Processo do Juízo de Execução de Sintra – Juiz 3
Sumário:
I – Salvo se se provar a violação do pacto de preenchimento de livranças em branco, a data que conta para efeitos da prescrição do aval nelas aposto é a data que for colocada nas livranças pelo credor, não importando para a prescrição a data da resolução do contrato subjacente (ou do incumprimento definitivo) ou a da declaração de insolvência da avalizada (ou da situação de insolvência de facto).
II – Existe uma jurisprudência reiterada e uniforme no STJ e quase uniforme nas Relações, e que por isso deve ser seguida, no sentido de que as livranças em branco não prescrevem no prazo de 3 anos sobre a data em que o credor estava legitimado a preencher a data de vencimento.
III – O arbítrio do credor quanto ao prazo desse preenchimento, quando a determinação do prazo for deixada ao credor, está limitado pela possibilidade de o devedor poder requerer ao tribunal que fixe o prazo, se o credor não usar da faculdade que lhe foi concedida (art. 777/3 do CC).
IV – Nada disto afasta a possibilidade de ter existido um abuso do direito de preencher as livranças (art. 334 do CC), ou de se poderem levantar questões relativas à nulidade do pacto de preenchimento, ou as derivadas de este ser uma cláusula contratual geral, ou de a obrigação fundamental estar extinta (quando esta puder ser invocada); mas, no caso dos autos, não foram alegados nenhuns dos factos necessários ao preenchimento de qualquer previsão normativa que tenham a ver com tais matérias.
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:
A e M opuseram-se, por meio de embargos de executado, à execução para pagamento de 4.796.434,34€ que lhes foi movida, nos autos principais, por C-Company, com base em quatro livranças subscritas pela D-Lda, e avalizada pelos executados, ora embargantes.
Para tanto alegaram, em síntese, na parte que ainda importa, a prescrição das livranças exequendas, tendo em conta a data de vencimento que nelas deviam ter sido aposta pela CGD (cedente delas à exequente), de acordo com o pacto de preenchimento, considerando a data de insolvência da sociedade avalizada (30/01/2014) e o incumprimento da obrigação da sociedade avalizada; prescritas elas, não haveria título executivo, porque não se mostram suficientes para demonstrar a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias assumidas pelos executados-embargantes.
A exequente contestou, reafirmando a sua legitimidade e impugnando os efeitos que os executados querem retirar dos factos base das excepções deduzidas.
No despacho saneador foi proferida decisão julgando os embargos improcedentes e, em consequência, determinando o prosseguimento da execução.
Os embargantes recorrem deste saneador-sentença – para que seja anulada e substituída por outra que reconheça a prescrição, o abuso de direito e a inexistência de título executivo -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
A. Se é verdade que não há uma obrigação de preencher livrança em branco no exacto momento em que procede a resolução do contrato fundamental por incumprimento, a verdade é que há um verdadeiro ónus de o fazer com alguma brevidade, sob pena de, decorridos (no máximo) três anos sobre esse instante, ser definitivamente perdida a possibilidade de exercitar o direito cambiário.
B. O preenchimento de livrança em branco feito mais de três anos após a declaração de insolvência da devedora não é feito em função do incumprimento das obrigações desta, dado o carácter de execução universal do processo de insolvência, que acarreta o vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva.
C. O preenchimento de livrança em branco feito no dia em que se vende o crédito a terceiro visa a realização do preço da venda, e não a realização do crédito.
D. Não se verificando a existência de qualquer fundamento ou circunstância que legitime o preenchimento das livranças em data posterior ao decurso do prazo de prescrição, e considerando que o preenchimento não visou a realização do crédito, tal preenchimento deve ter-se por manifestamente abusivo (e culposo), e o direito cambiário deve considerar-se prescrito.
E. Prescrito o direito de acção do exequente contra os avalistas-embargantes, e resultando que o título de crédito prescrito não mantém a natureza de título executivo, porque o documento em causa não se mostra suficiente para demonstrar a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias assumidas pelos executados-embargantes, há que concluir pela inexistência de título executivo.
F. A sentença recorrida faz errada interpretação e aplicação dos artigos 70/1 da LULL, do artigo 334 do Código Civil e do artigo 703 do Código do Processo Civil.
A exequente contra-alegou no sentido da improcedência do recurso.
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Questões que importa decidir: se as excepções da prescrição, do abuso de direito e da inexistência de título executivo deviam ter sido julgadas procedentes.
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Foram dados como provados os seguintes factos que interessam à decisão daquelas questões:
1. Por escritura pública outorgada em 04/10/2018, a Caixa Geral de Depósitos, SA, e a exequente declararam, respectivamente, vender e comprar, pelo preço aí indicado, um conjunto de créditos e respectivas garantias, que inclui os créditos emergentes do acordo escrito de 21/02/2006, designado «contrato de mútuo», celebrado entre a CGD, SA, a D-Lda e os embargantes, e os créditos emergentes dos acordos constantes dos documentos complementares das escrituras públicas outorgadas, em 25/07/2007, 21/01/2008 e 17/02/2011, pelas mesmas partes.
2. A cessão acima referida foi comunicada, por carta, a cada um dos embargantes.
3. No acordo de 21/02/2006, com a designação «contrato de mútuo», onde os embargantes figuram como «avalistas», estipulou-se, além do mais, o seguinte:
«21. Garantias.
21.1. Aval:
Todas e quaisquer quantias que sejam ou venham a ser devidas à CGD pelos Clientes no âmbito do contrato de empréstimo, quer a título de capital, quer de juros, remuneratórios ou moratórios, comissões, despesas ou quaisquer outros encargos ficam garantida pelo aval prestado na livrança prevista no n.º 24, caso a Caixa decida proceder ao seu preenchimento, de acordo com o pacto de preenchimento ali convencionado.
(…)
24. Livrança em branco:
24.1. Para titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes do empréstimo, os Clientes e Avalistas (…) entregam à Caixa, neste acto, uma livrança com montante e vencimento em branco, devidamente datada, subscrita pelos primeiros e avalizada pelos segundos, e autorizam desde já a Caixa a preencher a sobredita livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo da própria Caixa, tendo em conta, nomeadamente, o seguinte:
a) A data de vencimento será fixada pela Caixa quando, em caso de incumprimento pelos Devedores das obrigações assumidas a Caixa decida preencher a livrança;
(…)».
4. Nos documentos complementares das escrituras públicas de 25/07/2007 e 21/01/2008, ambas com a designação «Abertura de crédito com hipoteca e pacto de preenchimento de livrança», e no documento complementar da escritura pública de 17/02/2011, com a designação «Mútuo com hipoteca e pacto de preenchimento de livrança», onde figuram como avalistas os embargantes, estipulou-se, nas cláusulas 18.ª dos dois primeiros e na cláusula 19.ª do último, o seguinte:
«(…) (Livrança em branco)
1. Para titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes do empréstimo, a parte devedora entrega à Caixa, neste acto, uma livrança com montante e vencimento em branco, devidamente datada, subscrita pela parte devedora e avalizada pessoalmente pelos [embargantes], autorizando, desde já a parte devedora e os avalistas a Caixa a preencher a sobredita livrança, quanto tal se mostre necessário, a juízo da própria Caixa, tendo em conta, nomeadamente, o seguinte:
a) A data de vencimento será fixada pela Caixa quando, em caso de incumprimento pelos Devedores das obrigações assumidas a Caixa decida preencher a livrança;
(…)».
5. Em cumprimento do estipulado nos contratos de 21/02/2006, 25/07/2007, 21/01/2008 e 17/02/2011, acima referidos, os embargantes entregaram à CGD, SA, as livranças n.ºs 500467943021216720, 500873631071999540, 504227114063171422 e 500166773081077114, respectivamente, subscritas pela referida Sociedade e avalizada pelos embargantes, com os espaços destinados ao montante e à data de vencimento em branco.
6. Por sentença de 30/01/2014, foi declarada a insolvência daquela sociedade.
7. A exequente apresentou à execução como título executivo as quatro livranças acima referidas, que estão preenchidas, nos campos relevantes, do seguinte modo:
a) livrança n.º 500467943021216720
Data de emissão: 27/02/2006;
Vencimento: 04/10/2018;
Importância: €459.217,71.
b) Livrança n.º 500873631071999540
Data de emissão: 25/07/2007;
Vencimento: 04/10/2018;
Importância: €1.695.997,63
c) livrança n.º 504227114063171422
Data de emissão: 21/01/2008;
Vencimento: 04/10/2018;
Importância: € 2.319.164,15; e
d) livrança n.º 500166773081077114
– Data de emissão: 17/02/2011;
– Vencimento: 04/10/2018;
– Importância: €114.848,08.
8. A execução foi instaurada em 20/11/2019 e os executados citados em 26/08/2020.
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A fundamentação da sentença recorrida foi, na parte que importa, a seguinte, em síntese, com simplificações:
Determina o artigo 70 da LULL, no segmento relevante, que «todas as acções contra o aceitante relativas a letras prescrevem em três anos a contar do seu vencimento», norma que se aplica também às acções contra o avalista de uma livrança, como é o caso (artigos 32, primeira parte, e 77 da LULL).
O prazo prescricional inicia-se, pois, mesmo no domínio das relações imediatas, na data do vencimento da livrança, o que significa que a lei optou por um critério de contagem que abstrai da relação subjacente e das ocorrências que lhe digam respeito, como a do incumprimento da obrigação ou da resolução do contrato.
Ora, considerando que as livranças se venceram em 04/10/2018 e a acção executiva foi instaurada em 20/11/2019, estando o prazo de prescrição interrompido desde 26/11/2019 (artigos 323/2 e 327/1 do Código Civil), é evidente que o direito de acção cambiária não prescreveu.
No entanto, a questão que os embargantes suscitam situa-se a montante: podia a exequente ter inscrito nas livranças, entregues em branco, o dia 04/10/2018, como data de vencimento, quando as obrigações subjacentes se venceram em 30/01/2014, por efeito da declaração de insolvência da sociedade devedora e do disposto no art. 91/1 do CIRE?
A resposta só pode ser encontrada nos respectivos pactos de preenchimento, que contêm precisamente as condições e os termos estipulados pelas partes em matéria de preenchimento das livranças, designadamente quanto à data de vencimento.
Ora, como decorre do texto das cláusulas acima transcritas, os embargantes expressamente reconheceram à CGD em caso de incumprimento pela sociedade devedora das obrigações assumidas nesses contratos, o direito de preencher as livranças quando a própria CGD o considerasse necessário, segundo o seu próprio juízo. Reforçando essa autonomia, quanto ao tempo do preenchimento, convencionou-se ainda que a data de vencimento da livrança corresponderia à data em que a CGD, decidisse preencher a livrança, decisão que pertencia apenas à CGD tomar, de acordo com a sua própria avaliação da necessidade de o fazer.
Claro que, tal como sucede com todos os direitos, também o direito contratual da CGD de preencher as livranças quando considerasse necessário, não pode ser exercido em manifesta violação dos limites impostos pelo princípio da boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (artigo 334 do CC).
Contudo, tendo a sociedade devedora sido declarada insolvente em 30/1/2014, não viola a componente ético-normativa do Direito, antes pelo contrário, a opção de preencher as livranças em 04/10/2018, apor-lhes essa data de vencimento e intentar, com base nelas, dentro do prazo do artigo 70 da LULL, execução contra os avalistas – altura em que o credor já saberá, com razoável grau de certeza, a parte do crédito que não foi ou será satisfeito no processo de insolvência do devedor e subscritor dessas mesmas livranças.
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Apreciação:
O saneador-sentença recorrido decidiu o caso seguindo uma jurisprudência sem discrepâncias recentes, quer nas Relações quer no STJ.
Também este mesmo colectivo do TRL já decidiu da mesma maneira – fazendo, ao que se crê, uma referência suficiente à doutrina e jurisprudência sobre a questão – no acórdão de 28/04/2022, processo 12025/17.2T8LSB-A.L1-2, sobre um caso praticamente idêntico, com o seguinte sumário:
I – Salvo se se provar a violação do pacto de preenchimento de uma livrança em branco, a data que conta para efeitos da prescrição do aval é a data que for colocada na livrança pelo credor, não importando para o efeito a data da resolução do contrato subjacente (ou do incumprimento definitivo) ou a da declaração de insolvência do avalizado (ou da situação de insolvência de facto).
II – Existe uma jurisprudência reiterada e uniforme no STJ e quase uniforme nas Relações, e que por isso deve ser seguida, no sentido de que a livrança em branco não prescreve no prazo de 3 anos sobre a data em que o credor estava legitimado a preencher a data de vencimento.
III – Tudo isto sem prejuízo da existência de uma situação de abuso de direito de preencher a livrança com a data de vencimento (art. 334 do CC) de que, no caso dos autos, não estão sequer indiciados os respectivos pressupostos.
IV – O facto de ser deixada ao credor a fixação do prazo do vencimento da prestação, com solução no art. 777/3 do CC, não é o mesmo que ser deixado ao arbítrio do credor a determinação da prestação, com a solução da nulidade do negócio (art. 280/1 do CC).
Para o desenvolvimento destas razões, remete-se para o que se diz nesse acórdão do TRL, para não o estar a repetir, e para a doutrina e jurisprudência referidas nele.
No mesmo sentido, vejam-se dois recentes acórdãos do STJ sobre matéria, publicitados depois daquele:
Ac. do STJ de 21/04/2022, proc. 3941/20.5T8STB-A.E1.S1:
I. A questão da prescrição do direito cartular não deve ser confundida com a questão do preenchimento abusivo da data de vencimento da obrigação cartular no caso de livrança em branco.
II. As duas questões surgem frequentemente “entrelaçadas”, porque o (eventual) preenchimento abusivo tem repercussões na contagem do prazo de prescrição do direito: esta contagem inicia-se na data que deveria ter sido aposta na livrança como data de vencimento e não na data que foi (indevidamente) aposta.
III. A data em que ocorre o facto relevante para a exigibilidade da obrigação subjacente (tipicamente, o incumprimento definitivo) apenas marca o momento em que o portador fica constituído no dever de preencher a livrança em branco quando isso resulte do que foi acordado entre os intervenientes (do sentido que era possível deduzir tendo em conta as regras de interpretação previstas nos artigos 236 a 238 do CC), do que seria previsivelmente acordado se eles não tivessem omitido aquele ponto ou do que seria imposto pela boa fé, nos termos do artigo 239 do CC.
O ac. do STJ de 07/06/2022, proc. 1819/20.1T8STB-A.E1.S1
I. Apenas após preenchimento da livrança é possível discutir o eventual preenchimento abusivo da mesma, quer por incumprimento do pacto de preenchimento, quer por eventual exercício abusivo do direito ao livre preenchimento da livrança.
II. A questão da prescrição da obrigação cambiária opera apenas a jusante, isto é, o prazo de prescrição apenas poderá ser contabilizado após análise da existência ou não de preenchimento abusivo nas duas vertentes referidas em I. e após determinação da data de vencimento efectivamente visada pelas partes ou, na ausência de previsão contratual, na data de vencimento imposta pelo princípio da boa-fé.
III. No caso dos autos, não tendo sido acordado entre as partes uma data-limite para o preenchimento da livrança e não resultando a fixação de tal data do princípio da boa-fé, não se revela como abusivo o preenchimento da livrança nas circunstâncias descritas nos autos, seja na vertente de violação do pacto de preenchimento, seja na vertente de abuso do direito ao livre preenchimento da livrança.
IV. Perante tal conclusão, constando da livrança como data de vencimento 15/01/2020, e tendo a acção executiva sido instaurada em 17/03/2020, conclui-se pela não verificação da excepção de prescrição.
Face ao que antecede, acrescente-se apenas o seguinte, tendo em conta as conclusões do recurso dos embargantes:
A conclusão A remete para a posição de Carolina Cunha (Manual de letras e livranças, Agosto de 2022, 2.ª edição, Almedina, páginas 221 a 236, antes páginas 200 a 207 da 1.ª edição), qual seja, que a livrança em branco prescreve no prazo de 3 anos sobre a data em que o credor estava legitimado para preencher a data de vencimento, pois que “é essa a data [correcta] de vencimento a inserir na letra ou na livrança”, isto é, “quando se torna exercitável o direito cambiário”, “tipicamente a partir da ocorrência do incumprimento da relação garantida”, seguida mais tarde por um parecer de Heinrich Ewald Hörster e Maria Emília Teixeira, publicado a 23/01/2022 em https://www.revistadedireitocomercial.com/aval-e-prescricao, em que se desenvolve a hipótese da declaração da insolvência, e que tem sido reiteradamente afastada pela jurisprudência do STJ e das Relações, nos termos expostos no saneador sentença recorrido, como se demonstra naquele acórdão e nos acórdãos que nele são referidos bem como nos do STJ referidos acima.
Esta jurisprudência uniforme e reiterada no STJ e quase uniforme e reiterada nas Relações (no sentido contrário subsiste apenas um acórdão – referido abaixo, 5046/16.4T8CBR-A.C1 – e o mesmo era insusceptível de recurso) impede, tendo em conta a norma do art. 8 do CC, que possa haver acórdãos isolados a seguir, sem argumentos novos, a tese em causa.
As conclusões B e C esquecem que a CGD, ao preencher as livranças para as ceder ao exequente, visa satisfazer, nos termos que tem como mais vantajosos, o seu direito de crédito, em face do incumprimento das obrigações da sociedade avalizada: a venda do crédito é uma forma de o realizar.
A conclusão D não tem em conta que não é a exequente que tinha que demonstrar qualquer circunstância que legitimasse o preenchimento das livranças em data posterior à da insolvência ou à do incumprimento das obrigações da devedora, mas sim aos embargantes que caberia demonstrar a falta de qualquer circunstância que legitimasse a forma como esse preenchimento foi feito, como facto base da excepção de preenchimento abusivo e da prescrição, cujo ónus da prova, por isso, corre por conta deles.
Afastada a matéria de excepção invocada pelos embargantes e, por isso, permanecendo válidas, como tais, as livranças, a questão da exequibilidade de título de crédito prescrito não se coloca, pelo que fica afastada a conclusão E.
A benefício da discussão, e dando de barato que as referências ao preenchimento abusivo e ao artigo 334 do CC, que constam das conclusões, poderiam servir para levantar a questão do abuso de direito, diga-se que os factos provados – e é só estes que importam – não apontam para o preenchimento dos pressupostos do abuso de direito.
É evidente que o abuso de direito/violação da boa-fé, se pode verificar, mas para isso é necessário alegar os factos que preenchem as hipóteses relacionadas com aquelas matérias, não bastando as alegações feitas sobre o preenchimento abusivo para efeitos de prescrição.
Dizer-se que não se provam os factos necessários à conclusão do abuso de direito, não é ir tão longe como a sentença recorrida que diz que “tendo a sociedade devedora sido declarada insolvente em 30/1/2014, não viola a componente ético-normativa do Direito, antes pelo contrário, a opção de preencher as livranças em 04/10/2018, apor-lhes essa data de vencimento […]”. Mas esta divergência não tem relevo no resultado final.
Ao lado da via do abuso de direito ainda se poderão suscitar as questões derivadas de, provavelmente, o pacto de preenchimento ser uma cláusula contratual geral (o primeiro acórdão do STJ citado acima trata parcialmente da questão, fazendo referência ao ac. do TRC de 11/06/2019, proc. 5046/16.4T8CBR-A.C1, que é o acórdão excepção referido acima, e a questão é, agora, focada particularmente por Carolina Cunha, nas páginas já referidas – mas aqui haveria que ter em conta as particulares posições que estes avalistas poderão ter na sociedade avalizada), ou da eventual nulidade (art. 280/2 do CC) do acordo de preenchimento por violação dos bons costumes, devido à indeterminabilidade do objecto (veja-se, por exemplo, Carolina Cunha, Manual de letras e livranças, 2016, Almedina, págs. 195 a 199 [216 a 220 da edição de 2022], e Jorge Morais Carvalho, Os limites à liberdade contratual, Almedina, 2016, págs. 53 a 62), ou por violação da ordem pública, tendo em conta os princípios fundamentais da nossa ordem jurídica: o princípio geral de liberdade e a dignidade da pessoa humana (Jorge Morais Carvalho, ob. cit. págs. 63-64 e 75 a 102), mas para isso é necessário, como além, alegar os factos que preencham as respectivas previsões normativas, o que não acontece no caso dos autos.
No entanto, face à posição da jurisprudência, aquelas questões de nulidade não se poderão colocar quanto à indeterminabilidade da duração da vinculação da embargante por questões ligada ao facto de a determinação do prazo ter sido deixada ao credor, tendo em conta que o arbítrio do credor é limitado pela possibilidade de o devedor poder requerer ao tribunal que fixe o prazo quando o credor não usar da faculdade que lhe foi concedida (art. 777/3 do CC).
Para além daquelas, há ainda que lembrar, como o faz Carolina Cunha (páginas 224 e 71-72, da obra citada, edição de 2022, referenciando, neste sentido, o ac. do TRC de 25/01/2022, proc. 1717/20.9T8ACB-A.C1; no mesmo sentido, este último acórdão indica os acórdãos do TRC de 26/04/2016, proc. 525/14.0TBMGR-A.C1 e do STJ de 28.9.2017, proc. 779/14.2TBEVR-B.E1.S1), que, “sempre que o devedor” esteja em condições de fazer valer factos impeditivos ou extintivos da pretensão fundamental do credor, o carácter instrumental da pretensão cambiária determina a sua vulneração. A circunstância de a obrigação fundamental se não haver validamente constituído ou de vir a ser extinta não pode deixar de comprometer irremediavelmente a obrigação cambiária criada para a solver, garantir, novar, etc.”, ou seja, nestes casos, a prescrição da obrigação garantida pode ser invocada para determinar a extinção da obrigação cambiária, hipótese com particular relevo quando as obrigações garantidas estão sujeitas ao prazo prescricional de 5 anos (como são o caso das quotas de amortizações de capital de contratos de mútuo), mas no caso também não foram alegados factos suficientes para se suscitar esta questão.
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas, na vertente de custas de parte (não existem outras), pelos executados/embargantes (são eles que perdem o recurso).
Lisboa, 15/09/2022
Pedro Martins
1.º Adjunto
2.º Adjunto