Processo do Juízo Central Cível de Cascais

             

              Sumário:

              I – Se da decisão a proferir num processo pode resultar a legalização das obras cuja demolição a autora pretende obter com a dedução de outra acção com fundamento na ilegalidade dessas obras, tem de se entender que “se aquela acção proceder, a situação jurídica que constitui a causa de pedir desta acção altera-se, com influência na decisão a proferir, pelo que estamos perante um caso de dependência interprocessual que pode justificar a suspensão da instância, nos termos do artigo 272/1 do CPC.”

              II – Revogado um despacho que tinha indeferido a suspensão com base no entendimento de que inexistia causa prejudicial, entendendo-se agora, pelo contrário, que existe causa prejudicial, o tribunal de recurso deve, em princípio, limitar-se a devolver “ao tribunal recorrido o uso legal dos poderes discricionários que a lei lhe concede.”

 

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

 

              A 19/03/2021, a G-SA, intentou uma acção comum contra I-Lda, pedindo que a ré seja condenada (i) a demolir totalmente as obras realizadas no seu imóvel sem controlo prévio e em violação das normas e prescrições urbanísticas aplicáveis, por serem insusceptíveis de legalização; (ii) a repor o seu imóvel (terreno e edificação original) nas condições em que se encontrava antes do início das obras ou trabalhos ilegais, nos exactos termos das licenças que hajam sido validamente emitidas pela Câmara Municipal para o imóvel da ré; e (iii) a pagar à autora, a título de indemnização por danos patrimoniais sofridos, 229.816,98€.

              A ré, na contestação, veio, entre o mais, requerer a suspensão da instância por estar pendente causa prejudicial. Alega para tanto, entre o mais e para o que agora importa, que a AB, a ré e os proprietários de outras 30 vilas do Lote, propuseram acção [1737/21.6T8CSC], que corre termos, onde pediram a condenação da G no cumprimento das obrigações a que se vinculou nos exactos termos dos protocolos que celebrou com a AB, em especial que seja proferida sentença que produza os efeitos das declarações negociais da G e que, por via disso: (i) decrete a subscrição pela G do pedido de informação prévia apresentado pela AB e (ii) decrete a subscrição pela G do contrato-promessa de transferência de edificabilidade nos termos que constam do documento 54 junto com um procedimento cautelar apenso; a ré entende que esta acção é causa prejudicial da presente acção, e que o incumprimento de obrigação que é subjacente ao pedido é causa impeditiva, ou mesmo extintiva, do direito que a G se arroga e por isso excepção de direito material que invoca nesta acção e que deve conduzir de imediato à absolvição da ré.

              Por despacho de 18/11/2022 tal requerimento foi indeferido com base, no essencial, no seguinte:

         “[…] continua a não se descortinar a existência de razão suficientemente idónea para sustentar a existência de uma relação de prejudicialidade entre os presentes autos e a acção referida tendo por referência os pedidos formulados em cada uma das acções, sendo certo que no que respeita a alegado incumprimento dos acordos celebrados, na presente acção será objecto de apreciação enquanto matéria de excepção.

         Por outro lado, a causa de pedir da Autora no âmbito dos presentes autos, assenta em responsabilidade civil extracontratual, enquanto a causa de pedir no processo supramencionado assenta da responsabilidade civil contratual.

         Pelo que se nos afigura que não existe uma relação de prejudicialidade entre a causa de pedir da acção referida principal e a presente acção referida como dependente.

         Não há, pois, dependência da decisão dos presentes autos da acção referida, pelo que se indefere a requerida suspensão da instância por causa prejudicial.”

              A ré I recorreu de tal despacho por entender que existe uma relação de prejudicialidade entre a acção (prejudicial) que invocou e a acção destes autos (acção dependente) e que, por isso, o requerimento de suspensão devia ter sido deferido (art. 272/1 do CPC).

              A autora, G, não contra-alegou.

              Por decisão singular de 18/03/2023, foi decidido revogar o despacho recorrido e, em substituição do mesmo decidiu-se que a acção 1737/21 é uma causa prejudicial à acção 831/21 e que é com base neste pressuposto que o juiz da causa deve agora decidir suspender ou não a instância (art. 272/1 do CPC). As custas de parte, do recurso, ficaram por conta da autora, que é quem perde o recurso.

                                                                 *

              A autora, G, veio então requerer que sobre a matéria da decisão singular recaia acórdão que a revogue e julgue o recurso improcedente e, em consequência, mantenha o despacho recorrido por não existir causa prejudicial, determinando o prosseguimento dos presentes autos, terminando o requerimento com as seguintes conclusões:

         5 – Conforme acórdãos proferidos por este TRL (nos processos 826/21.1T8CSC-A.L1 e 806/21.7T8CSC-A.L1 – não publicados): “IV – Uma acção na qual se pede a condenação da ré a subscrever um pedido de informação prévia e um contrato-promessa de transferência de área edificável, não constitui causa prejudicial de outra acção intentada 2 meses antes (em que a dita ré é autora), na qual se peticiona – contra um dos co-autores naquela – a demolição de obras tidas como clandestinas e uma indemnização pelo dano de desvalorização que estas lhe provocaram nos imóveis de sua propriedade.”

         6 – No caso em análise, na alegada acção prejudicial, a I em conjunto com demais 47 co-autores, entendem que a G incumpriu com uma alegada obrigação de apresentar em conjunto com a AB, associação de que fazem parte, um pedido de informação prévia diante da Câmara Municipal, bem como incumpriu com a alegada obrigação de celebração de um contrato-promessa para a transferência de edificabilidade.

         7 – Por seu turno, a discussão que está em julgamento nos presentes autos é bastante distinta desde logo porque a pretensão da G/autora tem como fundamento o ilícito urbanístico verificado no imóvel de que é proprietária a I, o qual tem uma edificação ilegal de 171,2m2.

         8 – As duas acções radicam de factos distintos, a acção em que a I sustenta a alegada prejudicialidade tem como fundamento um alegado incumprimento contratual da G, ao passo que os presentes autos versam sobre a existência manifesta de um ilícito urbanístico no imóvel da propriedade da I e o respectivo dano que tal facto causa na sua espera patrimonial.

         9 – Na presente acção e em sede de contestação a I vem alegar o incumprimento dos protocolos celebrados por parte da G, incumprimento esse que serve de fundamento ao pedido na acção intentada pela I, pelos restantes proprietários da Quinta e pela associação de moradores, invocando que o mesmo é causa extintiva do direito de que a G se arroga na presente acção.

         10 – Tese essa que não foi colhida no despacho recorrido, contudo, não assistindo assim qualquer razão à I uma vez que, conforme transparece do protocolo complementar junto à petição inicial como doc. 6, não é a subscrição pela G do pedido de informação prévia, nem a celebração dos contratos-promessa de edificabilidade que permitirá a legalização das obras ilegais feitas pelos autores daquela acção, uma vez que a mesma sempre necessitaria da respectiva autorização e aprovação por parte da Câmara Municipal.

         11 – Por outro lado, como também resulta do despacho recorrido, a G não fundamenta a presente acção no incumprimento, pela I, dos protocolos celebrados, mas sim na realização, por parte da I, de obras ilegais no imóvel de que é proprietária, as quais constituem um perigo para o património da G, e que assim lhe provocam danos patrimoniais.

         12 – Resulta assim claro que as acções em causa têm fundamentos diferentes: (i) a acção intentada pela I juntamente com os restantes proprietários da Quinta e com a associação de moradores tem como fundamento o alegado incumprimento contratual, por parte da G, dos protocolos celebrados entre as partes, (ii) a presente acção tem como fundamento a realização ilícita, por parte da I, de obras no respectivo imóvel e os danos que isso provoca na esfera jurídica da G.

         13 – Tendo andado bem o Tribunal a quo quando conclui no despacho recorrido que: [… já transcrito acima – TLR]

         14 – Em suma, não existe entre as duas acções uma relação de dependência nos termos da qual a decisão a proferir na acção entendida como prejudicial condicione a decisão a proferir nos presentes autos isto porque a mesma não vai, ainda que hipoteticamente dê razão à I e demais autores, determinar a legalidade das obras ilegais realizadas pela I uma vez que essa está dependente da aprovação e licenciamento pela Câmara Municipal, nem, muito menos, extinguir o direito da G à indemnização pelos danos causados.”

              A I, em resposta, reitera a defesa da existência de causa prejudicial e lembra que um dos acórdãos invocados pela G foi revogado e substituído por outro do STJ que considerou existir causa prejudicial e que o outro acórdão do TRL está pendente de recurso; refere ainda que, entretanto, foram proferidos mais dois acórdãos do TRL neste mesmo sentido.

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              Questão a decidir: se o indeferimento do requerimento [de suspensão por inexistência de causa prejudicial] da I está errado.

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              A existência de causa prejudicial já foi decidida nas seguintes acções idênticas ao caso dos autos (pelo menos os 5 primeiros já transitados em julgado):

              Ac. do TRL de 14/07/2022, proc. 803/21.2T8CSC-A.L1

              Ac. do TRL de 10/11/2022, proc. 822/21.9T8CSC-A.L1

              Ac. do TRL de 24/11/2022, proc. 825/21.3T8CSC-A.L1

              Ac. do STJ de 02/03/2023, proc. 806/21.7T8CSC-A.L1.S1 (não publicado mas junto aos autos pela I), que revogou o ac. do TRL que tinha decidido em sentido contrário.

              Ac. do TRL de 16/03/2023, proc. 804/21.0T8CSC-A.L1.    

              Ac. do TRL de 23/03/2023, 821/21.0T8CSC-A.L1 (não publicado mas junto aos autos pela I).

              Ac. do TRL de 23/03/2023, proc. 832/21.6T8CSC-A.L1 (não publicado mas junto aos autos pela I).              

              Ac. do STJ de 09/05/2023, proc. 826/21.1T8CSC-A.L1.S1, que revogou o outro ac. do TRL que tinha decidido em sentido contrário (consultado através do webmail.mj.pt).

              Portanto, quanto à questão da prejudicialidade há, neste momento, nos tribunais de recurso, praticamente uma situação de unanimidade de posições quanto à existência da relação de prejudicialidade.

              Parafraseando o acórdão do STJ: da decisão a proferir no processo n.º 1737/21.6T8CSC (causa prejudicial) pode resultar a legalização das obras cuja demolição a autora pretende obter com a dedução da presente acção (causa dependente), com fundamento na ilegalidade dessas obras. Assim, se aquela acção proceder, a situação jurídica que constitui a causa de pedir desta acção altera-se, com influência na decisão a proferir, pelo que estamos perante um caso de dependência interprocessual que pode justificar a suspensão da instância, nos termos do artigo 272/1 do CPC.

              Tendo isto sido já dito de 7 maneiras diferentes, considera-se desnecessário estar agora a dizê-lo de forma diferente, remetendo-se para o que já foi dito naqueles acórdãos, alguns deles publicados, tendo a G conhecimento de todos eles (por ser parte em todas as acções).

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              Tendo a decisão recorrida decidido com base na inexistência da relação de prejudicialidade e entendendo-se que, pelo contrário, ela existe, tem de se concluir que a decisão recorrida está errada e por isso deve ser revogada.

              Ou seja, não se está perante uma decisão de indeferimento do pedido de suspensão com base na inconveniência da suspensão tendo em vista os fins do processo, caso em que, porque se estaria perante um despacho proferido no uso de um poder discricionário, seria uma decisão recorrível: artigos 272/1, 152/4, 630 e 644/2-c, a contrario, do CPC.

              Por fim, como já foi dito no ac. do TRL 822/21.9T8CSC.L1, “Revogado o despacho com base na existência de causa prejudicial, o tribunal de recurso deve limitar-se a devolver “ao tribunal recorrido o uso legal dos poderes discricionários que a lei lhe concede.”

              Isto é: a revogação do despacho, agora com base na conclusão contrária à do despacho recorrido, ou seja, da verificação da existência de uma causa prejudicial, coloca de novo a questão de saber se deve ou não suspender-se a instância, com base na conveniência dessa decisão para os fins do processo.

              Ora, quanto a este novo juízo (da conveniência da suspensão), a formular pela primeira vez, este TRL deve limitar-se a devolver “ao tribunal recorrido o uso legal dos poderes discricionários que a lei lhe concede” (Castro Mendes / Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, vol. II, CIDP/AAFDL, 2022, págs. 179-180), embora se possam configurar situações em que o TRL se possa substituir ao tribunal recorrido (art. 665 do CPC). No caso, tal não se justifica minimamente, dada a pendência de cerca de 4 dezenas deste tipo de processos: entende-se que esse juízo discricionário, irrecorrível, baseado naquela conveniência, deve ser feito pelo próprio tribunal recorrido que melhor sabe o que é que se passa com a acção e com os outros processos conexos.

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              Esclareça-se, por fim, que, ao contrário do que se defende em Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Pires de Sousa, CPC anotado, vol. I, Almedina, 2018, pág. 314, anotação 2, não é pressuposto da possibilidade de suspensão que a acção prejudicial tenha sido instaurada em primeiro lugar – neste sentido, por exemplo, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 1.º, 4.ª edição, Almedina, 2021 (reimpressão de 2017), pág. 551, e Teixeira de Sousa, CPC online, IG, L 412013, art. 1.º a 361.º (vs. 2022.09).pdf, anotação 3 ao art. 272.

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              Pelo exposto, mantem-se a decisão singular reclamada, que revoga o despacho recorrido e, em substituição do mesmo, decide que a acção 1737/21 é uma causa prejudicial à acção 831/21 e que é com base neste pressuposto que o juiz da causa deverá decidir suspender ou não a instância (artigo 272/1 do CPC), com custas do recurso pela G.

              Custas da reclamação pela G, que se fixam em 1 UC de taxa de justiça (artigos 527, nºs 1 e 2 do CPC e 7.º, n.º 4, do RCP e tabela II, penúltima linha, anexo ao mesmo) e levando-se em conta a taxa já paga como impulso necessário da reclamação.

              Lisboa, 25/05/2023

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto