Processo do Juízo Central Cível de Lisboa

            Sumário:

            I – O objecto de uma acção é constituído pelo pedido baseado numa causa de pedir; se um pedido está baseado numa causa de pedir, a condenação nele não representa um excesso de pronúncia, nem uma condenação em objecto diverso do pedido.

          II – O penhor financeiro de acções tituladas nominativas só se acaba de constituir pelo registo dele junto do emitente das acções ou de intermediário financeiro que o representa, retroagindo os seus efeitos à data do requerimento do registo (artigos 103 e 102/1-5 do CVM).

           III – Existindo uma folha do livro de registo em que as acções ainda estavam em nome da prestadora do penhor à data em que foi feito o requerimento do registo do penhor e uma outra, posterior, em que já constava a venda das acções a terceiro, a que prevalece é a primeira.

            Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

            O B-S.A. em liquidação e a Massa Insolvente do B-S.A., intentaram uma acção contra (i) L-Limited, (ii) J e (iii) E-Unipessoal, Lda., pedindo que se:

a) Declare a ineficácia em relação ao B da transmissão das acções representativas do capital da K e dadas de penhor ao B, ocorrida entre 31/10/2012 e 31/12/2012, a título gratuito, e que ao B assiste o direito de obter a satisfação integral dos seus créditos à custa daquelas acções e, consequentemente, condenar as rés a reconhecer tal ineficácia e o direito do B;

b) Reconheça e condene as rés a ver reconhecido ao B o direito de vender as referidas acções, agora propriedade da ré E;

c) Reconheça e declare a má-fé das rés na transmissão das referidas acções, nomeadamente para efeitos do disposto no artigo 616/2 do Código Civil.

             Subsidiariamente, no pressuposto de que a L se encontra integralmente liquidada e encerrada, pede que se determine que as acções indevidamente alienadas ingressem na esfera jurídica do réu (J), ficando o B investido no direito à restituição das mesmas na medida do seu interesse, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 163/1 do Código das Sociedades Comerciais, e no artigo 616/1 do CC.

             Alegam, em suma, que:

            A Massa insolvente é titular de créditos que resultam do incumprimento, por parte da 1.ª ré, do contrato de mútuo oneroso, no montante de 1.700.000€, celebrado em 14/02/2008, entre o B e a 1.ª ré, pelo prazo de 12 meses; para garantia do cumprimento de todas as obrigações assumidas pela 1.ª ré perante o B, foi constituído, na mesma data, penhor de primeiro grau sobre 2.847.457 acções ordinárias, escriturais e nominativas [mas o título que apresentaram junto com a PI só se refere a acções nominativas – TRL], com o valor nominal unitário de 1€, representativas do capital social da K; validamente denunciado o contrato pelo B, a 1.ª ré até à data não pagou o valor em dívida e quando o B tentou vender, e posteriormente adquirir para si, as acções empenhadas a seu favor, constatou a existência da referida transmissão por 1/5 do seu valor real, cuja ineficácia ora pretende que seja declarada; a transmissão das acções terá ocorrido entre 31/10/2012 e 31/12/2012, de forma gratuita; na data da constituição do penhor de 2008 estavam depositadas numa conta de títulos e ainda hoje se encontram na posse do B; por carta de 09/02/2012, o B solicitou à K a emissão de certificação do registo do penhor e que na hipótese de tal registo não estar efectuado procedesse à inscrição do penhor no livro social; no decurso do exercício de 2010 e 2012, a assembleia geral da K deliberou duas reduções de capital e procedeu à substituição dos antigos títulos por novos em 01/11/2013; no entanto, apesar de o B o ter solicitado, a K não entregou ao B os novos títulos; refere, no que diz respeito ao réu (J) que este é o verdadeiro beneficiário da 1.ª ré e que a mesma foi constituída como um veículo destinado à satisfação dos seus interesses pessoais, tal como outras e que, no pressuposto de esta se encontrar liquidada e encerrada, as acções deverão ingressar na esfera jurídica deste.

                  (utilizou-se a síntese da PI feita pelo tribunal recorrido)

            A 1ª ré foi citada e não contestou. Os 2º e 3ª réus foram citados e apresentaram contestação, excepcionando a caducidade do direito das autores (diz o réu: a 1.ª ré está dissolvida desde 16/11/2010 segundo os documentos juntos pelos autores, pelo que a venda que lhe é imputada terá sido praticada antes dessa data e desde então já decorreram muito mais de 5 anos; diz a ré: adquiriu as acções em Jan2012 e a acção só foi proposta em Nov2017, logo mais de 5 anos depois), o 2º réu a sua ilegitimidade (por inutilidade tal como configurada a acção) e ambos impugnando parte dos factos alegados pelos autores e os efeitos que os autores deles pretendem retirar mesmo que provados.

              Os autores responderam às excepções, pugnando pela sua improcedência.

         Depois de realizada a audiência final, a 05/05/2022 foi proferida sentença em que se julgou a acção parcialmente procedente, reconhecendo e condenando as rés a ver reconhecido aos autores o direito de vender as referidas 2.847.457 acções representativas do capital da K, agora propriedade da ré E. As rés foram absolvidas do restante pedido e o réu foi absolvido de todo o pedido.

            A 3.ª ré (E) veio recorrer da sentença – para que seja declarada nula, ou, se assim não se entender, seja revogada e substituída por outra que julgue a acção totalmente improcedente, absolvendo-se a ré da totalidade do pedido -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, na parte útil:

c) [O tribunal a quo] não poderia ter decidido [como decidiu], pois no âmbito dos presentes autos foi intentada uma acção de impugnação pauliana, cujo regime vem previsto nos arts. 610.º a 618.º do Código Civil.

d) No caso concreto, tendo o Tribunal a quo julgado improcedente a impugnação pauliana, atendendo a que não ficaram provados os respectivos requisitos, improcedeu o peticionado na alínea (a) na petição inicial, e, consequentemente, o peticionado na alínea (c) (a má fé das rés), e também deveria ter improcedido o peticionado na alínea (b), uma vez que é uma mera decorrência do peticionado na alínea (a), tal como sucedeu com a alínea (c).

e) Isto porque o pedido da alínea (b) não é alternativo nem subsidiário em relação ao da alínea (a), mas sim uma mera decorrência deste.

f) Contudo, o Tribunal a quo considerou que se tratava “de um pedido de mera apreciação”, e entendeu que podia convolar os presentes autos de impugnação pauliana numa acção executiva do penhor constituído pelo B e julgar a acção parcialmente procedente, dando razão às autoras quanto ao pedido formulado na alínea (b).

g) Acabando por conceder às autoras o efeito pretendido pela (improcedente) impugnação pauliana.

h) No entanto, improcedendo a impugnação pauliana, também o peticionado na alínea (b) deveria ter improcedido.

i) É que os autores sempre teriam de instaurar uma acção executiva para obter o pagamento coercivo da dívida (da 1.ª ré) através da venda das acções empenhadas, actualmente propriedade da 3.ª ré.

j) Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo substituiu-se a uma eventual decisão que apenas poderia ser proferida no âmbito de um processo executivo, para o qual sempre seria incompetente em razão da matéria.

k) E não se trata de um “pedido de mera apreciação” porquanto, na prática, tal resultou numa condenação efectiva da 3.ª ré.

l) Assim, houve excesso de pronúncia por parte do tribunal a quo, ao decidir uma questão que não foi chamado a resolver e que não é de conhecimento oficioso, invocando, como razão de decidir, um facto jurídico essencialmente diverso daquele que os autores colocaram na base (causa de pedir) das suas conclusões (pedido), o que conduz à nulidade da sentença, nos termos do art. 615/1-d do CPC, tendo desrespeitado o princípio decorrente do art. 608/2 do CPC.

m) Se assim não se entender, sem conceder, sempre se dirá que, ao decidir como decidiu, o tribunal a quo extravasou o âmbito da presente acção e condenou em objecto diverso do pedido, o que conduz à nulidade da sentença, nos termos do art. 615/1-e do CPC, desrespeitando o princípio decorrente do art. 609/1 do CPC, segundo o qual a sentença não pode exceder os limites qualitativos do pedido.

n) Assim, a sentença recorrida deve ser declarada nula e substituída por outra que julgue a acção totalmente improcedente, por não provada, devendo a ré ser absolvida de todo o peticionado.

o) Sem prejuízo do que se deixa exposto, o B procedeu, por sua iniciativa, à inscrição, no verso do título pertencente à 1.ª ré, da declaração de que o penhor se encontrava constituído a seu favor, no dia 07/02/2011.

p) O registo do penhor, por sua vez, apenas foi efectuado em 2021, na sequência da decisão proferida pelo Juzgado de lo Mercantil n.º 2 de Madrid.

q) Sucede que a 3.ª ré adquiriu as acções por compra e venda ao réu no dia 09/01/2012, conforme livro de registo de acções junto aos autos pela K.

r) In casu, quando o B requereu a emissão de certificação do registo do penhor sobre diversas acções da K, por carta de 09/02/2012 (cfr. carta junta como doc. 53 à PI), a 3.ª ré já tinha adquirido as acções há um mês, mais precisamente, a 09/01/2012, nas quais não estava inscrita qualquer declaração de penhor.

s) O penhor carece de ser registado para produzir efeitos perante terceiros, requisito esse que se prende com razões de segurança e certeza jurídicas.

t) Sucede que quando a 3.ª ré adquiriu as acções objecto dos presentes autos, o penhor não só não estava registado como nem sequer tinha sido requerido o seu registo, pelo que não produzia efeitos contra terceiros, de modo que a 3.ª ré adquiriu as acções por contrato de compra e venda, ou seja, por acto oneroso, de boa fé, mas, mais importante, as acções não estavam oneradas com qualquer garantia (pois o penhor constituído a favor do B apenas foi inscrito no verso do título das acções da 1.ª ré a 07/02/2011, contudo, estas acções já tinham sido transmitidas ao réu, livres de quaisquer ónus, a 06/02/2009, cerca de 2 anos antes).

u) Ou seja, a presente acção nunca poderia ser julgada parcialmente procedente com base no referido penhor.

            Os autores contra-alegaram defendendo a improcedência do recurso, dizendo, em síntese:

        Em matéria de facto, o poder cognitivo do juiz está balizado pelo que as partes convocam para o processo. Tal resulta, nomeadamente do art. 5.º do CPC.  O conjunto de factos que integram o elenco dos factos provados, nos quais o juiz baseia a sua decisão – i.e., a existência de um penhor validamente constituído sobre as acções da K a favor do B – foi alegado e documentalmente comprovado nos autos pelos autores que lhe dedicaram um capítulo da sua PI (“III.a) Os contratos de mútuo e de penhor”), sendo, por conseguinte, factos dos quais o mesmo pode tomar conhecimento.  No que respeita à matéria de direito, resulta do art. 5/3 do CPC que “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”.  Sempre se dirá que o tribunal a quo condena as rés num pedido expressamente formulado pelos autores na sua PI.

         O que está em causa é a procedência de um “pedido de mera apreciação, que resulta do contrato e da natureza do penhor” e não qualquer acção executiva na qual se procederia à penhora e consequente venda dos bens penhorados para pagamento da dívida. O efeito concedido decorre, não da procedência da acção pauliana, mas sim da existência de penhor validamente constituído a favor do B. Tal decorre da primeira parte do artigo 818 do CC, de acordo com o qual “o direito de execução pode incidir sobre bens de terceiro, quando estejam vinculados à garantia do crédito. Encontrando-se as acções vinculadas à garantia do crédito dos autores, a execução de tais bens não se encontra condicionada à procedência da impugnação. Por outro lado, a acção executiva implica nomeadamente, a penhora, a apreensão e a venda dos bens vinculados à garantia do crédito, a realizar por um agente de execução, e a decisão em crise nada dispõe nesse sentido, limitando-se a reconhecer o direito de os autores venderem as acções venda que não será levada a efeito no âmbito da presente acção e que, atenta a reconhecida natureza de penhor financeiro, poderá ser realizada extrajudicialmente.

         O tribunal não deu como provado que a transmissão das acções da 1.ª ré para o réu se efectuou a 06/02/2009, mas apenas que a mesma foi comunicada como tendo sido efectuada naquela data. A aceitar-se – o que não se aceita – a tese defendida pela 3.ª ré de que a transmissão dos valores se fez de acordo com preceituado no disposto no art. 102/1 do CVM, nunca poderia o tribunal ter dado como provada a transmissão das acções da 1.ª ré para o réu, porque, tendo resultado provado que as acções à data de 06/02/2009 se encontravam (e ainda encontram) depositadas na conta de que a 1.ª ré é titular junto do B e que o respectivo título não contém nenhum endosso (declaração de transmissão) daquelas a favor do réu, mas apenas o averbamento do penhor a favor do B, esse pressuposto não estava verificado.

         Do mesmo modo, o tribunal também não deu como provada a transmissão das referidas acções do réu para a 3.ª ré a 06/01/2012 (nem o poderia ter feito, pelos mesmos motivos acima indicados), mas antes que a comunicação dessa transmissão foi feita à K a 09/01/2012. Conforme refere o tribunal na fundamentação da convicção: “não existindo meio de prova que demonstre que a transmissão foi posterior, o tribunal apenas deu como provado o que resulta dessas comunicações”.

         Diversos documentos juntos aos autos correspondem a uma versão do livro de registo de acções da K que é manifestamente diversa daquela que os autores juntaram, em sede de PI, como documento 55; o referido livro esteve, pelo menos até Outubro de 2009 arquivado junto da sede do B, estando a cópia junta com a PI conforme com o original existente nessa mesma data, e deste não constava qualquer declaração de transmissão (endosso) das acções a favor do réu. Aliás, conforme se pode constatar pelo doc.55, na comunicação remetida, em 21/03/2012, pelo então secretário da K ao B em resposta ao pedido de inscrição do penhor, este não faz qualquer menção ao facto de a 1.ª ré já não ser sócia daquela sociedade, como ainda junta à sua comunicação cópia da página do livro de registo de acções referente à sócia 1.ª ré e do qual não consta a alegada transmissão ocorrida em 06/02/2009 nem a segunda transmissão. Portanto, na versão do livro existente até 21/03/2012, a 1.ª ré era a única sócia, o que, aliás, está de acordo com as contas da K apresentadas entre 2010 e 2013 (cfr. docs 8, 9 e 63 juntos à PI), dos quais resulta que, até 31/10/2012, figurava como sócia a 1.ª ré, sendo que esta é substituída pela 3.ª ré apenas nas contas de 31/12/2012. Neste doc.55 as folhas aparecem dactilografadas, constando a 1.ª ré, pelo menos até 21/03/2012, como accionista da K, facto esse que o tribunal a quo julgou provado. Por sua vez, no processo 1039/2017 intentado pelos autores contra a K em Espanha foi junta, pela K, a 02/10/2018, uma cópia da fl. 88 do referido livro que aparece manuscrita (junta pelos autores, por requerimento a 26/11/2019), dela constando a venda, a 06/02/2009, da totalidade das acções da 1.ª ré a favor do réu; a esta folha encontra-se anexa uma outra folha, não numerada, igualmente manuscrita, em que o réu consta como novo sócio, estando averbada a compra das acções à 1.ª ré em 06/02/2009 e a venda das mesmas à 3.ª ré, comunicada em 09/01/2012; encontra-se, ainda, no referido livro uma outra folha não numerada e igualmente manuscrita, em que a 3.ª ré consta como nova sócia da sociedade espanhola, estando averbada a compra das acções ao réu em 09/01/2012. Não se pode deixar de se estranhar que a K tenha dado como boa a comunicação que a 1.ª ré lhe terá dirigido comunicando-lhe a transmissão das acções e tenha inscrito tal transmissão no livro, na medida em que tal missiva não se encontrava acompanhada de qualquer documento que evidenciasse a transmissão ocorrida: cópia do contrato ou cópia do título (i.e, das acções) contendo o endosso a favor do réu. Ademais, não contém o reconhecimento das assinaturas dos respectivos signatários…  A K juntou ao processo uma terceira versão do livro. Na mesma, anexas à fl. 88 (na sua versão manuscrita) constam ainda duas outras folhas: uma delas, fl.02, respeita ao accionista réu, contendo novas inscrições e a outra, fl.03, referente à 3.ª ré. É profundamente questionável a existência de diversas versões do mesmo livro.

         Tais circunstâncias sugerem que o contrato de compra e venda das acções empenhadas a favor do B foi celebrado em data posterior a 06/01/2012, e, portanto, em data posterior ao pedido de emissão de certificação do registo efectuado pelo B a 09/02/2012.

         Em todo o caso, sempre se deverá concluir pela existência de penhor validamente constituído a favor do B, o que, aliás, como resulta dos factos provados, já foi judicialmente reconhecido através da decisão proferida em 12/02/2019 pelo tribunal competente, em Espanha, decisão que veio a ser confirmada pelo acórdão da Audiência Providencial Civil de Madrid. Com efeito, tal decorre da circunstância de estar em causa um direito real de garantia, que se reveste de uma natureza erga omnes, permitindo – ao contrário dos chamados direitos de crédito – a oponibilidade a terceiros (designadamente, o réu e a 3.ª ré).

                                                      *

            Questões que importa decidir: as nulidades da sentença e a pretendida improcedência do 2.º pedido.

                                                      *

            Foram dados como provados os seguintes factos que interessam à decisão destas questões [a numeração em números romanos das divisões da matéria de facto foi feita agora por este TRL]:

         I – A L [1.ª ré]:

a) A 1.ª ré é uma sociedade constituída de acordo com as leis do Reino Unido em 24/12/2003, encontrando-se averbada a sua dissolução administrativa com data de 16/11/2010.

b) Esta dissolução foi determinada nos termos e para os efeitos do disposto na Section 1000 do the Companies Act 2006 e é reversível.

d) eram Administrador (Director) e Secretário (Secretary) da 1.ª ré, respectivamente, as sociedades FD-Limited e FM-Limited.

e) pelo menos entre Abril de 2004 e Janeiro de 2009, a 1.ª ré foi representada por JC (doravante “JC”).

f) JC é casado com IA, que foi Directora-Adjunta do B desempenhando a função de Private Banker de vários clientes, onde se incluía a 1.ª ré e o réu (J).

g) JC, até à data da celebração do contrato de mútuo oneroso, em 14/02/2008, nunca precisou de apresentar qualquer documento à Private Banker IA para actuar em nome da 1.ª ré.

h) JC agiu como representante da 1.ª ré nas Assembleias Gerais do B e da P-S.A.

i) Em 04/11/2005, assinou uma carta-compromisso por intermédio da qual a 1.ª ré se obrigou a fazer um investimento de 2.000.000€, ou seja, a adquirir acções da K.

j) Carta esta que, da parte do B, foi assinada por IA.

l) IA era quem solicitava internamente a aprovação de descobertos em conta, transferências entre contas, realizações de pagamentos e emissões de cheques em favor de terceiros.

m) Em 14/02/2008, foi outorgada pela 1.ª ré uma procuração a favor de JC, conferindo-lhe poderes para, “em nome e representação da sociedade mandante e nos termos e condições que entender convenientes, subscrever todos os contratos, praticar todos os actos a assinar todos os documentos com o B e/ou com a P-S.A., e/ou com qualquer sociedade por estas instituições detidas e/ou participadas e/ou detidas e/ou participadas pela própria mandante, sejam elas de nacionalidade portuguesa ou estrangeira, podendo, nesse âmbito e com essa extensão, ordenar pagamentos, transferências a crédito e/ou a débito, solicitar, formalizar e/ou subscrever, assinando, a contratação de qualquer financiamento (s) e/ou a realização de aplicações financeiras até ao valor limite de EUR 2.000.000 ou valor equivalente em USD (Dólares dos Estados Unidos da América) ou GBP (Libras esterlinas do Reino Unido de Inglaterra e País de Gales) da data da operação, bem como solicitar e/ou dar quitação de quaisquer montantes recebidos, e/ou promover, diligenciando, por tudo quanto se mostre adequado ao bom cumprimento do mandato; ainda, são conferidos ao mandatário os necessários poderes e faculdades para, em geral, representar a mandante e para participar, discutir, deliberar e votar em todas as assembleias gerais, ordinárias ou extraordinárias legal e regularmente convocadas do B e/ou com a P-S.A. e/ou qualquer sociedade por estas detidas e/ou participadas, e/ou por sociedades detidas e/ou participadas pela própria mandante, nelas podendo exercer o voto no sentido que entender mais conveniente e proceder à consulta dos documentos preparatórios das respectivas Assembleias-Gerais nos termos previstos nas suas convocatórias, e, caso surjam circunstâncias imprevistas nas referidas Assembleias-Gerais, o ora designado mandatário poderá votar no sentido que melhor julgue satisfazer os interesses do mandante. E nós, por este instrumento ratificamos todos os actos celebrados e contractos outorgados pelo nosso mandatário referentes ao ano de 2007 e concordamos em ratificar tudo o que o nosso procurador possa fazer ou ordenar, em consequência do presente instrumento de mandato, que declaramos válido pelo período de um ano a partir desta data.“ (cfr. procuração de 14/02/2008, que se junta como documento n.º 12).

n) JC actuou em nome da 1.ª ré quer em data anterior à outorga da procuração, quer em data posterior.

o) JC foi destinatário de inúmeras transferências, efectuadas a partir da conta titulada pela sua “constituinte” 1.ª ré, num montante total que ascendeu a EUR 113.569,30, transferências essas que foram todas elas ordenadas por IA.

p) IA, por email de 16/10/2009 solicitou que se procedesse à alteração da morada da 1.ª ré para 45 W no Reino Unido.

q) A 1.ª ré tem uma conta junto do B (“cliente group”) com o número 000000, a qual é constituída por três sub-contas:

         – subconta de custódia n.º 1111 – relativa à carteira de acções na P-S.A. e na K, detida pela 1.ª ré;

         – subconta de custódia n.º 2222 – relativa à carteira de acções na K, detida pela 1.ª ré;

         – subconta liquidez n.º 3333.

r) Em 14/02/2008 foi celebrado contrato de mútuo com a 1.ª ré, constando da proposta que, em 22/01/2008, foi apresentada pela Private Banker IA, que a finalidade do mesmo se relacionava com a “aquisição de terreno” (fls.151).

s) Foi por instrução da mesma IA que o total da quantia mutuada de EUR 1.700.000 (como “descoberto autorizado”) acabaria por ser transferido, em duas tranches (uma, a 23/01/2008, no montante de EUR 1.400.000 e outra a 28/01/2008, no montante de EUR 300.000), para a X-S.A.

t) A X-SA, em 25/01/2008 e representada pelo réu, viria a adquirir, pelo preço global de 1.144.833,64€, os prédios rústicos denominados “S”, valor a que acresceu IMT liquidado, também, nessa data, nos montantes de 55.991,68€ e 6.147,84€ (escritura de compra e venda de fl.160).

u) Após cessão de funções no B de IA, em 14/02/2014, verificou-se que nem a ficha de abertura de conta existia na pasta do cliente.

v) O réu é o principal “Beneficial Owner” (ou seja, sócio maioritário) da sociedade B-Limited, uma sociedade constituída à luz das leis de Gibraltar.

w) A sociedade B também tem uma conta junto do B – client group

x) Do extracto das contas de titularidade da 1.ª ré é possível detectar transferências:

i) para o réu;

ii) entre outras contas do cliente group 000000 (1.ª ré); e

iii) de ou para contas do cliente group 444444 (B).

         II – Quanto ao contrato de mútuo com penhor e ao crédito da autora perante a 1.ª ré:

a) Em 14/02/2008, foi celebrado entre o B e a 1.ª ré o contrato de mútuo “abertura de crédito em conta corrente” que consta de fls.30 e [seguintes] cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido, no montante de 1.700.000€, pelo prazo de 12 meses, com destino a “apoio de tesouraria”.

b) Para garantia do bom, pontual e integral cumprimento de todas as obrigações assumidas pela 1.ª ré perante o B, foi constituído, na mesma data, penhor de primeiro grau sobre 2.847.457 acções ordinárias, escriturais e nominativas, com o valor nominal unitário de 1€, representativas do capital social da K, apesar de no contrato, cuja cópia consta de fl. 36 e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido, constar 3.400.000.

c) Destas acções a 1.ª ré era a única e legítima titular e encontravam-se depositadas na referida conta com o número 2222, aberta junto do B.

d) O contrato de financiamento foi denunciado pelo B no termo do seu prazo, por carta registada com aviso de recepção, datada de 14/01/2011 cuja cópia consta de fl. 261 e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido, para produzir efeitos em 14/02/2011.

e) Em 14/02/2012, o valor total em dívida pela 1.ª ré, decorrente do referido contrato, ascendia a 1.226.552,98€, que incluía (i) 1.125.312,28€ referentes a capital e juros vencidos no âmbito do contrato e (ii) 101.240,70€ referentes a juros remuneratórios e imposto de selo, vencidos e não pagos, durante o período compreendido entre 14/02/2008 e 17/02/2009, inclusive.

f) Até hoje a 1.ª ré não pagou a referida quantia.

         III – Do penhor:

a) Durante o exercício de 2010, ocorreu uma redução de capital da K, mediante aquisição de acções próprias e posterior amortização das mesmas, passando cada uma das acções a valer 0,495€.

b) Na sequência dessa operação, a K procedeu à substituição dos antigos títulos por novos.

c) O B solicitou, por diversas vezes, na qualidade de credor pignoratício, a entrega dos novos títulos com o averbamento dos penhores contratados.

d) a K nunca procedeu à entrega dos novos títulos aos B.

e) Nem ao averbamento dos mencionados penhores, conforme solicitado pelo B.

f) Estipula o contrato de penhor que “Se as acções dadas em penhor vierem, porventura, a ser substituídas por outras de natureza igual ou diferente, essas novas acções substituirão as anteriores, devendo o CLIENTE cumprir em relação àquelas o disposto no número 3 da cláusula primeira supra.” (cfr. cláusula sete, n.º 2)

g) A 1.ª ré obrigou-se a “manter depositado no banco os valores mobiliários objecto do presente penhor, contratando irrevogavelmente o respectivo depósito até que se mostrem integralmente cumpridas todas as obrigações decorrentes do contrato de abertura de crédito ora garantido.” (cfr. cláusula primeira, n.º 3).

h) E dispõe ainda o contrato de penhor que “A oneração e/ou alienação das acções dadas em penhor sem o prévio acordo, expresso e por escrito, do Banco, bem como qualquer forma de apreensão judicial ou penhora das mesmas, torna o penhor a constituir imediatamente exigível, casos em que também se considerará automática e imediatamente rescindido o contrato supra referido e vencidas todas as obrigações pecuniárias dele decorrentes”. (cfr. cláusula sexta, n.º 1).

i) Em 07/12/2012, o B dirigiu à K uma comunicação onde informa o supra exposto, concedendo-lhe o prazo de 3 dias para proceder à entrega dos novos títulos e ao registo do penhor.

j) Em 23/08/2013, o B endereçou nova carta, que consta de fl. 265 dos autos, à 1.ª ré onde informou que não tendo a 1.ª ré procedido ao pagamento, verificou-se o incumprimento definitivo do contrato e que iria proceder à execução da garantia nos termos e para os efeitos da cláusula 9.º do contrato de penhor, ou seja, proceder à venda das 2.847.457 acções representativas do capital da K, aplicando o produto dessa venda no pagamento dos créditos emergentes do contrato.

k) por carta de 21/01/2015, o B informou a 1.ª ré que, não tendo encontrado comprador para as 2.847.457 acções representativas do capital da K, empenhadas a favor do B, este banco deliberou a aquisição para a carteira própria do B das mencionadas acções. (fl.267) e informou ainda que a Comissão Liquidatária do B deliberou que o valor de aquisição de cada acção fosse de 0,495€, importância determinada tendo em conta o preço por que foram vendidas as acções da K nas últimas transacções à data conhecidas, donde resulta que o valor total das acções da K a adquirir para a carteira própria do B seria de 1.409.491,22€.

l) o montante total da dívida da 1.ª ré, à data de 31/12/2014, ascendia a 1.645.838,51€, pelo que o B solicitou ainda o pagamento do remanescente no prazo de 30 dias.

m) Perante a reiterada ausência de resposta por parte da 1.ª ré, que o B transmitiu, através da carta remetida em 02/02/2015, essa mesma circunstância às entidades indicadas junto do Registrar of Companies form England and Wales como Director (“Administrador”) e como Secretary 1 (“1.º Secretário”) da referida sociedade, a saber, respectivamente, FD e FM.

n) Tendo em conta a existência da procuração outorgada a JC, por carta datada de 21/01/2015, o B endereçou ainda ao referido mandatário da 1.ª ré cópia das cartas expedidas na mesma data.

o) A esta comunicação respondeu JC, por carta datada de 23/01/2015, afirmando, em suma, não ter qualquer relação de mandato com a 1.ª ré, pelo que a correspondência relativa a esta sociedade não lhe devia ser dirigida.

p) o B procedeu, por sua iniciativa, à inscrição no verso dos títulos (endosso) do penhor que se encontrava constituído em seu favor [com data de 07/02/2011 – consta do doc. 8-A apresentado com a PI, mais legível num requerimento de 29/11/2011; a data é invocada pela própria 3.ª ré nas conclusões O e T do recurso – este parenteses é deste TRL].

q) Por carta de 09/02/2012, o B requereu a emissão de certificação do registo de penhor efectivamente constituído sobre diversas acções da K [ou para que se proceda à inscrição do penhor, dizendo que ele tinha sido constituído por contrato e que os títulos representativos das acções se encontram depositados junto do banco, o qual, nessa qualidade, procedeu ao averbamento do penhor no valor dos referidos título, cuja cópia também se junta], conforme carta [doc.53] cuja cópia consta de fl.282 dos autos e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido [os parenteses rectos são da responsabilidade deste TRL, mas do facto constavam que se dava o conteúdo da carta por integralmente reproduzido].

r) Ficou consignado na cláusula quinta, n.º 2, do contrato de penhor que “o CLIENTE desde já autoriza, expressa e irrevogavelmente, o BANCO a desencadear os procedimentos que considere convenientes para assegurar que os direitos decorrentes do presente Contrato sejam do conhecimento de terceiros, nomeadamente mandando averbar nos títulos os penhores que se vierem a constituir”.

s) a 1.ª ré figura no relatório e contas da K reportado a 31/12/2011 [e] a 31/10/2012 como titular de 2.847.457 acções, representativas de 3,08% do capital social

         IV – Da transmissão das acções da K

a) A 3.ª ré (E) é uma sociedade unipessoal que foi constituída e registada em Abril de 2006, com um capital social de 5.000€, composto por uma quota de igual valor nominal, tendo como sua única sócia, desde a constituição da sociedade e até 2013, NS.

b) A 3.ª ré é uma sociedade que tem por objecto a actividade de creche e jardim-de-infância, e ainda actividades de tempos livres, podendo ainda adquirir participações em sociedade com objecto diferente daquele que exerce, conforme documento de fl.227 dos autos cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.

c) À data da celebração da escritura de constituição de sociedade, em Abril de 2006, a gerência desta sociedade cabia exclusivamente à sócia NS, que renunciou à gerência em 19/04/2008.

d) Em 19/04/2008 foi deliberada a nomeação de novo gerente da 3.ª ré PR.

e) Com data de 09/01/2012, foi dirigida à K comunicação da transmissão das acções penhoradas a favor do B efectuada a 06/01/2012 pelo réu à 3.ª ré, como consta de fl.620 dos autos.

f) Por carta que consta de fl.621, a 1.ª ré comunicou à K a celebração de contrato de compra e venda ao réu das mesmas acções a 06/02/2009, encontrando-se esta carta assinada por este e por JC, em representação da vendedora.

g) A 1.ª ré não informou o Banco desse contrato.

h) As referidas acções continuam até à data da propositura desta acção registadas em nome da 3.ª ré [do livro de registo da K consta uma folha relativa ao réu com as anotações, com data de 06/02/2009, da compra à 1.ª ré das 2.847.457 acções (com a observação: anotado em virtude de comunicação conjunta entregada ao presidente da sociedade) e, com data de 09/01/2012, da venda à 3.ª ré em 06/01/2012 dessas acções (com a observação de que não se dispõe de contrato, só da comunicação de 09/01/2012 em documento privado conjunto entregado ao presidente); da folha da 1.ª ré consta aquela venda anotada em 09/01/2012; numa folha referente à 3.ª ré consta, com data de 09/01/2012, a compra (ao réu) em 06/01/2012 e as observações seguintes: não se dispõe de contrato, só de comunicação conjunta privada de 09/01/2021 entregada ao presidente, (?) anotado por instruções deste; todas estas anotações são feitas a manuscrito e sem qualquer referência a notário; no email enviado pela K a 21/03/2012, em resposta ao pedido de 09/02/2012 referido em IIIq, consta uma cópia da folha da 1.ª ré na K na qual só está inscrita (dactilografadamente) a aquisição das acções em 2005 e 2006. – factos aditados por este TRL com base no que é dito à frente].

i) A 3.ª ré não tinha qualquer actividade à data da transmissão das acções.

j) Actualmente, a 3.ª ré é detida a 100% por uma outra sociedade, denominada N2-S.A., cuja sede, C, se situa precisamente no domicílio profissional de dois administradores da K.

k) Mesmo após a referida cessão de quotas, a gerência da sociedade manteve-se a cargo de PR.

l) Por sentença proferida em 12/02/2019 no âmbito do processo ordinário n.º 1039/2017, movido pelos autores contra a K, em Espanha, que correu termos no Juzgado de lo Mercantil n.º 2 de Madrid, depois de declarar que a 1ª autora tem a qualidade de credor pignoratício sobre as acções da K, propriedade do 1ª ré, entre outros, a sociedade K foi condenada, além de mais, a inscrever no livro de registo de acções os penhores sobre as acções referidas (conforme requerimento de fl.678, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido [o que está junto aos autos é apenas o acórdão referido a seguir, em IVm e uma sentença proferida num processo cautelar – TRL]).

m) Esta sentença foi confirmada pelo acórdão n.º 623/2020 de 18/12/2020 proferido pela Audiência Provincial Civil de Madrid.

                                                      *

            A sentença recorrida tem a seguinte fundamentação que se sintetiza na medida do possível:

        Alega a autora que se encontram reunidos os pressupostos legais para a impugnação pauliana da transmissão das 2.847.457 acções da K dadas em penhor celebrada em data desconhecida, mas que se situa entre 31/10/2012 e 31/12/2012.

         [Um dos] requisitos gerais [da impugnação pauliana é o de] resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou o agravamento dessa possibilidade.

         A garantia patrimonial do crédito de qualquer credor é constituída, como […] resulta do disposto no art.601 do CC, por todos os bens do devedor susceptíveis de penhora. Esta é a garantia geral das obrigações. […].

         Para além desta garantia geral, existem garantias especiais, que podem resultar da lei e também podem resultar da vontade das partes que decidem, associar à obrigação do devedor uma fiança, uma consignação de rendimentos, um penhor, uma hipoteca ou um outro tipo de garantia.

         A particularidade do penhor e da hipoteca, no contexto da garantia especial das obrigações, é que a sua constituição confere ao credor um direito real de garantia: o direito à satisfação do seu crédito, com preferência sobre os demais credores, pelo valor da coisa empenhada/hipotecada, quer a coisa pertença ao devedor quer a coisa pertença a terceiro. Assim, mesmo que a coisa objecto de penhora seja de terceiro ou tenha sido transmitida a terceiro, o penhor acompanha a coisa, tendo o credor pignoratício a faculdade de fazer vender a coisa empenhada para se pagar do produto da venda com preferência sobre os demais credores e nessa faculdade reside a sua eficácia erga omnes como direito absoluto, que gozam de sequela e inerentes a uma coisa, característica que os distingue dos direitos de crédito.

         No caso dos autos estamos a falar de penhor de acções, pelo que considerando que este foi constituído para garantia de uma operação de crédito bancário, há que trazer à colação o disposto no Decreto-Lei n.º 105/2004 de 08/05, aplicável por se verificaram os requisitos previstos nos artigos 4, 5, 6 e 7. Estamos, assim, a falar de um penhor financeiro, o que de qualquer forma não deixa comungar das características apontadas à figura tradicional do penhor que aqui relevam.

         Assim, a transmissão da propriedade das acções em nada afecta o penhor. Este mantém-se exactamente como foi constituído, podendo o credor pignoratício fazer-se pagar pelo produto da venda das acções com preferência sobre a generalidade dos credores e sem que a transmissão da propriedade das acções lhe seja oponível. Isso quer dizer que a transmissão das acções para terceiro diferente do devedor não implica qualquer redução […] da garantia patrimonial do seu crédito. Fazendo a comparação com a situação patrimonial da devedora 1.ª ré antes e depois da transmissão, na perspectiva dos autores, esta não se modificou: antes podia executar o penhor e agora também o pode fazer.

                                               *

         A existência desse penhor é um facto. A decisão do Tribunal de Madrid que opôs os autores contra a K resolveu quaisquer dúvidas que poderia existir quanto à existência e ao registo do penhor, sendo certo que, não obstante o averbamento do penhor só tenha sido efectuado em Fevereiro de 2011 [quis-se escrever 2021 – TRL], as acções K eram e são acções tituladas e nominativas, o que significa – de acordo com o art. 102/ 1 do CVM – que apenas se transmitem por declaração de transmissão, escrita no título, a favor do transmissário, seguida de registo junto do emitente ou junto de intermediário financeiro que o representa.

         E essa a declaração de transmissão é efectuada (nº2): a) Pelo depositário, nos valores mobiliários em depósito não centralizado, que lavra igualmente o respectivo registo na conta do transmissário; b) Pelo funcionário judicial competente, quando a transmissão dos valores mobiliários resulte de sentença ou de venda judicial; c) Pelo transmitente, em qualquer outra situação.

         Ora, no contrato de penhor celebrado entre o B e a 1ª ré, esta autorizou o B a comunicar o conteúdo dos contratos às entidades cuja intervenção seja necessária para efeitos de assegurar a constituição e eficácia dos mesmos, e concedeu-lhe plenos poderes para em seu nome e representação endossar os valores mobiliários nominativos afectos às suas carteiras e mandar averbar nos instrumentos financeiros os penhores que se vierem a constituir. Tudo isto significa que o B procedeu validamente e por sua iniciativa à inscrição no verso dos títulos do penhor que se encontrava constituído em seu favor, dispensando a intervenção da 1.ª ré ou de qualquer outra entidade.

         Estas acções empenhadas foram, por acordo das partes, entregues à guarda do Banco, ficando depositadas em conta aberta junto do mesmo, e sendo-lhe inclusivamente reconhecidos poderes para, em caso de incumprimento, proceder à sua venda.

         É verdade que, nos termos contratuais, estas não podiam ser vendidas a quaisquer terceiros, sem a autorização prévia do Banco, mas – tendo sido – foram-no oneradas e oneradas com o penhor a favor do B.

         Em face da existência e validade deste penhor, mostra-se irrelevante saber se foram transmitidas por um preço inferior ao seu valor ou se o foram a título gratuito (sendo certo que não se provou a existência de qualquer preço ou que o mesmo exista sequer).

         Assim, volvendo aos requisitos de procedência do pedido dos autores quanto à impugnação pauliana, não obstante a factualidade que se demonstrou permitir concluir que existe um crédito dos autores sobre a 1.ª ré […], a verdade é que não se demonstrou que tenha existido transmissão gratuita das acções da 1.ª ré para a 3.ª ré e, independentemen-te de se ter demonstrado que existiu uma transmissão das acções da 1.ª ré para o réu e deste para a 3.ª ré, esta transmissão não importou uma diminuição da garantia patrimonial do crédito dos autores, que permaneceu exactamente na mesma por força do penhor das acções.

         Mostra-se, por conseguinte, prejudicado o conhecimento da excepção da caducidade alegada.

         Os autores formulam, no entanto, outros pedidos, sendo certo que o formulado na alínea (c) encontra-se prejudicado pela improcedência do primeiro.

         O pedido formulado na alínea (b) trata-se de um pedido de mera apreciação, que de acordo com o que supra referimos, resulta do contrato e da natureza do penhor, pelo que nada obsta à sua procedência quanto à 1.ª ré e [quanto à] 3.ª ré, as únicas que – relativamente a este pedido – têm legitimidade, por força da sua titularidade anterior e actual das acções.

         No que diz respeito ao pedido subsidiário, considerando que não foi feita prova da relação entre a 1.ª ré e o réu e que não se mostram preenchidos os requisitos do disposto no art. 163/1 do CSC, a improcedência da impugnação pauliana relativamente àquela, pelos motivos que a justificaram, implica também a improcedência da mesma quanto a este.

                                                      *

            Apreciação:

            Da nulidade da sentença, por excesso de pronúncia

            A sentença condenou as rés no 2.º pedido formulado pelos autores, logo não se pode dizer que se ocupou de questão de que não podia tomar conhecimento ou que não tivesse sido suscitada pelas autoras (arts. 615/1-d e 608/2 do CPC).

            Pelo que não se verifica a arguida nulidade.

            A benefício da discussão diga-se ainda: a acção não foi convolada numa acção executiva de penhor; neste processo não se vai vender nada; nem as acções, objecto do penhor, têm de ser vendidas através de um processo judicial executivo (o que ficará melhor esclarecido mais à frente).

            Da nulidade da sentença, por condenação em objecto diverso do pedido

            O objecto de uma acção é formado por um pedido baseado numa causa de pedir, mas não tem de haver apenas uma causa de pedir. Um pedido pode basear-se em mais de uma causa de pedir (haverá então uma concurso de causas de pedir). A causa de pedir corresponde ao conjunto dos factos constitutivos da situação jurídica que o autor quer fazer valer. Se, num articulado, for possível descobrir mais de que um conjunto de factos constitutivos do direito que o autor quer fazer valer, haverá mais do que uma causa de pedir. Se o autor formulou a acção como se tivesse apenas uma causa de pedir (dando-lhe um nome específico e invocando apenas uma previsão normativa que preenchida tinha como consequência o seu direito) e o juiz descobrir mais outra causa de pedir no articulado do autor e condenar com base nesta outra causa de pedir, poderá colocar-se (mas no caso não foi colocada) a questão das decisões-surpresa, o que também seria uma nulidade da sentença (mas as nulidades da sentença não são de conhecimento oficioso).

            Entretanto note-se que todas as normas que foram referidas na sentença e todas aquelas que vão ser aplicadas neste acórdão já eram, no essencial, referidas pelos autores e as rés contestantes já sobre elas se pronunciavam no essencial, sendo que as duas sentenças espanholas juntas aos autos também se pronunciaram sobre todas estas questões e a rés, embora não fossem parte nas acções dos tribunais espanhóis, foram notificadas da junção delas aos autos e sabem o que é que ali foi dito.

            Posto isto,

            A sentença condenou as rés no 2.º pedido formulado pelos autores: o de que se reconheça ao B o direito de vender as acções em causa nos autos.

            Este direito, atenta a forma como os autores configuraram a acção, derivava aparentemente de um conjunto de factos, que era a causa de pedir expressamente exposta, ou seja, resultava da procedência da impugnação pauliana de uma venda da 1.ª ré à 3.ª ré em causa nos autos. Mas, atentos outros factos alegados pelos autores, o direito do B também derivava do facto de o B ser beneficiário de um penhor financeiro com poder de disposição das acções tituladas nominativas do capital social de uma outra sociedade (K) prestadas pela 1.ª ré como garantia da sua dívida de um mútuo celebrado com o B, penhor esse com eficácia também perante terceiros (incluindo a 3.ª ré).

            Pelo que, ao pronunciar-se sobre um pedido formulado com base numa causa de pedir também ela exposta, a sentença recorrida não tratou de uma objecto diverso do pedido, pelo que não se verifica a arguida nulidade.

                                                      *

                            Do recurso sobre matéria de direito

            A argumentação da 3.ª ré é a seguinte, em termos esquemáticos: quando adquiriu (de modo oneroso e de boa fé, em Jan2012) as acções ao réu (2.º réu) estas não estavam oneradas pelo penhor financeiro invocado pelos autores, pelo que este não lhe pode ser oposto ou, dito de outro modo, o penhor é ineficaz em relação a ela. O penhor só foi constituído depois desta venda, com a inscrição do mesmo no verso do título (em 2011) e registo no livro de acções da sociedade a que as acções diziam respeito só pedido em Fev2012 e efectuado em 2021.  Só então ele se tornou eficaz em relação a terceiros (como a 3.ª ré). No corpo das alegações invoca neste sentido as regras dos artigos 23/2 do Código das Sociedades Comerciais e 102 e 103 do Código dos Valores Mobiliários.

            Os factos provados em Ia, Im, Iq, Ir, IIa, IIb, IIc, IIIg e IVj permitem a conclusão de que o penhor em causa nos autos é um penhor financeiro, tendo por objecto acções tituladas que sempre estiveram em poder do B, beneficiário da garantia.              

            Isto tendo em conta que o contrato foi celebrado (coligado com o de mútuo referido a seguir) entre uma instituição financeira (B) como beneficiária do penhor e uma pessoa colectiva/sociedade (1.ª ré) como prestadora da garantia (art. 3/1-c/i-f do DL 105/2004, de 08/05), garante o pagamento de uma dívida de um mútuo, liquidável em numerário (art. 4 do DL), tem por objecto instrumentos financeiros/valores mobiliários (art. 5/1-b do DL) de que a mutuária estava desapossada, já que estavam depositadas num conta de custódia de títulos da ré no B, ou seja, o objecto foi efectivamente prestado (art. 6/2 do DL: Considera-se prestada a garantia financeira cujo objecto tenha sido entregue, transferido, registado ou que de outro modo se encontre na posse ou sob o controlo do beneficiário da garantia ou de uma pessoa que actue em nome deste, incluindo a composse ou o controlo conjunto com o proprietário).

                  Bem como, por outro lado, que o contrato e a prestação de garantia estão comprovados por escrito que identifica o objecto correspondente (art. 7/1-3 do DL – todas as normas invocadas já constavam da versão original do DL 105/2004, vigente à data da celebração do contrato, 2008, antes pois das alterações pelo art. 2 do DL 192/2012  de 24/08 e 5 do DL 85/2011 de 29/06), isto é, as acções ordinárias nominativas, e que “a validade, a eficácia ou a admissibilidade como prova de um contrato de garantia financeira e da prestação de uma garantia financeira não dependem da realização de qualquer acto formal (art. 8/1 do DL).

            Margarida Costa Andrade, em O penhor financeiro com Direito de Disposição de Valores Mobiliários, publicado na Revista da Ordem dos Advogados, 2010, I-IV, págs. 361-362 e 365-366, defende que, para além destas regras, há que observar as regras dos artigos 81 e 101 a 103 [no caso dos valores mobiliários titulados nominativos, apenas 102 e 103] do Código dos Valores Mobiliários:

            “10. Tendo em conta os termos alargados por que o DL 105/2004 vem compreender e aceitar o desapossamento, podemos perguntar se foram atenuadas as regras de constituição da garantia pignoratícia por comparação com o que se exige no penhor de valores mobiliários.

              […] Já sendo os valores mobiliários titulados, a constituição do penhor implica o cumprimento das mesmas formalidades impostas para a transmissão (art. 103.º CVM), ou seja, […] o penhor sobre valores mobiliários titulados nominativos constitui-se por declaração do empenhamento, no título, a favor do credor, seguida de registo junto do emitente ou do intermediário financeiro que o represente (art. 102.º CVM). Também estas formalidades são manifestação do desapossamento típico das garantias possessórias: a função a cumprir é impedir que o prestador transmita a coisa onerada fazendo perigar a garantia do credor pignoratício, ao mesmo tempo que se publicita o encargo. Ora, acreditamos que as formalidades impostas por estas normas do CVM continuam a ter de ser cumpridas pelos sujeitos elencados no art. 3.º quando pretendam celebrar um acordo de garantia financeira, precisamente porque elas são a garantia de que uma eventual tentativa de alienação pelo devedor ficará impossibilitada: o título não pode ser entregue ao adquirente, porque quem o detém é o credor pignoratício; não pode registar-se na conta do adquirente valores mobiliários precisamente porque os valores mobiliários escriturais estão inscritos na conta do credor pignoratício ou porque na conta do alienante está inscrito o penhor a favor daquele.”

            A mesma posição resulta do que é dito por L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, Almedina, 2011, páginas 283-284; por Menezes Leitão, Garantia das obrigações, 2016, 5.ª edição, Almedina, pág. 288; e José Engrácia Antunes, Os instrumentos financeiros, 2017, 3.ª edição, Almedina, págs. 95 e 111-112.

            Esta opinião tem apoio legal tendo em conta os considerandos (9) e (10) da Directiva 2002/47/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de Junho de 2002, relativa aos acordos de garantia financeira:

              (9) A fim de limitar as formalidades administrativas a cumprir pelas partes que utilizam a garantia financeira prevista na presente directiva, a única condição de validade susceptível de ser imposta pelo direito nacional relativamente à garantia financeira deve ser a entrega, a transferência, a detenção, o registo ou a designação dos títulos fornecidos a título dessa garantia por forma a que estejam na posse ou sob o controlo do beneficiário da garantia ou de uma pessoa que actue em nome do beneficiário da garantia, não excluindo técnicas de garantia que permitam ao prestador da garantia substituir a garantia ou retirar o seu excedente.

              (10) Pelos mesmos motivos, a celebração, validade, conclusão, exequibilidade ou admissibilidade enquanto prova de um acordo de garantia financeira, ou a prestação de uma garantia financeira no âmbito de um acordo de garantia financeira, não deverão depender da realização de qualquer acto formal, como o estabelecimento de um documento sob qualquer forma específica ou de algum modo especial, o registo num organismo oficial ou público ou a inscrição num registo público, o anúncio num jornal ou revista, num registo ou publicação oficial, ou sob qualquer outra forma, a notificação de um funcionário público, o fornecimento de prova sob forma especial quanto à data de estabelecimento de um documento ou instrumento, o montante das obrigações financeiras em causa ou qualquer outra questão. Todavia, a presente directiva deve proporcionar o equilíbrio entre a eficácia do mercado e a segurança das partes no acordo e de terceiros, evitando desse modo mormente o risco de fraude. Esse equilíbrio será alcançado pelo facto de o âmbito de aplicação da directiva abranger apenas os acordos de garantia financeira que prevêem alguma forma de desapossamento, ou seja, a prestação de garantia financeira, e quando a prestação da garantia financeira possa ser provada por escrito ou num suporte duradouro, garantindo desse modo a rastreabilidade dessa garantia. Para efeitos da presente directiva, os actos exigidos nos termos da legislação de um Estado-Membro enquanto condição necessária para a transferência ou constituição de penhor sobre instrumentos financeiros que não sejam títulos escriturais, tais como o endosso em caso de títulos à ordem, ou a inscrição no registo do emitente em caso de títulos registados, não deverão ser considerados actos formais.

            Este regime é ainda reforçado pelo facto de, como resulta do considerando (6) da Directiva citada, ele “não aborda os direitos que qualquer pessoa possa deter relativamente aos activos fornecidos a título de garantia financeira cuja origem não resida nos acordos de garantia financeira nem tenha por base qualquer das disposições legais ou normas jurídicas resultantes do início ou prossecução de processos de liquidação ou medidas de saneamento, tais como a restituição resultante de um engano, erro ou incapacidade.”

            O que ainda decorre do art. 21 – norma de conflitos:

            São reguladas pela lei do país em que está localizada a conta na qual é feito o registo da garantia as seguintes matérias – d) As formalidades necessárias à oponibilidade a terceiros do contrato de garantia financeira e da prestação da garantia financeira – do DL,

              tendo em conta o considerando (8) da dita Directiva:

            (8) O princípio da lex rei sitae, segundo o qual a validade e, portanto, a oponibilidade de um acordo de garantia financeira, são determinadas com base na lei do país em que a garantia financeira está localizada, é actualmente reconhecido por todos os Estados-Membros. Sem prejuízo da aplicação da presente directiva aos títulos detidos directamente, deve ser determinado o lugar onde se situa uma garantia constituída por títulos escriturais e detida por um ou mais intermediários. Se o direito do beneficiário de uma garantia for estabelecido por um acordo de garantia válido e aplicável por força do direito do país em que a conta está localizada, a oponibilidade a qualquer título ou direito concorrente e a aplicabilidade da garantia são regidas unicamente pelo direito do referido país, evitando-se pois a incerteza jurídica que resultaria da intervenção de outra legislação não tida em conta.”

              Quer isto dizer que o penhor financeiro em causa, em que as acções tituladas nominativas estavam depositadas na conta da 1.ª ré no B, só se considera constituído – para poder ser oposto a terceiros – com a declaração, feita pelo depositário B, da oneração com o penhor, no título e posterior registo junto do emitente da acções tituladas nominativas.

            Isto tendo em conta os artigos 103:

              A constituição, modificação ou extinção de usufruto, de penhor ou de quaisquer situações jurídicas que onerem os valores mobiliários titulados é feita nos termos correspondentes aos estabelecidos para a transmissão da titularidade dos valores mobiliários.

            e 102 do CVM:

              1 – Os valores mobiliários titulados nominativos transmitem-se por declaração de transmissão, escrita no título, a favor do transmissário, seguida de registo junto do emitente ou junto de intermediário financeiro que o representa.

              2 – A declaração de transmissão entre vivos é efectuada: a) Pelo depositário, nos valores mobiliários em depósito não centralizado, que lavra igualmente o respectivo registo na conta do transmissário; […] c) Pelo transmitente, em qualquer outra situação.

              5 – A transmissão produz efeitos a partir da data do requerimento de registo junto do emitente.

              A regra do artigo 102/7 do CVM (O emitente não pode, para qualquer efeito, opor ao interessado a falta de realização de um registo que devesse ter efectuado nos termos dos números anteriores) não tem aplicação ao caso, porque diz respeito às relações entre o emitente e o interessado que fez o requerimento do registo (no caso o B).

            Ora, no caso, a declaração do penhor no título foi feita a 07/02/2011 (facto IIIp – a própria ré diz isto nas conclusões O e T do recurso) e o requerimento de registo do penhor no emitente consta da carta de 09/02/2012 (facto IIIq) e acabou por ser efectuado (factos IVl e IVm).

            Assim, o penhor está devidamente constituído, mesmo contra terceiros, com efeitos reportados a 09/02/2012.

            Teve-se em conta a lei portuguesa por força do disposto no art. 46 do CC: O regime da posse, propriedade e demais direitos reais é definido pela lei do Estado em cujo território as coisas se encontrem situadas. Isto entendendo-se que a garantia financeira com desapossamento, é uma garantia real (foi o defendido pelos autores perante os tribunais espanhóis e aceite por estes); a aplicação da lei portuguesa, para quem entenda que o penhor financeiro não é um direito real porque não recai sobre uma coisa mas sobre um direito, resultaria do disposto no art. 3/1 do Regulamento (CE) n.º 593/2008 de 17/06, tendo em conta a cl.11/1 do contrato de penhor (facto que pode ser considerado dado que o contrato foi dado por reproduzido em IIb), o que também resultaria do art. 41/1 do CC, visto que foi esta lei que manifestamente as partes no contrato tiveram em vista como resulta dos termos do mesmo.

            O contrato de penhor em causa, conferia também, na cláusula 9, ao beneficiário (B) o direito de disposição sobre o objecto desta (art. 9/1 do DL 105/2004) e este direito confere ao beneficiário os poderes de alienar ou onerar o objecto da garantia prestada, nos termos previstos no contrato, como se fosse seu proprietário (art. 9/2 do DL – resulta implicitamente do facto IIIj)). Mas o exercício de tal direito está dependente, relativamente aos valores mobiliários titulados, de menção na conta de depósito (art. 9/3 do DL).

            Não resultando dos factos provados que tal direito tenha sido feito constar da conta de depósito, nem do título das acções, o contrato de penhor financeiro assume apenas a sua forma mais simples (neste sentido, o estudo citado de Margarida Costa Andrade, pág. 370-371; e sobre ele, mais à frente, páginas 377-379 e 383 e segs), o qual também confere (se tiver sido convencionado, como foi e resulta do já dito) o direito de proceder à venda embora em moldes distintos, isto é, nos termos do art. 675 do CC (aplicável por força do art. 22 do DL 105/2004), depois de vencida a obrigação, e isso sem sujeição a nenhum requisito, nomeadamente a notificação prévia ao prestador da garantia da intenção de proceder à execução (art. 8/2 do DL 105/2004). Pelo que “a venda será extrajudicial e ordenada pelo beneficiário” (autora e obra citadas, pág. 384; no mesmo sentido, Pestana Vasconcelos, obra citada, páginas 242-244; e Menezes Leitão, obra citada, págs. 191-192).

                                                      *

            Falta saber se a 3.ª ré pode opor aos autores o registo das acções a seu favor no livro de registo de acções da emitente.

            Os factos que interessam à questão são os seguintes;

III

s) a 1.ª ré figura no relatório e contas da K reportado a 31/12/2011 [e] a 31/10/2012 como titular de 2.847.457 acções, representativas de 3,08% do capital social

IV

e) Com data de 09/01/2012, foi dirigida à K comunicação da transmissão das acções penhoradas a favor do B efectuada a 06/01/2012 pelo réu à 3.ª ré, como consta de fl.620 dos autos.

[…]

h) As referidas acções continuam até à data da propositura desta acção registadas em nome da 3.ª ré.

               A transmissão de acções é feita nos termos do já visto art. 102 do CVM, estando por isso dependente, tal como foi visto em relação ao penhor, da existência de um contrato, da declaração de transmissão e do seu registo.

        Neste sentido, Alexandre Soveral Martins, no CSC em comentário, coordenação de Coutinho de Abreu, vol. V, IDET/Almedina, Dez2012, págs. 493 a 517, espec. páginas 499-511 e 512-513:

              “[…A] declaração de transmissão aposta no título […] não se confunde com a causa de transmissão das acções (v.g., compra e venda, doação, troca). Essa justa causa, se não basta para a transmissão das acções, é ainda necessária. […] […Não] se prescinde dessa justa causa. Como não se prescinde também da sua validade e eficácia. […]. […] a transmissão das acções nominativas apenas tem lugar assim que é efectuado o registo junto do emitente ou do intermediário financeiro que o represente, nos termos do art. 102 do CVM. Antes disso, a transmissão não teve ainda lugar. […]”

            No mesmo sentido, o ac. do STJ de 15/05/2008, proc. 08B153:

            “1. A transmissão das acções tituladas […], fora do mercado bolsista, só fica perfeita com a […] a declaração de transmissão escrita no título (acções tituladas nominativas) […]; mas estes actos – que integram e traduzem o modo – não bastam, só por si, para operar a transmissão, que exige que eles se apoiem num título válido, num negócio jurídico, o negócio causal subjacente. 2. Tal significa que a transmissão não se opera por mero efeito do contrato, nem apenas e só por efeito do modo, só se efectuando por força do contrato e do modo. […]”

          Embora o acórdão, no sumário, não inclua o registo no modo, já no texto é claro ao inclui-lo; por exemplo: “o CVM afasta o princípio consensualista consagrado pelo art. 879/-a) do CC. Só no momento […] da declaração de transmissão, seguida de registo (acções nominativas) é que o adquirente será o titular das mesmas e poderá exercer o direito de propriedade sobre elas face ao alienante, a terceiros e à sociedade.

            Ora, dos factos provados não consta nem a celebração do contrato de aquisição das acções pela 3.ª ré, nem a declaração de transmissão no título, nem a data do registo. O que se prova é apenas a comunicação de uma alegada transmissão, sem qualquer referência ao negócio jurídico causal, isto é, a uma justa causa subjacente, e o registo (sem data).

            Isto seria suficiente para dizer que a 3.ª ré não poderia opor ao B, credor pignoratício, o facto de estar registada nos livros da sociedade emitente das acções, pois que, mesmo que se quisesse utilizar o registo como presunção da titularidade, não se sabendo quando é que ele foi feito, não se poderia dizer que ele foi feito antes do registo do penhor.

                                                      *

            Por força do disposto nos artigos 663/2 e 607/4 do CPC é possível, no entanto, acrescentar aos factos provados o seguinte quanto ao registo, tendo em conta os seguintes documentos:

              No documento junto a 17/04/2019, apresentado pela K, não impugnado por qualquer das Partes, consta, do livro de registo da K, uma folha relativa ao réu com as anotações, com data de 06/02/2009, da compra à 1.ª ré das 2.847.457 acções (com a observação: anotado em virtude de comunicação conjunta entregada ao presidente da sociedade) e, com data de 09/01/2012, da venda à 3.ª ré em 06/01/2012 dessas acções (com a observação de que não se dispõe de contrato, só da comunicação de 09/01/2012 em documento privado conjunto entregado ao presidente); da folha da 1.ª ré consta aquela venda anotada em 09/01/2012; numa folha referente à 3.ª ré consta, com data de 09/01/2012, a compra (ao réu) em 06/01/2012 e as observações seguintes: não se dispõe de contrato, só de comunicação conjunta privada de 09/01/2021 entregada ao presidente, (?) anotado por instruções deste; todas estas anotações são feitas a manuscrito e sem qualquer referência a notário.

              No doc. 55 da PI,  não impugnado pelas rés, consta um email enviado pela K a 21/03/2012, em resposta ao pedido de 09/02/2012 referido em IIIq, consta uma cópia da folha da 1.ª ré na K na qual só está inscrita (dactilografadamente) a aquisição das acções em 2005 e 2006.

              (os autores fazem ainda referência a um outro conjunto de folhas do livro, junto por eles em requerimento de 2019, mas este foi impugnado pelo réu e por isso não é agora considerado)

            Com este aditamento de factos já se poderia dizer que existe um registo dos contratos de compra e venda das acções em condições tais que faria presumir a titularidade delas pela 3.ª ré, decorrente dos factos registados e ainda a existência de uma declaração de transmissão no título das acções.

            Mas para além daquele registo existe um outro, anterior, no livro de acções da K contraditório com ele, pois que este outro, em 21/03/2012 não tinha inscrita a venda das acções da 1.ª ré ao réu.

            Ora, a existência de registos contraditórios tira a base da presunção do registo posterior e afasta também a possibilidade de dizer que o registo das acções a favor da 3.ª ré foi feito antes do registo do penhor, o qual, como foi visto, tem eficácia em relação a terceiros desde 09/02/2012.

            A isto ainda se pode acrescentar que (i) os registos em causa são documentos elaborados pelo próprio emitente das acções; (ii) as anotações das vendas e observações não são feitas por nenhum oficial público que possa comprovar a data em que tais elementos foram feitos; (iii) no relatório e contas da sociedade emitente reportado a 31/12/2011 e a 31/10/2012, quem consta como titular das acções é a 1.ª ré e não o réu, nem a 3.ª ré; e (iv) actualmente, a 3.ª ré é detida a 100% por uma outra sociedade, cuja sede se situa precisamente no domicílio profissional de dois administradores da K (facto IVj). Tendo em consideração estes dados e o disposto nos artigos 44, §1 a 4, do Código Comercial e 362, 363, 365/1, 370/1, 371/2, 376/3, 377 do CC, daquele registo junto em 2019 este TRL não tiraria a base da presunção da titularidade das acções da 3.ª ré desde uma data anterior a 09/02/2012.

            Com apoio em qualquer destes dois fundamentos, pode-se então concluir que o registo do penhor, com o qual se completou a aquisição da sua eficácia perante terceiros, retroage a 09/02/2012, e não há prova de que nessa data já houvesse um registo anterior da alegada aquisição das acções pela 3.ª ré. Pelo que a 3.ª ré não pode, com base nele, opor a titularidade dessas acções ao beneficiário da garantia/penhor.

                                                      *

            A construção da sentença é mais simples do que a antecede: o penhor existe e está registado; é um direito real que prevalece contra terceiros; a 3.ª ré é um terceiro; logo o penhor pode ser oposto a ela.

            Mas isto não leva em conta que se a 3.ª ré tivesse provado que tinha comprado as acções antes da data do registo, então o penhor já não lhe poderia ser oposto. A sentença assinala o facto de as acções não poderem ser vendidas a terceiro sem a autorização do B, mas não dá relevo ao facto, pois que considera que elas foram vendidas oneradas com o penhor. Mas isto pressupõe que o penhor fosse anterior a tal venda, pois só assim se poderia dizer que o penhor já onerava as acções à data da compra pela 3.ª ré. Pelo que a solução do caso passa pela fundamentação deste acórdão e não pela da sentença recorrida.

            Os autores, por sua vez, dão-se conta do problema e afastam-no considerando que a venda à 3.ª ré não se chegou a completar por não haver uma declaração de transmissão feita no titulo, nem podia haver porque o título estava na sua posse.

            Mas esta solução dos autores não pode ser seguida, porque as acções que a 3.ª ré adquiriu estavam documentadas num novo título que substituiu o antigo perante a sociedade emitente. Pelo que a declaração de transmissão pode ter sido feita nesse novo título e ele ter sido exibido perante a sociedade emitente, permitindo o registo nesta. Ora, não existem suficientes normas jurídicas – tanto que os autores não as tentaram alegar – que permitam evitar esta situação, como se vê do facto de o título ter de facto sido substituído, como aliás já estava previsto no contrato de constituição de penhor, que solucionava o problema com a criação da obrigação da entrega do novo título pela prestadora da garantia ao B: se o prestador da garantia ficava na situação de o ter de entregar ao B é porque se admite que ele possa obter um novo título. Isto embora custe a entender uma sistema de entrega de um novo título de acções que não observa a regra básica da necessidade de entrega do antigo título para conferir legitimidade ao recebimento de um novo, sendo certo no entanto que, se houvesse um sistema que observasse esta regra, também não seria necessário o registo das acções. Seja como for, também aqui a solução do caso passa pela fundamentação deste acórdão e não pela da sentença recorrida.

            Assinale-se ainda que embora a sentença fundamente a conclusão de que o penhor foi devidamente constituído, também diz que a constituição do penhor foi reconhecido pelo tribunal competente para o efeito, o espanhol; mas a acção no tribunal espanhol não tem como parte nenhum dos réus destes autos (como aliás o réu foi lembrando e o acórdão da APM também refere), pelo que esse reconhecimento não podia resultar, com eficácia de caso julgado, das decisões aí proferidas, quanto aos réus nesta acção. 

                                                      *

            Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

            Custas, na vertente de custas de parte (não há outras), pela 3.ª ré que perde o recurso.

            Lisboa, 30/03/2023

            Pedro Martins

            1.º Adjunto

            2.º Adjunto