Processo 1006/21.1T8CSC – Juízo Central Cível de Cascais – Juiz 4
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:
A 31/03/2021, o Município de C intentou contra T-Lda, uma acção declarativa comum na qual pede a condenação da ré a reconhecer a propriedade da autora sobre uma fracção autónoma e a restituir-lhe de imediato a fracção em causa, livre de pessoas e bens e em bom estado de conservação, tal como a encontrou, bem como a pagar-lhe uma indemnização pela ocupação ilegítima da fracção, à razão de 3.121,52€ mensais a partir de 30/06/2020, até à data em que a entregar.
Alegou, em síntese, que é a proprietária da fracção em causa, por a ter adquirido, em 30/05/2019, ao anterior proprietário, que a havia dado de arrendamento à ré, por contrato para fins não habitacionais, celebrado em 15/07/2015, pelo prazo de 4 anos, 11 meses e 15 dias, com início de vigência em 16/07/2015 e termo em 30/06/2020, sendo automática e sucessivamente renovado por períodos de 3 anos, salvo se denunciado com antecedência mínima de 180 dias; em 28/06/2019 comunicou à arrendatária a oposição à renovação do contrato de arrendamento, para ter efeitos no fim do período do contrato, sem que, após a troca de diversas comunicações, a ré tenha procedido à sua restituição apesar do contrato ter cessado os seus efeitos; está, por isso, obrigada a entregar o imóvel e a indemnizá-lo pela ocupação indevida, no valor mensal peticionado.
A ré contestou excepcionando, o erro na forma processual por não haver lugar a uma acção de revindicação na medida em que se encontra legitimamente a ocupar o locado, uma vez que a oposição à renovação não produziu efeitos e mantém-se em vigor o contrato de arrendamento (continuando a pagar a renda após lhe ter sido comunicada a transmissão da posição da senhoria para o autor e ainda o fazendo actualmente ao abrigo do contrato de arrendamento em vigor), sendo a acção própria para o fim pretendido a acção de despejo; por outro lado, sempre teve a expectativa do contrato não se limitar ao prazo fixado, tendo efectuado diversos investimentos para aí instalar uma clínica dentária, no que despendeu cerca de 157.064,85€; e impugnou, dizendo que respondeu às comunicações de oposição à renovação do contrato (mediante as cartas que juntou); no dia 13/02/2019 entrou em vigor a Lei 13/2019, de 12/02, que estabeleceu medidas de protecção ao arrendatário, passando a lei a prever, quanto aos contratos para fins não habitacionais, no art. 1110/4 do Código Civil, que: “Nos cinco primeiros anos após o início do contrato, independentemente do prazo estipulado, o senhorio não pode opor-se à renovação”, estando, pois, no caso concreto, vedado ao autor opor-se à renovação, pois o prazo do contrato celebrado é inferior ao referido limite legal, sendo que apenas decorridos os primeiros 5 anos de duração do contrato de arrendamento é que o senhorio pode exercer esse direito; tendo tal norma natureza imperativa e sendo de aplicação imediata às situações já constituídas, não pode a comunicação de oposição à renovação produzir quaisquer efeitos, tendo-se operado a renovação automática de 3 anos prevista no contrato.
O autor respondeu, dizendo inexistir qualquer erro na forma do processo por considerar ter já cessado o contrato de arrendamento, bem como, não ter ocorrido qualquer renovação do contrato de arrendamento prevalecendo o que consta das cláusulas do contrato a esse respeito e inexistindo qualquer fundamento para invocar eventuais benfeitorias por no contrato se excluir qualquer direito à sua indemnização; à data da comunicação de oposição à renovação vigorava a versão do CC na redacção introduzida pela Lei 43/2017, de 14/06, e não foi apresentada resposta atempada a essa pretensão; a alteração do CC pela Lei 13/2019, invocada pela ré, não é aplicável ao facto específico em causa nos autos, encontrando-se a interpretação contrária ferida de inconstitucionalidade e viola as regras de interpretação da lei e de aplicação da lei no tempo, nos termos do art. 12 do CC, por ser retroactiva.
