Incidente qualificação insolvência (CIRE) – 12018/16.7T8SNT-F – Juízo de Comércio de Sintra – Juiz 2

             Sumário:

             I – Por força do art. 639/1 do CPC, as conclusões de um recurso – que no caso são iguais ao corpo das alegações -, não se podem limitar a inverter as afirmações feitas nas decisões recorridas ou a atacar as decisões recorridas dizendo que elas estão erradas ou violaram dadas normas legais. Têm de indicar, de forma sintética, os fundamentos (um raciocínio lógico-jurídico a contrariar as razões adoptadas da decisão recorrida) por que se pede a alteração ou anulação da decisão.

           II – Para que se possa deduzir uma questão de inconstitucionalidade, não basta dizer, num recurso, que se violaram normas da CRP, tem que se ter suscitado a questão da inconstitucionalidade no decurso do processo e depois dizer em que sentido é que se interpretaram e aplicaram certas normas, cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada, e porque é que esse sentido é inconstitucional.

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo  identificados:

              O presente incidente mereceu o impulso processual do credor C-CRL, pedindo a qualificação da insolvência de A e de M como culposa, fazendo juntar aos autos as certidões que constam dos R/ 16/08/2017, 28/09/2017 e junto neste apenso em 06/10/2021 conforme despacho (cota da mesma data).

              Alegou para tanto que a situação de insolvência dos requeridos foi arrastada pela insolvência da S-Lda, de que ambos eram sócios gerentes, a qual ocorreu em 2012; os requeridos deixaram de cumprir as suas obrigações para com a C-CRL em 2010; desde 2010 os requeridos estavam cientes da situação de insolvência da referida sociedade e, por arrastamento, da deles próprios; cientes da sua situação, ao invés de se apresentarem à insolvência, gizaram um plano que passou por alienar património e contrair e privilegiar, pela constituição de garantias, empréstimos inexistentes, simulados.

              O Administrador de Insolvência emitiu parecer no sentido da qualificação da insolvência como culposa, com base na existência de uma decisão de anulação de negócio cuja decisão transitou em julgado, nomeadamente, um empréstimo simulado que esteve na base da hipoteca de 45 imóveis dos insolventes.

              O Ministério Público veio aderir às posições anteriores, anotando diversos factos indiciários, concluindo no sentido de a insolvência dever ser qualificada como culposa nos termos dos artigos 185 e 186/1-2-a-b-4 do CIRE.

              Aberto o incidente de qualificação, os requeridos foram citados e não apresentaram oposição.

              Depois de realizada a audiência final, foi depois proferida sentença, nos termos do disposto nos artigos 189/1-2-4 do CIRE, qualificando como culposa a insolvência dos insolventes, declarando-os afectados e, em consequência: a) declarando ambos inibidos, pelo período de 5 anos, para administrar patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa; b) condenando ambos em indemnização a favor dos credores no montante dos créditos reclamados e não satisfeitos na presente insolvência; c) e ainda nas custas pela qualificação da insolvência.

              Os requeridos vieram recorrer desta sentença – para que seja revogada e substituída por outra que não qualifique a insolvência como culposa -, terminando as suas alegações com as conclusões que serão adiante transcritas e que são iguais ao corpo das alegações à excepção de dois acórdãos que serão referidos e da parte concretizada em A/B.

              O MP contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso.

                                                                 *

              Questões que importa decidir: dada o teor do corpo das alegações e das conclusões do recurso, o que há que decidir são apenas as questões que as conclusões levantam.

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              Estão dados como provados os seguintes factos que interessam à decisão desta questão:

         Omite-se por falta de interesse para publicação.

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                                 Da impugnação da decisão da matéria de facto

              Conclusões A/B:

            As declarações do insolvente – que foi cristalino quando explicou ao tribunal (31.18) que começou a precisar de tomar banhos de mar e por essa razão, começou a frequentar a casa da praia em – impunham que o facto 39 fosse dado como não provado.

              Apreciação

              Quanto ao facto 38, como lembra o MP, e não 39, o tribunal recorrido explicou que “teve suporte probatório nas declarações da própria insolvente que declarou que sempre residiu na casa de […]. Este depoimento, nesta parte mostrou-se espontâneo.”

              Apesar disto, e sem tentar rebater a fundamentação do tribunal recorrido, os insolventes dizem que as declarações do insolvente impunham que o facto fosse dado como não provado.

              Mas não é assim: as declarações do insolvente – que, aliás, na parte transcrita, são praticamente inócuas para a questão – não estão corroboradas e são contrárias às da insolvente, pelo que não há que lhe dar valor para levar a alterar a decisão deste ponto.

                                                                 *

       Quanto às outras conclusões – lembrando-se que são iguais ao corpo das alegações, com excepção dos 2 acórdãos já referidos:

             Quanto à conclusão C:

            Não existem indícios nos autos de que os insolventes tenham celebrado negócios simulados.

            Apreciação:

           Trata-se de uma simples negação, sem qualquer tentativa de fundamentação ou de argumentação contra a fundamentação da sentença recorrida.

         O tribunal recorrido, já depois de, no relatório do acórdão, ter transcrito uma extensa lista de indícios apontados pelo credor C-CRL, pelo AI e pelo MP, que ocupam mais de 2 páginas e meia, explica depois, em 13 páginas, todos os factos que lhe permitem ter por preenchidas as previsões das alíneas (a) e (b) do art. 186/2 do CIRE, com base nos factos provados e em diversos indícios de negócios simulados que enumera.

            Dizer simplesmente que não existem indícios, depois disto tudo, trata-se de uma simples negação, ou inversão de sentido da fundamentação da decisão recorrida, com o sentido de que a sentença recorrida decidiu mal, sem dizer porquê, o que não é um fundamento válido de recurso.

              O art. 639/1 do CPC, impõe conclusões com o sentido de que são a indicação, de forma sintética, dos fundamentos por que se pede a alteração ou anulação da decisão.

             João Aveiro Pereira (O ónus de concluir nas alegações de recurso em processo civil, publicado sob www.trl.mj.pt/PDF/Joao%20Aveiro.pdf e na revista O Direito, 141, 2009, páginas 309 a 337), lembra o acórdão do STJ de 19/02/2008, proc. 08A194, que diz que:

         As conclusões não podem limitar-se a uma singela “afirmação de procedência do pedido da recorrente, antes contendo todo um raciocínio lógico-jurídico a contrariar as razões adoptadas no aresto posto em crise […]”

              Alberto dos Reis (CPC anotado, 5º vol. reimpressão, Coimbra Editora, 1981, pág. 360) lembra o caso do ac. do STJ de 10/12/1943 que decidiu:

         “Não satisfaz ao disposto no art. 690 [agora 639-A] a alegação do recorrente que, a título de conclusão, se limita a solicitar a absolvição do pedido e a revogação da sentença apelada, pois o artigo exige que nas conclusões se indiquem resumidamente os fundamentos por que se pede a alteração ou anulação da sentença ou despacho.”

               E comenta:

         “A doutrina do acórdão é perfeitamente exacta.”

       Ora, no caso não se tem mais do que uma simples negação ou inversão de sentido da fundamentação da decisão recorrida: a sentença explica extensamente que existem indícios de negócios simulados que em conjunto com os factos provados, permitem o preenchimento das previsões das alíneas (a) e (b) do n.º 2 do art. 186 do CIRE, os insolventes limitam-se a dizer que não existem indícios

              Assim, por falta de conclusão em sentido próprio – falta que não pode ser suprida porque das alegações (do corpo das alegações) também não constam fundamentos de discordância contra o decidido (pelo que qualquer convite não levaria ao aperfeiçoamento do recurso, mas à introdução, fora do prazo, de fundamentos que não constavam do recurso – como se diz no ac. do STJ de 09/12/1999, proc. 99A771; A coberto do aperfeiçoamento não é lícito ao recorrente apresentar novas alegações ou o aditamento de novas razões de fundo”) não há qualquer questão a conhecer quanto a esta conclusão.

              Dito tudo isto de outro modo: neste recurso os insolventes limitam–se a dizer que a decisão está errada sem dizer porquê, como se entendessem que bastava requerer ao tribunal de recurso a reapreciação da questão que se punha ao tribunal da 1ª instância. O tribunal de recurso reanalisaria a questão e, se chegasse a conclusão diferente da 1ª instância, substituiria a decisão deste, pela sua decisão.

              Mas as coisas não são assim. Um recurso não se destina, sem mais, a levar os juízes da relação a proferir uma nova decisão quanto às questões com a solução das quais o recorrente não concorda. O recurso tem, antes de mais nada, que demonstrar que a decisão recorrida está errada.

              Como diz um antigo ac. do TRC, de 02/12/1992, sumariado no BMJ 422-441, citado no referido estudo de João Aveiro Pereira:

         “Alegar não é só apresentar um requerimento com a forma de alegação, mas sim atacar a decisão recorrida e dizer das razões por que se discorda dela, para serem apreciadas no tribunal superior”.

                                                                 *

              Quanto à conclusão D/E:

         O tribunal a quo deixou-se levar pela versão da credora CCAM, baseando-se apenas num conjunto de circunstâncias e não se atendendo aos verdadeiros contornos de cada um dos negócios em causa.

              Apreciação:

              Os insolventes limitam-se a dizer que o tribunal está errado, mas não dizem quais são os verdadeiros contornos de cada um dos negócios em causa.

              Não há nada a apreciar.

                                                                 *

              Quanto à conclusão F:

         Os factos dados por provados não são aptos a deles se extrair o dolo dos insolventes.

         No corpo das alegações, os insolventes invocam aqui o ac. do TRC de 07/02/2012, proc. 2273/10.1TBLRA-B.C1, que se refere aos pressupostos da qualificação da insolvência como culposa, entre eles um juízo de censurabilidade, dizendo os insolventes que não lhes parece que esse juízo de desvalor decorra dos factos dados por provados.

              Apreciação

              O ac. do TRC serve precisamente para o efeito oposto ao pretendido pelos insolventes, pois que nele se diz que:

         VIII – A lei considera sempre culposa a insolvência do devedor, que não seja pessoa singular, designadamente quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham destruído ou descaminhado, no todo ou em parte, o património do devedor ou tenham incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada (art. 186/2-a-h, 1ª parte, do CIRE).

         IX – Trata-se, nitidamente, de uma presunção absoluta, inilidível ou iuris et de iure, dado que impõe um regime, não admitindo prova em contrário (art. 350/2, in fine, do CC).

              Ora, no caso, a sentença recorrida qualificou a insolvência precisamente no âmbito do art. 186/2 do CIRE, dizendo que a culpa se presumia sem possibilidade de prova em contrário.

              Isto é, a sentença recorrida explicou, com desenvolvimento, que o art. 186/2 do CIRE estabelece, em complemento à noção constante do n.º 1, presunções inilidíveis as quais não admitem prova em contrário – cf. art. 350/2 do CC: elencam-se aqui diversas situações concretas em que a insolvência há-de sempre ser considerada como culposa, instituindo a lei consequentemente uma presunção iuris et de iure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência. E para o efeito, a sentença recorrida arrolou doutrina e vária jurisprudência, incluindo do Tribunal Constitucional, neste sentido. E faz a devida distinção em relação aos casos do art. 186/3 do CIRE, em que se estabelecem presunções ilidíveis de culpa e não se prescinde da prova dos demais requisitos de qualificação da insolvência, enunciados no artigo 186/1 do CIRE, designadamente do nexo de causalidade, indicando também para o efeito jurisprudência que o esclarece. Sendo que, depois, qualifica a insolvência apenas com base no n.º 2 do art. 186/2 do CIRE e não no seu n.º 3.

              Pelo que a sentença recorrida está perfeitamente de acordo com o ac. do TRC invocado pelos insolventes.

