Inventário – Juízo de Família e Menores de Loures
Sumário:
I – No caso de uma iniciativa oficiosa do juiz que implique despesas, essa iniciativa tem de incluir a determinação do pagamento pelo IGFIEJ, porque não tem [sentido] impor aos interessados, que não a requereram, o pagamento antecipado sob a cominação da não realização da diligência.
II – Pelo que a falta de pagamento antecipado das despesas, por interessados que não a requereram, não é um acto essencial do qual o andamento do processo dependa e, por isso, não pode levar à extinção da instância por deserção.
III – Se a diligência tivesse sido requerida e o requerente – ou a outra parte – não procedesse ao pagamento antecipado das despesas, a consequência também não seria a deserção da instância, mas sim a não realização da diligência.
A 17/02/2020, A requereu contra a sua ex-mulher, L, um inventário judicial para partilha dos bens comuns do ex-casal, subsequente ao divórcio entre eles (transitado a 12/92/2016), apresentando-se como cabeça-de-casal, por ser o mais velho e acabando por ser nomeado como tal.
Num despacho posterior, de 28/06/2021, foi decidido, entre o mais, quais os bens que deviam constar da relação de bens (5 verbas do activo e 1 do passivo) e que os valores atribuídos às verbas 1 a 4 da relação de bens são os correctos e observam os ditames legais, pelo que se devem manter.
Mas acrescentou-se: abaixo será determinada a realização de uma avaliação às verbas do activo que integra a relação de bens, não para alterar os seus valores na relação de bens, mas para permitir uma partilha mais igualitária.
E mais à frente foi de facto determinado: “Por forma a permitir uma partilha mais igualitária e porque as partes divergem quanto aos valores reais dos bens relacionados, importa determinar a respectiva avaliação, tanto dos imóveis (verbas 1, 2 e 3), como da sociedade comercial (verba 4). Ambas as avaliações serão efectuadas (cada uma delas) por perito único nomeado pelo Tribunal, sendo a avaliação dos imóveis efectuada por perito avaliador de imóveis que a secção indicar, e a avaliação da sociedade comercial será efectuada por Revisor Oficial de Contas que a respectiva Ordem indicar.
Por fim, escreveu-se: que a secção “liquide preparos e notifique as partes [para] os pagarem, sem prejuízo, quanto à requerida, do benefício do apoio judiciário.”
A 03/11/2021 foi emitida uma guia com o valor do pagamento antecipado de preparos – 2.650€ – pelo cabeça-de-casal, a ser paga até 19/11/2021, notificada por carta elaborada na mesma data. Na carta dizia-se, entre o mais, que “omitindo o pagamento pontual dos encargos pode, se for oportuno, realizá-lo nos 5 dias seguintes, mediante o pagamento de uma sanção igual ao montante em falta, com o limite máximo de 3 UC (art. 23.º, nº 2 do RCP, nas alterações introduzidas pela Lei 7/2012, de 13/02). Advertência: A falta de pagamento implica a não realização da diligência – art. 23/2 do RCP, nas alterações introduzidas pela Lei 7/2012.”
A 10/11/2021, o cabeça-de-casal veio dizer que “não possui, ao contrário da interessada, apoio judiciário e, com este processo, desde as taxas pagas no Notário, no valor de milhares de euros, até às despesas já efectuadas, deixou de ter possibilidade de efectuar esse pagamento.”
Por despacho de 16/12/2021 foi decidido que:
“A avaliação dos bens e activos que integram a relação de bens é essencial para a resolução da divergência das partes a respeito do valor das mesmas, a não ser que as partes acordem no valor das respectivas verbas, sem o que o processo não pode ter andamento. Assim, aguarde-se que seja paga a provisão para pagamento das avaliações, sem prejuízo do disposto no art. 281/1 do CPC.
Notifique.”
O despacho foi notificado por carta elaborada a 17/12/2021.
A guia não foi paga pelo cabeça-de-casal.
A 05/01/2022, o cabeça-de-casal veio “solicitar que se proceda a licitações, mesmo sem a avaliação dos bens, uma vez que as partes, sabem o valor dos mesmos, evitando, com essa fase processual, que sejam gastos valores elevados ou que ocorra a deserção da instância.”
A 11/01/2022, a interessada, dando-se por notificada do despacho que, diz, admite a possibilidade de extinção da instância por deserção, vem alegar que a estratégia do cabeça-de-casal é não partilhar com esta os bens comuns, tendo-se servido de todos os meios processuais a fim de protelar a partilha: no inventário notarial arguiu a incompetência; aqui vem queixar-se de que tem gasto muito dinheiro e por isso não pode pagar os honorários e ao mesmo tempo esquece-se de informar que fez obras voluptuárias na casa que foi a morada de família, pelo que também tem dinheiro para pagar os mencionados honorários, pelo que o não pagamento serve o objectivo último de extinguir esta instância; há bens executáveis no património do cabeça-de-casal, pelo que é possível que o tribunal mande extrair certidão da dívida referente aos honorários em causa e execute em conformidade o cabeça-de-casal, já que a interessada está dispensada de pagar aqueles honorários. O que, todavia, não impede que IGFIEJ antecipe aquela verba a fim de se evitar a deserção da instância, não tendo razão de ser a solução proposta pelo cabeça-de-casal: porque é falso que as partes e o tribunal saibam o valor dos bens pois se assim fosse, não seria necessário a sua avaliação; e porque, assente que há divergências quanto aos valores que um e outra atribuem aos bens, qual seria a base de licitação de cada bem? Cada um licita pelo que entende e o outro faz o mesmo? E qual seria nesse caso o valor da adjudicação? Assim, a interessada pede que se digne mandar extrair certidão do valor correspondente aos honorários dos peritos e que promova em conformidade a execução do património do cabeça-de-casal, evitando-se assim a extinção por deserção da lide.
A 12/01/2022, o cabeça-de-casal responde que o património do cabeça-de-casal é comum à interessada, pelo que, a haver lugar a qualquer penhora, a mesma recairia sobre o património do casal; está apenas a efectuar obras, necessárias, de conservação, do património do casal; mantém que as partes sabem o valor dos bens, tendo em consideração a proposta/propostas de composição dos bens e o valor atribuído pelas partes na conferência de interessados.
A 31/01/2022, foi proferido despacho com o seguinte teor:
Com a prolação do despacho de 16/12/2021 (e transitado em julgado), mostra-se esgotado o poder jurisdicional deste Tribunal relativamente às questões suscitadas nos requerimentos que antecedem (artigo 613, n.ºs 1 e 3 do CPC), pelo que, nada temos a ordenar.
Notifique.
O despacho foi notificado na mesma data e nada mais tendo sido requerido desde então, a 12/09/2022 foi proferido o seguinte despacho:
Porque os autos se encontram a aguardar impulso do requerente há mais de seis meses, em conformidade com o disposto no art. 281/1 do CPC, declaro deserta a instância.
A interessada vem recorrer deste despacho, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, na parte útil e com simplificações:
A deserção só opera em caso de haver negligência por parte de quem está onerado com o impulso processual. Na ausência total de qualquer referência aos factos constitutivos da negligência, a sentença carece de fundamentação e, como tal, é nula.
Sobre a interessada não recaía o pagamento mercê do apoio judiciário mas propôs que o pagamento aos peritos fosse aí [no apoio judiciário] incluído. E bem poderia tê-lo sido, evitando-se dessa forma premiar o comportamento capcioso do cabeça-de-casal.
Do comportamento do cabeça-de-casal resulta que ele agiu com dolo voluntário e com perfeita consciência do que estava a fazer. Contudo, o que releva para a procedência da deserção da instância é a negligência e não o dolo, apesar de ser merecedor da maior censura e repúdio.
Em função disso, deve a instância ser considerada como não estando extinta, devendo haver lugar ao pagamento dos peritos no âmbito do apoio judiciário, sendo desta forma avaliados os bens em causa nos presentes autos e havendo lugar à subsequente partilha.
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Questão que importa decidir: se a instância não devia ter sido julgada extinta por deserção.
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Os factos que interessam à decisão desta questão são os que constam do relatório que antecede.
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Apreciação:
O art. 281/1 do CPC dispõe que “considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.”
Trata-se, por isso, de o processo estar a aguardar o impulso processual por uma ou ambas as partes, de o processo não poder andar porque uma das partes, ou ambas, não praticam um acto que é essencial ao seu andamento, de o andamento do processo depender da prática daquele acto.
E tem que ser um acto de uma parte sem o qual o processo não possa andar pois que, se não for assim, é ao juiz que cabe dar andamento ao processo (art.6/1do CPC: Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adoptando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.)
No caso, a falta de impulso processual que levou à deserção, no despacho recorrido (de 12/09/2022), foi a falta de pagamento antecipado das despesas de avaliação de bens, como decorre do despacho de 16/12/2021. O despacho recorrido pressupõe que sem esse pagamento o processo não podia prosseguir, como, aliás, está dito no despacho de 16/12/2021, transitado em julgado.
Mas o que está transitado no despacho de 16/12/2021 é a imposição, ao cabeça-de-casal, do pagamento antecipado dos honorários, não o entendimento do juiz de que a prática de tal acto é essencial, isto é, que, sem ele, o processo não pode ter andamento.
Ora, as normas que regulam a matéria não confirmam o entendimento da essencialidade do acto.
Como se verá, a falta daquele pagamento apenas poderia ter a consequência da não realização da diligência de avaliação, nunca o não andamento do processo ou a sua extinção.
Veja-se:
Aquelas normas são, principalmente, os artigos 529 e 532 do CPC e 16, 19, 20, 23 e 24 do RCP.
Na parte que importam ao caso, os artigos em causa dispõem:
Art. 529 do CPC: 1 – As custas processuais abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte. […] 3 – São encargos do processo todas as despesas resultantes da condução do mesmo, requeridas pelas partes ou ordenadas pelo juiz da causa. […].
Art. 532 do CPC: 1 – Salvo o disposto na lei que regula o acesso ao direito, cada parte paga os encargos a que tenha dado origem e que se forem produzindo no processo. 2 – Os encargos são da responsabilidade da parte que requereu a diligência ou, quando tenha sido realizada oficiosamente, da parte que aproveita da mesma. 3 – Quando todas as partes tenham o mesmo interesse na diligência ou realização da despesa, tirem igual proveito da diligência ou despesa ou não se consiga determinar quem é a parte interessada, são os encargos repartidos de modo igual entre as partes. […].
Art. 16 do RCP – Tipos de encargos: 1 – As custas compreendem os seguintes tipos de encargos: a) Os reembolsos ao IGFIEJ, I. P.: i) De todas as despesas por este pagas adiantadamente; […] d) Os pagamentos devidos ou pagos a quaisquer entidades pela produção ou entrega de documentos, prestação de serviços ou actos análogos, requisitados pelo juiz a requerimento ou oficiosamente, salvo quando se trate de certidões extraídas oficiosamente pelo tribunal; […] h) As retribuições devidas a quem interveio acidentalmente no processo; […].
Art. 19 do RCP – Adiantamento de encargos: 1 – Quando a parte beneficie de isenção de custas ou de apoio judiciário, os encargos são sempre adiantados pelo IGFIEJ, I. P., sem prejuízo de reembolso. […].
Art. 20 do RCP – Encargos: 1 – Os encargos são pagos pela parte requerente ou interessada, imediatamente ou no prazo de 10 dias a contar da notificação do despacho que ordene a diligência […]. 2 – Quando a parte requerente ou interessada beneficie de isenção de custas ou de apoio judiciário, as despesas para com terceiros são adiantadas pelo IGFIEJ. […].
Art. 23 do RCP – Falta de pagamento: 1 – Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, o não pagamento dos encargos nos termos fixados no n.º 1 do artigo 20.º implica a não realização da diligência requerida. 2 – A parte que não efectuou o pagamento pontual dos encargos pode, se ainda for oportuno, realizá-lo nos cinco dias posteriores ao termo do prazo previsto no n.º 1 do artigo 20.º, mediante o pagamento de uma sanção de igual valor ao montante em falta, com o limite máximo de 3 UC. 3 – À parte contrária é permitido pagar o encargo que a outra não realizou, solicitando guias para o depósito imediato nos cinco dias posteriores ao termo do prazo referido no número anterior.
Art. 24/2 do RCP – Imputação na conta de custas: No final, os encargos são imputados na conta de custas da parte ou partes que foram nelas condenadas, na proporção da condenação.
Disto tudo resulta: a diligência pode ser requerida por uma das partes ou, independentemente disso, pode haver uma parte interessada nela. Mas a diligência também pode não ter sido requerida. Sendo requerida por uma parte ou havendo um interessado nela, os encargos são pagos antecipadamente por um deles e a diligência faz-se. Não havendo pagamento antecipado, a diligência não se faz. Pelo que, esta ameaça, ou cominação, pode ser dirigida às partes e tem efeito prático. Mas se nenhuma delas requereu a diligência e nenhuma está interessada nela ao ponto de fazer o sacrifício para pagar mesmo sem ter meios para isso, a ameaça da norma não funciona e, por isso, é escusada. Pelo que, logicamente, quando a diligência não é requerida por uma ou ambas as partes e não há, realmente, o interesse (incondicional) de nenhuma delas na diligência, não tem sentido fazer ameaças ou dirigir cominações e quem tem que adiantar o pagamento é o IGFIEJ. Depois, o valor das despesas [em] causa é repartido pelas partes na proporção da condenação.
Daí que Salvador da Costa diga: “Nesta matéria, pela sua natureza, não pode deixar de haver excepções. Se a diligência for em concreto da iniciativa do juiz e as partes que dela aproveitam não procederam ao respectivo pagamento, propendemos em considerar que ela deve realizar-se, nos termos do art. 411 do CPC, adiantando o IGFIEJ, se necessário, as respectivas despesas.” (RCP anotado, 5.ª edição, 2013, Almedina, pág. 307).
É o caso dos autos: a avaliação dos bens não foi requerida por nenhum dos interessados, pelo que, restaria ao tribunal determinar que o pagamento da avaliação fosse adiantado pelo IFGIEJ (no final, ele seria repartido, na proporção da condenação, pelos interessados – sem prejuízo da interessada que beneficia de apoio judiciário não ter de pagar a sua parte).
Assim sendo, no caso de uma iniciativa oficiosa do juiz que implique despesas, essa iniciativa tem de incluir a determinação do pagamento pelo IGFIEJ, porque não tem sentido notificar os interessados, que não a requereram, para efectuarem o pagamento sob a cominação da não realização da diligência.
Visto de outra perspectiva, isto é, daquela que interessa ao caso, voltando pois ao que se disse acima, conclui-se que a falta de pagamento antecipado das despesas não tem a cominação legal de não andamento do processo, ou da sua extinção, não sendo pois um acto essencial ao andamento do processo. Teria, mas apenas para o caso de ter sido requerida por um dos interessados, a consequência da não realização da diligência requerida.
Pelo que a consequência extraída pelo tribunal recorrido, da extinção do processo, por falta de pagamento dos preparos para a realização das avaliações findo o prazo da deserção, não tem base legal.
Sendo assim, podendo já concluir-se nesse sentido – isto é, que a não realização dos preparos findo o prazo da deserção não tem a consequência da extinção da instância -, não importa, no caso, averiguar a verificação de outro dos pressupostos da extinção da instância por deserção que era a negligência das partes.
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Quanto às custas:
A interessada recorrente, para além de ter apoio judiciário que a dispensa do pagamento das custas, ganha o recurso, pelo que não pode ser condenada nas suas custas; mas também não é a actuação do cabeça-de-casal que está na origem do despacho recorrido, nem ele contra-alegou em defesa do despacho, este despacho não o beneficia e a procedência do recurso, que implica que o processo deva prosseguir os seus termos normais, não o prejudica, pelo que também ele não pode ser condenado nas custas.
Como já se defendeu no acórdão do TRL de 17/06/2021, proc. 482/14.3TVLSB.L2, com mais desenvolvimento, sendo anulada, em recurso, uma decisão que não foi provocada pela parte contrária, nem defendida por esta, nem a beneficiava, o recurso deve ficar sem custas.
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Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se o despacho que julgou extinta a instância, por deserção, devendo os autos prosseguir os seus termos normais.
Sem custas
Lisboa, 14/12/2022
Pedro Martins