Processo do Juízo Local Cível de Loures – Juiz 4

              Sumário:

              I – A resolução do contrato, quando baseada numa mora não convertida em incumprimento definitivo e numa perda de interesse subjectiva na prestação, que não são fundamentos legais para o efeito (art. 808 do CC), revela uma vontade inequívoca de não cumprir, que, no caso, pode ser equiparada a uma recusa categórica de cumprimento, equivalente, por isso, a um incumprimento definitivo.

              II – É também incumprimento definitivo de um contrato-promessa a venda da coisa a terceiro.

              III – Pelo que os promitentes-compradores tinham direito à restituição do sinal em dobro (art. 442/2 do CC), como lhes foi reconhecido, bem, pela sentença recorrida.

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo  identificados:

              E e V intentaram uma acção comum contra T e uma imobiliária, pedindo a condenação da ré T a restituir, em dobro, o valor do sinal de um contrato promessa que identificam e as duas rés a pagarem-lhes, por danos patrimoniais e morais, 7.118,05€ de indemnização, acrescidos dos juros legais, e a imobiliária, ainda, 10.000€ valor equivalente à percentagem de pagamento às imobiliárias.

              Alegam em síntese, que entregaram à ré T 10.000€ como sinal de um contrato-promessa de compra e venda do imóvel de que esta era proprietária, contrato-promessa celebrado em Junho de 2019, sendo o preço acordado de 147.000€; o financiamento da compra ficou de ser obtido através da imobiliária e o negócio ficou condicionado a essa obtenção, pois, se não fosse obtido ou fosse insuficiente, a ré restituiria em singelo o sinal; em Set2019, a promitente vendedora continuava no imóvel porque precisava de tempo para encontrar uma casa para efectuar a mudança; estabeleceram um prazo de 30 dias, findo o qual aquela deveria proceder à escritura definitiva; mais tarde a mediadora disse não conseguir o financiamento pelo que os autores acabaram por diligenciar por ele, obtendo-o em Março de 2020, ocasião em que entraram em contacto com a imobiliária que já não quis vender o imóvel; no dia 22/04/2020, receberam uma carta da ré T a comunicar a resolução do contrato-promessa, invocando a mora dos autores; em 23/04/2020, os autores ligaram e enviaram carta registada com aviso de recepção às rés, a fim de lhes comunicar o interesse de efectuar a escritura definitiva e acordar uma data de disponibilidade das rés, para que, o mais breve possível, se procedesse a escritura definitiva; souberam entretanto que as rés se preparavam para vender o imóvel a terceiro, pelo que os autores intentaram uma providência cautelar de arresto para tentar impedir essa venda e tentar compelir a ré T a vender-lhes o imóvel; em 15/05/2020 o imóvel foi vendido a terceiro; sofreram danos com o rompimento do negócio.

              A ré T contestou, impugnando os factos alegados pelos autores e excepcionando o incumprimento do contrato-promessa pelos autores que não marcaram, como lhes competia, a escritura no prazo previsto, levando à perda do interesse da ré (as conclusões do recurso, mais à frente, repetem, no essencial, a contestação, pelo que uma versão desta mais completa pode ser vista nessas conclusões).

              A ré imobiliária contestou mas não juntou procuração ao respectivo advogado, nem depois de notificada para o efeito, pelo que a contestação foi dada sem efeito.

              Depois da audiência prévia, foi proferido despacho saneador, condenando a ré T a pagar aos autores 20.000€ (sinal em dobro), absolvendo-a dos demais pedidos; a ré imobiliária também foi absolvida do pedido.

              A ré T recorre deste saneador/sentença – para que seja revogada e a ré absolvida do pedido -, terminando as suas alegações reproduzindo-as praticamente nas seguintes conclusões (que se transcrevem quase na íntegra):

         No caso em apreço temos um alegado incumprimento de contrato promessa. Ficando as partes adstritas regime contratado e à sua obrigação de indemnizar a parte contrária em caso de incumprimento.

         Os autores sabiam que o contrato promessa tinha um prazo, ao qual se vincularam. O contrato foi assinado em 12/06/2019. A escritura deveria ter sido marcada pelos autores, conforme cláusula 3.ª/1 do contrato promessa, no prazo de 60 dias, ou seja até dia 12/09/2019 [sic]. Mesmo que se considerasse que tinha havido uma prorrogação de prazo nos termos da cláusula 3.ª/2, o prazo iria até dia 12/10/2019. Sendo certo que os autores nada fizeram até à propositura da acção, nem marcando a escritura nem sequer solicitando uma adenda ao contrato, nem sequer invocando a prorrogação da marcação da escritura por mais 30 dias conforme lhe competia na mencionada cláusula 3.ª/2.       Em Setembro de 2019 não houve qualquer acordo para adiamento da escritura. Diga-se que se assim fosse haveria uma adenda ao contrato promessa. Ainda assim a ré aguardou até Abril de 2020 para ver se os autores marcavam a escritura.

         Vendo o tempo passar sem qualquer notícia relevante, a ré, mais uma vez demonstrando boa-fé, somente em 22/04 enviou aos autores a comunicação nos termos do 808 do CC notificando-os, objectivamente da sua perda de interesse no negócio devido ao tempo que passou sem qualquer notícia. Sendo certo que esta comunicação ao contrário do considerado pelo tribunal foi uma decisão objectiva.          Porquanto, a ré alegou a perda de um negócio de compra de outro imóvel devido ao tempo decorrido neste negócio. Com efeito, a ré perdeu um sinal de 15.000€ devido à mora dos autores. Sendo este facto alegado objectivamente na interpelação.    É fácil e claro de ver quem incumpriu o contrato-promessa.

         Acresce ainda que os autores nunca marcaram qualquer escritura como era sua obrigação. Logo como poderia a ré incumprir um contrato para o qual não foi interpelada para cumprir? Tivessem feito a interpelação a ré teria cumprido e realizado a venda. Como tal nunca houve incumprimento por parte da ré.

              Os autores contra-alegaram, defendendo a improcedência do recurso, e querendo que se dê provimento ao pedido dos autores, condenando a ré T ao pagamento, por danos patrimoniais e danos morais, de uma indemnização no valor de 7.118,05€, acrescido dos juros legais,

                                                                 *

              Questões que importa decidir: se a ré T não devia ter sido condenada a restituir o sinal em dobro.

              A ré T não diz recorrer da matéria de facto, nem impugna nenhum ponto da decisão da matéria de facto (art. 639 e 640 do CPC).

              Os autores não dizem impugnar a decisão proferida sobre determinados pontos de facto (art. 636/2 do CPC), nem dizem recorrer, mesmo que subordinadamente (artigos 633 e 637 do CPC), nem formularam conclusões (art. 639/1 do CPC), ou cumpriram quaisquer dos ónus dos recorrentes impostos pelos artigos 639/2 e 640 do CPC.

               Pelo que não tem sentido a sua pretensão de que a ré T venha a ser condenada no pedido de que foi absolvida, isto é, essa pretensão não é objecto do/de recurso.

                                                                 *

              Foram dados como provados os seguintes factos com interesse para a decisão da questão a resolver:

a) Os autores ajustaram com a ré comprar por 147.000€, a fracção autónoma designada pela letra L, correspondente ao quarto andar esquerdo, para habitação […]

b) Os autores e a ré assinaram, em 12/06/2019, um contrato, por via do qual os primeiros prometeram comprar e a segunda prometeu vender este imóvel.

c) Os autores entregaram à promitente vendedora 10.000€, conforme cláusula 2ª do contrato-promessa que estabelece, no n.º 1-a: Na presente data, a parte compradora entrega à parte vendedora 10.000€ como sinal e princípio de pagamento […].

d) No dia 22/04/2020, os autores receberam uma carta registada simples, escrita pelo mandatário da promitente vendedora, enviada no dia 20/04/2020, com o seguinte teor:

          Assunto: Contrato promessa assinado em 12/06/2019 /

             Exmos Srs:

             Sou a contactá-los na qualidade de mandatário da [ré], pelo seguinte: V. Exas estão em mora para com os nossos constituintes, porquanto nos termos do contrato promessa o prazo para a realização da escritura já foi ultrapassado. Mais, devido à não realização da escritura a [ré] não pôde avançar para a aquisição de outro imóvel o que levou a que perdesse o montante de 15.000€ que tinha entregue a título de sinal. Como tal a [ré] informa V. Exas que, nos termos do artigo 808/1 do CC a vossa mora transformou-se em incumprimento definitivo. Esta conversão surgiu pela perda de interesse na prestação por banda da [ré], em virtude de ter perdido a oportunidade de adquirir outro imóvel e perder 15.000€ no processo. Esta declaração deve ser interpretada como resolutiva do contrato.

e) Em 23/04/2020, a mandatária dos autores enviou uma carta registada com aviso de recepção às rés, com o seguinte teor:

          Assunto: Contrato promessa de compra e venda nos termos do 402 do CC 

             Exma. Srª:

             Na qualidade de mandatária [dos autores], venho por este meio solicitar a V. Exas que efectue a marcação de uma data para celebração do contrato de compra e venda definitivo, a fim de possibilitar aos [autores] o uso do crédito de habitação autorizado pelo seu banco. Por motivos não imputável aos [autores], designadamente, conclusão do processo de aprovação do financiamento bancário gerido pela imobiliária […] e, o facto de o promitente vendedor já ter solicitado tempo para se manter no imóvel em questão, até conclusão do processo de mudança para um novo imóvel. Porém, os [autores] frequentemente, demostraram interesse em celebrar o contrato definitivo e pretendem o mais breve possível a aquisição do imóvel, sendo que não há motivo fundado para a resolução do contrato mas sim para a aquisição do imóvel nos termos legais e contratual. Deste modo, deve ser celebrada a escritura pública sob pena de o valor a título de sinal ter de ser restituído em dobro, consequentemente, indemnização por danos resultantes ou o recurso judicial para a execução do imóvel, nos termos dos artigos 402, n.ºs 2-3, e 830, ambos do CC. Solicitamos a V.Exª se digne responder a presente missiva no prazo de 7 dias.

f) A ré vendeu o imóvel a um terceiro em 15/05/2020.

g) Nos termos do n.º 2 da cláusula 7.ª do contrato-promessa, em caso de incumprimento do presente contrato imputável à parte vendedora, esta deverá restituir à parte compradora, em dobro, as quantias recebidas a título de sinal.

j) Nos termos da cláusula 3.ª do contrato-promessa: 1. A marcação da escritura de compra e venda fica a cargo da parte compradora, devendo ser celebrada no prazo máximo de 60 dias, a contar da data da assinatura do presente contrato, no concelho do imóvel em causa ou local acordado pelas partes. 2. Se, por motivo não imputável, quer à parte vendedora, quer à parte compradora, não for possível outorgar a escritura definitiva de compra e venda no prazo de 60 dias previsto no clausulado do número anterior, considera-se o prazo máximo para a sua outorga automaticamente renovado por mais 30 dias [o n.º 2 foi acrescentado por este TRL, ao abrigo dos arts. 663/2 e 607/4 do CPC, já que o contrato promessa não foi impugnado e a ré invoca esta cláusula nas suas alegações].

[…]

k) A ré aguardou até Abril de 2020, para ver se os autores marcavam a escritura.

                                                                 *

              A fundamentação da sentença recorrida foi, em síntese feita por este TRL, a seguinte:

         Depois de transcrever os artigos 441 e 442 do Código Civil e de esclarecer que são eles que dão o enquadramento que preside à decisão, acrescenta:

         Não há dúvida de que a ré T, como confessa, comunicou que não cumpriria o contrato-promessa de compra e venda do imóvel de que era proprietária, considerando-o resolvido. Fê-lo nos termos constantes do facto provado (d), do qual resulta que considerou os autores como estando em mora. Para assinalar a conversão de tal mora em incumprimento definitivo, escreveu que essa conversão surgiu pela perda de interesse na prestação por banda da ré, em virtude de ter perdido a oportunidade de adquirir outro imóvel e perder 15.000€. Esta declaração deve ser interpretada como resolutiva do contrato.

