Processo do Juízo Local Cível de Mafra
Sumário:
Os interessados num inventário não passam a ser comproprietários de um dos prédios apenas por terem acordado na sua adjudicação a todos eles. Essa compropriedade só nasce com o trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha, tal como pressuposto na sentença recorrida.
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:
J e M intentaram contra M e outros, uma acção especial de divisão de coisa comum alegando, em síntese, serem todos eles, autores e réus, comproprietários do prédio rústico de que pretendem pôr termo à indivisão.
Três dos vários réus contestaram, entre o mais excepcionando a inexistência da compropriedade invocada, uma vez que o processo de inventário em que o mesmo está a ser partilhado, processo 1069/09.8T2MFR, que corre termos no mesmo tribunal, ainda não está concluído, já que, apesar de ter havido acordo de todos os interessados com a adjudicação daquele prédio, em comum, a todos os interessados naquele inventário, na proporção dos quinhões respectivos, o Tribunal da Relação de Lisboa revogou a sentença de homologação da partilha, que havia sido proferida pelo Tribunal, tendo, por isso, ficado sem efeito a atribuição, em comum, a todos os interessados, do imóvel, cuja divisão os autores estão a pedir na presente acção, e só depois de concluída a partilha com a organização de novo mapa de partilhas e de proferida sentença homologatória do mesmo, com trânsito em julgado, é que os interessados passarão a ser comproprietários daquele prédio.
Depois disso, foi proferida decisão absolvendo os réus do pedido, com base na seguinte factualidade que se considerou encontrar-se apurada:
a) Encontra-se descrito sob número 0000 da freguesia da Ericeira na Conservatória do Registo Predial de Mafra, prédio rústico […], com área total de 10562m2, composto por vinha, cultura arvense e dependência agrícola;
b) O prédio acima referido integra o acervo hereditário de MD e de SC, correndo neste Juízo, sob o n.º 1069/09.8T2MFR processo especial de inventário para partilha daquele acervo, estando o prédio relacionado como verba n.º 1;
c) Em conferência de interessados realizada no âmbito do processo identificado em b), os interessados acordaram na adjudicação do prédio identificado a todos na proporção dos seus quinhões hereditários;
d) Nesse processo foi elaborado Mapa da Partilha que foi homologado por sentença proferida a 22/10/2015;
e) Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido a 16/05/2016, foi a sentença identificada em (d) revogada, tendo-se ordenado que se refizessem as operações de partilha;
f) O processo acima identificado pende ainda, encontrando-se em fase de venda de bens, nos termos do artigo 1353.º do Código Processo Civil de 1961.
A fundamentação de direito daquela decisão foi a seguinte na parte que importa e com algumas simplificações:
[…] é certo que na petição inicial os autores invocam a compropriedade sobre o bem imóvel aí melhor descrito, compropriedade emergente da partilha alcançada em processo de inventário que corre termos neste Juízo sob o número 1069/09.8T2MFR, na sequência de acordo unânime em sede de conferência de interessados da sua adjudicação a todos na proporção dos respectivos quinhões.
Contudo, resulta da factualidade acima elencada que a sentença de homologação da partilha naqueles autos proferida foi integralmente revogada por decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, que decidiu que se deviam refazer as operações de partilha em conformidade com o que expôs.
Em virtude do exposto, evidente é que o imóvel cuja divisão se pretende obter pela presente não se encontra em situação de compropriedade, antes integrando o acervo hereditário que se encontra por partilhar nos termos do processo de inventário acima identificado.
Como escreve, por todos, Luís Pires de Sousa, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 2016, páginas 18 e 19: “Até à partilha, os herdeiros são apenas titulares de um direito sobre o conjunto da herança e não sobre bens determinados. Enquanto não se fizer a partilha, os herdeiros têm sobre os bens que constituem a herança indivisa um direito indivisível, recaindo tal direito sobre o conjunto da herança e não sobre bens certos e determinados desta. A contitularidade do direito à herança implica um direito a uma parte ideal desta considerada em si mesma e não sobre cada um dos bens que a compõem. Nessa medida, não se tratando de coisa comum de que sejam comproprietários, não podem os herdeiros instaurar acção de divisão de coisa comum para dividir prédio que integre a herança. Só após a atribuição dos bens em partilha é que os herdeiros podem recorrer à acção de divisão de coisa comum.
Pelo exposto, não estando findo o processo de inventário acima referido, naturalmente não se pode concluir por encontrar-se o prédio dos autos em compropriedade, nem tão pouco que os autores sejam dele comproprietários nos termos do artigo 1403.º do Cód. Civil.
Não se verificando assim a situação jurídica da qual depende a tutela jurisdicional concretamente solicitada, sem necessidade de maior e mais aprofundada argumentação, improcede a integralmen-te a presente.
Os autores interpõem recurso desta decisão – para que ela seja revogada e substituída por outra que considere que o prédio objecto dos presentes autos está numa situação de compropriedade, sendo dele comproprietários os autores, devendo por isso a acção de divisão de coisa comum prosseguir seus trâmites até final -, terminando as suas alegações com 6 páginas de conclusões:
a) Os recursos interpostos da sentença de 17/06/2015, que homologou o mapa da partilha, apenas impugnaram a parte da sentença no que se refere à adjudicação das verbas 2, 5, 7 e 9;
b) Como consta do acórdão [que recaiu sobre eles], as questões a resolver foram as seguintes: da adjudicação em comum a todos os interessados dos bens não licitados; e da adjudicação a JM da verba nº 5;
c) Nenhuma outra questão foi objecto de recurso;
d) Pela simples razão que nenhuma outra questão foi impugnada;
e) Nomeadamente não foi impugnada a adjudicação, por acordo de todos os interessados, do prédio de verba 1, e que é objecto dos presentes autos de divisão de coisa comum;
f) Tendo o TRL julgado procedentes as apelações:
g) Ou seja, o que se decidiu pelo referido acórdão foi que os bens não licitados, constantes das verbas 2, 7 e 9, deveriam ser utilizados para preencher os quinhões dos não licitantes ou não conferentes;
h) No seguimento do que a verba 5 ficou para o recorrente e as verbas 2, 7 e 9 foram destinadas ao preenchimento do quinhão dos Interessados não licitantes;
i) Tendo por objecto unicamente estas três verbas – 2, 7 e 9 – houve nova conferência de interessados na qual concordaram os interessados na junção das verbas 2 e 7 numa única – verba 2 – e na venda das referidas verbas;
j) Tanto assim é que por despacho de 08/11/2018, o tribunal a quo decidiu convocar nova conferência de interessados para cumprir o ordenado pelo TRL, ou seja, refazer as operações de partilha atendendo ao ali disposto […];
k) E a mencionada conferência de interessados teve por objecto apenas e só as verbas 2, 7 e 9, ou seja, as que tinham sido adjudicadas a todos os herdeiros;
l) Nunca o acordo de todos os interessados de adjudicação a todos, na proporção dos respectivos quinhões, do prédio agora objecto da divisão de coisa comum, foi impugnada, logo não foi objecto de recurso;
m) Pelo que, relativamente à situação de compropriedade criada por acordo de todos os Interessados – em Maio de 2014 – relativamente a este prédio existe trânsito em julgado;
n) Logo, sendo os ora recorrentes comproprietários do referido prédio assiste- lhes o direito de por fim à situação de compropriedade que existe;
o) Decidiu o tribunal a quo que como a sentença de homologação da partilha foi integralmente revogada pelo TRL […] o imóvel objecto destes autos não se encontra em situação de compropriedade, antes integrando o acervo hereditário que se encontra por partilhar;
p) Ora se assim fosse, caberia ao tribunal a quo explicar porque motivo então desde 2017 prosseguiu com os autos de inventário apenas quanto às verbas 2, 7 e 9! [sic];
q) Ou seja, se o tribunal a quo considera que todas as verbas estão por partilhar quando tencionará prosseguir com o inventário relativamente às demais verbas?
r) E se entendia o tribunal a quo que todas as verbas estavam por partilhar – porque o TRL revogou integralmente a sentença – porque é que convocou em 2018 conferência de interessados apenas e só para tratar da partilha das verbas 2, 7 e 9;
s) Para quando então a partilha das restantes?
t) É que o tribunal a quo, o mesmo onde tramita o inventário, não pode considerar nestes autos que está tudo por partilhar e nos autos de inventário que só falta partilhar as verbas 2, 7 e 9!
u) Desde a Conferência de Interessados de Maio de 2014 não houve qualquer outra que versasse sobre a partilha dos restantes prédios; tão só ficou por resolver a situação referente aos prédios das Verbas 2, 7 e 9 e por motivo diferente o de Verba 5;
v) E foi unicamente sobre a adjudicação destas verbas que a sentença foi impugnada;
w) Igualmente foi apenas sobre estas verbas que o TRL se pronunciou e decidiu;
x) Pelo que, só se pode entender que relativamente à adjudicação do prédio de verba 1, objecto destes autos, a decisão transitou em julgado e o mesmo encontra-se em situação de compropriedade, sendo dele comproprietários os ora recorrentes.
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Questão que importa decidir: se o prédio a cuja indivisão se pretende pôr termo está em compropriedade e se são os autores e os réus os contitulares dela.
Os factos a utilizar para tal decisão são os que já acima foram transcritos.
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Apreciando:
Os autores pretendem que a compropriedade invocada resultou do decidido no inventário destinado a pôr termo à comunhão hereditária.
Ora, o que constitui a compropriedade, num inventário, é a sentença que homologa a partilha. Ou seja, se a comunhão hereditária termina com a partilha, esta refere-se a uma sentença de um inventário que homologa uma partilha com trânsito em julgado. É esta que forma o título que concretiza os bens de que cada interessado passa a ser titular.
A compropriedade sobre um bem que era da herança passa a existir com a sentença que homologa a partilha, transitada em julgado, não com um acordo dos interessados que é apenas uma das bases para a partilha dos bens da herança. O acordo dos interessados não é o objecto da homologação. O objecto da homologação é a partilha. Por outro lado, o acordo dos interessados não é uma decisão recorrível e por isso não se faz caso julgado sobre ele.
Veja-se:
Segundo o art. 1082/-a do CPC, o processo de inventário cumpre, entre outras, as seguintes funções: “[…] Fazer cessar a comunhão hereditária e proceder à partilha de bens.” [aqui como a seguir, faz-se referência à versão actual do processo de inventário, porque as regras em causa têm correspondência na versão anterior e neste processo a distinção não tem relevo].
Como qualquer processo judicial, ele atinge esse objectivo com uma decisão final, a sentença: art. 1122/1 do CPC: “Depois de decididas todas as questões, o juiz profere sentença homologatória da partilha constante do mapa.” E esta só tem valor definitivo depois do trânsito, como, por exemplo, também decorre do art. 1122/2 do CPC: “Depois do trânsito em julgado da sentença homologatória e se houver direito a tornas, os requerentes podem pedir que se proceda, no processo, à venda dos bens adjudicados ao devedor.”
Dai que, noutra consequência do que antecede, o art. 1124/1 do CPC, disponha: “Se algum dos interessados mostrar interesse atendível em receber os bens que lhe tenham cabido em partilha antes do trânsito em julgado da sentença homologatória, observa-se o seguinte […]”, e o seguinte são uma série de cautelas, como, por exemplo, a prevista logo na alínea (a) do art. 1124/1 do CPC: “No título que se passe para o registo e posse dos bens imóveis, declara-se que a decisão não é definitiva, não podendo o conservador registar a transmissão sem mencionar essa circunstância; […].”
Portanto, sem o trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha, não há registo definitivo de nenhuma aquisição. Ou seja, só pode haver registos provisórios, o que quer dizer que a situação não é definitiva.
Assim, tendo sido revogada a sentença homologatória da partilha (e era esta o objecto do recurso, que não se confunde com as questões a resolver nele), não há, ainda – e não se saberá se alguma vez haverá ou quando é que haverá – compropriedade da verba n.º 1, isto é, do prédio de que os autores se dizem comproprietários.
Não havendo compropriedade, os autores não podem ser contitulares do direito invocado, e por isso o pedido tinha de improceder.
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas de parte pelos autores.
Lisboa, 29/09/2022
Pedro Martins
1.º Adjunto
2.º Adjunto