No despacho saneador, a excepção dilatória suscitada foi julgada improcedente por corresponder a acção de reivindicação à forma como o autor configurou a acção; em todo o caso – acrescentou-se – ainda que fosse procedente não daria lugar à absolvição da instância porquanto, destinar-se-ia a tutelar o interesse da ré, e não existe qualquer outro motivo que obste ao conhecimento do mérito da causa de forma integramente favorável a esta parte (cfr. art. 278/3 do CPC), pelo que se considerou prejudicado o seu reconhecimento; depois foi proferida decisão, condenando a ré a reconhecer a propriedade do autor sobre a fracção em causa e absolvendo-a dos restantes pedidos, com custas pelo autor.
O autor interpõe recurso desta sentença – para que seja declarada nula ou para que seja revogada e substituída por outra que declare eficaz a denúncia e condene a ré nos pedidos – terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
A – Erradamente, se decidiu que “(…) tendo a cessação dos efeitos do contrato de arrendamento remetido para uma data aquém do decurso do prazo legal de 5 anos, forçoso é concluir-se não ter o contrato de arrendamento em causa nos autos caducado, conforme alega o autor, por violar o disposto no artigo 1110/4 do CC”.
B – O autor enquanto proprietário, e tendo exercido legitima, legal e tempestivamente o seu direito de oposição à renovação do contrato de arrendamento, à qual a ré não se opôs, válida e atempadamente, causa directa e necessariamente aquele, graves prejuízos com a não entrega voluntária da fracção [sic].
C – Tendo sido enviada a aludida comunicação em 28/06/2019, a qual foi recepcionada pela ré, em 02/07/2019, o autor cumpriu o que vinha estabelecido no número 3 da cláusula primeira do contrato de arrendamento.
D – A ré como é referido no artigo 15.º da P.I “enviou a sua resposta, à carta de oposição à renovação, onde não alega quaisquer fundamentos que obstem à cessação do contrato de arrendamento por parte do senhorio, nomeadamente a oposição à renovação”, pelo que esta operou os seus efeitos à data de 30/06/2020.
E – A considerar-se a duração de cinco anos (términus em 15/07/2020) e igualmente, a aplicar-se a Lei 13/19, desde o dia 16/07/2020 até à presente data, a ré ocupa a fracção sem título, ou seja, ocupa a referida fracção de forma ilegítima e ilegalmente.
F – A declaração de oposição à renovação constitui uma declaração unilateral receptícia, um negócio jurídico unilateral, uma negociação unilateral, art. 295.º CC.
G- A declaração de vontade corresponde ao exercício de um direito potestativo, que implica a caducidade do contrato. É um meio mediato ou indirecto de extinção do contrato, por caducidade – cf. artigo 1055 CC.
H – O essencial, para a eficácia da declaração emitida pelo senhorio, é que seja dado a conhecer ao inquilino/arrendatário a vontade de não renovação do contrato, e que essa declaração, seja emitida com a antecedência mínima legalmente exigida face à data em que a extinção ocorrerá, podendo ser superior.
I – Ficou bem patente, que face a uma declaração destas, como a que foi enviada pelo autor à ré e perante qualquer receptor da mesma, colocado na posição de arrendatário, do ponto de vista de um bom pai de família, o propósito de se pôr fim ao contrato, mediante a sua não renovação – artigo 236/ do CC.
J – Não restam pois dúvidas, que tendo o autor, senhorio à data, manifestado a sua oposição à renovação do contrato de arrendamento, e terminado o prazo, face ao que ut supra vai e sem se conceder, seja em 30/06/2020 ou 15/07/2020 o contrato cessou.
K – Quanto a este propósito e quanto ao respectivo efeito, a eventual controvérsia quanto à data em que termina o contrato, apenas releva para o caso, o cumprimento do prazo legal de pré-aviso, e para a concretização do momento da produção de efeitos da cessação do mesmo.
L- A oposição à renovação do contrato de arrendamento estabelecida no n.º 3 do artigo 1096.º do CC aplicável aos presentes autos, em nada foi alterada por força da Lei 13/19.
M – A norma do artigo 1097.º do CC, que regula a forma de oposição à renovação deduzida pelo senhorio é uma norma sobre caducidade do contrato de arrendamento na medida em que disciplina o modo como essa causa de extinção do contrato pode vir a ocorrer na sequência de uma manifestação de vontade nesse sentido por parte do senhorio, e tem natureza imperativa visto estar abrangida nas matérias referidas no artigo 1080.º do CC.
N – A declaração de oposição à renovação do contrato de arrendamento é válida e eficaz pois foi cumprido o prazo legal de pré-aviso, diga-se desde já requisito esse que não foi impugnado pela ré nem o poderia ser.
O – A grande alteração operada pela Lei 13/2019, quanto à oposição à renovação deduzida pelo senhorio, reside na introdução do n.º 4 do art. 1110 do CC.
P – A letra do citado no n.º 4 do artigo 1110.º do CC, pela sua redacção ”nos cinco primeiros anos após o início do contrato, independentemente do prazo estipulado, o senhorio não pode opor-se à renovação”, veio causar controvérsia por colocar em causa a interpretação dos artigos 1096.º e 1095.ºdo CC, senão colocando-os inclusive em contradição.
Q – Não deixa de ser entendimento do autor, que a Lei 13/19 não se aplica ao caso discutido nos presentes autos, por força da aplicação da lei no tempo.
R – Forçoso será de dizer, de qualquer forma, que tendo por suporte na letra do art. 1097.º, n.º 3 do CC, o que é pretendido, com o estabelecido no n.º 4 do artigo 1110.º do CC, é pois o deferimento da produção de efeitos da primeira oposição à renovação, deduzida pelo senhorio.
S – O que se pretendeu foi garantir que o contrato de arrendamento dure pelo menos três/cinco anos, consoante seja habitacional ou não habitacional (salvo se o arrendatário pretender antes disso opor-se à sua renovação ou denunciá-lo) e não impedir que, durante esses três/cinco anos, o senhorio possa exercer o seu direito de oposição à renovação, para o termo do mesmo.
T – Outra interpretação, na prática, resultaria uma duração mínima do contrato de arrendamento bastante superior àquela que o legislador quis acautelar.
U – O legislador limitou-se, em ultima rácio, a deferir a produção dos efeitos do exercício do direito de oposição à renovação do contrato, quando deduzida pelo senhorio, para o fim do quinto ano de duração do contrato.
V – Posição que resulta da redacção dada ao n.º 3 do art. 1097.º do CC, aplicável aos arrendamentos não habitacionais, por força do próprio artigo 1110.º n.º 1 do CC.
W- Não restam dúvidas que outra interpretação, que não a aqui alegada, levar-nos-ia a contradição entre os artigos 1096.º n.º 3, 1097º n.º 1 e 3 e n.º1 e 4 do artigo 1110.º, conjugados entre si, todos do CC e à violação de direito garantido constitucionalmente.
X – Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete tem de presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9º do CC).
Y – A declaração de oposição à renovação do contrato de arrendamento é válida e eficaz pois foi cumprido o prazo legal de pré-aviso, diga-se desde já requisito esse que não foi impugnado pela ré nem o poderia ser e sobre o qual o Sr. juiz a quo, tinha que se pronunciar e não se pronunciou.
Z – A sentença recorrida viola frontalmente, e faz uma errada interpretação das disposições legais constantes dos artigos 1096.º, n.ºs 1 e 3, 1095., artigo 1097.º n.º1 e 3 e n.sº 1 e 4 do artigo 1110.º conjugados entre si, todos do CC.
AA – Pois não andou bem o tribunal a quo, quando entende que “(…) tendo a cessação dos efeitos do contrato de arrendamento remetido para uma data aquém do decurso do prazo legal de 5 anos, forçoso é conclui-se não ter o contrato de arrendamento em causa nos autos caducado, conforme alega o autor, por violar o disposto no artigo 1110.º n.º 4, do CC”.
BB – A comunicação enviada pelo autor deveria, ter sido declarada eficaz, declarando o tribunal a quo a oposição à renovação como validamente efectuada e eficaz e com base na mesma condenar a ré nos pedidos.
CC/EE – Verifica-se assim ter havido omissão de pronúncia, pelo Sr. juiz a quo, sobre questão sobre a qual não poderia deixar de se pronunciar, o que viola o artigo 615/1-d do CPC;
DD/EE – Verifica-se que, mesmo no caso em que o Sr. juiz a quo, se pronunciou, não o fundamentou devidamente, como o devia ter feito, o que viola os artigo 615.º n.º 1-b-c-d e artigo 607.º n.º 4 do CPC.
FF – Sendo que o juiz nos termos e para os efeitos do artigo 615/1-d do CPC deve pronunciar-se sobre todas as questões que sejam submetidas, sendo que a expressão «questões» prende-se com as pretensões que os litigantes submetem à apreciação do tribunal e as respectivas causas de pedir.
GG – E mesmo quando decidiu, a nosso ver, erradamente que não cabia ao tribunal – por tal não corresponder a uma questão decidenda – tomar posição a respeito da renovação ou respectivo prazo de renovação do contrato de arrendamento em causa nos autos, não fundamentou tal decisão, como o deveria ter feito já que, indubitavelmente, estava ínsito na contenda, o prazo de renovação.
A ré contra-alegou, propugnando a improcedência do recurso.
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Questões que importa decidir: as várias nulidades invocadas; se a ré não tem título para ocupar a fracção autónoma da autora e, se se concluir que não tem, então fica por saber se a ré deve ser condenada a pagar uma indemnização pela ocupação ilícita, desde que ela se verifica e até que a ré a restitua.
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Estão dados como provados os seguintes factos, que interessam à decisão daquelas questões:
1. O autor é proprietário da fracção autónoma designada pela letra “V”, sita no piso 2 (sala 201) do prédio urbano […]
2. O autor adquiriu a referida fracção por escritura de compra e venda, celebrada em 30/05/2019, tendo a fracção, em conjunto com outras do mesmo edifício, sido vendida ao autor pela M-SA, pelo preço de 310.000€, constando registada a aquisição a favor do autor na Conservatória do Registo Predial pela Ap. 000 de 2019/06/14.
3. Anteriormente, por contrato de arrendamento para fins não habitacionais, celebrado em 16/07/2015, entre a anterior proprietária M-SA e a ré, com destino exclusivo para consultório médico, incluindo medicina dentária, a referida fracção foi dada de arrendamento à ré pelo prazo de 4 anos, 11 meses e 15 dias, com início de vigência em 16/07/2015 e termo em 30/06/2020, sendo automática e sucessivamente renovado por períodos de 3 anos, salvo, quanto ao senhorio, no caso de ser deduzida oposição à renovação com antecedência mínima de 180 dias.
4. A renda mensal estipulada foi de 1.300€, acrescida do pagamento de 194,39€ a título de custos de condomínio, acrescidos de IVA.
5. Por carta de 11/06/2019, o autor comunicou à ré ser o novo proprietário da fracção e solicitou o pagamento das rendas a seu favor, indicando a forma de pagamento, tendo a ré, a partir de então, passado a proceder ao pagamento da renda em favor do autor, actualmente por transferência bancária por o autor ter deixado de emitir factura.
6. Por carta registada com AR datada de 28/06/2019, recebida pela ré, o autor comunicou à ré, para efeitos de audição prévia, a sua intenção de não renovação automática do contrato de arrendamento, visando cessar o contrato com efeitos em 30/06/2020, data em que o arrendado deveria ser entregue livre de pessoas e bens.
7. A ré respondeu à mencionada notificação, por carta datada de 12/07/2019, declarando não concordar com a pretensão do autor, designadamente, pelos investimentos feitos no locado e disponibilizando-se para encontrar uma solução negociada.
8. O autor remeteu nova carta registada à ré, datada de 14/08/2019, na qual notifica “o indeferimento do pedido deduzido” e comunica “a decisão final de não renovação automática do contrato de arrendamento para fim não habitacional da fracção” pelas razões que constam da missiva, e requerendo a “entrega do locado, até ao dia 30/06/2020, prazo em que cessará os efeitos do contrato de arrendamento.
9. A ré não procedeu à entrega do locado ao autor na referida data, nem posteriormente por entender não ter cessado o contrato de arrendamento.
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O contrato de arrendamento para fins não habitacionais, que seja renovável, pode apesar disso não se renovar quando houver oposição à renovação (artigos 1110/1 e 1096/1-3 do CC na redacção da Lei 31/2012, vigente à data da celebração do contrato, equivalentes, nesta parte, ao art. 1110/3 do CC na redacção da Lei 13/2019).
O disposto no art. 1110/4 do CC, introduzido pela Lei 13/2019, impondo um período mínimo de duração inicial do contrato renovável, que serve de base à decisão da sentença recorrida, aplica-se ao contrato em causa nos autos porque, embora o contrato tenha sido celebrado antes de aquela lei ter entrado em vigor (que foi no dia seguinte ao da sua publicação: artigo 16 da Lei 13/2019), tal norma dispõe directamente sobre o conteúdo da relação do arrendamento existente entre as partes, abstraindo do facto que lhe deu origem e, por isso, abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor: art. 12/2, 2.ª parte, do CC.
Neste sentido a sentença recorrida, com apoio no acórdão do STJ de 30/11/2021, proc. 19/20.5YLPRT.L1.S1: “A Lei 13/2019, ao abrigo do art. 12/2, 2.ª parte, do CC, na medida em que as suas disposições se revistam de natureza imperativa, aplica-se às relações jurídico-arrendatícias que subsistam à data do seu início de vigência, porquanto dispõe sobre o seu conteúdo e o conforma abstraindo do facto que lhes deu origem”.
Ao contrário do que o autor pretende, tal norma não é uma norma legal supletiva, em relação à qual seria aplicável a tese, sintetizada no ac. do STJ de 10/03/2022, proc. 19498/18.4T8LSB.L1.S1, de que: “I. As normas legais supletivas que regem os contratos, estabelecendo regimes sobre conteúdos que os outorgantes omitiram, são aquelas que estavam em vigor ao tempo da celebração do contrato, pois são elas que as partes terão previsto que vigorariam face a uma omissão convencional.”
Sobre isto, apesar das inúmeras divergências dos autores citados abaixo sobre outras questões, não há um único que defenda que a norma do art. 1110/4 do CC é uma norma supletiva, pois que, pelo contrário, todos a entendem, obviamente, como imperativa. Assim, apenas por exemplo, Jéssica Ferreira, na pág. 84 da obra citada, nota 17, escreve: “Esta norma é imperativa, não sendo válida a cláusula que a derrogue. […]”.
Posto isto,
O art. 1110/4 do CC dispõe: “Nos cinco primeiros anos após o início do contrato, independentemente do prazo estipulado, o senhorio não pode opor-se à renovação.” Esta disposição é clara: nos 5 primeiros anos o senhorio não se pode opor à renovação. Pelo que, se o contrato tiver um prazo de duração igual ou inferior a 5 anos, até ao fim dele não é possível uma oposição à renovação e, por isso, o contrato, até ao fim desses 5 anos, renovou-se. Pelo que, antes desta renovação não é possível a oposição à mesma.
Esta disposição é muito diferente da do art. 1097/3 do CC: “A oposição à primeira renovação do contrato, por parte do senhorio, apenas produz efeitos decorridos três anos da celebração do mesmo, mantendo-se o contrato em vigor até essa data, sem prejuízo do disposto no número seguinte.” Aqui permite-se a oposição à renovação, mas ela só produz efeitos ao fim do prazo de 3 anos.
Por isso, aquela norma não pode ser lida, simplesmente, como se quisesse dizer o mesmo que esta.
Neste sentido, apesar de crítico, veja-se David Magalhães, Professor de Direito da FDUC, Algumas alterações do regime jurídico do arrendamento urbano (Leis 12/2019 e 13/2019, de 12/02). O recrudescer do vinculismo, BFDUC, Coimbra, Nov2019, pág. 568, 2.º§ da nota 10 [“[…] a diferença de formulações entre o artigo 1097/3 e o art. 1110/4 […]. A primeira norma tem como hipótese a possibilidade de renovação […], mas não a impõe. A segunda, sim, proíbe a oposição à renovação no primeiro lustro contratual.”] e páginas 573 a 578, onde desenvolve inúmeras hipóteses em que aplica a posição assumida.
No mesmo sentido, Amadeu Colaço, Advogado, Guia Prático do Arrendamento Urbano, Novo regime da Lei 13/2019, Almedina, 2020, 2.ª edição, reimpressão, página 365: “8. O que o n.º 5 deste artigo impõe é que, independentemente do prazo estabelecido, nos primeiros cinco anos de vigência do contrato o senhorio não poderá opor-se à sua renovação. Assim, caso o senhorio pretenda uma maior ‘agilização’ no prazo contratual, deverá estabelecer o prazo mínimo legalmente permitido, de 1 ano (pela remissão que o n.º 1 do artigo 1110.º faz para o artigo 1095.º) o que lhe permite a que logo que concluídos os 5 anos de vigência do contrato, possa, finalmente, opor-se à sua renovação, ou que, com essa sua faculdade, possa negociar com o inquilino nova renda.”
Contra isto, o autor poderia ter-se apoiado num artigo de Jéssica Rodrigues Ferreira, Advogada de uma Sociedade de Advogados, Análise das principais alterações introduzidas pela Lei 13/2019, de 12/02, aos regimes da denúncia e oposição à renovação dos contratos de arrendamento urbano para fins não habitacionais, publicado na Revista Electrónica de Direito, Fev2020, n.º 1, vol. 21, que, nas páginas 82 a 87, (i) invoca o facto de o teor da norma não ser nítido, “agravando-se a incerteza em virtude da diferente redacção dada a normas que visam atingir o mesmo objectivo. Na verdade – diz – não se compreende se o direito de oposição só ‘nasce’ findos os cinco anos, como parece resultar da letra do n.º 4 do art.º 1110.º, ou se, pelo contrário, o legislador se limitou a deferir a produção dos efeitos do exercício do direito de oposição à renovação do contrato, quando deduzida pelo senhorio, para o fim do quinto ano de duração do contrato, como parece resultar da redacção dada ao n.º 4 do art.º 1097.” (ii) configura 2 hipóteses em que, aceitando-se a 1ª solução, o senhorio apenas poderá pôr termo ao contrato findos 8 ou 10 anos; (iii) e conclui que “a solução que melhor se coaduna com o espírito da lei é a última, e que tem suporte na letra do art.º 1097.º, n.º 4. Ou seja, o que se pretende é deferir a produção de efeitos da primeira oposição à renovação deduzida pelo senhorio, de forma a garantir que o contrato de arrendamento habitacional dure pelo menos três/cinco anos, consoante seja habitacional ou não habitacional e não impedir que, durante esses três/cinco anos, o senhorio possa exercer o seu direito de oposição à renovação.”
Ora, se se vir bem, não há nesta tese qualquer argumento que suporte a conclusão, conclusão que se trata de uma petição de princípio, baseada num série de afirmações em forma circular: a melhor solução é a solução que a autora entende ser a melhor, por estar de acordo com o espírito da lei que é o espírito que a autora lhe dá, qual seja, o de garantir que o contrato dure apenas cinco anos e não impedir que durante 5 anos o senhorio possa exercer o direito de oposição à renovação. Não há sequer uma tentativa de demonstração da afirmação inicial -, base da conclusão -, de que as normas dos artigos 1110/3 e 1097/4 têm o mesmo objectivo. Ora, se as normas têm diferente redacção e conduzem a resultados bem diferentes, elas não podem ser lidas do mesmo modo, como se não houvesse diferença entre elas. E elas não têm o mesmo objectivo, entendido este, a priori, nessa tese, como o de garantir que o contrato dure apenas o tempo que consta dessas normas. Sendo que os períodos de 8 e 10 anos apenas serão atingidos nas hipóteses configuradas e nada têm de especial: na redacção original, de 2006, do NRAU, o prazo supletivo dos contratos de arrendamento para fim não habitacional era de 10 anos (art. 1110/2 do CC na redacção de 2006), enquanto nos contratos para fins habitacionais o limite mínimo imposto nos contratos com prazo era de 5 anos (art. 1095/2 do CC), sendo que a reforma de 2019 procurou aproximar-se das soluções da redacção original do NRAU e o real objectivo da lei, de “reforçar a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano”, pode passar, legitimamente (isto é, sem qualquer inconstitucionalidade material), pela adopção de soluções diferentes para diferentes tipos de contrato de arrendamento.
Ainda no mesmo sentido, da equiparação, veja-se Ana Afonso, Professora de Direito, pág. 30, Estudos de Arrendamento, vol. I, da UCE/Porto, 2020, pág. 30: “Conquanto a redacção das duas normas legais seja distinta, cremos que o alcance do prazo […] é idêntico. […] Não vemos qualquer razão para se defender uma interpretação mais rigorosa da solução normativa no domínio do arrendamento não habitacional […]”. Mas, já se viu que eram diferentes os prazos nos dois tipos de arrendamento, na versão original dada aos artigos pelo NRAU, muito maior para o arrendamento não habitacional, o que demonstra que já se tinha presente a necessidade de maior estabilidade neste tipo de arrendamentos, o que é suficiente para legitimar a lei a ser mais rigorosa para um dos casos.
Ainda no mesmo sentido da equiparação, André Mena Hüsgen, Advogado numa Sociedade de Advogados, As novas regras sobre a duração, denúncia e oposição à renovação do arrendamento urbano, nos mesmos Estudos, páginas 96-97: “[…] cremos que o objectivo do legislador terá sido tão só o de garantir um prazo de duração efectiva de 5 anos. Por isso, atendendo à ratio da norma, admitimos que ao senhorio deve ser permitido opor-se à renovação de um contrato celebrado pelo prazo inicial de cinco anos. De outro modo, dar-se-ia o resultado absurdo de o senhorio só poder terminar o contrato no seu décimo ano de duração.” Revela-se aqui, claramente, uma interpretação contra a lei: esta proíbe a oposição, como diz David Magalhães, e o intérprete permite-se adoptar o sentido contrário, com base apenas numa ratio da norma avançada por ele próprio, sem sequer tentar demonstrar que é essa a ratio da norma (diga-se que o saneador-sentença recorrido refere que consultou a Proposta de Lei 129/XIII que deu origem à Lei [13/2019] e nada de relevante detectou; também para este acórdão se consultaram os trabalhos preparatórios da lei https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=42542 e nada mais se encontrou, num sentido ou noutro, de significativo, que esclarecesse a questão, para além daquilo que resulta do título da lei e que já foi posto em relevo na parte que interessa).
O juiz tem de aplicar a lei sem preconceitos contra ou a favor dos senhorios. Assim como o anterior regime devia ter sido aplicado rigorosamente tendo em conta o carácter liberalizador da lei, assim, com regresso a um regime menos liberalizador, se tem de aplicar a lei com o mesmo rigor, de acordo com as finalidades da lei, sem fazer um interpretação dela manifestamente contrária ao que nela se diz. Assim, por exemplo, como se viu, David Magalhães, apesar da crítica cáustica ao novo regime – com ou sem razão não interessa -, faz uma interpretação conforme à lei, sem equiparações forçadas entre normas com redacções praticamente opostas.
Também no sentido de fazerem equivaler as normas em causa (artigos 1110/3 e 1097/4 do CC na redacção da Lei 13/2009), agora sem fundamentação, veja-se Elsa Sequeira Santos, Professora de direito, na anotação 4 ao art. 1110/3 do CC, pág. 1425 da 2.ª edição do CC anotado, Almedina/CEDIS, 2019, vol. I; Pinto Furtado, Juiz Conselheiro Jubilado, Doutor em Direito, Comentário ao RAU, 3.ª edição, Almedina, Nov2021, especificamente na página 772 (“à imagem do que, em análoga determinação legal, se ditou no n.º 1 do art. 1095, conjugadamente com o preceituado no art. 1097-3 (v., para o arrendamento habitacional, supra, n.º 3, sub art. 1096)”); e Edgar Valente, Advogado, Manual de Arrendamento Urbano, Almedina, 2020, como o revela aquilo que diz no último § da pág.305: “Neste sentido, tal como sucede no n.º 3 do art. 1097, também nos contratos não-habitacionais o senhorio encontra-se condicionado à manutenção do contrato durante pelo menos 5 anos, […] valendo quanto ao prazo mínimo de duração de 5 anos, as considerações realizadas a propósito do prazo de 3 anos de duração mínima para o senhorio em sede dos contratos habitacionais […].”
Não se encontraram outros autores que tomassem posição expressa sobre esta precisa questão, nem se encontrou jurisprudência que já se tenha pronunciado sobre ela.
Em suma, não sendo válida a oposição à renovação, porque a lei proíbe a oposição à renovação antes do fim dos 5 anos, a oposição do autor não teve o condão de levar à extinção do contrato que serve de base/título à ocupação da fracção autónoma do autor pela ré, pelo que a acção de reivindicação tinha de improceder, como improcedeu.
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O saneador-sentença recorrido não chega a ponderar a aplicação da solução do art. 1097/3 do CC, ou seja, de “transferir” a eficácia da oposição para o dia seguinte ao fim do prazo de 5 anos.
Mas isto não corresponde a qualquer nulidade do saneador sentença (por omissão de pronúncia: art. 615/1-d do CPC), mas apenas a desconsideração de um argumento do autor, argumento que ficou implicitamente afastado pela consideração de que norma a aplicar era a do art. 1110/4 do CC e, implicitamente, que este tinha o sentido que este acórdão lhe atribuiu.
Também não há qualquer nulidade do saneador sentença – seja ela a das alíneas b, c, ou d do art. 615/1 do CPC – ao não se pronunciar quanto ao prazo da renovação do contrato. O objecto da acção, que é uma acção de reivindicação, é apenas o de saber se a ré tinha ou não título para a ocupação da fracção autónoma do autor. Tendo o tribunal concluído que a oposição à renovação não era válida, o que implica que o título não se extinguiu, e que, por isso, a contra excepção deduzida pelo autor improcedia, levando à improcedência da acção, tudo o mais que o tribunal dissesse – sobre o período pelo qual o contrato se prorrogou – estaria para além do objecto do processo e, aí sim, incorreria em nulidade. Uma sentença não se destina a dar soluções para casos posteriores, nem a esclarecer as partes sobre direitos que não estão em discussão nos autos.
E evidentemente que não existe também nenhuma nulidade, por falta de fundamentação, quando o tribunal diz que “por tal não corresponder a uma questão decidenda […], não cabe ao tribunal tomar posição a respeito da renovação ou respectivo prazo de renovação do contrato de arrendamento em causa nos autos.”
Muito menos razão, ainda, havia para que o tribunal recorrido tivesse que ter dito fosse o que fosse sobre o cumprimento do “prazo legal de pré-aviso”, visto que considerou que a oposição não era válida, pelo que também aqui não há qualquer nulidade da sentença.
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas de parte pelo autor (por perder o recurso).
Lisboa, 29/09/2022
Pedro Martins
1.º Adjunto
2.º Adjunto