Inventário – Juízo Local Cível do Funchal

              Sumário:

              I – Quando um interessado reclama da falta de relacionação de bens e alega a inerente sonegação desses bens, está a levantar uma questão prejudicial não essencial, sujeita ao regime do art. 1093 do CPC, e uma questão prejudicial essencial, sujeita ao regime do art. 1092/1-b do CPC (porque a sonegação de bens tem a ver com a definição de direitos de interessados directos na partilha).

              II – Quando o juiz remete os interessados para os meios comuns para discutir a questão não essencial não pode também, logicamente, conhecer da questão prejudicial essencial, pelo que terá de suspender o processo (art. 1092/1-b do CPC), sem prejuízo de autorizar o seu prosseguimento a requerimento de qualquer interessado (art. 1092/3 do CPC).

              III – Neste caso, não tendo havido recurso quanto à decisão da remessa dos interessados para os meios comuns, o recurso quanto à decisão da suspensão tem de improceder.

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

              A 28/06/2021, JP requereu um inventário para partilha da herança aberta pelo falecimento dos pais dele: MJ, em 08/09/2001, sem deixar testamento e no estado de casada em primeiras núpcias, sob o regime da comunhão geral de bens, com AP, e deste, que veio a falecer em 16/04/2019 no estado de viúvo daquela e sem testamento.

              Esclareceu que os inventariados tiveram 4 filhos: (1) o requerente, casado com MP sob o regime da comunhão geral de bens; (2) ML, casada com JM sob o regime da comunhão de adquiridos; (3) MF, que à data do óbito da inventariada era casada com AD sob o regime da comunhão geral de bens, tendo este falecido em 22/09/2004, deixando como herdeiros a sua esposa, e dois filhos: (a) AN, solteiro, maior, e (b) AK, solteira, maior; e (4) MLF, falecida em 28/01/2009, no estado de solteira, maior, sem deixar descendentes.

              Diz que existem bens a partilhar e que os interessados não chegam a acordo quanto a partilha de bens e que deve ser ele o cabeça-de-casal, por ser o filho mais velho.

              A 26/07/2021 juntou relação de bens: 4 prédios rústicos. A 12/11/2021 acabou de juntar todos os registos necessários e apresentou a relação de bens corrigida na descrição dos 4 prédios rústicos.

              A 07/01/2022 o requerente foi nomeado cabeça-casal e foi ordenada a citação dos interessados indicados.

              A 21/02/2022, a irmã ML apresentou nos termos do artigo 1104 do CPC, reclamação à relação de bens, onde refere que existem outros bens que devem ser relacionados: (i) o saldo de uma conta bancária que em 08/02/2016 era de valor de 25.000€ + 196,24€, conforme doc.1, também titulada pelo cabeça-de-casal e reclamante, mas pertença exclusiva dos inventariados, e de que o cabeça-de-casal se apropriou, em 29/09/2016, de 20.00€, transferindo-os para uma conta de que é titular, conforme docs. 2 e 3; a reclamante alega factos no sentido de demonstrar que esse dinheiro não foi gasto/usado pelo inventariado; e (ii) 21.000€ que são 5/8 do produto da venda em 15/10/2015 de um prédio, feita por todos os interessados e que eram do inventariado, como sua meação e parte na herança da mulher, e de que o cabeça-de-casal de apropriou; conclui que o cabeça-de-casal deve à herança [do inventariado] esses valores (25.916,24€ + 21.000€, pelo que deve ser notificado para aditar à relação de bens esse crédito da herança e ser responsabilizado pela sonegação de bens, devendo por via disso, perder o direito a qualquer parte que tivesse sobre os valores sonegados, a favor dos herdeiros, nos termos do artigo 2096 do Código Civil.

              Para além dos documentos identificados, arrolou uma testemunha e requereu o depoimento de parte do cabeça-de-casal, sobre toda a matéria elencada.

              Notificados para se pronunciaram, a 03/05/2022, apenas o cabeça-de-casal o fez, impugnando parte dos factos da reclamação e a acusação de sonegação de bens, dizendo, em síntese e na parte que importa: os valores referidos existiam e eram do inventariado, mas o seu levantamento e transferência foi feito com o consentimento e a vontade dele,  3 anos antes do seu falecimento, dizendo ao cabeça-de-casal para levantar o dinheiro e com ele pagar as despesas da sua doença, internamento e outras, o que ele fez; explica que o inventariado regressou à Madeira em Maio de 2013, teve um AVC e ficou com problemas de mobilidade, foi hospitalizado, tendo ficado internado, após o que foi internado num Lar em S, posteriormente em 2014 foi para o Lar, onde ficou até falecer em 16/04/2019; assim esteve internado durante 5 anos; no entanto, estava lúcido, consciente e sabia o que fazia e o que queria (declaração médica, doc.3); o cabeça-de-casal tem uma ampla procuração do inventariado outorgada no dia 21/05/2014, entre o mais com poderes para abrir, movimentar ou encerrar contas, depositar e levantar dinheiro em quaisquer bancos e também para administrar todos os seus bens, comprar e vender, pelo preço e condições que entender (doc.2); quando as contas estão saldadas à data do óbito, não existe saldo bancário a relacionar (conforme ac. do TRL de 30/04/2009, processo 9615/2008-6); como resulta do disposto nos artigos 2031 e 2050 do CC, a transmissão de bens dá-se no momento da morte, e os bens transmitidos são os que nessa data existiam, sendo que a titularidade dos respectivos direitos tem de ser determinada à data da abertura da herança, ou seja, à data do falecimento do autor dela, tudo conforme os artigos 2024, 2050 e do 2031 do CC; o cabeça-de-casal relacionou todos os bens existentes, não ocultou ou omitiu quaisquer bens, não havendo assim sonegação de bens; quando o inventariado faleceu não deixou quantias em dinheiro; o dinheiro da venda da casa foi para gastar em despesas com o falecido; conforme ac. do TRG de 06/10/2016, proc. 956/13.3TBBCL-A.G1, as quantias movimentadas a débito de contas bancárias tituladas pela inventariada e por terceiro, em regime de solidariedade, dias ou semanas antes do óbito, e integradas no património de terceiro não fazem parte do acervo hereditário. Para que essas quantias constituam crédito da herança é necessária a alegação e prova, cujo ónus impende sobre o herdeiro que se sinta lesado, de que essas quantias pertenciam à inventariada e de que a subtracção ao património daquela foi ilícita. No mesmo sentido, o ac. do TRC de 17/12/2014, proc. 15/09.3TBPNC.C1 […] se não se apurou que tal movimento foi feito sem o conhecimento e consentimento da inventariada, assim correspondendo a uma ilícita apropriação dos dinheiros que a esta pertenciam, factos estes que nem alegados foram, não é possível afirmar a existência de um crédito da herança sobre aquela interessada, cuja prova cumpria ao cabeça-de-casal que como tal o relacionou. […]. E ainda o ac. do TRL de 07/02/2012, proc. 1183/08.7TCSNT.L1-7: A simples existência de levantamentos realizados pela ré de quantias depositadas em contas bancárias e cujos fundos pertenciam exclusivamente aos seus pais, suscitando a discussão acerca de saber se integram ou não o património hereditário, não constituem, não obstante, por si só, fundamento para a aplicação da pena civil corresponde à figura da sonegação de bens. No que concerne aos levantamentos realizados ainda em vida dos autores das (duas) sucessões não se vislumbra sequer in casu a menor possibilidade de conceber qualquer actuação ilícita da parte da ré – sua filha.

              Para além dos documentos identificados, arrolou uma testemunha.

              A 10/10/2022 foi decidido, ao abrigo do disposto no art. 1092/1-b ex vi do disposto no art. 1105/3, parte final, ambos do CPC, suspender os termos do presente inventário, remetendo-se os interessados para os meios comuns.

              Depois de citar partes de, entre outros, os artigos 1105/3-4 e 1092/1-b do CPC, a fundamentação do decidido foi a seguinte:

         veja-se, nesse sentido, ainda que proferido antes da entrada em vigor da presente lei, o ac. do TRG de 12/04/2007, no qual se lê que “O processo de inventário deve ser suspenso se algum dos interessados reclamar a exclusão de bens nele relacionados […]”.

         Compulsada toda a alegação do requerimento de reclamação de bens verificamos que se colocam questões relacionadas com movimentação de contas bancárias ainda em vida do inventariado, colocando-se em causa titularidades das quantias bancárias, ordens de movimentação das quantias, alegadamente dadas pelo inventariado; venda de imóvel ainda em vida do inventariado, com alegações de descaminho (sonegação de bens) de verbas pelo procurador do inventariado, o que, estando o inventariado ainda vivo e internado em casa de saúde levanta questões relacionadas com a sua vontade, designadamente destino pelo mesmo, ou pelo seu procurador com orientações deste, da verba resultante da venda.

         Ora, rapidamente se conclui que a matéria subjacente à reclamação em causa, pelas questões suscitadas (complexas), as quais são depois adensadas ainda mais pela resposta dada pelo cabeça-de-casal (que não só negou as imputações efectuadas como pugnou pela validade da procuração e das ordens dadas em vida e em consciência pelo de cujus, vindo mesmo, alegar, doações feitas pelo de cujus à reclamante), não podem ser discutidas, apreciadas e decididas em sede incidental, no âmbito do presente inventário, impondo-se, assim, a suspensão dos mesmos.

              O cabeça-de-casal recorre deste despacho – na parte em que suspende o inventário -, alegando em 62 páginas, 22 delas de conclusões, que (em síntese feita por este TLR):

         O ac. do TRG invocado pela decisão recorrida, 340/07-2, está a falar de uma reclamação de exclusão de bens relacionados. Ora, no caso dos presentes autos, não foi reclamada a exclusão de bens, mas, pelo contrário, a sua relacionação. Acresce que, relativamente à exclusão de bens o entendimento de que devia proceder-se à suspensão da instância no processo de inventário assentava nos artigos 1335 e 1350 do anterior CPC. Ora, actualmente vigora o artigo 1092 do CPC (alterado pelo DL 117/2019, de 13/09), sendo outro o entendimento mesmo quanto a exclusão de bens. Por outro lado, aquele acórdão pressupõe a pendência de processo, ou seja, de acção prejudicial, o que não sucede nos presentes autos.

          Não estava pendente nenhuma causa prejudicial que permitisse a suspensão do inventário (artigos 272/1 e 1092/1-a do CPC).

         As questões levantadas pela reclamante – falta de relacionação de um crédito da herança sobre o cabeça-de-casal e, por isso, a sonegação deste crédito – para além de não serem complexas, não eram questões com relevância para a admissibilidade do processo ou a definição de direitos de interessados directos na partilha; delas apenas poderá resultar alteração na composição do acervo dos bens a partilhar; pelo que a suspensão não era possível ao abrigo do art. 1092/1-b do CPC. 

         Visto que a reclamante não punha em causa a existência dos bens que a cabeça-de-casal relacionou, o tribunal devia ter prosseguido com o inventário com vista à partilha para evitar prejuízos para os restantes interessados e, se se viesse a apurar, nos meios comuns – a intentar pela reclamante em prazo que devia ter sido fixado pelo tribunal (devendo previamente ter sido inquirida pelo tribunal para ver se o queria fazer) -, a existência do crédito reclamado, proceder-se-ia a uma partilha adicional (artigos 1092/2-3-4 e 1093 do CPC).

         Acresce que conforme artigo 1093/2 do CPC: A suspensão da instância no caso previsto no número anterior só ocorre se, a requerimento de qualquer interessado ou oficiosamente, o juiz entender que a questão a decidir afecta, de forma significativa, a utilidade prática da partilha.

         E que, segundo o artigo 1105/5 do CPC: Se estiver em causa reclamação deduzida contra a relação de bens ou pretensão deduzida por terceiro que se arrogue titular dos bens relacionados e se os interessados tiverem sido remetidos para os meios comuns, o processo prossegue os seus termos quanto aos demais bens.

         O despacho é nulo por força do art. 615/1-c-d – Os fundamentos estejam em oposição com a decisão […]; O juiz […] conheça de questões de que não podia tomar conhecimento – porque a lei não permitia, perante as circunstâncias do caso (não há questão prejudicial nem complexa), que o juiz suspendesse o inventário e o juiz suspendeu-o e para mais não fixou prazo para a suspensão, quando devia ter prosseguido com o processo para a partilha das 4 verbas relacionadas.

         Termina dizendo que se deve determinar a revogação do despacho recorrido e em consequência, declarar-se nulo o despacho [sic], considerando que não há suspensão da instância, e determinar-se apenas a remessa dos interessados para os meios comuns, quanto a matéria da reclamação à relação de bens, prosseguindo os autos para partilha da herança quanto as verbas relacionadas.

         Pelo meio foi invocando os seguintes acórdãos:

         do TRL de 07/12/2021, proc. 2435/20.3T8OER.L1-7: […] 4 – Dispondo o actual CPC quanto à suspensão da instância do processo de inventário por causa prejudicial no artigo 1092/1-a, sem prejuízo da conjugação, no necessário, com as normas gerais previstas nos artigos 269 e seguintes, quanto ao uso do poder discricionário do julgador na sua determinação, é necessário que o juiz pondere tratar-se ou não de questão de que dependa a definição dos direitos dos interessados directos na partilha, evitando efeitos dilatórios. 5 – Afigura-se com acolhimento actual a doutrina e jurisprudência maioritárias, tiradas na vigência do anterior CPC, considerando-se que, apenas as “questões essenciais” determinam a suspensão da instância por causa prejudicial, por referência àquelas que impliquem “com a admissibilidade do inventário e com a definição dos direitos dos interessados”, excluindo deste círculo, precisamente, situações que se limitam à composição/definição do acervo de bens da herança a partilhar. 6 – Não se verifica prejudicialidade entre a partilha no inventário do património comum do ex-casal, relativo ao casamento em primeiras núpcias do inventariado e o inventário mortis causa, podendo, a circunstância de outros bens virem a integrar o acervo hereditário, solucionar-se através de partilha adicional.

         do TRC de 11/09/2007, processo 48/03.3TBFIG.C1: […] 4. A suspensão do inventário só deve ser ordenada quando os herdeiros demonstrarem haver já recorrido aos meios comuns, por só, então, existir fundamento sério para tal.

         do TRL de 28/04/2016, proc. 359/09.4TBSRQ.L1-2: […] II – No âmbito do incidente de reclamação contra a relação de bens a decisão de remeter os interessados para os meios comuns, por si só, não acarreta a suspensão da instância no processo de inventário até que a questão remetida seja decidida.

         do TRC de 14/06/2022, proc. 1309/20.2T8LRA-A.C1: A remessa dos interessados para os meios comuns quanto aos bens a relacionar no processo de inventário não determina a suspensão do processo, mas implica a exclusão, da relação, dos bens que tiverem sido objecto de reclamação.

         do TRE de 27/04/2017, proc. 1367/10.8TBVNO.E1: […] II – A propósito das questões prejudiciais, contempladas no artigo 1335, o juiz goza da faculdade de determinar a suspensão da instância, até que ocorra a sua decisão definitiva, ao contrário do que acontece com a situação do incidente de reclamação contra a relação de bens, em que o artigo 1350/1, ambos do CPC, não consagra, expressamente, essa possibilidade. III – Tratando-se de uma discussão entre interessados, tendo estes sido remetidos para os meios comuns, não são incluídos no inventário os bens cuja falta se acusou. IV – A suspensão do inventário só deve ser equacionada e eventualmente ordenada quando os herdeiros demonstrarem haver já recorrido aos meios comuns, por só, então, existir fundamento sério para tal.

              Apreciação

              Antes de mais, diga-se que a transcrição integral do sumário do ac. do TRG de 12/04/2007, que é do processo 340/07-2 tal como identificado pelo cabeça-de-casal, invocado na fundamentação da decisão recorrida, é a seguinte: O processo de inventário deve ser suspenso se algum dos interessados reclamar a exclusão de bens nele relacionados e comprovar a pendência de processo comum em que tenha peticionado o reconhecimento da propriedade sobre tais bens, sem prejuízo do deferimento provisório a que se refere o nº 3 do artigo 1350º do CPC.

              Tendo em conta o que resulta dos factos descritos, é assim claro que o ac. do TRG invocado pela decisão recorrida não tinha aplicação ao caso que não trata de uma reclamação para exclusão, nem existe um processo pendente; e, para além disso, na sua parte final o ac. do TRG reportava-se a uma norma que foi substancialmente alterada no regime do processo de inventário introduzido no CPC em 2019.

              Por outro lado, como o tribunal recorrido se apoiou no art. 1092/1-b do CPC, não tem interesse tudo o que o cabeça-de-casal diz sobre os pressupostos do art. 1092/1-a do CPC.

              Por fim, note-se que, do despacho, o cabeça-de-casal só está a recorrer da suspensão do inventário, não da remessa dos interessados para os meios comuns para discutir a existência dos créditos e a questão da sonegação. Assim, seria ilegítimo qualquer juízo deste TRL sobre aquele despacho, sendo, por isso irrelevantes as considerações críticas que o cabeça-de-casal vai fazendo sobre ele.

              Posto isto,

              A reclamante está a acusar a falta de relacionação de dois créditos da herança sobre o cabeça-de-casal e, por isso e para além disso, a sonegação de bens.

              O artigo 1092 do CPC respeita a questões prejudiciais essenciais (nos termos de Miguel Teixeira de Sousa / Carlos Lopes do Rego / António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, O  novo regime do processo de inventário […], Almedina, Junho 2020, páginas 45-46), isto é, daquelas de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição de direitos de interessados directos na partilha (ou como dizem, aqueles autores, de forma mais esclarecedora: a definição da consistência jurídica dos direitos sucessórios dos interessados directos) e o art. 1093 do CPC respeita a todas as outras (“que são aquelas cuja resolução apenas condiciona a determinação do património hereditário a partilhar.”)

              Uma reclamação da existência de outros bens não diz respeito a questões de que dependa a admissibilidade do processo nem à definição de direitos de interessados directos na partilha, pelo que cai no âmbito do art. 1093 do CPC e não no do art. 1092 do CPC.

              Já a questão da sonegação de bens é uma questão que tem a ver com a definição dos direitos dos interessados directos na partilha: se se provar que o herdeiro sonegou bens da herança, ocultando dolosamente a sua existência, ele perde em benefício dos co-herdeiros o direito que pudesse ter a qualquer parte dos bens sonegados (art. 2096 do CC). Portanto, o património comum passa a ter um valor superior (pois que passa a integrar bens que não tinham sido relacionados) mas a partilha dele far-se-á de forma diferente quanto ao valor dos bens que tinha faltado relacionar, pois que aquele que sonegou bens não pode ter nele qualquer parte, pelo que a proporção dele no valor total da herança diminui necessariamente e a dos outros herdeiros aumenta também necessariamente (no sentido de que a sonegação levanta uma questão prejudicial essencial, veja-se o ac. do TRL de 29/06/2011, proc. 2041/08.0TBOER.L1-7: I – Tendo o juiz remetido as partes para a discussão nos meios comuns relativamente a uma questão susceptível de influir na definição dos direitos dos interessados na partilha, tal implicará, à partida, a suspensão do processo de inventário, nos termos do art. 1335/1 do CPC. II -Tal suspensão justificar-se-á ainda, em princípio, pela pendência de acção crime que tenha por objecto a prática de factos integradores do conceito de sonegação de bens previsto no art. 2096, do CC. O acórdão foi referido pelos autores e obra citados acima, pág. 46, precisamente a propósito de situações que cabem na hipótese do art. 1092/1 do CPC, isto é, das questões prejudiciais essenciais, sendo que nesta questão o regime processual não foi modificado).

              Temos assim, que as questões levantadas pela reclamante eram duas, uma necessariamente subsequente à outra, estando a primeira abrangida por normas (dos arts. 1093 e 1105 do CPC) que prevêem um regime de suspensão diverso do que é previsto nas normas que abrangem a segunda (do art. 1092 do CPC).

              Artigo 1093 do CPC:

         1 – Se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados directos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns.

         2 – A suspensão da instância no caso previsto no número anterior só ocorre se, a requerimento de qualquer interessado ou oficiosamente, o juiz entender que a questão a decidir afecta, de forma significativa, a utilidade prática da partilha.

              Artigo 1105 do CPC

         1 – Se for deduzida […] reclamação […] são notificados os interessados, podendo responder […]

         2 – As provas são indicadas com os requerimentos e respostas.

         3 – A questão é decidida depois de efectuadas as diligências probatórias necessárias, requeridas pelos interessados ou determinadas pelo juiz, sem prejuízo do disposto nos artigos 1092.º e 1093.º

         4 – A alegação de sonegação de bens, nos termos da lei civil, é apreciada conjuntamente com a acusação da falta de bens relacionados, aplicando-se, quando julgada provada, a sanção estabelecida no artigo 2096.º do Código Civil.

         5 – Se estiver em causa reclamação deduzida contra a relação de bens […] e se os interessados tiverem sido remetidos para os meios comuns, o processo prossegue os seus termos quanto aos demais bens.

              Portanto, quando estiver em causa uma reclamação de falta de relacionação de bens, o juiz deve decidir a reclamação da falta (art. 1105/3 do CPC), excepto se “a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes”, caso em que “o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns” (art. 1093/1 do CPC).

              Neste caso, o processo prossegue quanto aos demais bens (art. 1105/5 do CPC). Apenas no caso de um interessado requerer ou o juiz oficiosamente entender que a questão a decidir “afecta, de forma significativa, a utilidade prática da partilha” é que o processo pode ser suspenso (art. 1093/2 do CPC).

              Ora, no caso, a suspensão não foi requerida e o juiz não fez nenhum juízo no sentido de que a questão a decidir “afecta, de forma significativa, a utilidade prática da partilha”, pelo que a instância, por aqui, não podia ter sido suspensa.

              No caso, no entanto, cumulava-se à reclamação da falta de relacionação, uma alegação de sonegação de bens que é, como já se viu, uma questão prejudicial essencial, à qual se aplica o disposto no art. 1092 do CPC, não interessando ao caso a hipótese da alínea (a) do art. 1092/1-a porque não há uma causa pendente, nem a da alínea (c) porque não há nenhum nascituro em causa.

              Artigo 1092 do CPC:

          1 – Sem prejuízo do disposto nas regras gerais sobre suspensão da instância, o juiz deve determinar a suspensão da instância:

          […] b) Se, na pendência do inventário, forem suscitadas questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição de direitos de interessados directos na partilha que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas;

             […]

           2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, o juiz remete as partes para os meios comuns, logo que se mostrem relacionados os bens.

           3 – O tribunal pode, a requerimento de qualquer interessado directo, autorizar o prosseguimento do inventário com vista à partilha, sujeita a posterior alteração em conformidade com o que vier a ser decidido:

            a) Quando os inconvenientes no diferimento da partilha superem os que derivam da sua realização como provisória;

            b) Quando se afigure reduzida a viabilidade da causa prejudicial;

           c) Quando ocorra demora anormal na propositura ou julgamento da causa prejudicial.

         4 – À partilha, realizada nos termos do número anterior, são aplicáveis as regras previstas no artigo 1124.º relativamente à entrega aos interessados dos bens que lhes couberem.

              Neste caso, como se vê, o processo deve ser suspenso, quando o juiz entenda que atenta a natureza da questão prejudicial essencial ou a complexidade da matéria de facto que lhe está subjacente, não deve ser incidentalmente decidida (art. 1092/1-b do CPC). Devendo então remeter os interessados para os meios comuns logo que se mostrem relacionados os bens (art. 1092/2 do CPC).

              Ora, tendo o juiz decidido que não podia conhecer da reclamação da falta de bens – e não há recurso quanto a essa parte do despacho – não podia, logicamente, conhecer da questão da alegação da sonegação desses bens.

              Assim sendo, devendo considerar-se (pág. 47 da obra citada – esta consideração não tem que ser expressa no despacho, pode resultar implicitamente dele, como no caso: não tendo sido reclamado nada quanto aos bens relacionados, o juiz não tinha que dizer expressamente que eles se mantinham relacionados) já relacionados os bens (as 4 verbas não postas em causa), o juiz tinha que suspender o inventário.

              Isto sem prejuízo de qualquer dos interessados requerer (ou mesmo oficiosamente o juiz decidir, segundo os autores dizem na página 48 da obra citada: “sem prejuízo da eventual iniciativa oficiosa do tribunal, tomada ao abrigo do poder de gestão processual”), logo no momento, “o prosseguimento do inventário com vista à partilha, sujeita a posterior alteração em conformidade com o que vier a ser decidido,” quando considerar que o caso cai nalguma das hipóteses do n.º 3 do art. 1092 do CPC.

              Ora, naturalmente, isto faz-se em requerimento (que deverá observar o que os autores e obra citados dizem naquela página) para o tribunal de 1.ª instância e não em recurso para o tribunal da 2.ª instância.

                                                                 *

              Em suma, não tendo sido posto em causa o despacho que remete os interessados para os meios comuns quanto à reclamação da falta de bens na relação e à alegação da sonegação de bens, a suspensão do processo impõe-se porque a alegação da sonegação de bens tem a ver com a definição dos direitos dos interessados directos na partilha (art. 1092/1-b do CPC) e este TRL não está a apreciar um despacho que tenha decidido um requerimento feito ao abrigo do art. 1092/2 do CPC, nem tem dados para subsumir o caso nalguma das hipóteses do art. 1092/3 do CPC.

              Tudo o que antecede demonstra que não há qualquer nulidade no despacho em causa: nem os fundamentos estão em oposição com o decidido nem o juiz conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.          

              O cabeça-de-casal perde as suas custas de parte do recurso.

              Lisboa, 20/04/2023

              Pedro Martins

              1.º Adjunto 

              2.º Adjunto