada […] permite-nos precisar que autor e ré mulher acordaram pôr fim ao contrato-promessa de cessão de quota […]”
Henrique Mesquita escreve (na citada anotação ao ac. do STJ de 1992), entre o muito mais, que:
“No concernente às estipulações posteriores ao documento – em que se incluem os pactos extintivos ou abolitivos [nota: conf. por exemplo, Mota Pinto] – estabelece o n.º 2 do mesmo preceito que “só estão sujeitas à forma legal prescrita para a declaração se as razões da exigência especial da lei lhes forem aplicáveis”.
Ora, nenhuma razão se vislumbra para sujeitar a forma escrita a revogação, ou distrate de um contrato de arrendamento, quando o senhorio promete vender o prédio ao arrendatário e este fica imediatamente dispensado do pagamento da renda, passando a usar o imóvel, não na posição de inquilino, mas sim na de promitente-comprador. A situação jurídico-material e o comportamento das partes revelam inequivocamente que estas quiseram pôr termo ao contrato locativo, pelo que seria inútil, em casos com semelhante configuração, sujeitar a forma escrita o acordo revogatório”.
Manuel Pita, no CC anotado, vol. I, da Almedina/Cedis, pág. 306, anotação ao art. 221 do CC, escreve:
“[…] Neste ponto também, em nosso entender, a melhor doutrina é a de Mota Pinto. Esta orientação de diminuir a solenidade do acto extintivo tem diversas aplicações ao longo do CC de onde pode retirar-se a conclusão de que “a exigência de forma só se estende ao acto extintivo se a razão dessa exigência abranger também este” (Oliveira Ascensão, cit., p. 60).”
O disposto no art. 80/2-b do Código do Notariado (já desde a versão inicial, a do DL 207/95, de 14/08), não altera as conclusões a tirar do que antecede, antes, pelo contrário, as consagra, dada a ressalva que faz na sua parte final: “Salvo disposição legal em contrário, devem especialmente celebrar-se por escritura pública: […] os actos que importem revogação, rectificação ou alteração de negócios que, por força da lei ou por vontade das partes, tenham de ser celebrados por escritura pública, sem prejuízo do disposto nos arts. 221 e 222 do CC.”
O art. 1082 do CC, por outro lado, e também tendo em conta as posições transcritas, principalmente de Vaz Serra e de Rui de Alarcão, pode esclarecer em que tipo de casos é que se deve considerar que as razões da exigência legal da forma são aplicáveis aos contratos extintivos: quando o acordo revogatório “contenha cláusulas compensatórias ou outras cláusulas acessórias.”
Assim, conclui-se que o art. 221/2 do CC é aplicável aos contratos extintivos e que, por isso, eles (só) devem ser reduzidos à mesma forma legal exigida para o contrato que constitui a obrigação “se as razões da exigência especial da lei lhes forem aplicáveis” o que, tendo em conta a forma como a jurisprudência, com o apoio da doutrina, o tem aplicado, normalmente não acontece quando o contrato extintivo se limita a extinguir ou reduzir as obrigações dos contraentes.
Partindo-se deste entendimento das coisas e sem deixar de notar, com Carlos Mota Pinto, que em muitas “hipóteses […] poderá haver lugar a dúvidas” – veja-se, por exemplo, Pinto Furtado, no Curso de direito dos arrendamentos vinculísticos, 2.ª edição, Almedina, 1988, página 463, em que, antes do aparecimento da solução expressa do art. 62 do RAU, equivalente ao art. 1082 do CC, dizia, em aplicação do art. 221/2 do CC, que “as exigências formais para o contrato de arrendamento terão tido em vista proteger o arrendatário contra eventuais manobras do senhorio de fuga aos vínculos do contrato. Ocorreriam os mesmos riscos, parece, se se admitisse a revogação informal do contrato sem obediência ao regime legal estabelecido para a sua constituição” – no caso dos autos não há dúvida nenhuma que o entendimento é aplicável, visto que (i) o contrato de aquisição dos autos nem chegou a produzir os seus efeitos, (ii) não há qualquer prova de, sequer, a autora ter iniciado as diligências para a obtenção do financiamento do preço a pagar pela ré, e (iii) o comportamento das partes (quer anterior – factos 32 e 33 – quer posterior – factos 34, 35, 36 e 42) foi inequívoco de um acordo tácito de revogação (art. 217/1 do CC), tendo a autora, por intermédio do seu legal representante, “anulado” o contrato, com dois riscos vermelhos no mesmo.
Assim, pode-se concluir que o contrato foi revogado (art. 406/1 do CC) – por um acordo verbal que pode ser considerado válido (art. 221/2 do CC) e que foi provado (art. 395 do CC – tendo em conta circunstâncias objectivas que o tornam verosímil, corroborado por declarações do legal representante da própria autora) –; e que a autora não tem direito ao preço.
Pelo que, embora com fundamentação diferente – a autora não tem direito ao preço porque o contrato foi revogado antes de se saber que a condição, suspensiva em vez de resolutiva, não se verificaria – deve ser confirmada a absolvição da ré.
*
Quanto à condenação da autora como litigante de má fé
A fundamentação da sentença, nesta parte, foi a seguinte:
Nos termos do artigo 542/2 do CPC litiga de má-fé aquele que “com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.
A litigância de má-fé traduz-se, pois, na violação do dever de probidade que o artigo 7 e 8 do CPC impõe às partes: dever de não formular pedidos injustos, não articular factos contrários à verdade e não requerer diligências meramente dilatórias (artigo 542 CPC).
Pretende-se, assim, sancionar uma lide temerária ou dolosa, por contrária ao princípio da boa-fé previsto no artigo 8 do CPC.
Verificando-se os pressupostos de aplicação deste instituto a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
No caso em análise, constatamos que a autora apresenta uma pretensão em juízo em que, aparentemente não existe verdadeiro litígio: há a celebração de um contrato de prestação de serviços, não houve reclamações ou intenção de resolver o contrato e o preço não foi pago.
Mas verificamos que a autora bem sabia que a relação contratual não era tão enxuta como quis fazer crer. Omitiu contornos essenciais da negociação, ou que uma condição essencial para a eficácia do negócio não se concretizou. Não desconhecia esses factos; aliás, bem sabia que a ré sempre contestou a própria existência e/ou validade do negócio. E mais conhecia que fez várias propostas para salvar a transacção. Optou, ainda assim, por não fazer referência a todos estes factos que eram essenciais para a definição do litígio.
A própria documentação apresentada pela autora é suficientemente eloquente sobre os verdadeiros contornos do litígio. Ainda assim, a autora decide optar por uma lide assente em critérios puramente formais e ilusórios.
O comportamento da autora durante e após a negociação, e que tentou dissimular durante a lide, mormente com a mise-en-scène dos contratos anulados, com a prestidigitação do original do contrato, com o jogo de sombras relativo à falta de aprovação do crédito e a aprovação, ainda assim, do contrato pelos serviços (da autora), é revelador de um comportamento reprovável que visava confundir e manter preso o cliente e, por conseguinte, contrário ao princípio da boa fé.
O conteúdo da indemnização vem definido no artigo 543 do CPC e corresponderá ao reembolso das despesas a que a má-fé do litigante tenha obrigado a parte contrária, incluindo os honorários dos mandatários ou técnicos (despesas directamente relacionadas com a conduta maliciosa); e, eventualmente (nos casos mais graves), o reembolso dessas despesas e na satisfação dos restantes prejuízos sofridos pela parte contrária como consequência directa ou indirecta da má-fé.
De recordar ainda que nos termos do disposto no artigo 543/4 do CPC, os honorários poderão ser pagos directamente ao mandatário.
Assim sendo, e considerando os contornos dos autos, entende-se ser de condenar a autora como litigante de má-fé (artigo 543 do CPC), nos seguintes termos: multa processual no valor de 5 UC (artigo 542/1 do CPC e artigo 27/3 do Regulamento das Custas Processuais); Atendendo à gravidade do comportamento assumido pela autora, considerando a repercussão de tal ato na esfera da ré, considero justo e equitativo fixar uma indemnização nos termos e para efeitos do art. 543/1-a do CPC, no montante de 350€.
Contra isto, a autora diz que:
XLI – A autora interpôs o presente processo com base no incumprimento contratual da ré reportado ao contrato.
XLII – A ré assinou quer o contrato quer a declaração complementar ao mesmo […]
XLIII – A ré não procedeu à resolução do contrato em referência e não reclamou da declaração complementar, não impugnando qualquer dos documentos.
XLIV – A autora tem direito a actuar em juízo, obtendo em prazo razoável uma decisão de mérito que aprecie a sua pretensão e a defesa dos seu direitos e interesses, o que não poderá ser confundido com litigância de má fé.
XLV – A autora estava legitimamente convicta dos fundamentos legais que entendeu serem aplicáveis ao caso.
XLVI – Não se encontram reunidos os pressupostos legais para a condenação do recorrido [sic] como litigante de má fé, nomeadamente actuação consciente com dolo e negligência grave, dedução de pretensão ou oposição manifestamente infundada contrária à verdade material ou obstrutiva da justiça.
XLVII – Termos em que deverá ser julgada improcedente a condenação da autora como litigante de má-fé.
As conclusões do recurso são idênticas ao corpo das alegações, excepto na parte em que este faz ainda referência a um acórdão do TRC de 08/09/2015, proc. 10562/12.4TCLRS.C1, que diz: “A litigância de má fé deve deixar incólume o direito das partes de discutirem e interpretarem livremente os factos, pelo que não é suficiente, para que a parte seja irremediavelmente considerada litigante de má fé, uma qualquer divergência ou desarmonia entre os factos, tal como a parte os descreve e como, ulteriormente, vêm a ser julgados provados e qualificados.”
Apreciação:
A sentença não põe em causa que a autora tem direito a actuar em juízo, nem confunde isso com litigância de má fé. Por outro lado, o caso é completamente diferente do caso do ac. do TRC, pois que, não está em causa “uma qualquer divergência ou desarmonia entre os factos, tal como a parte os descreve e como, ulteriormente, vêm a ser julgados provados e qualificados.”
Por outro lado, a autora não refere os factos que lhe permitem concluir que “estava”, ainda para mais ‘legitimamente’, “convicta dos fundamentos legais que entendeu serem aplicáveis ao caso”. Antes pelo contrário: a autora sabia como é que o contrato tinha sido alcançado – o que está analisado na parte da sentença referente às práticas comerciais desleais -; sabia, pelo menos, que o contrato estava dependente da obtenção de financiamento pela ré para pagar o preço e que o financiamento não foi obtido (para obtenção do qual recebeu o pagamento de 165€), pelo que, naturalmente a ré não poderia pagar o preço (factos 15 a 21); sabia que, por isso, tinha “anulado” o contrato (factos 32 e 33); sabia que o tinha feito enganando a ré, pois que fingiu ter escrito a palavra anulado no documento que foi apresentado como sendo o original, mas era uma cópia e deixou o original intacto para poder fazer uso dele em sentido contrário, como o veio com esta acção (factos 33, 40 e 41). Está-se pois perante um comportamento da autora que é de manifesta litigância de má fé, dolosa, isto é, a autora sabia que não tinha o direito e apesar disso veio dizer ao tribunal que o tinha e para isso apresentou um documento que sabia dizer respeito a um contrato que tinha anulado e que estaria riscado se a autora não tivesse actuado com fingimento.
Pelo que improcede a argumentação da autora contra a decisão de a condenar como litigante de má fé que está devidamente fundamentada.
*
Quanto aos montantes aplicados, a autora diz que:
XLVIII e LIV – Por estrito dever de patrocínio, a autora vem impugnar os valores a que foi condenado de 5 UC referente a multa processual e de 350€ a título de indemnização a favor da ré, por inadequados, desajustados, excessivos e injustos.
XLIX – O acórdão do STJ de 04/04/2002 [proc. 02B440 – identificação feita por este TRL] estabeleceu “A multa deve ser fixada pelo juiz entre 2 e 100 UC, com base na maior ou menor intensidade da culpa revelada pelo agente e na sua condição económica, devendo também o juiz proceder a análise ou projecção das consequências danosas da actuação do litigante.”
L – A decisão recorrida na fixação da multa processual não procedeu à análise e especificação de todos os elementos legais vertidos naquele acórdão.
LI – A ré não indicou as despesas e os prejuízos sofridos e seus montantes, não fazendo prova dos mesmos.
LII – Pelo que na ausência total de elementos fornecidos pela ré, tendente a permitir a fixação de uma indemnização pelo valor das despesas efectivas e reais, ou prejuízos sofridos em decorrência directa ou indirecta dessa litigância, não deveria ser fixada qualquer indemnização a esse título.
LIII – O tribunal a quo não decidiu de acordo com o critério legal da fixação da indemnização, nem seguiu o prudente arbítrio do julgador, vinculado que está por uma bitola de razoabilidade e proporcionalidade, em síntese, de equidade, conforme estabelece o artigo 543/3 do CPC.
LV – A sentença recorrida fez errada apreciação da prova e violou o disposto nos artigos 342 e 344 do CC, 542 e 543 do CPC, pelo que deverá ser revogada com as legais consequências.
Apreciando:
A multa deve ser fixada entre 2 e 100 UC (art. 27/3 do RCP). O montante da multa ou penalidade é sempre fixado pelo juiz, tendo em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correcta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste (art. 27/4 do RCP).
Naturalmente, o juiz terá principalmente de ter em conta, já que se trata de uma condenação por litigância de má fé, e como diz os acórdãos do STJ de 04/04/2002 e do TRC de 08/09/2015, invocados pela autora, também a maior ou menor intensidade da culpa revelada pelo agente.
Ora, no caso, já se viu acima que a litigância de má fé assumiu a sua forma mais grave, ou seja, a dolosa, sendo o dolo directo e intenso, pelo que a fixação da multa em 5 UC, muito perto do limiar mínimo, fica desde logo justificada. Outros factores poderiam ter servido para aumentar a multa, não para a baixar.
Quanto à indemnização:
Ela foi fixada em 350€, valor que mal cobre as despesas e perdas patrimoniais presumíveis – segundo as regras da experiência comum das coisas – que qualquer parte num processo – para mais uma pessoa que trabalha por conta de outrem – terá forçosamente com a necessidade de ter de se defender em tribunal, constituindo um advogado para o efeito e tendo de comparecer quer no escritório do advogado quer no tribunal, por várias vezes.
O caso não tem pois qualquer similitude, a nível da questão da indemnização, com o acórdão do STJ invocado pela autora, já que nesta parte a situação em causa no acórdão do STJ era um recurso interposto pelo litigante de má fé que não podia retardar – e não retardou – o trânsito em julgado do acórdão da Relação, sendo pois forçoso reconhecer – diz o ac. do STJ – que a interposição e alegação do recurso em nada prejudicaram a tramitação dos autos, assim como é incontornável concluir que tais actos não podem ter causado quaisquer danos ao autor. Mas se este acórdão não ajuda a autora quanto à questão da indemnização, ajuda a sentença recorrida quanto à multa, pois que, para uma situação muito menos grave, como resulta do que antecede, confirmou a condenação do litigante de má fé em 250€ (± 50.000$), isto em 2001 (data do ac. do TRL – isto é, há mais de 20 anos).
Pelo que não se justifica a crítica, feita pela autora, de falta de factos para sustentar a fixação da indemnização ou da falta de razoabilidade e de proporcionalidade desta.
Assim, quer quanto à multa quer quanto à indemnização, deve-se confirmar a sentença recorrida que fixou bem e com fundamentação completa a multa e indemnização.
*
Pelo exposto, embora com fundamentação diferente quanto à absolvição da ré, confirma-se a sentença recorrida, julgando-se o recurso improcedente.
Custas do recurso, na vertente de custas de parte (não há outras), pela autora (por ter perdido o recurso).
Lisboa, 12/05/2022
Pedro Martins
1.º Ajdunto
2.º Adjunto