                                                                       *

              Quanto às conclusões G e H:

            Os recorrentes invocam depois o ac. do TRG de 06/03/2012, proc. 9041/07.6TBBRG-AB.G1, que se refere à exigência de um nexo de causalidade entre a omissão culposa e a criação ou o agravamento da situação de insolvência, que não se presume, tendo de ser demonstrado, nos casos do art. 186/3, ao contrário do que acontece nos casos do art. 186/2, ambos do CIRE, para depois repetirem parte do que ele diz na conclusão G:

         O julgador deve operar sobre os factos uma interpretação crítica, dinâmica e dialéctica – atenta, verbi gratia, a globalidade do factualismo apurado – a qual, por força das regras da experiência comum e dos ensinamentos da lógica, pode acarretar que ele permita inferir a verificação ou ocorrência de outros, que são a consequência necessária, ou, pelo menos, normal daqueles.

         E para dizerem que:

         H – O tribunal a quo não operou uma interpretação dinâmica, e crítica e dialéctica dos factos e não teve o cuidado de averiguar do nexo de causalidade.

              Apreciação:

              Também aqui é manifesta a improcedência da “argumentação” dos insolventes, pois que o ac. do TRG diz respeito a um caso do art. 186/3 do CIRE, que é diferente do caso do art. 186/2 do CIRE, como o próprio sumário do TRG explica, o que também já tinha sido explicado na sentença recorrida, como já se referiu acima.

                                                                 *

              Quanto à conclusão I:

         O tribunal a quo não procedeu ao exame crítico das provas, não indicou as ilações tiradas de factos instrumentais, violando destarte o disposto no artigo 607/4-5 do CPC.

              Apreciação:

              Trata-se de uma simples afirmação/acusação, não fundamentada. Não se diz qual é o/s facto/s que devia/m ter ficado provado/s com base em que ilação/ões possíveis de retirar de que facto/s instrumental/is. É irrelevante. De qualquer modo, não se deixe de dizer que a motivação das decisões da matéria de facto se baseiam quase unicamente em prova documental, devidamente identificada, pelo que não havia necessidade de estar a analisar outra prova, que, seja como for, não é indicada pelos insolventes.

                                                                 *

              Quanto às conclusões K/M:

         O tribunal a quo não teve em consideração documentos fundamentais para a boa decisão da causa em violação do disposto no artigo 607/4 do CPC.

              Apreciação:

              Trata-se de mais uma simples afirmação/acusação, não fundamentada. Não se diz qual o/s facto/s que podia/m ter ficado provado/s com base em que documento/s. De qualquer modo não se deixe de salientar que as decisões da matéria de facto contém, quase sempre em relação a cada facto, a respectiva indicação da prova documental (como resulta da transcrição feita), e, depois, na motivação propriamente dita, é expressamente referida, em relação a todos os factos, a prova documental que serviu para os dar como provados.    

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              Quanto às conclusões J/M:

         Foram violados os artigos 185 e 186 do CIRE.

              Apreciação:

              Trata-se de mais uma simples afirmação/acusação sem qualquer fundamentação, valendo aqui o que já se disse a propósito da conclusão C, com um mínimo de adaptação: por força do art. 639/1 do CPC, as conclusões de um recurso, que no caso são iguais ao corpo das alegações, não se podem limitar a atacar/acusar a fundamentação das decisões recorridas, sem indicar, de forma sintética, os fundamentos (um raciocínio lógico-jurídico a contrariar as razões adoptadas da decisão recorrida) por que se pede a alteração ou anulação da decisão.

                                                                 *

              Quanto às conclusões L/M:

         O tribunal a quo violou, além do mais, o disposto nos artigos 61 e 62 da Constituição da República Portuguesa, que consagram a liberdade de contratar e a protecção do direito de propriedade.

              Apreciação:

              É também manifestamente improcedente.

              As questões de inconstitucionalidade têm, como quaisquer outras, de ser suscitadas no decurso do processo, não o podendo ser no recurso de uma decisão, já que os recursos não conhecem de questões novas. Por outro lado, a dedução de questões de inconstitucionalidade, tem de dizer com que sentido é que certas normas jurídicas, cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada, foram interpretadas/aplicadas e em que é que esse sentido é inconstitucional. Não basta a alegação de que uma certa decisão violou normas constitucionais.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

              Custas, na vertente de custas de parte (não existem outras), pelos recorrentes (que foram quem perdeu a acção).

              Lisboa, 09/06/2022

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto