Processo do Juízo Central Cível do Funchal

              Sumário:

              I – Os autores não podem impugnar, com base em apreciação de prova livre, factos que eles próprios tinham alegado e que foram dados como provados por terem sido admitidos por acordo por não terem sido impugnados pelos réus (art. 574/2 do CPC).

            II – Os condutores não têm de parar os veículos sempre que virem, numa estrada sem passadeiras, um peão parado na berma, nem têm de abrandar a velocidade a que seguem, a não ser que se prove que ela é excessiva.

              III – No caso de um acidente de viação entre um veículo automóvel e um peão, em que não se prove a culpa do condutor e se prove uma culpa de 25% do peão, a responsabilidade pelo acidente corre em 75% por conta do risco do proprietário do veículo (art. 503/1 do CC), que se presume que tem a direcção efectiva do mesmo e o utiliza no seu próprio interesse, em concurso com aquela culpa do peão.

              IV – Nas acções de in­demnização, quando o autor for­mula o pedido de indemni­zação com base na culpa do lesante, implicita­mente está a formulá-lo com base no risco, visto este estar englobado na causa de pedir invocada, por os factos ou razões de facto serem os mesmos, com excepção dos referentes à existência da culpa.

              V – Pelo dano morte, tendo em conta que a vítima tinha 69 anos, a sua contribuição de 25% para a produção do acidente e a jurisprudência recente do STJ, tem-se por adequado o valor de 60.000€.

              VI – Não se provando que a vítima tenha estado consciente em algum período depois do acidente até à sua morte, não há dano intercalar a indemnizar.

              VII – No caso, tendo em conta os valores pedidos, atribuem-se 20.000€ pelo desgosto da viúva, 15.000€ pelo desgosto da filha convivente e 10.000€/cada pelo desgosto sofrido por cada um dos outros três filhos.

              VIII. Em caso de morte, é de relevar, para efeitos de indemnização ao cônjuge sobrevivo e a uma filha menor enquanto não tiver completado a sua formação profissional, art. 495/3 do CC, a perda da contribuição para os encargos da vida familiar que o cônjuge, entretanto falecido, proporcionava ao agregado familiar, descontados dos 25% pela culpa da vítima.

              IX – Ela não se fixa, pois, como se fosse uma prestação alimentar, mas sim atendendo àquele contributo, pelo período de tempo previsível – que vai para além da reforma – durante o qual ele seria prestado, não fora a morte da vítima.

              X – O ISS tem direito ao reembolso, com os 25% de redução devido à culpa da vítima, dos valores pagos a título de subsídio por morte e de pensões de sobrevivência, a ser descontados naquilo que as autoras tenham direito a receber a título de despesas de funeral e da indemnização fixada ao abrigo do art. 495/3 do CC.

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

              A, B, C, D e E propuseram acção declarativa de condenação com processo comum contra Seguradora-SA, pedindo a condenação desta a pagar, tudo com juros legais de mora desde a citação até integral pagamento:

         Aos autores, em conjunto, 60.000€, pelo dano decorrente da morte de MB e 10.000€ pelo dano decorrente das dores e antevisão pela vítima da sua própria morte no momento do embate e horas seguintes;

         À autora A 20.000€, à autora B 15.000€ e aos demais autores 10.000€/cada, por danos próprios [morais] sofridos com a morte da vítima;

         Às autoras A e B, pelo dano patrimonial (alimentos) pela perda de rendimentos futuros da vítima, 109.638,78€;

         À autora A pelas despesas de transporte do falecido para o hospital e despesas de funeral, o montante de 2.365,50€.

              Alegam, em síntese, que no dia 22/08/2018, um veículo ligeiro de mercadorias, quando circulava numa estrada, no sentido norte-sul (descendente), colheu um peão quando este fazia o atravessamento da via, provindo de uma propriedade privada em direcção ao veículo da sua mulher, que se encontrava estacionado do lado direito (ascendente) da estrada, carregando um fardo de erva às costas; do atropelamento resultou o falecimento do peão nesse dia; a eventual responsabilidade civil emergente da circulação do veículo encontrava-se transferida para a ré seguradora.

              A seguradora – citada para o efeito em 08/06/2020 – contestou, aceitando alguns dos factos alegados pelos autores e impugnando outros, e apresentou a sua versão dos factos; esclareceu que a proprietária do veículo era a C-Lda, que transferiu para a ré a eventual responsabilidade civil decorrente da circulação do mesmo.

              O Instituto da Segurança Social, IP, deduziu pedido de reembolso de prestações por si pagas à viúva e uma das filhas do falecido, no valor total de 15.994,27€, e ainda aquelas a pagar até ao encerramento do processo, tendo o cuidado de acrescentar que a culpa do condutor do veículo se presumia, nos termos do disposto no art. 503/3 do CC, pois que o veículo era conduzido por ele enquanto trabalhador por conta, sob a direcção, responsabilidade e interesse da entidade empregadora (a sociedade proprietária do veículo).  

              A ré – notificada a 12/02/2021 para o efeito (por carta elaborada a 09/02/2021) – contestou este pedido no essencial nos mesmos termos da anterior contestação, impugnando também os factos que permitiram a conclusão da condução por conta de outrem.

              Depois de realizada a audiência final, foi proferida sentença, julgando a acção improcedente e absolvendo a ré do pedido.

              Os autores interpuseram recurso desta sentença, impugnando parte substancial das decisões da matéria de facto e a não condenação da seguradora com base nos factos provados, incluindo alterações.

              A ré contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso.

              O ISS, dizendo não se conformar com a sentença que, com o fundamento na inexistência de responsabilidade de terceiro no acidente, desatendeu o pedido de reembolso por si deduzido nos autos contra a ré, veio ao abrigo do disposto nos n.ºs 2, 3 e 4.º do art. 634 do CPC, dar a sua adesão ao recurso interposto pelos autores.

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              Questões que importa decidir: se a matéria de facto deve ser alterada; se a ré devia ter sido condenada nos pedidos.

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              Foram dados como provados os seguintes factos que interessam à decisão destas questões (os factos 1 a 23 já constavam de uma especificação elaborada no despacho saneador com referência aos meio de prova; os factos 30, 31, 32 e 33 têm a sua redacção alterada em consequência do que foi decidido por este TRL na impugnação da decisão da matéria de facto; os elementos acrescentados ao facto 1, foram-no por este TLR com base nos documentos não impugnados e ao abrigo do art. 663/2 e 607/4 do CPC: auto de participação, livrete do veículo junto com a contestação da seguradora; este TRL tentou colocar por sequência cronológica os factos respeitantes à forma como o acidente se deu, sem alteração da numeração e tentando não dar origem a sequências cronológicas que não foram dadas como provadas nem tinham sido alegadas; como resultará evidente, existem muito factos repetidos, dada a forma como eles foram alegados, mas não serão eliminados, embora se tenham juntado os factos 4 e 22 para evitar uma das muitas repetições).

1. No dia 22/08/2018, cerca das 09h35, na Estrada E, Canhas, Ponta do Sol, R conduzia um veículo ligeiro de mercadorias, matrícula 00-00-AA, marca Mitsubishi, modelo Canter [FE534B4SL; peso máximo 3500], e MB encontrava-se apeado na referida rua.

5. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1, o peão saía de uma propriedade privada, tendo em vista a travessia da aludida via de trânsito.

6. Com um fardo de erva às costas, com o intuito de atravessar a referida via pública, em direcção ao veículo da sua mulher, que se encontrava estacionado no lado direito (ascendente) da faixa de rodagem, olhou para a esquerda e para a direita, com o intuito de verificar se circulavam veículos quer no sentido ascendente, quer no sentido descendente.

7. Ao iniciar o atravessamento da via pública, o peão foi colhido pelo veículo, que circulava naquela estrada em sentido descendente, numa recta no sentido norte-sul (Paul da Serra/Canhas).

30. [O condutor d]o veículo, no dia, hora e local aludidos em 1, quando avistou o peão com um fardo de erva às costas e uma foice na mão, parado na berma da estrada, abrandou a marcha.

31. Tendo continuado a sua circulação, presumindo que o peão aguardaria a sua passagem.

32. Acto contínuo, veio o peão a embater na zona do canto frontal direito (faróis e retrovisor) do veículo. => O peão avançou em frente e foi colhido pela frente, a cerca 20/30 cm da esquina direita, do veículo.

33. Tendo o peão, consequentemente, sido projectado para o chão, levado pelo veículo, acabando por ficar a 21,60m do local de embate.

34. O peão olhou para ambos os lados da faixa de rodagem antes de dar início à travessia.

35. O peão não podia ouvir a aproximação de qualquer veículo (por ser surdo).

8. A via era uma recta, com cerca de 5m de largura, afecta a dois sentidos, sem separador, e com o limite local e limite geral de velocidade de 50 km/h.

9. O piso estava seco e a estrada detinha iluminação.

10. O condutor do veículo não travou antes do embate, nem se desviou para não embater no peão.

14. O local referido em 1 trata-se de uma via marginada por habitações.

25. O peão ficou prostrado no chão.

26. O condutor do veículo não travou.

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23. No âmbito dos autos de inquérito 313/18.5T9PTS, que correram termos no Departamento de Investigação e Acção Penal – Secção de PS, com data de 03/02/2020, foi proferido pelo Ministério Público despacho de arquivamento relativamente ao acidente, factualidade susceptível de integrar a prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137 do Código Penal. De tal despacho consta, além do mais, que:

             “[…]

             Não se conseguiu apurar a velocidade a que circulava o veículo.

             Também não se conseguiu apurar a que distância conduzia R da berma da estrada.

             Do mesmo modo, não foi possível apurar se o acidente se deveu a imperícia/falta de atenção ou, se, por outro lado, o acidente se deveu ao facto de a vítima ter atravessado repentinamente a via de transito concomitantemente ao momento em que o veículo conduzido por R passava por si, encontrando-se este numa situação de impossibilidade de reacção em tempo útil.

             Na verdade, considera-se que a segunda versão parece aquela que apresenta mais indícios, considerando o facto de não existirem marcas de travagem no local, o que indicia que R nem sequer tentou/conseguiu travar para evitar o embate. Na verdade, considerando as características da via, seria muito provável que caso a vítima já tivesse iniciado a sua marcha o condutor, mesmo desatento, iria em momento próximo do embate tentar travar para evitar o contacto.

             Por outro lado, verifica-se que o local de embate é, de facto, na parte direita da frente do veículo, o que indicia que a vítima iniciou marcha em momento próximo ou mesmo em simultâneo ao momento em que R passa por si a conduzir. Conforme bem referido pelo agente da PSP inquirido, se o local do embate ocorresse a meio da frente do veículo não existiam dúvidas de que, no momento do embate, a vítima já se encontrava a atravessar a estrada, todavia, no presente caso, considerando o local do embate, surgem dúvidas sabre o momento exacto em que a vítima iniciou a travessia da estrada.

             Mais acresce a circunstância de a vítima ser surda-muda e carregar um grande molho de erva às costas, o que poderia ter inviabilizado que tivesse visto que uma viatura se aproximava, iniciando, repentinamente, a sua marcha.

             […]

             […e]xistindo fundadas dúvidas sobre a dinâmica do acidente, nomeadamente se a causa do acidente ficou a dever-se a falta de atenção do condutor e/ou a imprudência da vítima que, repentinamente, invadiu a via de trânsito, não se pode concluir que o condutor conduzia de forma imprudente e que, em consequência, podia e devia ter evitado o acidente.”

            [na transcrição feita pela sentença recorrida só constava este último §; os outros foram transcritos por este TRL, para os fins referidos abaixo]

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11. O peão foi socorrido e assistido no local, primeiramente pelos Bombeiros Voluntários da RB e seguidamente pela equipa da EMIR, onde foi encontrado em paragem cardio-respiratória, com recuperação de circulação espontânea após cerca de 5 minutos de manobras de suporte avançado de vida.

12. Após receber estes primeiros socorros, foi transportado para o Hospital Dr. N, onde deu entrada, no Serviço de Urgências, pelas 10h56m desse dia 22/08/2018.

15. À entrada no Serviço de Urgência apresentava Escala de Glasgow 3T, sem qualquer sedo analgesia, anisocoria OD>OE, pupilas arreativas à luz e rinorragia abundante. Apresentava ainda instabilidade hemodinâmica sob vasopressoe (noradrenalina).

16. Realizou TC crânio-encefálica e TC da coluna cervical, dorsal e lombo-sagrada, que evidenciaram “hematoma subdural hemisférica direito, milimétrica; foco de contusão frontobasal esquerdo; hemorragia subaracnóide dispersa; apagamento dos sulcos corticais e espaços cisternais, incluindo a nível do buraco occipital, indiciando edema cerebral difuso; múltiplas fracturas craniofaciais, envolvendo principalmente a órbitra esquerda, a escama frontal esquerda, com afundamento ósseo pericentimétrico, as paredes do seio maxilar esquerdo, o rochedo temporal direito, e a região esfenoidal anterior; fracturas das apófises transversas de D1 e de D2 à direita”.

17. A TC tóraco-abdómico-pélvica revelou “volumoso hematoma no flanco direito, projectado aos músculos oblíquos transversos do abdómen, com maiores eixos de 11x6cm, que revela exuberante hemorragia activa; existe um segundo hematoma da região glútea esquerda, com 5cm, também com hemorragia activa; não se observam focos de hemorragia intra-abdominal; ligeira ascite peri esplénica na dependência de derrame pleural esquerdo e do hematoma junto à 12ª costela; fractura do arco anterior na 4ª e 5ªcostelas direitas; área de condensação do lobo inferior esquerdo que se admite contusão pulmonar no presente contecto; fractura do arco posterior da 2ª costela direita”.

18. Ocorreu uma evolução desfavorável do quadro clínico com necessidade crescente de suporte cardiovascular, vindo a falecer pelas 14h do dia 22/08/2018.

13. Em decorrência do referido em 7, ocorreu a morte do peão.

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19. A educação escolar desenvolve-se em três níveis: os ensinos básico, secundário e superior: – 1.º ciclo (1.º ano ao 4.º ano); 2.º ciclo (5.º e 6.º ano); 3.º ciclo (7.º ao 9.º ano). O ciclo seguinte, o ensino secundário – abrange os 10.º, 11.º e 12.º anos.

20. O ciclo de estudos conducente ao grau de licenciado no ensino universitário tem 180 ou 240 créditos e uma duração normal compreendida entre seis e oito semestres curriculares de trabalho dos alunos.

21. Todo este percurso se desenrola em 21 anos, pelo menos.

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24. O falecido havia-se deslocado à propriedade referida em 5, acompanhado da sua mulher e filha, a fim de colher erva para o pasto.

27. Todos os sábados o falecido e a mulher dirigiam-se à propriedade privada referida em 5 a fim de ajudarem na manutenção da mesma e recolher erva que levavam para sua casa com o intuito de alimentar alguns animais que criavam.

28. A mulher e filha da vítima cruzavam-se com frequência ali com o condutor do veículo segurado na ré.

29. O condutor do veículo sabia que o falecido era surdo-mudo, conhecia o carro da mulher deste que se encontrava estacionado no outro lado da estrada, em frente à propriedade de onde ele saiu.

36. Durante as cinco horas posteriores ao acidente, o falecido agonizou entre a vida e a morte.

37. O falecido era reformado, mas trabalhava na agricultura, juntamente com a sua mulher.

38. Era marido e pai disponível, ajudando na realização de todas as tarefas domésticas, cozinhava e cuidava do jardim e da casa, ajudava a mulher e os filhos no que podia.

39. Era estimado por todos.

40. Vivia com a sua mulher e a filha, na altura, menor, B.

41. Os demais filhos, também aqui autores, residem no estrangeiro, mantendo, no entanto, sempre uma relação de muita proximidade com os seus familiares (sobretudo com o falecido), na RAM.

42. Foi difícil para os autores, estando longe, aceitar a morte do seu pai.

43. A autora cônjuge assistiu ao acidente e ficou em choque, num estado de consternação, desespero e angústia.

44. Assim se mantendo nas 5 horas seguintes em que permaneceu no hospital, aguardando por notícias.

45. Estado que se agravou quando ao fim das cinco horas recebeu a notícia de que o marido havia falecido.

46. Desde essa data mulher e filhos têm vivido dias de profunda tristeza e dor, e sentem a falta do marido/pai.

47. As autoras não podem hoje contar com o apoio do pai e marido, nem com a sua ajuda e compreensão e palavras.

48. A autora ficou abalada e em sofrimento com a morte do marido.

49. A autora custeou despesas de funeral do falecido, no montante de 2100€.

50. E despesas com táxi, referentes a serviço de funeral, no montante de 120€.

2. A vítima faleceu pelas 14 horas desse mesmo dia, com 69 anos, no estado de casado com a autora A, nascida em 14/01/1963, casamento esse ocorrido em 28/07/1986.

51. Em virtude do falecimento do marido, a autora requereu ao Instituto da Segurança Social, IP a atribuição de subsídio por morte, tendo tal instituto processado e pago à referida autora, a título de subsídio por morte a quantia de 1.286,70€.

52. Em virtude do falecimento do pai, a autora cônjuge e a sua filha B requereram ao ISS a atribuição de pensões de sobrevivência, os quais foram deferidos, tendo tal instituto, através do Centro nacional de Pensões, processado e pago, à primeira, no período de Setembro de 2018 a Janeiro de 2021, 11.467,18€, sendo que continua a pagar à referida viúva prestações mensais de 345,23€, e à segunda, no período de Setembro de 2018 a Julho de 2020, 3.190,39€.

53. Foi a morte do peão que determinou o pagamento pelo ISS-IP, através do CNP, das prestações de subsídio por morte e de pensões de sobrevivência.

3. Os autores C, nascido em 08/06/1987, D, nascido em 11/04/1990, E, naascido em 05/02/1992, e B, nascida em 19/03/2002, são filhos do peão.

4 e 22. Na data referida em 1, mediante contrato de seguro de responsabilidade civil, com a apólice P/1197/0028259369/0002269050, com data de início em 18/10/2017 e data de fim em 27/10/2018, a companhia de seguros T havia assumido responsabilidade civil resultante da circulação daquele veículo, contratado pelo proprietário do mesmo, C-Lda.

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              A motivação da convicção do tribunal consta do seguinte:

         A convicção do tribunal assentou no conjunto de toda a prova produzida em audiência de julgamento, concretamente, no depoimento e declarações de parte da autora filha, que, após ter admitido que o falecido olhou para ambos os lados antes de atravessar a estrada, que era surdo-mudo e que levava um fardo às costas e uma foice na mão, no essencial, asseverou e desenvolveu a versão dos factos vertida na petição inicial; pese embora tenha referido que se encontrava no interior do carro estacionado do outro lado da estrada, para o qual o falecido se dirigia, tendo por isso, assistido à dinâmica do acidente, a qual relatou em vários aspectos, tendo mesmo admitido que o veículo que embateu no falecido não travou, nem se desviou, esta versão, desde logo no que concerne ao local onde a testemunha se encontraria no momento do acidente, não se coaduna com o depoimento das duas únicas testemunhas, para além do condutor do veículo segurado, que se encontravam no local no momento do acidente, sendo mesmo diametralmente oposta à da testemunha MF; no que se refere ao conhecimento por parte do condutor do veículo do hábito do falecido proceder pela forma que procedeu nos momentos que antecederam o acidente, com as mesmas motivações e desiderato, as declarações prestadas por esta autora não conjugam com as da testemunha condutor do veículo segurado na ré.

         Teve, também, o tribunal em consideração as declarações de parte da autora cônjuge, que expôs a respectiva versão dos factos, designadamente, e no essencial, reproduzindo e explicitando a perspectiva apresentada na petição inicial, tendo frisado como o falecido saía da propriedade em que se encontravam, como o mesmo caminhava e o que levava consigo, como a própria seguia o marido, a que distância do mesmo seguia e como a própria caminhava e por que razão assim o fazia; relativamente ao local da faixa de rodagem onde se encontraria o falecido aquando do embate, para além destas declarações se terem mostrado confusas e mesmo incongruentes em si mesmas, revelaram-se também contraditórias com os depoimentos das demais testemunhas presenciais, incluindo o condutor do veículo segurado; relativamente ao conhecimento que o condutor do veículo teria do facto de o falecido ali costumar trabalhar e proceder de forma semelhante à que antecedeu o acidente, o relato desta declarante não foi corroborado por qualquer outra testemunha, nomeadamente o referido condutor.        

         Assentou, ainda, o tribunal a respectiva convicção, no depoimento das testemunhas J, agente da PSP na esquadra da P há cerca de 19 anos; elaborou a participação de fls. 18 e 19 e tirou as fotografias que a acompanham, documentos que confirmou; descreveu o local, nomeadamente por referência à participação e fotografias de fls. 18 a 24; descreveu os danos que encontrou na viatura, também por referência às mencionadas fotografias; referiu os vestígios que encontrou no local, tendo precisado que ali não encontrou rastos de travagem; relativamente à dinâmica do acidente, precisou que o respectivo relato assentou no que lhe foi dito; JP, amigo das autoras desde criança, sendo que mora perto das mesmas; não presenciou o acidente em causa; referiu como reagiram as autoras ao falecimento da vítima; pese embora tenha referido que era o falecido que mais contribuía para os gastos da casa, com a sua reforma e com a venda de animais que fazia, não fez menção a quaisquer quantias, tendo mesmo referido expressamente não saber o montante da reforma que o falecido recebia e quanto recebia com a venda de animais; não obstante ter referido que a autora B terminou os estudos por dificuldades financeiras após o falecimento do pai, referiu também não saber o quê que a referida autora estudava ou em que ano escolar se encontrava; JS, profissional de seguros que presta serviços de averiguações para a ré seguradora há cerca de 4/5 anos; relatou que documentos analisou e que diligências efectuou relativamente ao acidente em causa; R, directora da Unidade de Prestações Diferidas da Segurança Social, há cerca de 10 anos; consultou o processo relativo às autoras, tendo mencionado que prestações foram solicitadas, concedidas e pagas às mesmas; esclareceu que prestações continuam a ser pagas; JR, pessoa que, no momento e local do acidente, seguia, ao lado do condutor, sua mãe, num veículo; localizou os factos no tempo; mencionou não ter visto o embate, nem os momentos que o antecederam, por ir distraído, sendo que apenas se apercebeu que algo sucedera quando ouviu a mãe gritar; descreveu o que viu então, sendo que a vítima estava já prostrada no chão; referiu onde se encontrava então a viatura segurada na ré, pese embora não tenha logrado explicitar em que local da faixa de rodagem tal viatura se encontrava; salientou que foi o próprio que chamou os serviços de emergência; descreveu como circulava o carro em que seguia antes de se ter apercebido do acidente; mencionou quem estava no local quando saiu da viatura onde seguia, tendo frisado que apenas viu as autoras depois; MF, mãe da testemunha anterior e condutora do veículo em que a própria seguia acompanhada do filho; descreveu como circulava a própria; relatou o que viu no que concerne à dinâmica do acidente, tendo precisado que viu o embate quando “estava a sair da curva e olhou em frente”; mencionou a que distância se encontrava a própria relativamente ao local do embate quando viu o mesmo; descreveu o que carregava o falecido e como; referiu ter visto o carro da mulher do falecido estacionado, tendo localizado o local onde tal veículo estava; referiu de onde apareceram as autoras A e B após o embate, sendo que precisou ter a certeza do que afirmava neste aspecto; esclareceu que a vítima estava na linha do portão da propriedade de onde saíra quando ocorreu o embate; relativamente ao local onde estaria o falecido aquando do embate, bem como ao que terá sucedido ao falecido após tal embate, desde logo salientou que o que referia assentava na “impressão que teve”, sendo que o depoimento desta testemunha, neste aspecto, revelou-se confuso ou mesmo incongruente, quer em si próprio, quer, quando em confronto com a participação junta aos autos e com as declarações de parte prestadas, pois que o local da faixa de rodagem apontado pela testemunha, num primeiro momento, como o local onde teria ocorrido o embate, não se mostra conciliável com o local indicado pela testemunha como sendo o local onde o falecido bateu com a cabeça e ficou o corpo após o embate, tendo em consideração a largura da estrada indicada na participação, sendo que a descrição da testemunha relativamente ao sucedido ao corpo após o embate não se ajusta ao indicado na participação e ao declarado pelas autoras; referiu como ficou e o que sucedeu à viatura após o embate; R, condutor do veículo segurado na ré; descreveu a dinâmica do acidente, tendo explicado a que distância se apercebeu da vítima e o que carregava a vítima; referiu que viatura viu parada no local, tendo localizado a mesma; mencionou que conhecimento tinha acerca da vítima e do que a vítima tencionava fazer, circunstancialismo que contextualizou, assim como esclareceu o desconhecimento que tinha da pessoa em concreto; descreveu o local; relativamente ao embate, referiu que “apenas sentiu um vidro a partir”; relativamente ao momento em que a vítima inicia a travessia, o relato desta testemunha não foi corroborado por qualquer outro produzido; mencionou em que local ocorreu o embate relativamente ao portão da propriedade de onde saíra a vítima; mencionou o que sucedeu ao corpo do falecido após o embate e onde terá o mesmo ficado, sendo que, confrontado com o facto de tal circunstância não se coadunar com o constante na participação do acidente, referiu que tal participação, nesse aspecto, “só pode estar errada”; pese embora num primeiro momento tenha negado que a vítima terá olhado para o lado em que seguia, posteriormente, após confronto com o teor de fl. 62 dos autos, acabou por referir que a vítima olhou para o referido lado, razão pela qual desacelerou; narrou o convencimento com que ficou face à atitude da vítima, tendo salientado que o veículo que conduzia fazia bastante barulho.

         Ajudaram, ainda, a formar a convicção do tribunal os documentos juntos aos autos, sendo que o documento de fl. 34 está em nome do falecido.

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                                 Da nulidade por falta de fundamentação

              Depois de 9 páginas em que transcrevem na íntegra a matéria de facto da sentença e a respectiva motivação, os autores, em outras 5,5 páginas, sem indicarem as normas processuais em que se baseiam e sem dizerem qual foi o ou os factos cuja motivação ficou por esclarecer, dizem que a sentença sofre “do vício de nulidade por ausência de valoração e apreciação crítica das provas”, “embora dê a conhecer os meios de prova em que assentou a sua apreciação, com a indicação do respectivo conteúdo,” pois que “não apreciou nem valorou criticamente a prova, dentro dos parâmetros para tanto exigíveis.”

              A ré diz que não se verifica a nulidade.

              Apreciação:

              A sentença discriminou 53 factos como provados. Os primeiros 23 deles vinham de uma especificação feita no despacho saneador, com indicação da respectiva fonte de prova.

              Os restantes factos – à excepção de alguns, poucos – não se reportam à dinâmica do acidente ou de algo que tenha a ver com as circunstâncias em que se deu e não foi levantada nenhuma questão relativamente a eles.

              Quanto à dinâmica do acidente ou às circunstâncias em que ele se deu, a motivação da decisão de dar como provados ou não provados os factos respectivos, tem uma fundamentação completa em que se aprecia e valora criticamente a prova, como decorre da transcrição que foi feita.

              Por outro lado, não há nenhuma norma processual que diga que a ausência de apreciação ou valoração crítica da prova tem a consequência da nulidade da sentença, como decorre, a contrario, do art. 615 do CPC, relativa às nulidades da sentença que, a verificar-se alguma nulidade, devia ter sido invocado pelos autores.

              O que existe é uma norma, a do art. 662 do CPC que, com base em pressupostos específicos, dá uma solução específica para essa hipótese, ou seja: 2 – A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: […] d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.

              Pelo que não se verifica a arguida nulidade.

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Da impugnação da decisão da matéria de facto

Da contradição entre factos provados e não provados

              Depois, das páginas 18 a 27, os autores alegam que “existe contradição entre a matéria de facto dada como provada e não provada”, a respeito dos factos provados sob 26, 30, 31, 32, 33 e 36 e os factos não provados sob os alíneas n, o, q e mm, e depois transcrevem-nos e, sem mais, concluem que “tais factos são incompatíveis entre si, não podendo coexistir entre si.”

              A única contradição que concretizam é a seguinte: foi dado como provado no facto 36 que durante as cinco horas posteriores ao acidente, o peão agonizou entre a vida e a morte, e foi dado como não provado em mm que o peão passou por momentos de angústia e sofrimento após o embate, tendo acabado por morrer em grande desespero, angústia e sofrimento”

              A ré diz que não se verifica a apontada contradição, pois que o facto provado precisa que “durante as cinco horas posteriores ao acidente, MB agonizou entre a vida e a morte”, algo diverso de o mesmo ter passado “por momentos de angústia e sofrimento após o embate, tendo acabado por morrer em grande desespero, angústia e sofrimento”, circunstâncias estas referindo-se a dores físicas, estados de espírito e sofrimento psicológicos, etc., que de todo em todo se não produziu qualquer prova e, como tal, sempre teriam de resultar não provados.

              Apreciação

              Quanto à alegada contradição, ela inexiste, nem os autores tentam explicar onde é que ela existe. Estar no estado descrito em 36, não quer dizer que se tenham os sentimentos e emoções dados como não provados. Basta lembrar, como o faz a outro propósito a seguradora, que (facto 15) o peão à entrada no Serviço de Urgência apresentava Escala de Glasgow 3T, “classificação do trauma cranioencefálico numa escala de Glasgow de 3 pontos (de entre 3 a 15) – explica a ré – [que] é a mais grave, sendo que, quando resultante da análise dos três testes capacitativos do paciente (respostas de abertura ocular, fala e capacidade motora) significa que o mesmo se encontrará em coma”. O que é corroborado, entre vários outros, em https://treinamento24.com/library/lecture/read/394682-que-significa-glasgow-3t: “Quanto menor for a pontuação registrada no paciente, mais grave é a sua situação. Aliás, caso a contagem seja de 3 pontos significa que o paciente está em coma profundo, representando mais de 80% de chance de morrer.” Ou https://pt.wikipedia.org/wiki/Escala_de_coma_de_Glasgow: “3 pontos = coma profundo, com 85% de probabilidade de morte e em estado vegetativo.”

              Dado que não há o mínimo de fundamentação quanto às outras putativas contradições, não haveria que tratar delas.

              De qualquer modo, diga-se que os autores incorrem num erro de lógica formal, apontado há séculos, de considerarem que o facto de não se dar como provado um facto equivale à prova do facto contrário. Pois só assim se consegue conceber onde é que os autores estão a ver as contradições. Isto é, aquilo que os autores contrapõem é os factos provados com os factos contrários que extraem dos factos não provados. Ora, quando não se prova uma determinada alegação de facto, tal equivale apenas a ter-se como não feita tal alegação de facto. Como dizia Lebre de Freitas, “a resposta puramente negativa equivale à não alegação do facto não provado, fazendo jogar as regras da distribuição do ónus da prova” (anotação 4 ao então art. 653 do CPC na redacção anterior à reforma de 2013, pág. 662, CPC anotado, vol. 2.º, 2.ª ed, Coimbra editora, 2008). Por isso, não pode haver contradição entre um facto e um não facto que equivale a uma inexistência, o que pode é haver um erro de julgamento dos factos, a apreciar na altura própria (neste sentido, por último, com várias referências jurisprudenciais, veja-se o ac. do TRP de 14/12/2017, proc. 3180/16.0T8STS-A.P1: “Na nossa perspectiva, do ponto de vista lógico, não pode um nada em que se traduz uma resposta negativa colidir com algo em que se traduz uma resposta positiva. Porém, bem podem os pressupostos de uma resposta negativa envolver, necessariamente, a não prova, de outro facto quesitado, bem como verificar-se a situação inversa. Contudo, nesta situação, à semelhança do que já se afirmou a propósito da contradição entre respostas negativas, o vício que se verifica nesses casos não é de ordem lógica, sendo antes um erro na apreciação da prova.” E também o ac. do ST de 28/04/2016, proc. 155/11.9TBPVZ.P1.S1: 3. A resposta “não provado” dada relativamen-te a um facto controvertido não permite afirmar a prova do facto contrário.)

                                            Da contradição entre factos provados

              Os autores dizem que também existe contradição entre os factos provados, já que:

         “[R]esultou provado que ‘o condutor do veículo não travou’ e que ‘O veículo nos dia, hora e local aludidos em 1, quando avistou o peão […] abrandou a marcha.”

         O que é abrandar a marcha? É travar?

         No caso concreto nem outra coisa poderia ser, já que o veículo segurado pela ré vinha a circular numa recta com inclinação e vinha a descer. Pelo que, para abrandar, teria necessariamente de travar, razão pela qual não logram os autores compreender como é que pode resultar provado que o condutor do veículo não travou e ao mesmo tempo considerar provado que abrandou.

         Tal contraria a mais elementar lógica e viola, de forma frontal e clara, as regras da experiência comum.”

              Apreciação:

              É mais um erro de lógica formal dos autores: um veículo pode abrandar, desacelerando, sem travar. E tanto os autores sabem disto – que, aliás, já lhes tinha sido explicado pela Srª juíza no decurso da produção de prova -, que vão buscar para a argumentação um outro facto: que o veículo vinha a descer. Mas mesmo isto não impede que se possa desacelerar, abrandando, sem travar. Só uma descida pronunciada – que não está minimamente indiciada, antes pelo contrário, tendo em conta o depoimento do agente da PSP, tal como refere a seguradora – impediria que uma simples desaceleração não implicasse uma diminuição da velocidade.

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              Por fim, dizem que existe contradição entre “os factos provados e não provados” e a fundamentação da decisão.

              Apreciação:

              A contradição apontada não tem relevo autónomo: se a fundamentação de direito estivesse em contradição com os factos provados, o que haveria era um erro de julgamento, a tratar na parte do recurso sobre matéria de direito (o que se averiguará, na altura própria, mas só com base em factos provados). E essa contradição não se pode dar, pelo já referido, com os factos não provados, porque estes equivalem à sua simples não alegação. Por fim, esta suposta contradição não tem nada a ver com a impugnação da decisão da matéria de facto, como aliás resulta do facto de os autores usarem aqui, quase só argumentos de direito relativos à subsunção dos factos nas normas jurídicas. Estão aqui a discutir a fundamentação de direito, apontando-lhe supostos erros, quando deviam estar a discutir factos. E fazem-no, já se sugeriu, com evidente erro, pois que baseiam os seus raciocínios em parte em factos não provados ou em factos contrários aos factos não provados, como se esses factos contrários estivessem provados. Assim não se perderá tempo com tais raciocínios, ao contrário do que a ré faz, embrenhando-se depois, tal como os autores, em raciocínios que têm por base factos provados e não provados.

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              Em suma: é apenas assinalada, em concreto, uma contradição entre factos provados e esta não se verifica; as contradições entre factos provados e não provados não existem. As contradições entre factos provados e não provados e a fundamentação da sentença não têm relevo autónomo, não têm de ser verificadas aqui e na sua maior parte decorrem de raciocínios não válidos.

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              Entrando, por fim, na impugnação, por erro de julgamento, da decisão da matéria de facto, diga-se que os autores consideram incorrectamente julgados os factos provados sob 7, 30, 31, 32 e os não provados sob a a i e v, dos factos não provados.

              À argumentação e transcrição de declarações/depoimentos que fazem, a ré responde, no essencial, com uma transcrição muito mais completa e pertinente das declarações/depoimentos e uma síntese destes e depois argumenta com base no que acabou de dizer, o que se irá tomando em conta à medida do necessário.

              Posto isto,

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              Quanto ao facto 7:

              O facto está provado por ter sido admitido por acordo por não ter sido impugnado pela ré (art. 574/2 do CPC). E isto quer dizer que foram os próprios autores a alegarem o facto. Sendo assim – estando o facto provado por prova pleníssima/presunção inilidível (Lebre de Freitas, CPC anotado, vol. 2.º, anotações aos artigos 567 e 754 do CPC, páginas 533-535 e 569-570, e vol. 3.º, pág. 169, 3.ª edição e nota 34 da pág. 248 da A acção declarativa, 4.ª edição) – os autores não o podem vir agora pôr em causa.

              De nada servem, pois, as mais de 5 páginas que os autores empregam para impugnar este facto.

              De qualquer, diga-se que quanto a 7, a pretensão dos autores era a de o alterar para, ao contrário do que tinha sido por eles expressamente alegado, isto é “Ao iniciar o atravessamento da via pública, o peão foi colhido”, passar a dizer que “o peão foi colhido quando já havia iniciado o atravessamento da via pública, após ter dado já vários passos.”

              Sendo que esta matéria será abordada a outro título e não se confirmará minimamente que se possa dar como provado aquilo que os autores querem.

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              Quanto ao facto V dado como não provado (: a filha B, com 16 anos na altura, assistiu ao acidente), os autores dizem que quer a autora B, quer a autora A, quer a testemunha R confirmam que a autora estava no local, no momento do acidente, dentro do carro pertencente à sua mãe, que estava estacionado no outro lado da estrada, em sentido ascendente, e que assistiu ao acidente. E passam a transcrever passagens de tais declarações/depoimento.

              Apreciação:

              Do que decorre das declarações/depoimento transcrito é que a autora filha estava no local, mas não que ela tenha assistido ao acidente. E que ela estava no local não está posto em causa na decisão recorrida. O que está posto em causa é que ela tenha visto o acidente.

              Para se apreciar da validade do que esta autora declara, veja-se o seguinte:

              Perante o despacho do MP, transcrito parcialmente no ponto 23 dos factos provados, a questão da “culpa” do acidente passou a ser simples: a vítima já se encontrava a atravessar a estrada, ou iniciou a travessia quando o veículo passou por ela? Uma boa forma de responder à questão, tendo em vista os interesses dos autores, era colocar a vítima o mais longe possível do início da faixa de rodagem, ou, dito de outro modo, pô-la a dar vários passos antes de ser embatida pelo veículo. Tendo em vista os interesses da seguradora, o que importava era provar a versão contrária, e para isso nada melhor do que dizer que o embate se tinha dado com a lateral direita do veículo, incluindo o espelho retrovisor.

              Perante isto a autora filha vem declarar, nesta parte: saiu da propriedade, atravessou a estrada, entrou na carrinha da mãe (que estava parada à frente do portão embora no outro lado da estrada em sentido contrário ao do veículo) e pôs-se a escrever uma mensagem num telemóvel; a dada altura, olhou para o seu pai, que tinha estado atrás de si, viu que ele olhou para um e outro lado da estrada, avançou e foi levado por um carro (antes ela não tinha visto o carro), por cerca de 18 ou 19 m. Só quando lhe perguntam onde é que o pai estava quando foi levado pelo carro é que acaba por dizer que o pai deu mais ou menos uns dois para três passos antes de ser levado pelo carro e que estava a meio da estrada. O veículo acabou por parar a 15 ou 20 m mais à frente. O embate foi na parte da frente, lado direito, a meio segundo diz….

              Vê-se assim que estas declarações destinam-se à finalidade específica referida acima: a autora filha vê e conta o que faltava para a prova da culpa do condutor: o pai dá dois para três passos e está a meio da estrada. Mas, para além desta versão ser já por si dificilmente credível, na parte em que ela diz que não viu antes o veículo – estamos numa estrada com uma largura de 5 metros e trata-se de um veículo que faz necessariamente barulho e ela está virada para o veículo -, tenta encaixar-se tão bem na prova de factos necessários à culpa do condutor que esquece que estando a vítima já a meio da estrada (a estrada tem 5m de largura, metade da estrada são 2,5m) o veículo não lhe teria batido onde bateu, isto é, a 20/30 cm da esquina direita da frente do veículo [o que se demonstrará à frente], ou nem sequer lhe teria batido. E 2,5m correspondem a mais de 3 passos largos de um homem alto.

              Antes de continuar veja-se, grosso modo, do que se está a falar:

              A largura de um Mitsubishi Canter FE354 com 3500kg peso máximo, sem contar com os retrovisores, variará entre 1,7m (cabine standard) e 2m (cabine dupla – o que não parece ser o caso pelo confronto com a fotografia que consta junto ao auto de notícia) (https://www.fuso-trucks.com.pt/content/eu/portugal/pt/modelos/visao-geral-do-modelo/3-5t.html ou https://www.fuso-trucks.com.pt/content/eu/portugal/pt/modelos/visao-geral-do-modelo/3-5t/canter-3s13-duonic.html ou https://www.fuso-trucks.com.pt/content/eu/portugal/pt/modelos/visao-geral-do-modelo/3-5t/canter-3s13-duonic.html). Os retrovisores acrescentaram cerca de 9 cm para cada lado.

              Em termos abstractos, um passo terá 0,82 cm; o passo geométrico corresponde a 5 pés, ou seja, 5 x 0,33m; o passo corresponde a 2,5 pés (https://pt.wikipedia.org/wiki/Antigas_unidades_de_medida_portuguesas#Medidas_lineares e https://pt.wikipedia.org/wiki/Passo_(unidade).

              O passo pode ser calculado em concreto, para uma pessoa, sabendo a sua altura: será de 41,5% da altura de um homem (https://pt.wikihow.com/Medir-o-Comprimento-dos-Passos ou https://www.ehow.com.br/descobrir-comprimento-passo-como_33483/). No caso sabe-se que o peão tinha 1,60m (relatório de autópsia, doc.8), logo o passo dele seria de 66,4 cm.

              Pode-se ter uma perfeita noção do local do acidente, bastando para isso colocar na barra de pesquisa do google maps as coordenadas dadas logo no início do auto de notícia 32.72660187020332 -17.109803098565976 aparecendo [omite-se nesta publicação] depois, tendo em conta o portão que consta da fotografia junto ao auto de notícia e a ferramenta do street view, é possível de imediato “estar” no local do acidente, sendo que no street view é possível deslocar a data da imagem para Setembro de 2018, menos de um mês depois da data do acidente [omite-se nesta publicação], sendo ainda possível ir até a Dezembro de 2009 e ver lá o restaurante C [omite-se nesta publicação] de que fala o auto de notícia.

              Tendo isto em conta, e tentando-se arranjar uma explicação para a incompatibilidade entre o que a filha diz e os dados objectivos, pode imaginar-se que a autora estaria a falar de meio da hemi-faixa da estrada; então o peão já estaria a 1,25m do início da estrada e supondo-se que o veículo ia pelo meio da hemi-faixa de rodagem e que este veículo teria só 1,7m + 20cm de retrovisores, os 20 a 30cm da esquina direita do veículo estariam a cerca de 60 a 70 cm da do início da estrada. Mesmo assim, pois, tendo o peão estado a meio da hemi-faixa, isto é, 1,25 m do início da estrada, tal seria incompatível com o local do embate na frente do veículo, a 20/30 cm da esquina direita. Note-se, no entanto, que esta explicação (meio da estrada é igual ao meio da metade da estrada) não tem nada de evidente. Ver-se-á que também a testemunha MF fala no meio da estrada, e quando o mandatário dos autores tenta sugerir que ela está a referir o meio da metade da estrada por onde circulava o veículo, ela diz que não, que se está a referir mesmo ao meio da estrada.

              Ou seja, quer a versão literal das declarações da filha, quer a versão corrigida para ser mais compatível com os dados objectivos, não deixam de ser incompatíveis com eles e tornam claro que a filha está a fazer umas declarações destinadas a conseguir ganho de causa, conseguindo a condenação da ré por culpa do condutor do veículo.

              Assim sendo, a autora filha não conta, sobre a forma como se deu o acidente, nada que demonstre que de facto o viu, pelo que compreende-se que, tendo que pronunciar-se sobre o facto alegado pelos autores, o tribunal recorrido tenha ficado na dúvida e o tenha dado como não provado o que, repete-se, quer dizer apenas que se tem o facto por não alegado e não que se tenha provado o facto contrário.

                                                                 *

              Quanto ao facto 30:

              Os autores querem que se dê como não provada a parte em que se diz que o veículo abrandou. À frente já se referem como devendo ser excluída toda a matéria do facto 30.

              Utilizam para tanto passagens das declarações das duas autoras que contrapõem ao depoimento do condutor do veículo utilizado pelo tribunal recorrido, frisando, em relação a este, que ele, a meio do depoimento, admitiu uma versão diferente dos factos que tinha acabado de negar (o peão olhou para um e outro lado: o peão não olhou para um e outro lado).

              A ré diz que se deve manter o facto de o veículo ter abrandado mas não diz qual o meio que sustenta tal prova.

              Apreciação:

              Quanto às declarações da autora filha: já se viu que ela própria disse que nem se deu conta do veículo, pelo que não se pode pronunciar sobre se ele, momentos antes, não teria abrandado.

              Quanto às declarações de parte da mulher autora, diga-se antes de mais que não foi dada como testemunha no auto de notícia nem no inquérito do MP, apesar do filho da testemunha MF, que praticamente não sabia de nada (e por isso não será agora referido), ter sido indicado, no mesmo auto, como testemunha, o que logo levanta muitas dúvidas sobre se ela terá assistido, por pouco que fosse, ao acidente, apesar de se encontrar no local.  

              Quanto ao que ela disse, nesta parte, no essencial, foi o seguinte: ia atrás do marido, quando se deu conta, vinha esse carro em excesso de velocidade e o meu marido já a atravessar a estrada e depois já não viu mais nada. A seguir, com perguntas, lá vai dizendo que viu o marido parar antes do alcatrão da estrada, viu-o olhar para um e outro lado da estrada, viu que na recta vinha o veículo, viu o marido avançar e ser colhido pelo veículo. Quantos passos é que ele deu? Já tinha dado uns 4 ou 5 passos, já estava quase a chegar ao meio da estrada… O veículo ficou a 15 ou 20 metros. O embate deu-se a meio da frente do veículo, do meio para a direita… Depois a perguntas específicas do mandatário dos autores lá ‘confirma’ que o veículo não abrandou a velocidade.

              Como se vê trata-se de mais umas declarações que têm o fim específico de provar factos que seriam necessários à condenação do ré por culpa do condutor do veículo. E de novo sem qualquer lógica: se o peão tivesse dado 4 ou 5 passos e já fosse no meio da estrada – e tendo dado 4 ou 5 passos nem vale aqui tentar encontrar a justificação de que a autora mulher se estava a referir ao meio da hemi-faixa, pois que 4 ou 5 passos, por mais curtos que sejam, vão muito para além de 1,25m – não seria embatido pela esquina direita do veículo, mas, a ser embatido, sê-lo-ia pela esquina oposta.

              Assim, e pelo acima assinalado, não se acredita que esta autora tenha visto o acidente e que o que diz a propósito tenha algum valor.

              Mas também não se considera que o tribunal recorrido tenha razão em dar como provado o abrandamento, pois que o único meio de prova que dispõe para o efeito é o depoimento do condutor e este está a fazer um depoimento desculpabilizador, alterando para o efeito, se necessário, a verdade dos factos, como quando negou que o peão tivesse olhado para um e outro lado e depois vem a admitir o facto. Um depoimento feito nestas condições, sozinho, sem corroboração, não convence quando a factos desculpabilizadores do condutor do veículo.

              Portanto, o facto 30 será alterado para o pôr conforme com a eliminação deste segmento.

                                                                 *

              Quanto ao facto 31:

              Os autores pretendem que se retire do facto 31 a parte em que se refere: “presumindo que o peão aguardaria a sua passagem.” Isto porque aquilo que o condutor do veículo segurado pela ré presumiu ou não apenas poderá ser provado através do depoimento do mesmo; depois de transcrever várias passagens do depoimento do condutor, os autores salientam que este depoimento contém a já apontada contradição; e, por outro lado, dizem que tendo ele afirmado que sabia que o peão iria atravessar a estrada para colocar o molhe de erva que trazia às costas no carro que estava estacionado no outro lado da estrada e tendo afirmado que o peão, devido ao molhe de erva que trazia às costas, e apesar de olhar para ambos os lados, não o conseguiu ver, não pode dar-se como provado que presumiu que o peão iria aguardar e, por isso, continuou a sua marcha! Apesar do início, mais à frente os autores dirão que deve ser excluída toda a matéria do 31.

              A ré discorda da alteração, mas não diz em que elemento se poderá suportar a prova de que o condutor do veículo presumiu que o peão aguardaria a sua passagem.

              Apreciação:

              Vale aqui o que se disse acima: não há razão, realmente, para acreditar no depoimento do condutor do veículo, dada a forma como se tentou desculpar e é realmente incompatível por um lado pensar-se que o peão não o viu e, mesmo assim, pensar-se que ele não vai avançar aguardando a sua passagem.

              Portanto, o facto 31 será alterado para o pôr conforme com a eliminação deste segmento                                       

                                                                 *

              Os autores consideram que o facto 32 (: “Acto contínuo, veio o peão a embater na zona do canto frontal direito (faróis e retrovisor) do veículo AA”) devia ser alterado para: Quando já estava a atravessar a via pública o peão foi colhido pelo veículo.

              Como toda a fundamentação para esta pretensão, dizem o seguinte: Face ao que acima já foi dito e atendendo a que o peão já se encontrava a atravessar a faixa de rodagem, tendo sido colhido pelo veículo, entendem que foi o veículo segurado pela ré que veio a embater com a sua parte frontal direita no peão e não o peão que embateu no veículo.

               A ré discorda da alteração e diz, quanto ao ponto de colisão no veículo, que foi “a extrema lateral direita do veículo que embateu na vítima – ‘na zona do canto frontal direito (faróis e retrovisor) do veículo AA’ -, matéria que é incontestável em face dos elementos probatórios carreados aos autos e que as partes não puseram em causa.”

              Apreciação:

              A pretensão dos autores tem como suporte a alteração do facto 7 que já se viu que improcede.

              De qualquer modo, já se viu, o que os autores pretendiam, no facto 7, era que se desse como provado que antes de ser colhido já o peão estava a atravessar a via após ter dado vários passos. Ou seja, a mesma pretensão que agora deduzem.

              Baseavam tal pretensão nas declarações de parte das autoras filha e mãe e no depoimento de MF.

              Quanto às declarações já foram apreciadas e o seu valor afastada.

              Quanto ao depoimento da testemunha MF, o que ela diz é: […] eu estava a sair da curva e quando eu olho, eu vejo o embate. Só vi isso. Foi o carro a bater no senhor e o senhor caiu para o lado e ficou-se. E eu vi que era uma pessoa porque vi as pernas, mas ele trazia um fardo de erva muito grande às costas. E eu só vi o embate, o carro a bater e o senhor a cair para a berma da estrada e ficou. Foi a única coisa que eu vi [3.32 a 4.06, num total de 34 segundos]. Pouco depois, precisa que vê isto tudo a mais de 30 m de distância. Apesar disto, o seu depoimento durou mais de 1h30. Trata-se de uma testemunha simpática, que tenta responder a tudo, na lógica de que, se lhe perguntam, é porque ela deve saber a resposta e por isso responde. Assim, depois, com perguntas já fala em passos dados pela vítima e põe esta a meio da estrada (mesmo a meio da estrada), mas logo a seguir, nesta última parte, já não confirma. Responde ao mandatário dos autores que tem a certeza absoluta de que a vítima deu uns passos na estrada, mas pouco antes tinha acabado de precisar que [00:25:32] Não. Eu não vi o senhor a sair. Eu já vi ele depois na estrada, praticamente a meio da estrada. Eu só vi mesmo assim o veículo do Canter a bater [00:25:34]. Na mesma lógica de responder a tudo acrescenta que a filha e a mãe saíram do portão a gritar (ou seja, a filha não estaria na viatura). Vê-se que é mais uma construção da testemunha, ou seja, que a testemunha está a contar aquilo que imagina (pensa-se que de boa fé) ter acontecido e não aquilo que viu (pois que não há dúvida que a filha estava dentro da viatura; o condutor segurado também a põe lá). Mas a testemunha insiste: tem a certeza do que afirmou. Diz que o veículo parou logo depois do embate: também aqui está em desacordo com todas as outras testemunhas. Depois, porque lhe perguntam, diz que “na minha percepção a pancada não foi grave, foi leve, pensou que a vítima se ia levantar.”

              Nada disto, à excepção da parte inicial, tem credibilidade. Quanto aos passos e meio da estrada, a questão é a mesma da acima referida e para aí se remete, sendo que aí já ficou esclarecido que esta testemunha estava mesmo convencida, pelo menos nesta parte, que o peão já ia a meio da estrada, o que é evidentemente um contra-senso, por tudo aquilo que já foi dito.

              Apesar disto tudo, o facto 32 tem de ser alterado.

              O que se sabe é que o peão avançou e foi embatido pela frente, esquina direita, do veículo: é o que resulta do dano na esquina do veículo, a 20 ou 30 cm, do lado direito, esclarecido pelo agente da PSP. O peão, por isso, avançou e foi colhido pela frente do veículo, não pela lateral. Mesmo que isto possa ser muito rápido, por exemplo, 0,5 segundo, a verdade é que um veículo, a 40km/h, percorre 5,5m. Mesmo que sejam imagináveis variantes que permitam alterar um pouco as contas (de 0,5 segundo para 0,75 s, já daria um aumento de 2,7m, por exemplo), já resulta que não se pode dizer que é acto contínuo – de resto, contínuo a quê? – que o peão é colhido. O peão é colhido pela frente, lado direito, do veículo quando avança em frente na estrada. É tudo o que se sabe e o resto são especulações.

              Não se acredita que o embate se tenha dado na lateral do veículo. O facto 32, tal como está redigido, permite essa leitura. Mas não foi isto o que a testemunha MF contou – se assim fosse ela diria que viu o peão a avançar e a embater no lado direito do veículo. E não é isto que resulta do ponto de embate que, como descrito pelo agente da PSP, ocorreu a 20 ou 30 cm da esquina lateral direita da frente do veículo. E não é também isso que resulta do facto de mancha de sangue, principal, ter ficado a 21,6m de distância do local provável de embate, como disse o agente da PSP, sem que aja qualquer razão para o pôr em dúvida, pois que se o embate tivesse ocorrido com o lado direito do veículo, o peão não seria levado pelo veículo. É certo que a testemunha MF diz que o peão ficou logo ali, no local de embate, mas isso não está de acordo com a mancha de sangue e já se viu que a testemunha responde a tudo, com evidentes erros. É certo também que o condutor ficou admiradíssimo quando lhe foi dito que a mancha de sangue ficou a 21,6m do local, e que disse, parecendo sincero nisto tudo, que isso só podia ser um erro. Mas o condutor também admitiu que ficou bem à frente do local de embate e não descreve os seus movimentos seguintes como se tivesse tido que andar para trás para ver o peão. E ficaria sempre por explicar porque é que a mancha de sangue estaria a 21,6 m do local de embate. Trata-se do trabalho feito por um agente da PSP com perto de 20 anos de serviço, naturalmente habituado a tirar medidas de acidentes de viação, e eventuais erros de localização de pontos, ao elaborar, mais tarde, o auto de notícia, não explicariam a existência de uma mancha de sangue a 21,6m do local de embate. E ele não foi inquirido sobre esta eventual dúvida.

              Em suma, o ponto 32 deve ser alterado no sentido de se dar como provado que: O peão avançou em frente e foi colhido pela frente, a 20 ou 30 cm da esquina direita, do veículo.

                                                                 *

              Quanto ao facto não provado A (no momento referido em 6 o passo do peão era lento, pois ia carregado).

              Os autores, para defenderem que este facto devia ser dado como provado, dizem: atendendo ao depoimento das testemunhas; atendendo a que foi dado como provado que o peão vinha com um molhe de erva às costas; que foi dado como não provado que o peão tivesse atravessado repentinamente a faixa de rodagem e atendendo ainda à logica e regras de experiencia comum e ainda, [sic]. Apesar de se referirem às testemunhas, depois só invocam passagens das declarações de parte da filha e da mulher.

              Apreciação:

              Quanto às declarações de parte já foram afastadas como relevantes. Quanto à testemunha MF o que ela disse sobre passos também não convenceu. Pelo que é impossível qualificar o passo, ou melhor, o avanço do peão dado como provado noutro ponto.

                                                                 *

              Quanto a B (com o embate, o peão foi projectado por mais de 20m), os autores entendem que os depoimentos prestados em audiência de julgamento [depois limitam-se a invocar as declarações de parte], conjugados com a prova documental, nomeadamente o doc.1 junto com a PI, deveria o tribunal a quo ter dado como provado que o peão foi projectado para o chão, se não a mais, pelo menos a cerca de 20m do local do embate. Com efeito, dizem, da participação do acidente junto como doc.1, que não foi impugnado, resulta ter havido uma projecção do corpo do peão, registada com os vestígios de sangue no solo com percurso de 21,60m do local do embate. A testemunha J, agente da PSP, relatou que elaborou a participação do acidente e croqui, e confirmou a medições efectuadas. Depois transcrevem passagens deste depoimento e das declarações de parte da filha e da mãe.

              A ré não diz nada quanto a isto.

              Avaliação:

              Quanto às declarações de parte, idênticas e estereotipadas, não convencem. Mas já o depoimento do agente da PSP convence, como já assinalado, quando se discutiu o facto 32. Mas ele não fala em projecção, antes sugere que o corpo pode ter sido levado ou arrastado pelo veículo (as passagens citadas pelos autores e pela ré são significativas disso; a testemunha MF também não fala de nenhuma projecção a 21,60m e o facto seria tão impressivo que ela não deixaria de o ter bem presente).   

              Assim, tem de se acrescentar esta matéria e deve-o ser feito ao ponto 33, por ali se falar na projecção e isso ter de ser alterado. Assim, o ponto 33 passa a ter a seguinte redacção: Tendo o peão, consequentemente, sido levado pelo veículo, acabando por ficar a 21,60m do local de embate.

                                                                 *

              Quanto a C (: O veículo circulava a velocidade superior a 50 km/h) os autores dizem que perante “a falta de rastos de travagem e de medições exactas, deveria a Srª juiz a quo ter conjugado com regras de experiência comum, e fundado a sua convicção, íntima, mas não objectiva [sic], de que o condutor do veículo segurado pela ré seguia a uma velocidade bem superior a 50km.” Por um lado, dizem, face às declarações das autoras B e A, de que passam a transcrever passagens.

              Por outro lado, dizem:

1. Face à projecção pelo ar do corpo do peão, registada com os vestígios de sangue no solo com percurso de 21,60m do local do embate (participação do acidente, não impugnado, bem assim prova testemunhal [ou seja, as declarações de parte já referidas – TRL]).

2. Mais, dispondo de uma visibilidade à sua frente de 58 metros, o condutor do veículo segurado pela ré não podia deixar de se aperceber, a tal distância, da manobra de atravessamento do falecido, na berma do lado direito a entrar na hemifaixa da via.

3. Se o condutor do veículo circulasse atento e a uma velocidade moderada – às condições da via, de características urbana, que o mesmo conhecia perfeitamente, tendo em conta o limite máximo de 50 km horários – e tivesse atempadamente travado, poderia, no nosso entendimento, ter evitado o embate.

4. Aliás, nestas circunstâncias, o condutor deveria ter moderado especialmente a velocidade, não circulando a uma velocidade superior a 40 km.

5. Mas, se a participação do acidente e as declarações de parte já nos dá informação bem segura, para além do mais, do excesso de velocidade que o arguido imprimia ao veículo que conduzia, não é menos verdade que o próprio relatório da autópsia nos fornece informação que, sem margem para qualquer dúvida, demonstra que a velocidade em causa nada tinha de moderada.

6. Com efeito, o número e a gravidade das lesões sofridas pelo malogrado, evidenciam só por si a violência do embate, e tal violência e respectivas consequências só poderiam ter resultado, naturalmente, de um embate provocado por um veículo que estivesse animado de uma velocidade bem superior à permitida para o local.

7. Aliás, basta pensar que, apesar do bom tempo que fazia, do bom estado do piso e de no local haver uma recta que permitia boa visibilidade, o condutor do veículo segurado pela ré não conseguiu evitar o choque, o que demonstra inequivocamente que seguia a uma velocidade que não lhe permitia, como não permitiu, controlar a marcha do veículo com a indispensável segurança, de modo a evitar um acidente caso surgisse qualquer obstáculo, logo, a velocidade a que seguia era, a todas as luzes, excessiva para o local. E foi, naturalmente causal do acidente. “

              A ré contrapõe que “tal facto não se mostra infirmado por qualquer prova, resultando, pelo contrário, comprovado pelos depoimentos prestados pelas testemunhas MF – que referiu que a colisão não lhe parecera forte – e R – que peremptoriamente afirmou não circular a velocidade superior a 40/45 km/h.”

              Avaliação

              Quanto às declarações de parte, já foi afastado o seu valor. De qualquer modo acrescente-se aqui que a autora filha é posta a dizer – e tal é aproveitado pelos autores – que o veículo arrastou o pai por 18 ou 19 metros quanto na posição em que estava nunca poderia ter visto nada do que se passou depois do veículo ter levado o pai, o que ela assumiu várias vezes. Quanto ao que as autoras declaram quanto aos hábitos de condução do condutor do veículo, relativamente a vezes anteriores, já se disse que as declarações de parte não convencem da sua veracidade. Para além disso, tendo sido só elas a falar desses hábitos, sem qualquer corroboração, e já afastada a sua credibilidade, não têm força para convencer do que afirmam a propósito.

              Quanto aos raciocínios avançados pelos autores, transcreveram-se na íntegra, desta vez, porque são bem ilustrativos de alguns dos muitos vícios que enfermam (e enumeraram-se para evitar repetições).

              Veja-se, sem se esquecer que se está a discutir a afirmação de que o veículo circulava a velocidade superior a 50 km/h: quanto a 1 não está provada a projecção pelo ar do corpo do peão a 21,60m do local do embate; quanto a 2: o dar um passo à frente pode levar menos de 0,5 segundo, pelo que não é possível o raciocínio; quanto a 3: primeiro, mesmo a 40km/h, se um obstáculo aparecer de forma imprevista a 5,5m, não é possível evitar o embate, tanto mais que há que contar com o tempo reacção: que é de aproximadamente de 3/4 de segundo a 1 segundo, como é ensinado nas escolas de condução; segundo, o facto de a uma dada velocidade se poder ter evitado um embate, sem mais, não equivale a dizer que um carro vinha a uma velocidade superior – não há nenhuma regra de lógica e de experiência comum das coisas que diga isso; quanto a 4, é irrelevante para a prova do facto, a afirmação feita sobre um dever ser com base em normas jurídicas; quanto a 5 e 6, trata-se de uma simples afirmação, sem qualquer tentativa de demonstração: mesmo que o veículo fosse a 40km/h, o facto de ter levado a vítima deixando-a uma distância de 21,6 m do local, poderia ter provocado o mesmo número de lesões; quanto a 7: há muitas outras razões para que o condutor não tenha conseguido evitar o choque, como se, por exemplo, a vítima tiver surgido de imprevisto na sua frente a uma distância tal que não o permitisse.

              Em suma: não há qualquer prova de que o veículo circulasse a mais de 50 km/h, ou sequer a 50 km/h.

                                                                 *

              Quanto a D (: O que [circular a mais de 50km/h] o impediu de ver o peão e de parar a sua viatura, evitando o acidente) e E (: devido ao referido em 26 [não ter travado] o embate foi mais forte), os autores entendem que face ao que foi dito no ponto anterior, e considerando-se que o condutor vinha em excesso de velocidade, tal facto impediu-o de parar a sua viatura e evitar o acidente, e o embate, face ao excesso de velocidade, foi necessariamente mais forte.”

              Avaliação:

              Desde logo o facto (e) não tem a ver com os 50 km/h.

              Seja como for, quanto a (d) não se tendo provado que o veículo seguia a mais de 50 km/h, fica afastada a afirmação; quanto a (e) a afirmação só teria sentido depois de se poder afirmar que o condutor devia ter travado e em que momento.

              Nada há a alterar.

                                                                 *

              Quanto a F (: O condutor do veículo conhecia a vítima, pois vivem próximo e trabalhavam também próximo), G (: O referido em 28 [cruzamento frequente entre a mulher e filha e condutor do veículo] verificou-se também em relação à vítima e o condutor do veículo trabalha nessa mesma recta, uns metros acima), H (: o condutor do veículo sabia que MB costumava trabalhar na propriedade privada referida em 5) e I (: Já havia ocorrido anteriormente o condutor do veículo segurado na ré passar por aquela recta em momento em que a vítima e esposa transportavam erva para o pasto, atravessando a estrada, para colocá-la no interior da viatura que normalmente fica estacionada em frente à entrada da propriedade privada referida em 5, no outro lado da estrada):

              Os autores dizem que face à prova testemunhal produzida estes factos deveriam ter sido considerados provados. Invocam passagens das declarações de parte da autora filha e depoimento do condutor do veículo e de mais ninguém, apesar de sugerirem o contrário – desde logo nunca apareceu o depoimento do JP que os autores anunciavam servir também para a impugnação de toda a matéria de facto.

              Apreciação 

              O que os autores não dizem é que o condutor do veículo negou estes factos à excepção do da 2.ª parte de G (irrelevante como facto que deva constar dos factos provados). Quanto às declarações de parte, já se viu que não se lhes deve dar crédito: as autoras vieram dizer coisas que importavam para a procedência da acção mas incompatíveis com os factos e as declarações de parte das autoras, sendo contraditadas pelo condutor, não estão corroboradas por outra prova.

                                                                 *

                                 Do recurso sobre matéria de direito

              Depois da exposição dos pressupostos da responsabilidade civil, decorrentes do art. 483/1 do CC, a sentença diz, em relação a um deles, qual seja, a culpa, que:

         Não resulta provado qualquer facto susceptível de imputar o atropelamento em que se traduziu o acidente em análise ao condutor do veículo interveniente no acidente, de molde a fundamentar um juízo de censura dirigido à respectiva conduta, sendo certo que, como acima se disse, era aos autores que incumbia a prova de tais factos.

         Ao invés, dos factos provados sob 1 a 7, 10, 30, 31, 34 e 45, resulta que o peão agiu com culpa.

         De facto, provado que o atropelamento do peão, à data com 69 anos de idade e surdo-mudo, se verificou quando o mesmo, com um fardo de erva às costas e, não obstante, antes de iniciar a travessia, ter olhado para a esquerda e para a direita, com o intuito de ver se circulavam veículos, quer no sentido ascendente, quer no descendente, estava a iniciar o atravessamento da via pública, impor-se-á a conclusão de que não observou o peão o dever prévio de cautela no atravessamento de uma via, assim como o dever de atravessamento rápido e sem paragens da faixa de rodagem.

         Ora, a um condutor diligente não pode exigir-se que preveja que um peão, naquelas circunstâncias, iniciaria o atravessamento de uma faixa de rodagem.

         Assim, o facto é imputado à vítima a título de culpa, na forma de negligência, porque revelador de uma atitude descuidada ou leviana em face das exigências que lhe eram impostas pelas normas estradais.

         Não se encontra, pois, preenchido este último pressuposto da responsabilidade civil extracontratual: a culpa.

         Por outro lado, tendo resultado provada a culpa do peão, afastada fica a possibilidade de uma eventual obrigação de indemnizar resultante de responsabilidade objectiva ou pelo risco por acidentes devidos a veículos de circulação terrestre, nos termos, na medida e limites do disposto nos artigos 483/2, 499 e 503 a 508, todos do CC. É que este tipo de responsabilidade, de carácter excepcional, […], serve para indemnizar quando não se prova ou não se presume a culpa.

         Aliás, basta que o acidente seja devido, atribuível, ao lesado, mesmo que não haja culpa dele, para que a lei, no artigo 505 do CC, considere quebrado, em virtude do facto praticado pela própria vítima, o nexo de causalidade entre o risco e o dano, excluindo-se a responsabilidade objectiva do detentor do veículo.

         Por outro lado, verificando-se culpa do lesado, bem como que o acto do lesado foi uma das causas do dano, qualquer presunção legal de culpa cede, sendo que a eventual responsabilidade de um terceiro apenas se poderá basear em culpa efectiva (artigo 570/2 do CC).

         Assim sendo, não pode ser a ré responsável pelo pagamento de qualquer indemnização, sendo que a ré seguradora só seria obrigada a indemnizar nos termos e na medida em que o fosse o seu segurado.

              A fundamentação contrária dos autores baseia-se, no essencial, no facto de o peão não ter atravessado repentinamente a estrada. A posição da seguradora é a contrária, coincidente com a sentença.

              Quanto aos autores veja-se:

         Referindo o disposto nos artigos 24/1 [“O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.”] e 25/1-c-f [“Sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados, o condutor deve moderar especialmente a velocidade: […] c) Nas localidades ou vias marginadas por edificações; […] f) À aproximação de aglomerações de pessoas ou animais; […]”] do Código da Estrada de 1994, quanto à velocidade dos veículos, e o art. 101 do CE quanto ao trânsito de peões (que também transcrevem), e alguns factos provados, os autores dizem de seguida que resulta não provado que: “o) Apenas quando o SV se encontrava já ao lado do peão, o mesmo, repentinamente e sem que nada o pudesse fazer prever, dá início à sua travessia.” E concluem: “Portanto, não resultou provado que o peão tivesse atravessado repentinamente a faixa de rodagem,” a que acrescentam: “Sendo esta, do ponto de vista dos autores, a única circunstância em que não seria de impor ao condutor do veículo que conseguisse imobilizar a sua viatura, evitando o embate.” E desenvolvem o raciocínio até dizerem expressamente, no 4.º § da página 67: “basta pensar que, apesar do bom tempo que fazia, do bom estado do piso e de no local haver uma recta que permitia boa visibilidade, e apesar de o peão não ter invadido repentinamente a faixa de rodagem […]”

              Quanto à seguradora:

         Tal como resultou dos factos provados e da análise dos factos à luz da experiência comum, o peão agiu com culpa quando, não obstante ter olhado para a esquerda e para a direita com o intuito de iniciar a travessia da via pública, não observou os deveres de cautela, sendo que ao condutor não era exigível que o peão depois de ter observado o espaço em seu redor iniciaria repentinamente o atravessamento de uma faixa de rodagem na qual o veículo já circulava e era facilmente visível.

         Assim, o acidente viário objecto dos presentes autos apenas pode imputar-se à vítima a título de negligência uma vez que aquele foi descuidado e atravessou temerariamente quando o veículo se aproximava e dera, ao parar junto da berma e olhado para um e outro lado da faixa de rodagem, sinal inequívoco de que aguardaria a passagem daquele antes de atravessar.

              Apreciando:

              Lá temos, de novo, os autores, a utilizarem os factos não provados como se estivessem provados [assim, a parte sublinhada acima: e apesar de o peão não ter invadido repentinamente a faixa de rodagem […]”], para conclusões de direito que têm de estar, por isso mesmo, erradas. Pois que um facto não provado equivale apenas, repita-se, à não alegação de um facto.

              E a questão é exactamente esta: o facto de se dar como não provado uma determinada alegação de facto, não quer dizer que o facto contrário se tenha verificado, nem que o facto em causa não se tenha verificado, mas apenas que não se provou.

              Posto isto,

              No caso dos autos, temos que o peão foi colhido quando avançou em frente para atravessar a estrada por onde o veículo circulava, sendo então colhido pela parte da frente deste, a 20 ou 30 cm da esquina direita.

              Esquecendo aquilo que foi dito pelas partes e pelas testemunhas e os raciocínios feitos na parte da discussão de facto para se ver se mereciam credibilidade as declarações de parte e os depoimentos das testemunhas, e partindo apenas dos factos provados, pode-se agora dizer que os factos não permitem a conclusão de que o peão atravessou repentinamente a estrada, nem que não o tenha feito (o que afasta a prova efectiva do condutor do veículo e, por isso, a condenação da ré com base na culpa efectiva do condutor do veículo segurado).

              Os factos provados permitem, no entanto, concluir que o peão avançou quando o veículo estava a uma distância muito próxima:

              O peão pode ter-se limitado a dar um passo de 60 cm e ter sido colhido pelo veículo. Se tivesse dado esse passo à velocidade de 0,43 sg (igual a uma velocidade lenta de 5km/h), nesse mesmo espaço de tempo, a 50 km/h, um veículo teria percorrido 5,97 m. Ou seja, enquanto o veículo estaria a percorrer 5,97 m, o peão teria percorrido 0,43 sg e o embate ter-se-ia dado e não era possível ao condutor do veículo ter sequer reagido, pois que o tempo de reacção de um condutor é de cerca de 0,75 sg.

              Mas também é possível que o peão tenha dados dois passos, um deles ainda na “berma”, de 60 cm cada um, levando 0,864 sg a fazê-lo. Aí já o veículo podia ter percorrido, a 50 km/h, 12m. Supondo o tempo de reacção de 0,75 sg, o veículo percorreria 10,41m, e no 1,59m restante o condutor podia ter travado. Embora no limite, e sem esquecer que se está a falar em tempos de recção comuns, aqui talvez já se pudesse defender que o condutor do veículo devia ter, pelo menos, iniciado a travagem.

              A especulação com os dados apurados poderia continuar: mudando-se o enfoque para os 70 cm possíveis do ponto de colisão (ao início da faixa de rodagem do lado direito no sentido que o veículo levava), ou mesmo mais alguns centímetros para a direita para a eventualidade do veículo ir um pouco mais perto do eixo da via, e cortando-se um bocado a passada do peão, e/ou o tempo que este levaria a dá-la, que é o quadro mais favorável ao peão, poder-se-á colocar o veículo a uma distância algo superior, não muito, aos 12m, talvez mais um ou dois metros.

              Mas, mesmo nesta hipótese se terá de aceitar que o peão quando avançou o fez quando o veículo já se encontrava muito próximo: avançar quando se está a 14 metros de distância, vindo um veículo a circular perto dos 50 km à hora, seria mesmo assim falta de cuidado da parte do peão, em violação das regras dos arts. 99/2 e 101/1 do CE que serão referidas de seguida, pois que num segundo esse veículo teria percorrido cerca de 14m, tanto mais que há que contar com o tempo de reacção, o que tornaria praticamente inevitável o embate.

              Veja-se, tendo isto em conta, as outras duas construções dos autores, já melhoradas:

              (i) Atendendo à presença do peão, ao facto de o peão ter olhado para ambos os lados, tudo indicando que iria atravessar, ao facto de este peão ser idoso e estar carregado com um fardo de erva às costas, era de concluir que era previsível para o condutor que o peão fosse atravessar, e por isso ele deveria ter conseguido em condições de segurança, executar as manobra necessária à imobilização do veículo.

              (ii) Mesmo que o peão tivesse infringido o disposto no art. 101 do CE, iniciando a travessia da estrada sem se certificar previamente de que, atenta a distância que o separava no início da travessia do automóvel [sic] e a velocidade a que este circularia, o podia fazer sem perigo de acidente, o condutor do veículo automóvel não estaria dispensado dos deveres de cuidado e atenção e do respeito pelas regras, designadamente de velocidade, que lhe permitissem evitar um qualquer atropelamento.

              Crê-se que é agora evidente que não é assim, sempre considerando apenas os factos dados como provados: o facto de o peão, que está parado na berma, ter olhado para ambos os lados, não indicava que ele ia atravessar. Antes pelo contrário: o facto de o peão ter olhado nos dois sentidos, indicaria que ele não atravessaria sem ter deixado passar antes o veículo que nela estava a circular. Aliás, tendo o peão só avançado quando, sejam quais forem as contas que se façam, o veículo já estava muito próximo, e sabendo-se que o seu avistamento se deu bem antes, isto é, depois do veículo ter feito a curva e entrado na recta (os autores, mais à frente, já se vai ver, mesmo que sem base para o efeito, falam em 50m e antes tinham falado em 58m), isso também aponta para que o peão fosse esperar a passagem do veículo (e tudo isto independentemente do que o condutor do veículo pensou ou deixou de pensar ou disse ter pensado; nada disso consta dos factos provados e não tem de ser considerado).

              Mais, o caso não tem a ver com a simples vontade de o peão atravessar a estrada (facto 5). O peão queria atravessar a estrada, “com um fardo de erva às costas, […] em direcção ao veículo da sua mulher, que se encontrava estacionado no lado direito (ascendente) da faixa de rodagem […]” (facto 6). A apontar para alguma coisa, o que este facto indicia é que o peão ia ficar na estrada, embora na outra hemi-faixa, a colocar o fardo de erva na carrinha da mulher. Pelo que, naturalmente, não ia querer fazer isso enquanto o veículo não passasse.

              Ora, um condutor de um veículo que circula pela estrada não é obrigado a parar sempre que vê alguém parado na berma da estrada, num local que não é uma passadeira, e não dá mostras de ir começar a atravessar (mesmo que possa imaginar que o peão o quer fazer quando o puder). Ele só é obrigado a abrandar e a travar, se necessário, se o peão der sinais/indícios de ir começar a atravessar a estrada, mesmo que, aí sim, o peão o faça em violação da norma do artigo 101 do CE. De outra forma, a circulação seria impossível, os condutores estariam sempre a parar em qualquer ponto de qualquer da estrada onde vissem um peão parado na berma.

              Veja-se melhor:

              O art. 99/2 do CE (desde a redacção originária do DL 114/94, de 03/05) dispõe: “Os peões podem […] transitar pela faixa de rodagem, com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos, nos seguintes casos: a) Quando efectuem o seu atravessamento; […].”

              O art. 101 do CE (os n.ºs 1, 2 e 3 com a mesma redacção desde o DL 2/98, de 03/01; o n.º 4 com a mesma redacção desde a Lei 7/2003, de 03/09; as precisões são feitas, aqui como acima, com base no CE na publicação do sítio da PGDL na internet), sobre o atravessamento da faixa de rodagem, dispõe: “1 – Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente. 2 – O atravessamento da faixa de rodagem deve fazer-se o mais rapidamente possível. 3 – Os peões só podem atravessar a faixa de rodagem nas passagens especialmente sinalizadas para esse efeito ou, quando nenhuma exista a uma distância inferior a 50 m, perpendicularmente ao eixo da faixa de rodagem. 4 – Os peões não devem parar na faixa de rodagem ou utilizar os passeios e as bermas de modo a prejudicar ou perturbar o trânsito. […]”

              O art. 40 do CE de 1954 (na redacção em vigor em 1988, tal como anotado por Manuel de Oliveira Matos, Almedina, 1988, pág.139), antecedente daqueles artigos do CE94), dispunha: “Os peões […] podendo, no entanto, transitar pela faixa de rodagem com prudência por forma a não prejudicar sem necessidade o trânsito de veículos nos seguintes casos: a) Quando efectuam o seu atravessamento; […] 4. No atravessamento da faixa de rodagem, os peões devem assegurar-se previamente de que o podem fazer sem perigo e efectuá-lo o mais rapidamente possível. Sempre que existam, a uma distância inferior a 50 m, passagens para peões devidamente demarcadas ou sinalizadas, o atravessamento deve ser feito por essas vias […]. Os peões só podem iniciar o atravessamento fora das passagens que lhes são destinadas após se certificarem de que o podem fazer sem perturbar a circulação dos veículos e devem efectuá-lo pelo trajecto mais curto e perpendicularmente ao eixo da via. 5. Os peões não devem parar nos passeios de modo a não perturbarem o trânsito. […].”

              Assim, embora o art. 101 do CE94 já não ponha, como o anterior, o assento tónico no dever do peão, ao atravessar a estrada no local que não está especificamente destinado a isso, se certificar de que pode atravessar sem perturbar a circulação dos veículos, falando agora no dever de se certificar de que, tendo em conta a distância que o separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o pode fazer sem perigo de acidente, tal atravessamento não deixa de estar subordinado ao dever, previsto no art. 99/2 do CE94, de ser feito com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos.

              Portanto, o peão, para além do dever de se certificar de que não há perigo de acidente, continua com o dever de prudência e de não prejudicar o trânsito.

              Tendo em conta isto, o condutor de um veículo que circule por uma estrada, sem passadeiras para peões, ao ver um peão na berma, sem ter iniciado a travessia nem dar mostras de o ir fazer, não é obrigado a parar chegam quais forem as circunstâncias, embora deva abrandar a velocidade se circular a uma velocidade que não lhe dê tempo para parar antes do embate no caso de o peão, de forma prudente, iniciar o atravessamento (art. 24/1 do CE).

              No caso, não há prova de que o condutor circulasse a uma velocidade que não lhe permitisse evitar o embate naquele caso, pelo que não tem sentido colocar em jogo o dever de abrandar a velocidade.

              É evidente que se o peão tivesse iniciado o atravessamento da estrada, ou tivesse dados sinais inequívocos de que ia iniciar esse atravessamento, nada mais restava ao condutor do veículo do que abrandar e parar o veículo. Mas ele entrou na recta, viu o peão na berma, sem mais, e nada mais se passou até ao momento em que, sejam quais forem as contas que se façam, o veículo já estava muito próximo do peão. Assim sendo, e perante os factos provados, não há razões para censurar o condutor pois que, repete-se, não se sabe a que velocidade circulava, nem havia indícios de que o peão fosse atravessar a estrada antes de ele passar.

                                                                 *

              Os autores ainda têm outra construção, mas é apenas uma variante das anteriores e baseada aliás parcialmente em factos não provados; dizem eles que o acidente deveu-se à velocidade excessiva em que seguia o veículo e a falta de atenção do condutor do veículo, pois que este avistou o peão a mais de 50 m de distância; se estivesse atento e tivesse travado ou moderado a velocidade às circunstâncias, poderia ter evitado o embate. Mas também não é assim. Dos factos provados não consta que a velocidade fosse superior a 50 km/h, nem que o condutor fosse desatento, e já se demonstrou acima, que o peão pode-se ter atravessado de repente à frente do veículo, sem dar tempo de reacção ao condutor, ou seja, mesmo que ele fosse com atenção.

                                                                 *

              Os autores ainda dizem que entendem que o peão não contribuiu de forma alguma, para a ocorrência do atropelamento; não foi a conduta do peão que contribuiu para o acidente, nem da matéria provada pode tirar-se uma tal ilação.

              Mas, como se viu, dos factos provados não é possível extrair tal conclusão: a conduta do peão contribuiu, de algum modo, para o acidente. Como se viu, mesmo no quadro mais favorável ao peão, ele sempre terá avançado quando o veículo se encontrava já demasiado próximo.

                                                                 *

              Os autores dizem ainda que no caso de concurso de comportamentos negligentes por parte do condutor e do peão, a negligência deste não desvirtua a negligência do condutor que, por se revelar prevalecente e determinante na produção do resultado, torna irrelevante a negligência do peão.

              Não sustentam, com a invocação de normas legais, as afirmações. De qualquer modo, a discussão é irrelevante, pois que não se prova a negligência efectiva do condutor. Ao contrário do que se passa com o peão, nas várias hipóteses que é possível configurar, apenas na que é mais favorável ao peão é que se pode apontar alguma negligência ao condutor, mas não em todas as restantes.

                                                                 *

              Por fim, os autores dizem que competia à ré seguradora a demonstração de todos os factos que afastassem a culpa exclusiva do condutor atropelante. E entendem que não o conseguiu.

              Mas os autores não dizem qual é a norma legal que diz que é o condutor (ou o seu segurador) que tem de provar factos que demonstrem que não tem culpa. Isto só seria assim se os autores tivessem alegado alguma presunção de culpa, como por exemplo, a do art. 503/3 do CC (presunção de culpa do condutor por conta de outrem), o que não fizeram (não alegaram que o condutor fosse um condutor por conta de outrem, nem invocaram a respectiva presunção de culpa – embora a outro propósito veja-se, no sentido da necessidade de alegações desses factos, o acórdão do Pleno das Secções Cíveis do STJ de 30/04/1996: O dono do veículo só é responsável, solidariamente, pelos danos causados pelo respectivo condutor quando se alegue e prove factos que tipifiquem uma relação de comissão, nos termos do artigo 500.º, n.º 1, do Código Civil, entre o dono do veículo e o condutor do mesmo (proc. 87236, DR 144/96 SÉRIE II, de 1996-06-24). O ISS teve o cuidado de alegar os factos necessários, mas não constam dos factos provados e não houve impugnação da decisão da matéria de facto relativamente a essa matéria. E a alegação do ISS não supriria a falta de alegação desses factos pelos autores que os teriam que ter alegado para que deles se pudessem aproveitar.

                                                                 *

                                      Da responsabilidade pelo risco

              A discussão à volta do recurso sobre matéria de direito já permitiu afastar a decisão recorrida: ela tem de ser revogada, porque agora se considera que a culpa do peão não é total, ao contrário do que nela foi considerado.

              Assim, há que agora decidir a solução para o caso, apesar de as vias seguidas pelos autores não serem as correctas.

            O art. 503/1 do CC, sobre acidentes causados por veículos, diz que aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação. O art. 505 do CC dispõe que: Sem prejuízo do disposto no artigo 570.º, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo. O art. 570 do CC dispõe que: 1. Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída. 2. Se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar.

              Estas normas eram tradicionalmente vistas como excludentes da concorrência da culpa com o risco, mas hoje é comumente admitida essa concorrência: assim, o ac. do STJ de 25/05/2021, proc. 3883/18.4T8FAR.E1.S1: um dos últimos: I – Por força de uma interpretação actualista e sistemática do preceito, que tem em conta a conjuntura do momento em que a lei é aplicada […], bem como a unidade da ordem jurídica […], aderimos à orientação jurisprudencial fixada no acórdão deste STJ de 04/10/2007 [proc. 07B1710], que admite a concorrência entre o risco próprio do veículo e a culpa do lesado; e o estudo de Carlos Lopes do Rego, A problemática da concorrência da responsabilidade objectiva, decorrente dos riscos de circulação do veículo, com a culpa do lesado, publicado na Julgar, nº. 46, Jan/Abril 2022, págs. 33 a 67, que refere, directa ou indirectamente, a inúmera doutrina e jurisprudência que vai no mesmo sentido.                  

              Presume-se que o proprietário de um veículo tem a direcção efectiva do mesmo e o utiliza no seu próprio interesse (ac. do STJ de 31/10/2006, proc. 06A3245: “É de admitir uma presunção de condução efectiva e interessada relativamente ao dono de um veículo, pois o conceito de direcção efectiva e interessada cabe dentro do conteúdo do direito de propriedade […]; ac. do STJ de 21/04/2009, proc. 1550/06.0TBMTJ.S1: A direcção efectiva do veículo traduz-se num poder real – material ou de facto -, presumindo-se que o detém o proprietário) e um dos riscos próprios dos veículos é atropelarem pessoas quando estas estão a atravessar estradas, pelo que se está no âmbito da responsabilidade objectiva prevista no art. 503/1 do CC.

              No caso de um acidente de viação entre um veículo automóvel e um peão, sem que se prove a culpa do peão ou de terceiro ou que o acidente se deu por caso de força maior estranha ao funcionamento do veículo, a responsabilidade pelo acidente corre por conta do risco do proprietário do veículo: neste sentido, entre muitos outros, vejam-se os acórdãos da RP de 11/12/1981, na CJ.81.5.2745, e da RC de 2/2/1982, CJ.1982.1.95; neste exacto sentido veja-se também o ac. do STJ de 14/04/2005, proc. 05B686, que trata precisamente da hipótese de um atropelamento de um peão sem que se tenha provado a culpa quer do peão quer do condutor do veículo; ainda no mesmo sentido, o acórdão do STJ de 19/11/98, proc. 98B861: II – Não se provando a existência de culpa, quer por parte do condutor do veículo que por parte do peão atropelado, e não ocorrendo a presunção de culpa do n. 3 do artigo 503 do CC, há que fazer funcionar as regras da responsabilidade pelo risco; com uma fundamentação algo diversa, mas com o mesmo resultado, veja-se ainda o ac. do STJ de 23/3/2000, proc. 00B142: I – Num acidente de viação entre um peão e um veículo automóvel, se não se tiver apurado culpa de qualquer interveniente, há que, porque o peão não produz risco algum, o atribuir na íntegra ao condutor da viatura. II – Não faria sentido que o legislador impusesse a obrigação de indemnizar no caso de colisão de veículos e deixasse sem ressarcimento um peão atropelado – por isso, mais indefeso – como se nesta situação o veículo automóvel não fosse a se um factor produtor de risco.

              O facto de os autores não terem invocado a responsabilidade pelo risco, não afasta a possibilidade da ré ser condenada com base nela.

              É que, como uniformemente a jurisprudência vem en­tendendo, nas acções de in­demnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, quando o autor for­mula o pedido de indemni­zação com base na culpa do lesante, implicita­mente está a formulá-lo com base no risco, visto este estar englobado na causa de pedir invocada, por os factos ou razões de facto serem os mesmos, com excepção dos referentes à existência da culpa (acs. do STJ de 31/10/78, BMJ 280/306, e de 26/11/80, BMJ 301/309; veja-se, no mesmo sentido, Calvão da Silva, Responsabilidade Civil do Produtor, Almedina, Teses, 1990, pág. 589, entendendo que a causa de pedir neste tipo de acções é o acidente, abrangendo, portanto, todos os pressupostos da obrigação de in­demnizar, salvo se dos autos resultar que o autor só pretende a indemniza­ção se houver culpa do demandado – e os autores e acórdãos por ele citados). Ou como diz Raul Guichard, no Comentário ao CC, Direito das Obrigações, UCP/FD/UCE Dez218, pág. 400: “É incontroverso que, mesmo que não se faça prova da culpa do demandado, o tribunal pode apreciar a procedência do pedido com base na responsabilidade pelo risco, sendo que ‘[a] causa de pedir, nas acções de indemnização por acidente de viação, é o próprio acidente, e abrange todos os pressupostos da obrigação de indemniza[r, se] o autor pede em juízo a condenação do agente, invocando a culpa deste, ele quer presuntivamente que o mesmo efeito seja judicialmente decretado à sombra da responsabilidade pelo risco, no caso de a culpa se não provar[, e], assim, mesmo que não se faça prova da culpa do demandado, o tribunal pode averiguar se o pedido procede à sombra da responsabilidade pelo risco, salvo se dos autos resultar que a vítima só pretende a reparação se houver culpa do réu» (Ac. STJ 04/10/2007 – 07B1710).”

              No caso prova-se também a culpa do peão, logo está-se no âmbito da concorrência de risco e culpa (arts. 505 e 570 do CC). Nas várias hipóteses configuráveis, concluiu-se que a culpa do peão existe em todas elas, embora com mais intensidade numas que noutras. Para afastar total ou parcialmente a responsabilidade pelo risco, tem que se provar a culpa do peão, pelo que nestes casos a culpa funciona como facto impeditivo ou modificativo a ser provado pelo responsável pelo risco (art. 342/2 do CC). Assim sendo, é a hipótese mais favorável ao peão que, na dúvida, se tem de considerar provada. Pelo que se entende que a culpa dele é uma culpa leve de apenas 25%, tanto mais que, por um lado era surdo, tornando mais difícil percepcionar a aproximação e velocidade do veículo, e estava carregado com um fardo de erva às costas, andando curvado, o que leva a supor que o seu ângulo de visão fosse menor, podendo não ver um veículo que já circulava na estrada, ou vendo-o, achando que tinha tempo de atravessar a estrada. A responsabilidade pelo risco é afastada apenas nesta medida, restando pois 75% dela.

              A responsabilidade da ré decorre do facto de ter celebrado um contrato pelo qual o proprietário do veículo dado como responsável pelo acidente lhe tinha transferido a eventual responsabilidade civil emergente da circulação do veículo.

                                                                 *

                     Os danos invocados e provados

                                                       Dano morte

              Os autores, na petição inicial, invocam este dano não patrimonial, cuja indemnização dizem que lhes (cônjuge e filhos) cabe em conjunto, por direito próprio, nos termos do art. 496/2 do CC.

              Invocam os acórdãos do STJ de 24/10/2016 [estarão antes a referir-se 24/10/2006, proc. 06A3021]: “A morte é o prejuízo supremo, no plano dos interesses da ordem jurídica, pelo que, sendo o bem da vida o valor supremo, há que ressarcir o dano da morte de forma a garantir a elevada dignidade que ele merece.”; e do STJ de 22/02/2018 [estão a referir-se ao proc. 33/12.4GTSTB.E1.S1 – este acórdão confirma o ac. do TRE que atribuiu o valor de 120.000€ por este dano], que refere jurisprudência em que os valores se situam entre 50.000€ e 100.000€, como por exemplo, os acórdãos do STJ de 03/11/2016 [estarão a referir-se ao proc. 6/15.5T8VFR.P1.S1] e de 08/06/2017 [estão a referir-se ao proc. 1524/10.7TBOAZ.P1.S1].

              E depois dizem que, tendo em consideração a idade da vítima, à data do acidente (69 anos), ser pessoa alegre, activa, a imputação do acidente a culpa exclusiva ao condutor do veículo segurado pela ré, com negligência, o demais factualismo alegado, e os critérios legais previstos nos artigos 494, 496, 499, 503, nº [sic], 562 a 564 e 566 do CC, consideram ajustado para compensar a perda do direito à vida da vítima 60.000€.

              A seguradora respondia que não obstante o direito à vida seja preponderante e constitucionalmente inviolável e inalienável, na atribuição de uma indemnização sobre a perda da mesma, tendo em aras consideração um juízo de equidade e proporcionalidade, há que ponderar critérios próprios dessa mesma vida, como o estado de saúde e a idade da mesma. No caso, o peão à data do sinistro, tinha 69 anos de idade, encontrava-se aposentado, desconhecendo-se, em absoluto, o seu estado de saúde. E, portanto, tendo em consideração a esperança média de vida de cerca de 80 anos (cfr. dados públicos do INE referentes ao ano de 2018), o mesmo, se saudável – o que se desconhece, reitere-se -, poderia, hipoteticamente, viver mais cerca de dez anos. Acontece que, segundo resulta da documentação junta aos autos bem como alegado na p.i., o mesmo sinistrado era pedreiro de profissão, permanecendo, após aposentação a acartar pesados fardos de erva e executando outras lides denominadas de “trabalho pesado”. E, portanto, sempre será de qualificar por excessivo e infundado o montante reclamado nesta sede. Com efeito, “(…) o juiz, para a decisão a proferir no que respeita à valoração pecuniária dos danos não patrimoniais, em cumprimento do normativo legal que o manda julgar e harmonia com a equidade, deverá atender aos factores expressamente referidos na lei e, bem assim, a outras circunstâncias que emergem da factualidade provada. Tudo com o objectivo de, após a adequada ponderação, poder concluir a respeito do valor pecuniário que considere justo para, no caso concreto, compensar o lesado pelos danos não patrimoniais que sofreu. (…) De igual forma, o montante indemnizatório pelo dano “morte” a que chegou o TRP – 35.000€ – encontra-se, dentro das balizas da jurisprudência que vem sendo sustentada por este STJ, em matéria de danos não patrimoniais no sentido de considerar que a indemnização, ou a compensação, deverá constituir um “lenitivo” para os danos suportados, não devendo, portanto ser “miserabilista”; deve ser significativa e equilibrada, sem cair nos extremos – “a sua expressão não deve nem pode ser meramente simbólica, mas também não deve nem pode representar negócio.” (conferir acórdão do STJ de 05/07/2005, proc. 05A3765). De facto, ao ser entregue aos autores o montante de 60.000€, pela sua expressão de grandeza, tal constituiria um enriquecimento sem causa e não uma justa compensação pelos danos não patrimoniais eventualmente sofridos, e em manifesta violação do disposto nos artigos 496/1, 562, 563 e 564, todos do CC.

              Apreciação:

              Muito mais adequado aos tempos actuais do que um acórdão do STJ de 2005, de há 17 anos atrás, é o ac. do STJ de 25/02/2021 proc. 4086/18.3T8FAR.E1.S1 que diz:

         Em sede de compensação pela perda do direito à vida, tendo em conta que a vítima tinha 53 anos e não contribuiu para a produção do acidente, à luz dos parâmetros mais recentes da jurisprudência do STJ, tem-se por razoável fixar o valor base daquela compensação em 80.000€.

              Este acórdão lembra, através da sentença do tribunal de 1ª instância, os ensinamentos de Leite Campos [A Vida, a morte e a sua indemnização, BMJ, 365, pág. 15] no sentido de que esta obrigação de indemnizar deve se avaliada “pelo valor da vida para a vítima enquanto ser”, traduzindo o dano morte“ um prejuízo  igual para todos os homens” e a  “lesão de um bem  superior a todos os outros” e o acórdão do STJ de 08/06/2017, proc. 1524/10.7TBOAZ.P1.S1 – que entendeu «ser justo e equitativo fixar o valor do dano da perda da vida no montante de 80.000€ – bem como, através do acórdão do TRE, o facto de se ter consolidado na jurisprudência do STJ o entendimento de que o dano pela perda do direito à vida, direito absoluto e do qual emergem todos os outros direitos, situa-se, em regra e com algumas oscilações, entre os 50.000€ e 80.000€, indo mesmo alguns dos mais recentes arestos a 100.000€” [referindo em nota vários acórdãos de 2012 a 2016 nesse sentido].

              Depois lembra, com o já citado ac. do STJ de 08/06/2017, que «no critério a adoptar, não se devem perder de vista os padrões indemnizatórios decorrentes da prática jurisprudencial, procurando – até por uma questão de justiça relativa – uma aplicação tendencialmente uniformizadora ainda que evolutiva do direito, como aliás impõe o n.º 3 do artigo 8.º do CC, mas sem descurar as especificidades de cada caso».

              E acrescenta:

         “E a verdade é que, em sede de avaliação do dano morte, a mais recente jurisprudência do STJ tem vindo a progredir, consoante os casos, para níveis mais próximos dos 80.000€, a rondar mesmo, nos casos mais graves, os 100.000€ [conf. ac. do STJ de 11/02/2021, proc. 621/18.8T8AGH.L1.S1].

         Assim, foi nesta linha  de entendimento que no acórdão do STJ, de 21/03/2019, proc. 20121/16.7T8PRT.P1.S1, se fixou, relativamente a uma situação equiparável  à do caso concreto sub juditio [existência de concorrência de culpas entre o condutor do veículo seguro na ré e a vítima, na proporção de 30% para o condutor e de 70% para a vítima mortal, que, à data, tinha 55 anos de idade], a indemnização devida pela perda do direito à vida em 80.000€.

         E, no recente acórdão do STJ, de 04/06/2020, proc. 2732/17.5T8VCT.G1.S1, teve-se por razoável arbitrar a indemnização de 80.000€ num caso em que o lesado  tinha 53 anos, quando foi vitimado por um acidente de viação da exclusiva responsabilidade do condutor do veículo objecto do seguro firmado na ré. 

         Daí que, ponderando as circunstâncias em que decorreu o acidente, a idade da vítima mortal (53 anos), o facto de não ter dado causa ao acidente e atendendo, numa perspectiva de satisfação das exigências do princípio da igualdade plasmado no art. 13/11 da CRP, aos parâmetros seguidos pela jurisprudência  mais actualista deste STJ,  seja de considerar, por um lado, excessivo o montante de 100.000€ reclamado pelos recorrentes a título de indemnização pela perda do direito à vida de CC e, por outro lado, insuficiente o montante arbitrado pelo TR, tendo-se, antes, por mais razoável e equitativa a compensação de 80.000€ arbitrada pela 1.ª instância.

         Têm, assim, o autor e a BB, em conjunto, direito este montante, cabendo, por isso, a cada um deles 40.000€.”  

              Tendo então em conta, no caso, a idade da vítima, o facto de, face aos factos provados, ser de lhe imputar a culpa do acidente em 25%, e a jurisprudência recente do STJ, atribuiu-se a este dano, já descontada aquela percentagem da culpa da vítima, o valor de 60.000€, a dividir em partes iguais pelos cinco autores.

                                                                 *

              Dano sofrido pela vítima nos momentos que precederam a sua morte (dano intercalar)

              Os autores dizem que a morte do peão não foi imediata, tendo ocorrido cerca de cinco horas depois do acidente. E invocam o sofrimento que padeceu, a agonia e a consciência da eminência da morte. Dizem que são danos não patrimoniais próprios da vítima, que devem ser indemnizados nos termos do art. 496/3 [querem referir-se ao 496/4] do CC, conjuntamente às pessoas elencadas no artigo 496 do CC, aos autores, mulher e filhos da vítima. Acrescentam que o dano que é aqui procurado reparar engloba não só a dor física como a consciência da eminência da morte. E a preocupação com o futuro da mulher e filha, dependentes dele. Para o efeito, consideram-se o valor de 10.000€.

              A seguradora responde que:

         “Segundo resulta do doc.8 junto com a PI, bem como dos factos 50 a 55, o peão, aquando da entrada nos SU do Hospital – e, presumivelmente, logo após o embate no veículo – apresentava-se inconsciente e não reactivo. Com efeito, resulta da autópsia realizada, o mesmo veio a falecer por força das lesões que sofreu através de impacto de “objecto contundente ou actuando como tal.” Atente-se que a classificação do trauma crânio-encefálico numa escala de Glasgow de 3 pontos (de entre 3 a 15) é a mais grave, sendo que, quando resultante da análise dos três testes capacitativos do paciente (respostas de abertura ocular, fala e capacidade motora) significa que o mesmo se encontrará em coma. Portanto, logo após o seu embate no veículo ou no chão, o peão perdeu os sentidos e a consciência e, portanto, a capacidade de sentir dor, pelo que, correspondendo os danos não patrimoniais próprios da vítima à dor que esta terá sofrido antes de falecer, e devem ser valorados tendo em atenção o grau de sofrimento daquela, a sua duração, o maior ou menor grau de consciência da vítima sobre o seu estado e a previsão da sua morte” (cfr. acórdão do STJ de 04/06/2008, proc. 1618/08), nenhum montante será devido a título de dano moral da própria vítima (dores físico-psíquicas de que terá padecido entre o acidente e a morte). Concomitantemente, os autores não cumpriram o onus probandi do dano que alegam, pelo que, nos termos do disposto nos artigos 414 do CPC e 342 do CC, considerar-se-á por não provado.

              Apreciação:

              No já referido acórdão do STJ de 25/02/2021, proc. 4086/18, diz-se que:

         Relativamente a este dano chamado de dano intercalar, que constitui a conversão económica da dor e angústia sofridas pela vítima, durante o período que mediou entre o acidente e a morte, importa realçar constituir entendimento pacífico no seio da jurisprudência  deste STJ, que os valores a fixar, nos termos do disposto no art. 496/4 do CC, variam bastante em função das circunstâncias do caso concreto, designadamente da gravidade das lesões sofridas, da intensidade das dores sofridas e do período de tempo durante a qual as dores se prolongam.”

              Depois este acórdão refere vários factores que confirmam aquilo que já resulta do que antecede, ou seja, que este dano pressupõe que a vítima tenha estado consciente durante este período intercalar.

              Ora, no caso dos autos não se provou que a vítima tenha estado consciente qualquer período de tempo, antes apontando em sentido contrário os factos provados 11 e 15. Sendo aquele facto constitutivo do direito à indemnização, tinha que ficar provado pela positiva (art. 342/1 do CC), pelo que, não ficando apurado, não se verifica o dano em causa que, por isso, não deve dar lugar a indemnização.

                                                                 *

              O desgosto sofrido pelo cônjuge e pelos filhos com a morte da vítima

         Os autores invocam o dano sofrido por cada um deles com a morte da vítima, que dá direito a indemnização de acordo com a hierarquização do artigo 496 do CC. Considerando as circunstancias em que o acidente e morte ocorreram e tendo ainda em conta o bom relacionamento que existia entre eles e a vítima, consideram ajustado para o compensar a atribuição de 20.000€ à autora mulher, 15.000€ para a autora filha – tendo em conta que estas assistiram ao acidente, viram o seu pai e marido agonizar entre a vida e a morte e viviam com a vitima – e 10.000€ para cada um dos outros três filhos, tendo em conta que eles também naturalmente sofrem mas terão conseguido enfrentar essa realidade de forma menos depressiva.

         Dizem que está em causa um dano não patrimonial indemnizável à luz dos critérios insertos no artigo 496/1 do CC, cuja quantificação é sempre difícil por envolver a valoração do sofrimento com a ruptura de laços afectivos devido à morte de um ente querido. Na fixação desta indemnização não pode prescindir-se do recurso à equidade, ou seja, à ponderação, prudencial e casuística, das circunstâncias do caso por apelo ao critério subsidiariamente previsto no artigo 496/4 do CC.

                    A seguradora responde que

                   É excessivo o valor reclamado. Desconhece-se se os cônjuges se encontravam unidos de facto e se o de cujus vivia harmoniosamente quer com a sua mulher quer com a sua filha; os 3 filhos maiores residem no estrangeiro, desconhecendo-se qual o grau de convívio ou proximidade afectiva eventualmente existente entre estes. Não poderá ser equiparado o sofrimento de quem vive diariamente ou mantém uma relação familiar próxima ao de quem se encontra afastado geograficamente e necessariamente, do ponto de vista, afectivo e familiar; a mera consanguinidade ou relação matrimonial não são prova cabal da efectiva existência, frequência e/ou bondade da relação sócio-afectiva. É essa relação que se revele essencial para a determinação de um quantum indemnizatório aos familiares próximos da vítima, que incumbia aos autores demonstrar, não o tendo feito. Com efeito, “[n]a sua determinação «há que considerar o grau de parentesco, mais próximo ou mais remoto, o relacionamento da vítima com esses seus familiares, se era fraco ou forte o sentimento que os unia, enfim, se a dor com a perda foi realmente sentida e se o foi de forma intensa ou não. É que a indemnização por estes danos traduz o “preço” da angústia, da tristeza, da falta de apoio, carinho, orientação, assistência e companhia sofridas pelos familiares a quem a vítima faltou» – cf. Sousa Dinis, in Dano Corporal em Acidentes de Viação, CJSTJ 1997, tomo 2, pág. 13 (cfr. acórdão do STJ de 15/04/2009, proc. 08P3704). Na ausência de demonstração da instabilidade emocional e dificuldades resultantes do dano morte do seu familiar, elementos que sempre deverão ser ponderados na atribuição do direito indemnizatório, os autores não devem ser compensados pelo valor reclamado, sob pena de enriquecimento sem causa justificativa. Não seria uma justa compensação pelos danos não patrimoniais eventualmente sofridos; extravasaria igualmente o disposto nos artigos 496/1, 562, 563 e 564, todos do CC.

              Apreciação:

              No já referido ac. do STJ de 25/02/2021, proc. 4086/18.3T8FAR.E1.S1, escreve-se:

         “[…] cumprindo-nos indagar […] quais  os valores arbitrados que mais se  harmonizam com os critérios ou padrões seguidos pela  jurisprudência,  importa salientar, tal como nos dá conta o citado acórdão do STJ de 21/03/2019, proc. 20121/16.7T8PRT.P1.S1, que relativamente à indemnização de um filho pela morte do pai ou mãe, a jurisprudência deste STJ  tem fixado valores que têm variado, em razão da especificidade do caso, entre 7.500€ e 30.000€ [refere inúmeros acórdãos de 2010 a 2018], tendo fixado valores mais elevados apenas nos casos em que existe uma especial situação de fragilidade dos filhos em causa [cfr, entre outros, acs do STJ de 10/01/2012, proc. 4524/06.8TBBCL.L1.S1, e de 19/04/2012, proc. 569/10.1TBVNG.P1.S1].

         Assim, à luz destes parâmetros e cientes da necessidade de uma progressiva actualização dos valores indemnizatórios, impõe-se concluir, ante o quadro factual supra descrito, ser ajustada a indemnização arbitrada pelo TRE ao autor [filho: de 35.000€], não se vislumbrando razões para estabelecer, a este nível, a diferenciação entre o autor, enquanto filho da vítima, e a interveniente BB [unido de facto], atendo o facto de a mesma ter vivido em união de facto com a vítima durante 6 anos.

         Com efeito, resulta claro da matéria dada como provada que ambos mantinham com a vítima laços de afectividade e convivência no âmbito de um mesmo consolidado agregado familiar, admitindo-se que ambos ficaram psicologicamente afectados, em igual medida, pela perda do CC.

         Considera-se, por isso, justo e adequado que a indemnização base pelos danos próprios do autor e da interveniente BB seja fixada em 35.000€.”

              No caso, isto poderia levar à atribuição às autoras, cônjuge e filha conviventes, de 35.000€ para cada uma, sem distinções entre elas; e a cada um dos filhos, a indemnização de 20.000€, já que, naturalmente, estes, embora a viverem distantes e independentes, mantinham laços de afeição, mas esses laços eram, também naturalmente, de menor intensidade em relação às outras duas autoras. Mas como tal ultrapassaria o valor destes pedidos e não se pode dar aos autores mais do que pedem (art. 609/1 do CPC), não vale a pena discutir a discrepância em relação ao pedido, sendo de se aceitar os valores indicados pelos autores (20.000€ para a cônjuge, 15.000€ para a filha e 10.000€ para cada um dos filhos).

                                                                 *

              Dos alimentos ou da perda de rendimentos futuros (art. 495/2 do CC)

               As duas primeiras autoras dizem:

         Tendo resultado do embate a morte do seu marido e pai, dai lhes advieram um manifesto e imediato prejuízo próprio, por não mais poderem contar com a ajuda financeira do falecido para o seu sustento. Eram absolutamente dependentes financeiramente do falecido, que auferia mensalmente 550€ de reforma, assegurando ainda um rendimento mensal de cerca de 500€ (resultante da venda de animais que criava, e de produtos agrícolas que cultivava), beneficiando as autoras de cerca daqueles valores [sic], previsivelmente até ao limite da esperança de vida da vítima que é, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística, em relação homens de 65 anos em Portugal, de 17,58 anos.

         Ora, a vítima nasceu em 03/05/1949, pelo que à data do acidente tinha 69 anos. O que significa que teria, em média, mais 13,58 anos pela frente. A autora mulher nasceu em 14/01/1963, pelo que à data do acidente tinha 55 anos. A filha nasceu em 19/03/2002, pelo que à data do acidente tinha 16 anos.

         Depois, citando extensamente o ac. do TRP que esteve na base do acórdão do STJ de 08/06/2017, 1524/10.7TBOAZ.P1, estabelecem distinção entre dois períodos no tempo que iria até ao termo daquela esperança de vida, o primeiro, de 9 anos, reportado ao fim da formação escolar da filha (25 anos) e o outro a partir daí  (4 anos). No primeiro período reportam-se a todo o rendimento auferível pela vítima. No segundo, deduzem 1/3 desse rendimento. Depois calculam um capital que fosse capaz de gerar os rendimentos em causa e chegam ao valor de 109.638,78€, pelo dano futuro relativo à perda de capacidade de ganho do finado.

               A seguradora responde que:

         O que as autoras alegaram sobre os rendimentos da vítima além de inverosímil é também inadmissível.

         Por um lado, não resulta dos autos o menor indício de que as autoras detinham de terreno agrícola ou prática comercial e segundo se demonstrou a 1.ª autora, desempenhava funções de empregada doméstica à data do sinistro, cuja remuneração se encontra actualmente suficientemente bem valorizada para que seja possível alcançar autonomia e independência financeira para uma vida confortável.

         Por outro, apurou-se que a filha do de cujus poderá recorrer ao ensino público, apoios e bolsas para prosseguir os seus estudos, não dependendo daquele rendimento para desenvolver o seu percurso académico e posteriormente, profissional, que poderá ser desenvolvido em simultâneo, como o fazem muitos jovens em situações similares, sem que daí resulte um prejuízo para a sua emancipação e crescimento.

         Certo é que, ao ser entregue às autoras o montante por elas pedido, pela sua expressão de grandeza, tal constituiria um enriquecimento sem causa e não uma justa compensação pelos danos não patrimoniais eventualmente sofridos, e em manifesta violação do disposto nos artigos 496/1, 562, 563 e 564, todos do CC.

              Apreciação:

              No caso está em causa um cônjuge e uma filha menor (e enquanto esta não tiver completado a sua formação profissional), que viviam com a vítima.

              Nestes casos, parafraseando o acórdão do STJ de 08/06/2017, proc. 1524/10.7TBOAZ.P1.S1, na indemnização prevista no art. 495/3 do CC, está em causa a perda do contributo proporcionado pelo falecido para os encargos familiares (artigos 1675/1 e 1676 do CC). Trata-se de um direito próprio de quem tiver a posição de exigir alimentos à vítima de lesão mortal. Nas palavras de Antunes Varela “o prejuízo – a ter em conta – é o que [para ela] – para a pessoa carecida de alimentos – advém da falta da pessoa lesada”, sendo “por este prejuízo que a indemnização se mede” (Das obrigações em geral, vol. 1.º, 9.ª ed., Almedina, pag. 647).

              Não se trata de fixar uma prestação alimentar, ou seja, é independente da efectiva necessidade de alimentos (o que afasta as objecções da seguradora), mas sim de calcular “a perda patrimonial, em termos previsíveis de danos futuros, correspondente ao que o falecido vinha efectivamente prestando, ou (…) poderia eventualmente prestar”, não fora a lesão sofrida, em termos de permitir aos beneficiários manter o nível de vida que aquele rendimento lhe proporcionaria (acórdão deste STJ de 11/07/2006, [proc. 06B1835] citado no acórdão do STJ de 19/02/2014, proc. 1229/10.9TAPDL).

              Neste sentido, também, Gabriela Páris Fernandes, no Comentário ao CC, Direito das Obrigações, UCP/FD/UCE, Dez2018, páginas 346-347, que invoca no mesmo sentido, ainda, os acórdãos do STJ de 12/10/2006, proc. 06B2520, de 04/05/2010, proc. 111/04.3TBMUR.P1.S1, de 02/12/2010, proc. 2519/06.0TAVCT.G1.S1, de 26/11/2015, proc. 598/04.4TBCBT.G1.S1, e de 19/10/2016, proc. 1893/14.0TBVNG.P1.S1, e Vaz Serra e Heinrich Hörster, A propósito de uma ‘não-leitura’ do art. 495/3, 1.ª alternativa, do CC, feita por quem tenha a sua pré-compreensão jurídica moldada pelo § 844/2, frase I, do BGB, RDE 1983, ano IX, n.ºs 1 e 2, páginas 331-340. A que se podem acrescentar, ainda, por exemplo, os acórdãos do STJ de 17/06/2008, proc. 08A1599, que será referido abaixo para o pedido de reembolso do ISS, e o de 10/04/2019, proc. 73/15.1PTBRG.G1.S1.

              E isso atendendo – voltando ao ac. do STJ de 08/06/2017 que se está a seguir – ao período de tempo previsível durante o qual tal contributo seria prestado – mesmo para além da idade da reforma – não fora a morte da vítima. Tudo de forma mais significativa no período de sustento, educação e instrução dos seus filhos. Não havendo uma actividade profissional remunerada, não se afigura desajustado tomar como referência o valor mensal de próximo do salário mínimo nacional.

              Posto isto,

              No caso dos autos as autoras não lograram provar a sua absoluta dependência financeira da vítima, nem sequer, que o seu marido/pai auferisse qualquer reforma. Mas isso, já se viu, no caso dos direitos que aqui estão em causa não importa, pois que não se trata de fixar uma prestação de alimentos.

              Dos factos provados (24, 25, 37 e 38) pode-se concluir apenas que aquele ajudava à manutenção de uma propriedade aos sábados e que nela recolhia erva que levava para sua casa com o intuito de alimentar alguns animais que ele e a mulher criavam. Era reformado, mas trabalhava na agricultura, juntamente com a sua mulher. Era marido e pai disponível, ajudando na realização de todas as tarefas domésticas, cozinhava e cuidava do jardim e da casa, ajudava a mulher e os filhos no que podia.      

              Face à falta de prova do valor efectivo de rendimentos que auferir, bem como do trabalho com que contribuía para os encargos do agregado familiar, entende-se que se deve ficcionar um rendimento mensal de um salário mínimo mensal (incluindo a sua contribuição com trabalho para os encargos do agregado familiar), que era, à data do acidente, Agosto de 2018, de 580€ (DL 156/2017, de 28/12).

              O falecido tinha, à data do acidente, 69 anos, e, por isso, uma esperança média de vida de cerca de 13,5 anos. A mulher tinha 55 anos e por isso uma maior esperança de vida. A filha B nasceu em 19/03/2002 e era provável/possível que estudasse até aos 25 anos de idade, ou seja, até 2027, ou seja, mais 9 anos após o acidente.  

              Durante os próximos 9 anos (= 108 meses), a vítima provavelmente reservaria para si ¼ dos seus rendimentos, ou seja daria para o agregado familiar de 3 membros com 435€ mensais. Durante os outros 4,5 anos (= 54 meses), a reserva seria de 1/3 pelo que a contribuição para um agregado familiar de 2 membros passaria a ser de 386,66€. Ou seja, presumivelmente ele contribuiria, até à sua morte, com o valor total de 108 x 435€ + 54 x 386,66€ = 46.980€ (com benefício para as duas autoras) + 20.879,64€ (com benefício só para a autora). Dado que a taxa de juros bancários para depósitos de valores pequenos não tem hoje, praticamente relevo, a entrega deste capital, de uma só vez, não vai produzir rendimentos significativos que devam ser tidos em conta. Isto é a avançada idade da vítima torna, no caso, mais simples o cálculo desta forma, e desaconselhável, por ser mais aleatório, o cálculo de um capital produtor anualmente de um rendimento igual ao perdido, que é a forma como, em geral, se faz o cálculo deste ano.

              Assim, a cônjuge tem direito 44.369,64€ e a filha a 23.490€.

              Mas a estes valores há que descontar a proporção da culpa da vítima, de 25%, pelo que ficam reduzidos a 33.277,23€ e 17.617,50€, respectivamente.

                                                                 *

              Despesas com transporte do falecido e com funeral

              Por força do acidente ocorrido, a autora cônjuge diz que custeou ainda as despesas com transporte da vítima, desde o local do acidente até o hospital do Funchal, que não se provaram, despesas de funeral do falecido, no montante de 2100€ (que se provaram: facto 49) e despesas com táxi, referentes a serviço de funeral, no montante de 120€ (que se provaram: facto 50).

              Apreciação:

              A autora teria direito às despesas de funeral comprovadas (art. 495/1 do CC), no total de 2220€, a que há que descontar os 25% da culpa da vítima, ficando, por isso, reduzidos a 1665€.

                                                                 *

                               Pedido de reembolso pelo ISS

              Tendo em consideração a já apurada responsabilidade da seguradora pelos danos causados aos autores e os factos 51 a 53, o ISS tem direito a 75% dos valores pagos à autora cônjuge a título de subsídio por morte (1.286,70€) e de pensões de sobrevivência (11.467,18€ até Janeiro 2021+ 345,23€ x 16 até Maio de 2022 = 16.990,86) e à autora filha 3.190,39€ a título de pensões de sobrevivência, já que, por força do art. 70 da Lei 4/2007, de 16/01, com tal pagamento ficou sub-rogado nos direitos delas até ao limite do valor das prestações que lhes concedeu (nos termos daquele artigo: No caso de concorrência pelo mesmo facto do direito a prestações pecuniárias dos regimes de segurança social com o de indemnização a suportar por terceiros, as instituições de segurança social ficam sub-rogadas nos direitos do lesado até ao limite do valor das prestações que lhes cabe conceder).

              Bem assim, e como dizia o ISS, tem direito a ser reembolsado, dos valores das prestações de pensão de sobrevivência que vier a pagar à viúva, pela mesma ordem de razões, até à data do encerramento da audiência de julgamento (neste sentido, invoca, entre outros, os ac. do STJ de 05/01/1995 [proc. 047034], de 25/09/2003, [proc. 03B1611], de 08/06/2006, [proc. 06A1464], de 02/10/2007, [proc. 07A2763], 17/06/2008, [proc. 08A1599] de 27/01/2010 [1472/08.0TBBRG.S1], bem assim o ac. do TRP de 26/12/2013, proc. 1913/09.0TBSTS.P1.

              Valores que, naturalmente, terão de ser descontados naquilo a que estas autoras têm direito da seguradora ao abrigo do art. 495/3 do CC: tal como já diziam os acs. do STJ de 08/06/2006, de 02/10/2007 e de 27/01/2010, acabados de citar. Na versão do 1.º: “As pensões de sobrevivência e o subsídio de funeral pagos pelo CNP devem ser deduzidas no “quantum” indemnizatório dos danos patrimoniais, sob pena de cumulação indevida de indemnizações. Não sendo cumuláveis as prestações da Seg. Social com a indemnização por factos ilícitos, o CNP fica sub-rogado no direito às importâncias que pagou, a prestar pelo lesante ou pela seguradora.”

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, revogando-se a sentença recorrida e condenando agora a ré a pagar:

              – aos 5 autores 60.000€ pelo dano morte, a repartir em partes iguais por cada um deles;

              – à autora A 20.000€, à autora B 15.000€ e aos demais autores 10.000€/cada, por danos próprios sofridos com a morte da vítima;

              – à autora A 33.277,23€ de indemnização prevista no art. 495/3 do CC, a que há que descontar o valor de 12.743,15€ recebidos do ISS a título de pensões de sobrevivência, ficando pois reduzidos a 20.534,08€.

              – à autora B 17.617,50€ de indemnização prevista no art. 495/3 do CC, a que há que descontar o valor de 2.392,79€ recebidos do ISS a título de pensões de sobrevivência, ficando pois reduzidos a 15.224,71€.

              – à autora A, as despesas de funeral comprovadas (art. 495/1 do CC), 1.665€, a que há que descontar 965,03€ do subsídio por morte recebidos do ISS, ficando pois reduzidos a 699,97€.

              – ao ISS 16.100,97€ (= 965,03€ + 12.743,15€ + 2.392,79€).

           Tudo com juros de mora à taxa legal desde a citação/notificação [em 08/06/2020 quanto ao pedido dos autores e em 12/02/2021 quanto ao pedido do ISS, mas quanto a este apenas relativamente aos valores que já nessa altura estavam pagos, vencendo-se juros quanto aos outros valores pagos pelo ISS a partir da data desses pagamentos] até integral pagamento

              Quanto ao pedido dos autores, custas, na vertente de custas de parte por não haver outras, pela ré seguradora (na proporção de 65,37%) e pelos autores (na proporção de 34,63%).

              Quanto ao pedido do ISS, custas, na vertente de custas de parte (não há outras), em 75% pela ré (o ISS está isento delas).                           

              Lisboa, 09/06/2022

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto