Processo do Juízo Local Cível do Seixal

               Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

           Em 15/02/2021, o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, IP, intentou uma acção comum contra F e J, pedindo que os réus fossem condenados a reconhecer o direito de propriedade do autor sobre o imóvel que ilicitamente ocupam e a restitui-lo ao autor, livre e devoluto de pessoas e bens, bem como a pagar-lhe uma indemnização, pelo prejuízo da ocupação ilegal, equivalente ao montante de renda máxima vencida (Fevereiro de 2021) 167.44€, e ainda o equivalente ao valor de rendas vincendas que se vierem a apurar até entrega do imóvel, acrescida de juros de mora à taxa legal contados a partir da citação.

            Alega para tanto que é o proprietário da fracção autónoma reivindicada e que os réus estão a ocupá-la, sem qualquer título para essa ocupação, e não a restituem ao autor apesar do pedido deste.

            Em 24/03/2021, os réus contestaram; descrevendo o estado de coisas que no essencial consta dos factos dados abaixo como provados sob 9 a 19, excepcionaram (i) ocuparam o imóvel por carência económica e mantiveram-se nele em virtude da inércia do autor em conceder-lhes uma habitação social (tendo em conta os pedidos que já realizaram), sendo certo que a habitação é um direito fundamental, constitucionalmente previsto; (ii) invocam a figura do estado de necessidade, previsto no art. 339.º do Código Civil; (iii) requerem a suspensão da execução da entrega da fracção ao autor, decorrente do regime excepcional previsto nos n.ºs 1 e 7 [mas os réus transcrevem o n.º 11 e não o 7] do art. 6.º-B, da Lei 4-B/2021 de 01/02 [seguiu-se, nos pontos i e iii a síntese da contestação que consta da sentença recorrida e apenas na parte que ainda interessa].

            O autor respondeu, “quanto ao pedido […] para diferimento da desocupação do locado, […] que tal diferimento não deve ser concedido, [entre o mais] porque [os réus] já ocupam a habitação ilegalmente desde 04/02/2019 pelo que não faz sentido dar mais prazo a uma conduta ilícita […]”

            Depois de uma primeira sentença anulada pelo próprio tribunal, foi realizada a audiência final a 23/06/2022 e, depois dela, a 13/07/2022 foi proferida sentença, condenando os réus a restituir o imóvel ao autor, livre e devoluto de pessoas e bens e a pagar-lhe 167,44€ por cada mês que permaneçam no imóvel, até à sua entrega ao autor, estando vencidos, desde Fevereiro de 2021 até à presente data (Julho de 2022), o valor de 2.846,48€; e determinando a suspensão dos actos tendentes à execução da entrega do imóvel enquanto vigorar o regime transitório e excepcional consagrado no art. 6.º-E, da Lei 1-A/2020, de 19/03, na redacção dada pela Lei 91/2021, de 17/12.

            A 30/09/2022 o autor recorreu deste saneador-sentença, na parte que se refere à suspensão, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, para além de ter requerido a rectificação da sentença quanto à morada da fracção ocupada:

            Não se verificam os pressupostos da suspensão por força regime transitório e excepcional consagrado no invocado art. 6.º-E/7-b-c; estamos perante uma ocupação ilícita e não perante um arrendamento; nem sequer uma casa de família pode ser atendida; logo não se pode aplicar a norma invocada, como é jurisprudência dos acórdãos do TRL de 17/12/2020, proc. 451/18.4T8BRR, e de 17/06/2021, proc. 1055/20.7YLPRT.L1-6; em suma, deve ser de imediato, sem suspensão alguma, entregue ao autor a fracção ocupada pelos réus, com a morada correcta.

            Os réus contra-alegaram, no sentido da improcedência do recurso. Dizem eles, em suma, que a norma excepcional do art. 6.º-E/7-c da Lei 1-A/2020, com a redacção actual, pode ser aplicada ao caso por interpretação extensiva, porque, por força do art. 13 da Lei 83/2019, de 03/09, considera-se despejo o procedimento de iniciativa privada ou pública para promover a desocupação forçada de habitações indevida ou ilegalmente ocupadas, interpretação extensiva já feita pelo acórdão do TRP [de 09/02/2021], proc. 1275/19.7T8PVZ.P1 [interpretou a expressão ‘a proferir’ como incluindo uma decisão ‘já proferida’].

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            Questão a decidir: se a sentença podia ter determinado a suspensão dos actos tendentes à execução da entrega do imóvel.

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            Foram dados como provados os seguintes factos:

         1) O autor é um instituto público integrado na Administração Indirecta do Estado, dotado de autonomia administrativa e financeira e património próprio, cujas atribuições consistem em assegurar a conservação do seu património habitacional e atribuir as habitações em propriedade ou arrendamento, segundo os regimes legalmente fixados, nos termos do DL 223/2007, de 30/05.

         2) No cumprimento dessa sua missão, cabe ao autor gerir o parque habitacional, equipamentos e solos que constituem o seu património, no cumprimento da política definida para a habitação de interesse social e na perspectiva da sua conservação e auto-sustentabilidade.

         3) O autor é proprietário da fracção autónoma sita na Rua P […].

         4) A fracção referida em 3 encontrava-se, vaga, entaipada e a aguardar obras de reabilitação para ser entregue a família carenciada, nos termos legais.

         5) Através de denúncia de vizinhos, o autor teve conhecimento que a fracção havia sido arrombada e ocupada pelos réus, pelo menos, desde Janeiro de 2020.

         6) Os réus não têm contrato ou outro título que legitime a sua permanência no imóvel.

         7) A procura de habitação social para arrendamento junto do autor é superior ao número de fracções que este tem devolutos para o efeito.

         8) A renda máxima mensal, calculada de acordo com a Lei 81/2014, de 19/12, é no montante de 167.44€.

         9) Os réus foram despejados do imóvel em que habitavam, sito em V…, em virtude de o seu senhorio se ter oposto à renovação do contrato de arrendamento, concedendo-lhes até ao dia 31/12/2018 a entrega do local arrendado livre e desocupado de pessoas e bens.

         10) O despejo foi efectivado no final de Fevereiro de 2019, altura em que o referido imóvel terá sido vendido.

         11) Perante a iminência de ficar sem tecto, os réus, procuraram ajuda junto do autor, pedindo-lhe que lhes fosse concedida habitação social.

         12) O agregado familiar dos réus é constituído por ambos, desempregados, e pelos seus três filhos: C de 24 anos de idade, P de 18 anos e J de 15 anos, e a neta B de 8 anos, filha de C.

         13) Os três menores encontram-se em idade escolar.

         14) Por forma a garantir a higiene diária e as condições mínimas de uma vida condigna e tendo chegado ao seu conhecimento a existência de uns imóveis de habitação social, que estavam vazios, os réus ocuparam uma das habitações do autor.

         15) Os réus encontram-se sem trabalhar, auferindo apenas o rendimento social de inserção no valor global de 604,91€ por mês.

         16) Após o despejo que sofreram, em Fevereiro de 2019, os réus já formularam pedidos de apoio à habitação, junto do autor, sem sucesso.

         17) Os réus também se dirigiram à Câmara Municipal do S, para requerer a atribuição de uma habitação social, sendo que lhes foi informado que, uma vez que tinham procedido ao pedido junto do autor, não se poderiam inscrever ou candidatar aos imóveis sociais camarários no mesmo ano.

         18) Os réus não dispõem de outra habitação alternativa à actual.

         19) Os réus não dispõem de auxílio por parte de familiares e amigos.

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            Apreciação:

            Apesar do que se diz na decisão da sentença recorrida, o que está em causa é a suspensão prevista nas normas das alíneas b e c do n.º 7 do art. 6-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, artigo esse aditado pelo artigo 3.º da Lei 13-B/2021, de 05/04, em vigor a partir de 06/03/2021 (está-se a seguir a versão consolidada da referida lei na versão publicada no DR electrónico), já que a Lei 91/2021 de 17/12, se refere apenas à prorrogação, até 30/06/2022, do prazo para a realização por meios de comunicação à distância das reuniões dos órgãos das autarquias locais e das entidades intermunicipais.

          A norma em causa tem a seguinte redacção na parte que interessa (que tem correspondência no art. 6.º-B/11 da Lei 4-B/2021 transcrito pelo réus, por erro, como se fosse o n.º 7):

         7 – Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excepcional e transitório previsto no presente artigo:

         […]

      b) Os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;

     c) Os actos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das acções de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa;

         […]      

            As duas previsões legais em causa naquelas alíneas do art. 6.º-E/7 da Lei 1.º-A/2020, na redacção actual, respeitam a diligências a realizar em sede de processo executivo, tratando de impedir actos de execução no decurso desse processo.

            A decisão da sentença recorrida utiliza termos que permitem a subsunção do caso quer na alínea b quer na alínea c do art. 6.º-E/7 e aplica a consequência disposta nessas normas.

            Portanto, nesta acção de reivindicação, acção declarativa, o tribunal está a reconhecer um direito dos réus a obter a suspensão de actos processuais numa execução que virá a ser intentada mais tarde.

            Poderia pensar-se que a antecipação desta discussão para a acção declarativa não seria impossível: os réus levantaram a questão na contes-tação e formularam um pedido relacionado com ela, o tribunal deu-lhe seguimento e o autor pronunciou-se sobre ela. Estaríamos caídos no âmbito de aplicação do art. 91/2 do CPC: ao decidir pela aplicação da consequência do art. 6.º-E/7 da Lei 1.º-A/2020, o tribunal reconheceu nesta acção que a situação dos réus caía no âmbito da previsão desse artigo.

            Mas não pode ser assim.

            A questão da suspensão dos actos de uma execução futura é matéria própria dessa execução futura, a decidir com base na situação de facto e nas normas que então existirem, e não de uma acção declarativa com base numa situação de facto e em normas que não se sabe se virão a ser as mesmas.

            E o caso dos autos demonstra que assim é.

            Quando os réus contestaram, estava em vigor a redacção dada à Lei 1-A/2020 pela Lei 4-B/2021.

            Mas, menos de 15 dias depois, a Lei 1-A/2020 foi alterada pela Lei 13-B/2021, de 05/04 (e com efeitos retroactivos a 06/03/2021), tendo-lhe aditado o art. 6.º-E, do qual consta o n.º 7 correspondente ao n.º 11 do art. 6.º-B, mas subdividindo-o.

            Ora, se tivesse havido mudanças na previsão ou na consequência de tais normas, era a nova previsão ou a nova consequência que teriam de ser aplicadas.

            E a situação de facto também podia ter mudado, deixando o imóvel de ser a casa de morada da família.

            Não tem, por isso, razão de ser, estar um tribunal a decidir, numa acção declarativa, aquilo que terá de ser decidido, eventualmente, pelo tribunal por onde corra uma futura execução (se e quando a questão for posta, já que, apesar de a suspensão em causa no art. 6.ºE/7-b ser automática, não quer dizer que ela não tenha que ser declarada pelo tribunal se for discutida).

              Mais ou menos no mesmo sentido (embora para um caso da alínea (c)), veja-se o ac. do TRL de 18/11/2021, proc. 2555/19.7T8SXL.L1-2: “[…] os autos não constituem um ‘processo executivo’, […] não estão em causa ‘actos de execução da entrega do local arrendado’. […] Os autos onde foi proferida a decisão recorrida constituem uma acção declarativa, sendo que a prática de ‘actos de execução da entrega do local arrendado’ depende ainda da ocorrência de elementos por ora [in]existentes: desde logo, depende da não entrega do locado aos ora recorrentes e do impulso destes no sentido de lhes ser judicialmente entregue o locado.”

            Note-se que a decisão de suspensão recorrida é só de suspensão de actos tendentes à execução da entrega do imóvel, não é suspensão da acção declarativa, nem dos seus efeitos, nem da execução futura ou da possibilidade de iniciar a execução. Se assim fosse, a decisão de suspensão também teria de ser revogada, por maioria de razão, pois que então nem se poderia invocar o disposto no art. 6.º-E/7 da Lei 1-A/2020.

            Sendo assim fica prejudicada a apreciação do fundamento alegado pelo autor, de que a suspensão nem sequer seria possível por não poder ter por objecto imóveis que estejam ocupados ilicitamente. Se é o tribunal da execução que tem de decidir a questão da suspensão (se e quando ela lhe for posta), é a ele que cabe a apreciação da questão dessa possibilidade.

                                                      *

            Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se a sentença recorrida apenas na parte que determina a suspensão dos actos tendentes à execução da entrega do imóvel, e, em sua substituição, indefere–se a requerida suspensão por não ser a acção declarativa a sede própria para da mesma conhecer, mantendo a sentença na parte restante, com a correcção da morada do imóvel ocupado e a restituir que é aquela que consta do facto provado sob 3. 

            Sem custas quer na acção quer no recurso (os réus, que perdem a acção e o recurso, têm apoio judiciário que os dispensa delas).

            Lisboa, 24/11/2022

            Pedro Martins

            1.º Adjunto

            2.º Adjunto