         Ora, nos termos do artigo 808 do CC, a perda do interesse é apreciada objectivamente e a mora só releva se a prestação não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor. Na comunicação da ré não existe qualquer fixação de um prazo para o cumprimento da obrigação, na ausência desta interpelação admonitória, resta que se ponderem as circunstâncias alegadas pela ré para a sua perda de interesse no negócio.

         Não só a ré não explicita que oportunidade de aquisição foi perdida, como não esclarece em que processo perdeu os 15.000€. De resto, não alega também que o contrato-promessa tenha ficado sujeito a qualquer condição resolutiva, relacionada com a concretização de qualquer outro negócio jurídico. De igual forma, não explica (nem é objectivamente apreensível) de que forma a celebração do contrato prometido poderia ser contrária ao seu interesse de aquisição de um outro imóvel ou à recuperação de qualquer quantia relacionada com outro contrato em que era parte – relembre-se, aliás, que se prova que, em momento imediatamente subsequente à comunicação da resolução a ré veio a vender o imóvel prometido a um terceiro.

         Dito de outra forma, a circunstância de a ré T poder ter perdido (subjectivamente) a vontade de celebrar o contrato prometido com as pessoas que, em seu entendimento, foram causadoras de contrariedades, aborrecimentos ou até danos efectivos (de cuja eventual ocorrência, todavia, nem sequer alegou alguma vez ter avisado os autores), não equivale a qualquer circunstância passível de, objectivamente ponderada, poder considerar-se como justificativa da sua perda de interesse. É assim que a comunicação de resolução imediata levada a cabo pela ré, sucedida pela venda efectiva do imóvel a um terceiro, mesmo após o recebimento da carta em que os autores manifestavam o seu interesse na celebração do negócio prometido, a coloca indubitavelmente em incumprimento definitivo da sua promessa, gerando na esfera jurídica de quem constituiu o sinal (os promitentes compradores) a faculdade de exigir o dobro do que prestaram, como agora fazem.

              As razões da ré contra este saneador/sentença já foram transcritas acima.

              As da autora, no essencial, são, nesta parte, as do saneador/sentença.

              Apreciação:

              As partes podem estipular um prazo num contrato. Esse prazo pode ser essencial ou não.

              Baptista Machado (Pressupostos da resolução por incumprimento, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro, II, Coimbra, 1979, págs. 343 e segs, especialmente págs. 406 e 407), explica que a essencialidade do termo ou “decorre da própria natureza da prestação, porque esta se acha vinculada a um fim e […] a aptidão da prestação para satisfazer o fim tido em vista pelo credor representa uma qualidade constitutiva ou integrante da mesma” ou então “pode ser-lhe conferida por uma actuação expressa ou tácita dos contraentes […] é pois o acordo entre as partes que liga ao termo do vencimento a presunção absoluta do desaparecimento do interesse do credor, se não houver rigorosa pontualidade no cumprimento”.

              E mais à frente: “pode ser expresso clausulando, designadamente, que a pontualidade é condição do fornecimento, que uma prestação tardia não pode valer como cumprimento, que depois do vencimento não pode contar-se com a aceitação da prestação, que o contrato cessa ou caduca com o vencimento do prazo, etc. Ou será tacitamente estipulada: “quando ela deriva de especiais circunstâncias do contrato conhecidas de ambas as partes, especialmente do escopo a que o credor destina a prestação, do facto de ele se propor utilizá-la em determinado momento futuro, etc.”

              Ora, as cláusulas em causa nos autos não permitem – e nada mais foi alegado pelas partes em sentido diverso, até porque nenhuma delas defende a essencialidade do prazo – concluir pela essencialidade do prazo assim entendida, sendo certo ainda que, como diz Baptista Machado, “o prazo da prestação não é, em regra, um elemento essencial na economia do contrato” (obra citada, pág. 405; no mesmo sentido, Brandão Proença, Lições de Cumprimento e não cumprimento das obrigações, Coimbra Editora, Set2011, pág. 78: “embora não seja esse o caso normal, nada impede que o contrato incorpore um certo prazo ou termo essencial”; e ainda o acórdão do STJ de 11/12/2003 (03A3363 da base de dados do ITIJ), um entre outros citados por este autor; no caso deste acórdão estava em causa um prazo de 365 dias que foi expressamente considerado não essencial [ao contrário do que o sumário sugere]).

              Assim, em consequência da ultrapassagem daquele prazo não essencial, o contrato-promessa não se resolvia automaticamente, nem a promitente vendedora o podia resolver unilateralmente (arts. 798, 804, e, a contrario, arts. 801 e 808, todos do CC).

                                                                 *

              Depois da ultrapassagem de um termo não essencial, o que normalmente sucede é que, se a prestação ainda for possível, o contraente que não efectuou a sua prestação no tempo devido, por causa que lhe seja imputável (o que no caso dos autos teria que ser discutido, se não fosse o que se segue), entra em mora (artigos 804 e 805/2-a do CC).

              Essa mora não se converte, só por si, em incumprimento definitivo. Isso só acontecerá se o credor da prestação, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação – perda que tem de ser apreciada objectivamente – ou se a prestação não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor (art. 808 do CC).

              No caso dos autos, a ré resolveu o contrato sem fixar antes qualquer prazo para os promitentes-compradores cumprirem a prestação que ela entendia que estava em falta, pelo que a questão da interpelação admonitória (isto é, aquela que fixa o prazo – um novo prazo – na comunicação ao devedor), não se coloca.

              É assim irrelevante tudo o que a ré alega quanto à mora dos autores. A existir mora dos autores – o que não está minimamente indiciado – a lei dava à ré uma solução fácil, que era a de converter a mora em incumprimento definitivo através da interpelação admonitória, com a fixação de um prazo que tinha de correr antes da resolução. Se a ré não utilizou essa solução, só dela se pode queixar.

              Quanto à perda do interesse na prestação, quando a lei diz que a mesma tem de ser apreciada objectivamente (art. 808/2 do CC), quer dizer que ela “não se funda em qualquer subjectividade […] ou razão individual mas ‘há-de ser justificada segundo o critério da razoabilidade, próprio do comum das pessoas’, sendo uma ‘perda absoluta, completa… traduzida por via de regra no desaparecimento da necessidade que a prestação visava satisfazer’ (“Antunes Varela citado através de Brandão Proença, Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, Coimbra Editora, Set2011, pág. 321).

              A necessidade que a prestação visava satisfazer era a venda da fracção e consequente obtenção do preço da venda. Essa necessidade não desapareceu como demonstra o facto de, menos de 20 dias depois da resolução do contrato pela ré, esta ter vendido a fracção a terceiro.

              É assim irrelevante tudo o que a ré alega quanto à falta de interesse na prestação, que, ao fim e ao cabo, como ela o vai repetindo, está apenas baseada no decurso do tempo. Para mais desenvolvimento da questão, remete-se, para não o estar a repetir, para o saneador/sentença, com o qual se concorda.

              Assim, de novo se conclui que, no momento em que efectua a resolução, a promitente vendedora não tinha fundamentos válidos para o efeito, pelo que a resolução é infundada e ilícita. E podia ser vista – nos termos em que foi feita e com os motivos invocados – desde logo, como uma recusa categórica de cumprimento, equivalente a um incumprimento definitivo.

              Neste sentido, por exemplo, Brandão Proença:

         “É do entendimento comum que, em regra, a decisão do devedor é revelada de forma expressa mediante uma declaração dirigida ao credor e em que faz saber – como seu conteúdo – a vontade de não cumprir o chamado ‘programa contratual’. No seu desiderato de anunciar essa intenção, a declaração do devedor pode manifestar-se obliquamente com alegações de inexistência ou invalidade contratual, sob a forma de motivações subjectivas de desinteresse […] e pretensões sem justificação contratual, ou ir implícita na atitude mais radical de repúdio ou rejeição do próprio contrato, revelada através de pedidos de anulação, resolução (potenciada com um pedido indemnizatório) [na nota 999 cita dois acórdãos do STJ em que foi considerada como manifestação inequívoca de incumprimento a resolução declarada pelos promitentes-vendedores”] denúncia ou impugnação do vínculo assumido. (A hipótese da declaração (lato sensu) antecipada de incumprimento por parte do devedor, Homenagem ao Professor Doutor Jorge Ribeiro de Faria, Coimbra Editora, 2003 = Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, Coimbra Editora, 2011, pág. 262).

              Ou em Nuno Manuel Pinto Oliveira,

         que defende a relevância da recusa de cumprimento (podendo o credor retirar da recusa as consequências jurídicas em geral relacionadas com a mora qualificada (pelo preenchimento dos requisitos do art. 808/1 – por exemplo, a indemnização substitutiva da prestação […] ou a resolução do contrato […]), sob a forma de uma declaração categórica, clara e definitiva, mesmo que seja verbal e tácita. E lembra que os autores portugueses têm considerado que a declaração expressa de resolução do contrato, quando injustificada, é – ou pode ser – uma declaração tácita de recusa de cumprimento (Princípios de direito dos contratos, Coimbra Editora, Maio 2011, págs. 864 a 868).

         Acrescenta: “O devedor que declarasse actuar o direito potestativo [de] resolver um contrato bilateral, não podendo fazê-lo, por não estarem preenchidos os requisitos da resolução […] estaria a atribuir ao seu credor o direito potestativo de o resolver. O devedor que alegasse, injustificadamente, que o seu credor não cumpriu e que quisesse resolver o contrato pelo facto de o seu credor não ter cumprido estaria a atribuir-lhe a faculdade de alegar, justificadamente, que o devedor não cumpriu.”         

              Bem como em Pedro Romano Martinez:

         “Quando o devedor declara expressamente – de modo significativo – não pretender cumprir a prestação a que está adstrito, não se torna necessário que o credor lhe estabeleça um prazo suplementar para haver incumprimento definitivo. A declaração do devedor é suficiente, por exemplo, no caso em que, sem fundamento, resolve o contrato ou afirma, de forma inequívoca, que não realizará a sua prestação” (Da cessação do contrato, 2ª edição, Almedina, 2006, pág. 142; em nota, remete, entre o mais, para o parecer que se refere de seguida).

              E em Raúl Guichard e Sofia Pais,

         que defendem que a resolução injustificada do contrato, acompanhada de várias outras circunstâncias, pode, no caso, configurar uma situação de recusa de cumprimento, equiparado a um incumprimento definitivo – Direito e Justiça, 2000, I, especificamente págs. 316/319, que, nesta parte terminam assim: quanto à declaração de resolução, ela não surtiu os efeitos pretendidos, por não se verificarem os respectivos pressupostos – desse ponto de vista, foi absolutamente irrelevante. Contudo, isso não significa que não possa assumir importância, não enquanto declaração negocial de extinção do contrato, mas como facto revelador de uma vontade de não cumprir.).

              Alias, esta resolução infundada foi seguida da venda a terceiro do objecto prometido vender, o que tornou impossível à ré vir a cumprir o contrato-promessa, o que só por isso é um incumprimento definitivo.

              Com a venda das fracções a terceiro, a ré tornou impossível o cumprimento da sua obrigação (Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição, Coimbra Editora, 1997, págs. 145/146, Antunes Varela, Das obrigações em geral, vol. I, 9.ª ed, Almedina, 1998, pág. 381).

              Assim, como diz o saneador/sentença recorrida, a ré entrou em incumprimento definitivo do contrato, em consequência do qual os autores têm direito à restituição do sinal em dobro (art. 442/2 do CC).

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

              Custas, na vertente de custas de parte (não existem outras), pela ré (por ser ela que perde o recurso).

              Lisboa, 23/06/2022

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto