Processo do Juízo Central Cível de Cascais – Juiz 4

              I – Se o proprietário pede que o réu seja condenado a entregar-lhe o seu (dele, autor) prédio (alegando os factos respectivos), porque o réu o está a ocupar sem título – dado que o arrendamento feito com o pai do réu caducou e não se lhe transmitiu –, está-se perante uma acção de reivindicação (art. 1311/1 do CC) e não de despejo (art. 14 do NRAU), independentemente do nome que lhe tiver sido dado pelo autor; acção que improcederá se o réu conseguir provar que o contrato de arrendamento se lhe transmitiu: art. 1311/2 do CC.

              II – “Estando em causa a apreciação dos efeitos operados pela morte do arrendatário na relação contratual, no sentido de averiguar se ocorreu a caducidade do contrato de arrendamento ou a transmissão da posição contratual do falecido, é aplicável o regime legal em vigor à data do óbito.”

              III – Nos termos conjugados dos artigos 59/1, 26/1, 27 e 28/1 do NRAU, a todos os contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do NRAU, aplica-se, em matéria de transmissão por morte, o disposto no artigo 57 do NRAU, com a redacção em vigor à data do óbito, caso não tenham transitado para o NRAU.

             

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

              A e AB intentaram contra R, “ao abrigo do disposto nos artigos 1083.º, n.ºs 1 e 2 e 1084.º e n.º 1 do Código Civil, acção declarativa de despejo sob a forma comum”, pedindo que fosse (a) declarada a resolução do contrato de arrendamento, por morte do arrendatário, de uma fracção autónoma, (b) declarada a ocupação ilegal do imóvel por banda do réu, e (c) o réu condenado a entregar imediatamente imóvel às autoras, devoluto de pessoas e bens. Deram à acção o valor de 50.506,40€ correspondente ao valor tributário do imóvel.

              Alegaram, em síntese (e apenas na parte que ainda importa), serem, respectivamente, usufrutuária e proprietária de raiz da fracção autónoma a que se refere o pedido, a qual, em 01/07/1975, foi dada de arrendamento, para habitação, ao pai do réu, mediante contrato escrito, no qual foi estipulada a proibição da realização de quaisquer obras no locado sem a autorização escrita do senhorio; tomaram conhecimento, por visita que realizaram ao imóvel, que o pai do réu realizou diversas obras e alterações no imóvel, sem que tivesse qualquer autorização para o efeito e que desvalorizaram o imóvel, pelo que iniciaram o processo de resolução do contrato com esse fundamento; no contexto do envio de uma notificação judicial avulsa com esse propósito, foi, contudo, apurado pelo agente de execução que o arrendatário havia falecido há diversos meses, sem que o réu o tivesse comunicado, pelo que enviaram ao réu uma carta a notificá-lo para desocupar o locado, no prazo de 30 dias; o réu não o fez, tendo respondido por carta, só aí acompanhada por certidão de óbito do arrendatário, ter direito à transmissão do arrendamento, quando não o comunicou atempadamente, nem tem qualquer razão para tal, tendo o contrato de arrendamento caducado (dizem que à caducidade é aplicável a lei em vigor à data do óbito e invocam os artigos 1106 e 1107 do CC, na redacção da Lei 13/2019, de 12/02).

              O réu veio apresentar contestação na qual, em síntese e só na parte que ainda importa, invocou diversas excepções, incidentes e questões prévias, nomeadamente de prescrição (do direito de resolução por obras – pressupondo que as autoras estavam a exercitar este direito), suspensão da instância (por falta de cumprimento do imposto de transmissão), ilegitimidade activa (haveria outra usufrutuária, a locadora era uma sociedade, não há litisconsórcio necessário ou voluntária entre a proprietária e a usufrutuária), erro na forma de processo [a acção foi proposta como de despejo, mas devia ser de reivindicação, face aos pedidos b e c] e valor da causa (sendo de despejo, o valor devia ser de apenas 1939,50€ = 30 vezes o valor das rendas, que é de 64,65€/mês: art. 298/1 do CPC); excepcionou, sem que qualificasse assim a sua defesa, ter-se transmitido para si o contrato de arrendamento por viver em economia comum há mais de um ano antes do respectivo óbito com o seu pai/primitivo arrendatário (com base no art. 1106 do Código Civil); e que as autoras, após terem tomado conhecimento das circunstâncias que justificariam a caducidade do arrendamento, conformaram-se com a situação e continuaram a receber as rendas, ainda que, tal como anteriormente, sem emitirem recibos e aceitaram, inclusive, o aumento de renda por si feito; peticionou, a título de reconvenção, a condenação das autoras no pagamento de 4.120€, a título de indemnização, acrescido de juros de mora, e ainda no valor a fixar, por peritagem, a título de benfeitorias, acrescido, após determinado, de juros à taxa legal.

              As autoras vieram replicar, pronunciando-se, desde logo, quanto às mencionadas excepções (o fundamento da acção não são as obras, mas a caducidade; é lapso de escrita o referirem-se à resolução do contrato no pedido; as autoras são, respectivamente, usufrutuária 2/3 (a 1.ª) e usufrutuária de 1/3 e proprietária de raiz (a 2ª) da fracção autónoma, pelo que têm legitimidade activa para a acção; a acção é de despejo e não de reivindicação e o erro não seria causa de absolvição da instância porque ambas as acções são comuns) e questões prévias suscitadas na contestação, requerendo, quanto ao valor da causa, a sua correcção (para 30 vezes o valor da renda, como indicado pelo réu, no pressuposto de que é uma acção de despejo); quanto à transmissão do arrendamento, impugnaram o alegado pelo reu e argumentam com as regras dos artigos 1106 e 1107 do CC; impugnaram ainda os factos alegados como base da reconvenção.

              O réu veio requerer que se considerasse não escrita a parte da réplica das autoras que extravasa a resposta à reconvenção, por ser, nessa parte, extemporânea.

              A 24/06/2022, foi proferido o seguinte despacho, na parte que importa:

         “Compulsados os autos, […] antes de mais verifica-se terem as autoras, no seguimento do incidente de valor suscitado na contestação, aludido na réplica a um alegado lapso na indicação do valor da causa, requerendo a sua rectificação de 50.506,40€ (valor com base foi liquidada a taxa de justiça) para 1.939,50€.

         Ora, impondo-se proceder, antes de mais, à fixação do valor da causa e decidir o respectivo incidente, nos termos dos artigos 305 e 308 do CPC, importa, ter em consideração a possibilidade do tribunal entender que a presente acção, fundando-se num pedido, objecto de rectificação, de declaração de reconhecimento da caducidade do contrato de arrendamento por óbito do arrendatário, dever ter como valor da causa o valor do imóvel, nos termos do art. 302 do CPC, e não o valor calculado nos termos do art. 298/1 do CPC, por referência ao conceito de acção de despejo constante do disposto no art. 14/1 da Lei n. 6/2006, de 27/02.

         Assim, notifique as autoras para, no prazo de 10 dias, virem esclarecer se pretendem o prosseguimento dos autos com fixação do valor da causa com base neste critério e, em caso afirmativo, virem declarar qual o valor do imóvel cuja entrega é peticionada, nomeadamente, se mantém o valor inicialmente alegado com base no valor patrimonial constante da caderneta predial já junta aos autos.

         […]”

              A 05/07/2022, as autoras vieram dizer o seguinte:

         1\ O fundamento legal para a presente acção é a caducidade do contrato de arrendamento por morte do arrendatário, […], nos termos da alínea d do artigo 1051 do CC.

         2\ Apenas com a deslocação do AE ao imóvel, para entrega da referida notificação, ficaram as autoras a saber que o arrendatário já teria falecido e que o imóvel arrendado era ocupado pelo filho do arrendatário, réu nos presentes autos.

         3\ Daí que, o fundamento fáctico da presente acção seja a morte do arrendatário, […], ocorrida em 13/10/2020, o que consubstanciou o pedido das autoras, isto que, a emissão da declaração de caducidade do contrato de arrendamento, por morte do arrendatário, com a consequente desocupação e entrega do imóvel, nos termos dos artigos 1051 e 1081, ambos do CC.

         4\ Por ser este o pedido, na petição inicial deram como valor à acção o valor patrimonial do imóvel e que decorre da caderneta predial – 50.506,40€.

         5\ A acção de despejo é o meio processual adequado para fazer valer a pretensão das autoras.

         6\ Sendo a caducidade uma forma de extinção do contrato de arrendamento, e não estando em causa a propriedade do imóvel, é apropriada a acção de despejo e não a acção de reivindicação.

         7\ Ora, e aqui chegados, foi o facto deste tipo de acção ser denominada acção de despejo que “confundiu” as autoras, quando analisaram o artigo 298/1 do CC, tendo, por isso entendido que se tratava de um lapso.

         8\ Isto porque, sendo uma acção de despejo, o valor a ser atribuído deve ser calculado nos termos do artigo 298/1 do CC.

         9\ Porém, e porque na acção ajuizada o que se peticiona é a declaração de reconhecimento da caducidade do contrato de arrendamento por óbito do arrendatário, e consultada diversa jurisprudência, constata-se, sem margem para dúvidas, que o valor a ser dado à causa é o de 50.506,40 €, de acordo com o disposto no art. 302 do CPC.

         10\ Requer-se, pois, que os autos prossigam com fixação do valor da causa com base no critério referido no ponto 9 supra, devendo ser atribuído o valor de 50.506,40€, que é o valor patrimonial do imóvel.”

              A 29/09/2022, determinou-se que se tomasse “em consideração a indicação rectificativa do valor da causa atribuído pelas autoras” e marcou-se uma audiência prévia, com os fins previstos nas alíneas (a), (b) – eventual conhecimento de mérito do pedido de caducidade do direito de arrendamento e transmissibilidade para o réu –, (c), (d), (f) e (g) do art. 591/1 do CPC.

              Na audiência prévia de 26/10/2022, depois da tentativa de conciliação,

         “foi discutido pelas partes os termos do litígio, ao abrigo do disposto no art. 591/1-b do CPC, tendo pelo Sr. juiz sido proferido o seguinte despacho de aperfeiçoamento:

         No que se refere à pretensão das autoras, atenta a subsunção jurídica a que importa proceder e tendo sido as partes convocadas para a presente audiência prévia com a advertência da possibilidade de conhecimento imediato do pedido de caducidade do direito de arrendamento transmissível para o réu, são as autoras convidadas a aperfeiçoar a sua petição inicial no que se refere ao contrato de arrendamento em causa nos autos ter transitado para o NRAU considerando os fundamentos de transmissibilidade do arrendamento.

         Já no que se refere à pretensão reconvencional deduzida pelo réu/reconvinte, é o mesmo convidado a aperfeiçoar a sua reconvenção […]

         Concede-se às partes o prazo de 10 dias para o referido aperfeiçoamento, seguindo-se outros 10 dias para resposta e designa-se para continuação da presente audiência prévia o dia […]

         Notifique ainda as partes, expressamente, nos termos do art. 3/3 do CPC para se pronunciarem quanto à possibilidade de na altura ser conhecimento de imediato os pedidos formulados na petição inicial, nomeadamente, o de caducidade do arrendamento por inexistência de fundamento para a sua transmissibilidade.”

              A 01/11/2022, o réu fez o seguinte requerimento:

         1.º – Conforme previamente determinado, no dia 26 […] iniciou-se a Audiência Prévia referente ao Processo supra identificado

         2.º – Sendo proferido despacho em que, entre outros, foi ordenada a sua continuação a 5 […]

         3.º- E ordenadas iniciativas processuais.

         4.º – Tendo sido ditado, não permitiu total perceptibilidade, aguardando o réu, pela respectiva acta – previsivelmente, segundo o Senhor Funcionário, nos dois dias seguintes.

         5.º- Certamente por alguma dificuldade tecnológica, como resulta do documento junto – print screen de hoje 1.11.2022 às 18:03 h, – a mesma ainda não se encontra na plataforma Citius.

         Pelo exposto, requer que se digne ordenar a publicação da acta, devendo os prazos iniciarem-se, não na data da audiência, mas, nos termos processuais, após publicação.

              A 07/11/2022, as autoras apresentaram o seguinte articulado, que se transcreve na parte que interessa:

         1\ O contrato de arrendamento em causa nos presentes autos foi celebrado em 01/07/1975, antes da vigência do Regime de Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo DL 321-D/90, de 15/10.

         2\ Nos termos do NRAU, aprovado pela Lei 6/2006 de 27/02/, aos contratos celebrados antes da vigência do RAU, aplicar-se-ão os artigos 27 e seguintes da Lei 6/2006.

         3\ Estando em causa a transição do contrato de arrendamento, importa referir o artigo 30 da Lei 6/2006, que estabelece que “A transição para o NRAU e a actualização da renda dependem de iniciativa do senhorio (…)”.

         4\ Ora, as autoras, na qualidade de senhorias, não comunicaram ao arrendatário, […], qualquer intenção de transição do contrato de arrendamento para o NRAU ou, sequer, de actualização da renda,

         5\ que, refira-se, sempre se manteve em valores muito inferiores ao valor de mercado nas últimas décadas.

         6\ Assim, não estando preenchida a condição necessária para a transição do contrato de arrendamento para o NRAU, isto é, a manifestação da intenção por parte das senhorias,

         7\ deverá considerar-se que o contrato de arrendamento em causa não transitou para o NRAU.

         8\ Não tendo o contrato em causa transitado para o NRAU, aplicar-se-á o artigo 57 da Lei 6/2006, a respeito da transmissão por morte, nomeadamente o seu número 1: […]”

         9\ Não se verifica, no presente caso, nenhuma das situações de facto mencionadas no artigo 57/1 do referido diploma,

         10\ não existindo, assim, direito à transmissão do arrendamento para o réu, por morte do arrendatário, pelo que,

         11\ deverá ser declarada a caducidade do contrato de arrendamento, por morte do arrendatário, […], e, consequentemente, ser declarada a ocupação ilegal por banda do réu, devendo este ser condenado na entrega do imóvel às autoras.

         12\ E, ainda que se entendesse que o contrato de arrendamento objecto dos presentes autos tivesse transitado para o NRAU, o que apenas por mera hipótese académica se concede, sempre se dirá que, à luz do NRAU, não se encontram preenchidos os requisitos para a transmissão do contrato de arrendamento para o réu.

         […]

         Nestes termos […] requer-se que se digne: (a) Declarar o contrato de arrendamento em causa nos presentes autos caduco, por morte do arrendatário, uma vez que, não tendo o contrato de arrendamento transitado para o NRAU, não existe direito à transmissão do arrendamento para o réu, nos termos dos artigos 27, 30 e 57 da Lei 6/2006, de 27/02; (b) Declarar a ocupação ilegal do imóvel por banda do réu; (c) Condenar o réu a entregar imediatamente o imóvel às autoras, devoluto de pessoas e bens; […].

              A 11/11/2022, o réu interpôs recurso do despacho proferido na audiência prévia, […], não só pelo desconhecimento integral do mesmo, bem como do convite ao aperfeiçoamento da PI nele formulado às autoras.

              A 14/12/2022, o réu apresenta uma nova contestação em que, em síntese e na parte que importa, diz: o 2.º § do despacho de 26/04/2022 encerra prognose decisória face às normas em confronto – supra citada Lei 6/2006, de 27/02, versus artigos 1051 e 1081 do CC da PI – que ultrapassa a questão do valor da causa objecto do despacho de aperfeiçoamento, levando as autoras a escreverem o que consta de 6 a 10 do requerimento de 05/07/2022, correspondentemente, da hipótese do tribunal poder vir a adoptar o entendimento da caducidade, “adequação” que acabava de ser feita pelas autoras, o despacho de 29/09/2022 parece concretizar tal vocação ao referir “para a realização da audiência prévia, com os fins previstos nas al. (a), (b) — eventual conhecimento do mérito do pedido de caducidade de arrendamento e transmissibilidade para o réu – […]”; assim, aquele convite ao aperfeiçoamento, no âmbito do questionável “valor da causa”, foi convertido pelas autoras em alteração do pedido assim violando o disposto no art. 260 (Princípio da estabilidade da instância); regista-se a “curiosidade” do actual pedido da alínea ser fundado em argumento negativo – não aplicação das normas invocadas artigos 27, 30 e 57 da Lei 6/2006, de 27/02, assim respondendo ao segundo convite de aperfeiçoamento; afastada a expressa aplicação daquele corpo normativo, apenas poderá ser aplicada a, norma imperativa, art. 1106 do CC, sendo que, só após o julgamento, resultará provada ou não a primeira questão [preenchimento da previsão do art. 1106 do CC], já que, quanto à segunda [aplicação do art. 1107 do CC] não é, per si, fundamento de “caducidade”.

              A 15/12/2022, o réu apresenta reconvenção aperfeiçoada, que termina do mesmo modo que a anterior.

              As autoras replicam de novo, só quanto à reconvenção aperfeiçoada.

              O recurso de 11/11/2022 não foi admitido por despacho de 06/02/2023 [suprido por despacho de 10/03/2023 quanto a custas, que foram postas a cargo do réu], confirmado por decisão singular do TRL de 12/07/2023, confirmada por acórdão da conferência de 26/10/2023, porque o despacho de aperfeiçoamento, mesmo que seja um segundo despacho de aperfeiçoamento, não admite recurso (art. 590/7 do CPC: “não cabe recurso do despacho de convite ao suprimento de irregularidades, insuficiências ou imprecisões dos articulados”).

              Na audiência prévia de 06/02/2023, decidiu-se relegar o conhecimento dos pedidos formulados nos autos, de acordo com as diversas soluções plausíveis de direito e a totalidade das excepções deduzidas, para a sentença final (sem prejuízo da tramitação a que os autos foram já sujeitos e da introdução da questão do regime legal aplicável no que se refere à transição do contrato de arrendamento em causa nos autos para o NRAU), por se entender que os autos não contém todos os elementos necessários para o efeito.  De seguida, e com a concordância dos mandatários das partes, tendo em vista evitar a marcação de nova data para a continuação da presente audiência prévia, foi determinado que o despacho saneador seria proferido por escrito.

              A 08/02/2023, foi proferido despacho saneador, em que se admitiu a reconvenção e se decidiu, quanto às excepções arguidas pelo réu com referência ao entendimento de que a presente acção seria de “resolução do contrato de arrendamento”, julgá-las improcedentes, por falta de fundamento e por terem ficado prejudicadas, com a seguinte fundamentação, na parte que interessa:

         […] As autoras vieram responder [às excepções], rectificando o lapso na redacção da al. (a) do pedido por forma a que da mesma fique a constar que é peticionado o reconhecimento da caducidade por morte do arrendatário, por tal corresponder ao instituto jurídico aplicável […]

         […] No decurso dos autos foi proferido despacho inicial a considerar que, baseando-se a acção no pedido rectificado de reconhecimento da caducidade do arrendamento, deveria a acção corresponder a uma acção de reivindicação com o valor da causa correspondente ao bem reivindicado, tendo sido admitida a rectificação do valor atribuído à acção em consonância com o entendimento então proferido.

         Resulta, por conseguinte, dos autos que as mencionadas excepções deduzidas pelo réu, em face da possibilidade de estar em causa um pedido de resolução do contrato de arrendamento, deixaram de fazer sentido e de ter fundamento para a sua arguição, face à circunstância de ter sido esclarecido que a causa de pedir da acção é a caducidade do contrato de arrendamento e a reivindicação do imóvel.

         Na verdade, decorrendo da leitura da petição inicial e da sua interpretação, à luz dos critérios consagrados nos artigos 236 e seguintes do CC e aplicáveis aos articulados, que o que as autoras pretendem [é] o reconhecimento da cessação do contrato de arrendamento por morte do locatária, com a consequente entrega do imóvel por parte do réu que se encontra a ocupar o mesmo, alegadamente, sem título para o efeito, carecem de justificação a arguição das mencionadas excepções.

         Desde logo, a excepção de caducidade pelo decurso do prazo para invocar o fundamento de resolução do contrato de arrendamento pela realização de benfeitorias, mostra-se inaplicável nos autos atendendo a que o pedido é de reconhecimento da caducidade, sendo certo que decorre do contexto do respectivo articulado que as alusões na petição inicial à realização de obras ilícitas no locado apenas servi[ram] para justificar o contexto em que foi conhecida a morte do locatário, sem que as autoras tenham fundado a sua causa de pedir na realização de eventuais modificações do locado, desde logo, por não visarem a resolução do contrato de arrendamento com este fundamento de incumprimento.

         […]

         Finalmente, conforme decorre dos despachos proferidos a respeito do valor da causa, é entendimento jurisprudencial consolidado que estando em causa uma acção de reivindicação, ainda que assente na caducidade do contrato de arrendamento, não se estará perante uma acção de despejo, nos termos do art. 14 da Lei n.º 6/2006, de 27/02, o que inviabiliza a pretensa nulidade de erro na forma de processo.

         Neste sentido, têm entendido a doutrina e a jurisprudência que o senhorio-proprietário que pretenda a entrega do locado, perante a caducidade do arrendamento, deve intentar uma acção declarativa de reivindicação e não de despejo (cf. Laurinda Gemas e Outros, Arrendamento Urbano, Quid Juris, pág. 36, assinalando precisamente que no NRAU, ao contrário do RAU, não existe norma equivalente ao então art. 55/2, que determinava esse meio para outras causas).

         De resto, atendendo a que actualmente não existe qualquer acção especial de despejo, nem imposição obrigatória de recurso ao procedimento especial de despejo previsto no art. 15 da Lei 6/2006, de 27/02, sempre a circunstância da parte recorrer à acção declarativa sob a forma comum, seria insusceptível de determinar a existência de qualquer nulidade por erro na forma de processo.

              Julgou-se também improcedente a excepção de ilegitimidade activa deduzida pelo réu. Quanto ao valor da causa, ele foi fixado em 54.565,90€ (50.506,40€ + 4.059,50€ [este último é o valor da reconvenção – parenteses deste TRL]), nos termos do artigos 299/2 e 306/2, do CPC, ficando prejudicado o suscitado na contestação a respeito do valor da causa por referência ao valor das acções de despejo, atendendo à acção ter por objecto um pedido de reconhecimento da caducidade do arrendamento e a reivindicação do imóvel e ao despacho proferido em 29/09/2022 que admitiu a indicação rectificativa do valor da causa atribuído pelas autoras.         

              Depois foi realizada a audiência final e, após, proferida sentença, julgando a acção procedente, reconhecendo a caducidade, por óbito do arrendatário, do contrato de arrendamento para habitação e condenando o réu a desocupar a fracção objecto do contrato de arrendamento e a entregá-la às autoras livre e devoluta de pessoas e bens. A reconvenção foi julgada improcedente e as autoras absolvidas do respectivo pedido.

              O réu recorre desta sentença – arguindo a nulidade da mesma (art. 615/1-d-e do CPC) e para que seja reconhecida a transmissibilidade do contrato de arrendamento para o réu nos termos do art. 1106/1-c do CC e demais legislação aplicável -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

         1\ A lei processual é exigente sobre “começo e desenvolvimento da instância” subordinados que se encontram ao “princípio da estabilidade da instância”, plasmado no art. 260 do CPC,” Citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir…”

         2\ E reafirmado no art. 564 (efeitos da citação), que torna estáveis os elementos essenciais da causa, nos termos do artigo 260; (…)”

         3\ Pelo que serão excepcionais as possibilidades de “alteração do pedido e da causa de pedir” e necessidade da alegação superveniente estar compatível com os requisitos processuais sob pena de dever ser considerada preclusiva.

         4\ Se a possibilidade de modificação qualitativa do pedido foi eliminada pelo CPC de 2013, qualquer alteração do pedido – redução ou ampliação, apenas nos termos do art. 265/2 é admissível se for o desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo.

         5\ No presente caso, conforme documentos juntos com a PI, as autoras, por notificação judicial avulsa de 22/06/2021, dirigida ao pai do réu, invocam resolução do contrato de arrendamento do imóvel em causa.

         6\ A que se seguiu, após conhecimento de que o mesmo havia falecido, notificação de solicitadora, dirigida ao réu, por carta registada, com aviso de recepção, de 20/08/2021, invocando caducidade.

         7\ Em ambos os casos ordenando a saída do imóvel do réu e filhos menores, no prazo de 30 dias….

         8\ Com data de 28/01/2022, interpõem o presente processo, em que, apesar de não cumprimento do disposto no CPC, art. 552 (Requisitos da petição inicial), n.º 1 “Na petição, com que propõe a acção, deve o autor (d) Expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção,

         9\ Inequivocamente, formulam como pedido, seja “Declarada a resolução do contrato de arrendamento”.

         10\ Pedido reafirmado no final da réplica.

         11\ Em que, ao arrepio do disposto no art.584 do CPC, ilegalmente as autoras responderem às excepções.

         12\ E, caso estivesse também implícita “alteração do pedido” para “caducidade” teria sido apresentado fora de prazo.

         13\ Tendo o réu apresentado requerimento contra este anómalo aproveitamento da réplica, não foi o mesmo decidido.

         14\ Uma vez que as autoras na petição inicial haviam atribuído como valor processual, conforme art. 302/21, o valor fiscal do imóvel – 50.506,40€ -, alterado na réplica, nos termos do art. 298/1 (acção de despejo) para 1.939,50€.

         15\16\ Findos os articulados, o Sr. juiz a quo, nos termos do art. 590 (gestão inicial do processo) do CPC proferiu despacho inicial do processo, de 24/06/2022, sobre o valor da causa [o réu transcreve parte do despacho; como ele está transcrito no relatório deste acórdão não se repete a transcrição].

         17\ Não sendo de admirar que as autoras acolhendo a “consideração” do tribunal, expressa no despacho de aperfeiçoamento, contraditoriamente apresentem nova versão, concluindo [o réu transcreve os pontos 6 a 10 do requerimento das autoras de 05/07/2022, já transcrito acima, no relatório deste acórdão, pelo que não se repete aqui].

         18\ Esta “alteração” ganha consistência com o despacho de 29/09/2022 [já transcrito no relatório deste acórdão].

         19\ Por outro lado, uma vez que nos articulados as partes apenas haviam esgrimido os seus argumentos com base no Código Civil,

         20\ Como decorre da acta da audiência prévia de 26/10/2022, o Sr. juiz, convida as autoras a “aperfeiçoar a sua PI no que se refere ao contrato de arrendamento em causa nos autos ter transitado para o NRAU considerando os fundamentos de transmissibilidade do arrendamento.”

         21\ Sendo que, a aplicação da al. (c), do art. 591/1 do CPC, conforme al. (b), pressupõe a prévia discussão a incidir sobre matéria de facto, o que não ocorreu.

         22\ As autoras, não se fazendo rogadas, com data de 07/11/2022, interpõem requerimento / resposta ao convite de aperfeiçoamento, no que ora interessa, concluindo: “Nestes termos e nos melhores em Direito aplicáveis, requer-se que se digne: Declarar o contrato de arrendamento em causa nos presentes autos caduco, por morte do arrendatário, uma vez que, não tendo o contrato de arrendamento transitado para o NRAU, não existe direito à transmissão do arrendamento para o réu, nos termos dos artigos 27, 30 e 57 da Lei 6/2006, de 27/02.”

         23\ Fruto da referida evolução, nomeadamente os dois despachos de aperfeiçoamento e “aprimorado” o pedido,

         24\ O despacho saneador de 08/02/2023 [o autor transcreve aqui parcialmente o despacho saneador, já transcrito acima, em que, em síntese, e na parte que o réu aproveita], entendeu que o pedido (a) tinha sido rectificado e que a acção era de reivindicação e admitiu a rectificação do valor atribuído à causa.

         26\ Sendo certo que o entendimento do tribunal é contrário ao das próprias autoras que, na réplica, sobre a ilegal resposta à excepção de “erro na forma do processo”, desenvolvem nos artigos 38 a 62 a demonstração de que não estamos perante uma acção de reivindicação,

         27\ Invocando, entre outros, no art. 43, “assim, se o meio processual correcto fosse a acção de reivindicação, o que não se concede, (…)” ou “54 – Sendo a caducidade uma forma de extinção do contrato de arrendamento, e não estando em causa a propriedade do imóvel, é apropriada a acção de despejo e não a acção de reivindicação”,

         28\ Donde, perante a sentença “pelo exposto, julgo a presente acção (…) procedente por provada e, consequentemente, decide-se: reconhecer a caducidade, por óbito do arrendatário…”

         29\ Afigura-se enigmático determinar se estamos perante acção de despejo ou de reivindicação, já que esta, de forma inequívoca, não foi pretendida pelas autoras.

         30\ Se o art. 590 do CPC não deixa margem para dúvidas que com o “despacho de aperfeiçoamento” se pretende o “suprimento de pequenas omissões ou meras imprecisões ou insuficiências na alegação da matéria de facto,

         31\ E, doutrinariamente, são pacíficos os entendimentos que o convite ao aperfeiçoamento é realizado pelo juiz uma única vez,

         32\ E a colaboração que é exigida ao juiz não deve anular a auto-responsabilidade das partes,

         33\ Bem como “Não existe o dever de convite para suprir a falta ou insuficiência de factos essenciais que constituem o fundamento da excepção invocada, da mesma maneira que se não justifica actividade assistencial ou de amparo do juiz com vista a suprir a existência, inexistência ou insuficiência da causa petendi.”

         34\ Também a jurisprudência consolidou o entendimento que “O âmbito do aperfeiçoamento do articulado, em regra, apenas pode ter por objecto o suprimento de pequenas omissões ou meras imprecisões ou insuficiências na alegação da matéria de facto, sob pena de completa subversão do princípio dispositivo, o que justifica as limitações impostas pelo artigo 590/6 do CPC.” (…),

         35\ Tendo incidido os despachos e a alteração do pedido das autoras sobre matéria de direito, ou seja, de natureza qualitativa,

         36\ Nos termos do art. 615/1-d-e do CPC deverá ser declarada a nulidade da sentença.

         37\ Por outro lado, as referidas alterações do pedido inexoravelmente se projectam, na avaliação substantiva da sentença em especial sobre reconhecimento da caducidade do arrendamento por óbito do arrendatário e não de transmissibilidade para o réu.

         38\ Ora, provado que “5. O contrato de arrendamento não foi objecto de transição para o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei 6/2006, de 27/02”,

         39\ Pelo pacifico entendimento, sufragado pela jurisprudência do STJ, que se aplica lei vigente à data da celebração de um contrato de arrendamento para determinar o sentido das declarações negociais e para aferir a sua validade.”

         40\ No caso dos autos, celebrado o contrato em 01/07/1975, a “transmissão por morte do arrendatário” encontrava-se regulada no art. 1111 do Código Civil, dúvidas não existem sobre a sua transmissibilidade,

         41\ Resultado que também será alcançado, em linha com o entendimento que denúncia deve ser aplicada a lei vigente ao tempo em que foi realizada.

         42\ Na verdade, nos termos do artigo 1080 – Imperatividade, “As normas sobre a resolução, a caducidade e a denúncia do arrendamento urbano têm natureza imperativa, salvo disposição legal em contrário.”

           43\ Entendimento que incide sobre o art. 1106 do CC, redacção dada pela Lei 13/2019, de 12/02, e em vigor na data do falecimento do pai do réu (13/10/2020): [o réu transcreve normas do art. 1106 do CC].

           44\45\ [o réu transcreve vários §§ da sentença recorrida em seu apoio, sem se importar com o facto de a sentença expressamente afastar a aplicação do art. 1106 do CC, por força de expressa disposição legal nesse sentido decorrente dos artigos 26/2, 27 e 28 do NRAU – como se verá à frente quando se transcrever a fundamentação da sentença nessa parte].

         46\ Uma vez que “o contrato de arrendamento não foi objecto de transição para o NRAU, continuar-se-á a aplicar-lhe o disposto no art. 85 do RAU que, aquando da revogação por aquela Lei, dispunha: transmissão por morte: 1 – O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver: a)… b) Descendente com menos de um ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano” […].

         47\ Mas, ainda que se entenda colocar em confronto o art. 1106 do CC e o art. 57/1 do NRAU que acautela particulares interesses familiares, referindo várias situações em que os descendentes estão protegidos,

         48\ Não vemos que possa existir qualquer possibilidade de esta norma, excluir o disposto naquele artigo, tanto mais que não tem disposição semelhante à mencionada alínea (c) do art. 1106 do CC,

         49\ Que entendemos não poder valer a interpretação com que se conclui na que seria negativa para o descendente,

         50\ Podendo “qualquer pessoa”, mesmo não familiar, se provasse, como o réu provou, reunir os requisitos da mencionada al. (c), impediria a caducidade do arrendamento e seria transmissário do mesmo,

         51\ O que seria gerador de descriminação, que sempre seria inconstitucional pelo desvalor que ocorreria, pelo simples facto de ser filho,

         52\ E, como síntese final da diferença de regimes, permitimo-nos invocar Maria Olinda Garcia que, no “Arrendamento Urbano Anotado -Regime Substantivo e Processual, alterações introduzidas pela Lei 31/2012” já então assinalava: “O art. 57 da Lei 6/2006, que estabelece as regras da transmissão do direito por morte do arrendatário, nos arrendamentos celebrados antes da entrada em vigor deste diploma, não prevê a categoria genérica de pessoas que vivem em “economia comum” entre os beneficiários da transmissão. Prevê, sim, nas alíneas (c), (d) e (e) três tipos de familiares que, caso vivam com o arrendatário há mais de um ano, adquirem direito à transmissão.” (Coimbra Editora, 1.ª edição, Novembro de 2012, nota 56 da página 78).

              As autoras contra-alegaram, deduzindo a questão prévia da inadmissibilidade do recurso e defendendo a improcedência do recurso.

              Questões que importa conhecer: a prévia da inadmissibilidade do recurso; as nulidades da sentença; e se devia ter sido reconhecido ao réu a transmissibilidade do arrendamento a seu favor, com o que se evitaria a sua condenação a entregar a fracção às autoras.   

                                                                 *

                                                    Questão prévia:

              As autoras, seguindo a formulação do ac. do TRG de 30/03/2023, proc. 202/20.0T8VCT.G1 -: “Não constituem conclusões válidas, já que não delimitam nem definem o objecto do recurso, as proposições longas e confusas que se limitam a reproduzir de forma arrazoada as alegações de recurso” – dizem que é esse o caso das conclusões do recurso do réu.

              Reconhecendo-se embora, como se verá de seguida, que a argumentação do réu mistura uma série de questões, entre elas, mas não só, as nulidades processuais e as nulidades da sentença, não tornando fácil perceber como é que, no caso, segundo o réu, as nulidades da sentença afinal se verificam, no entanto, acaba por se perceber como é que ele o entende e os respectivos fundamentos e a autoras também o entenderam e contra-alegaram devidamente, pelo que, ao contrário do que defendem, não há razões para considerar o recurso inadmissível por falta de conclusões adequadas. De resto, foram as autoras que, da forma como intentaram a acção e como depois foram reagindo aos despachos judiciais transcritos acima, deram causa à maior parte das ocorrências processuais descritas e que tornam difícil qualificar os possíveis vícios que podem estar em causa (como se verá de seguida).

                                                                 *

                                          Das nulidades da sentença

              O réu entende que a sentença é nula porque, tendo as autoras pedido que fosse declarada a resolução do contrato de arrendamento (acção de despejo), acaba por julgar a acção procedente reconhecendo a caducidade do contrato (condena em objecto diverso do pedido – art. 615/1-e do CPC: ou seja, o resultado é o de uma acção de reivindicação); e porque, aceitando uma rectificação/alteração do pedido, inadmissível e feita de modo extemporâneo (numa réplica que não podia ter esse conteúdo), e um aditamento de factos (o de o contrato não ter transitado para o NRAU) com consequências a nível do direito aplicável, por força de um convite ilegal do tribunal, acaba por conhecer de questões que não podia conhecer (art. 615/1-d do CPC: a caducidade do contrato por a transmissão do arrendamento não ter ocorrido, por força das normas aplicadas que são diferentes das inicialmente invocadas pelas autoras, o que resultaria do acrescento do facto de o contrato não ter transitado para o NRAU).

              Apreciação:

              Note-se, antes de mais, que o réu não tem razão para estar na dúvida sobre o tipo de acção que o tribunal recorrido entendeu estar em causa. Do despacho saneador resulta claramente que, segundo o tribunal recorrido, se está perante uma acção de reivindicação.

              Reconhece-se, entretanto, que não ajuda à inexistência da confusão, a circunstância de, desde há alguns anos, os cabeçalhos das folhas em que se escrevem os despachos e as sentenças, conterem, por predefinição – salvo erro por iniciativa da DGSI/IGFEJ – a designação do processo que consta da capa dos mesmos, o que leva a que, quando essa menção não é retirada, por exemplo no caso, apareça a palavra “despejo” no início de cada folha, numa linha antes do texto, o que por vezes pode dar a ideia de que essa palavra faz parte do texto. O que, ainda no caso, levou a que o réu, ao transcrever despachos do tribunal, num deles tenha incluído a palavra “despejo” a encimar o despacho. O mesmo, aliás, se verifica com a sentença, que, a encimá-la, tem a epígrafe “despejo”, dando a ideia de que se está perante uma acção de despejo.

              Por outro lado, note-se que, ainda no requerimento de 05/07/2022, mesmo depois do despacho de 24/06/2022, as autoras entendem que intentaram uma acção de despejo e isto apesar de nesse requerimento atribuírem (ou melhor, manterem) à acção o valor de uma acção de reivindicação.

              Por fim, como as autoras invocaram os artigos 1083/1-2 e 1084/1 do CC, “pediram a declaração da resolução do contrato” e ocuparam as duas (das 10) páginas iniciais da PI para falarem de obras ilícitas feitas pelo arrendatário no prédio arrendado, dir-se-ia que se estava realmente perante uma acção de despejo.

              Posto isto,

              Acção de despejo e acção de reivindicação são apenas títulos que se dão a acções comuns com determinados pedidos, que, em cada caso, podem estar certos ou errados. O que importa é o efeito prático-jurídico pretendidos pelos autores e não a forma como formularam os pedidos.

              (O que se tornou claro com o ac. do STJ 3/2001 de 23/01/2001, publicado na 1.ª série do DR de 09/02/2001: Tendo o autor, em acção de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do acto jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (n.º 1 do artigo 616.º do Código Civil), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como permitido pelo artigo 664.º do Código de Processo Civil; o que se tornou depois particularmente claro com os dois acórdãos do STJ: de 05/11/2009, publicado sob o n.º 308/1999.C1.S1: “2. O que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico”, e o de 25/02/2010, publicado sob o n.º 399/1999.C1.S1: “a qualificação jurídica que a parte realiza quanto à pretensão de tutela processual que deduz não impede que o tribunal possa reconfigurar adequadamente tal pretensão, dando-lhe a adequada configuração jurídico-normativa, suprindo ou corrigindo o erro de direito da parte na formulação jurídica do pedido que deduz: como temos sustentado (veja-se o ac. do STJ de 05/11/2009 […]): “o que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo este fenómeno que permite compreender, por exemplo, que seja lícito ao tribunal convolar de um pedido de anulação do negócio jurídico para a declaração de ineficácia, sem que tal permita afirmar que, ao fazê-lo, o tribunal julgou objecto diverso do que havia sido peticionado […]”; neste sentido, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, 2017, pág. 718, nota 4 ao artigo 609 do CPC: “A norma do n.º 1 compadece-se com o poder de o juiz dar ao pedido uma qualificação jurídica diversa da que lhe foi dada pela parte que o deduziu”, seguindo-se vários exemplos com aplicação prática do afirmado).

              Se as autoras invocam um contrato de arrendamento celebrado com terceiro, dizem que tal contrato caducou e pretendem a desocupação, pelo réu, de um imóvel que é delas, porque o réu não tem nenhum título para o ocupar, está-se perante uma acção de reivindicação (art. 1311 do CC) e não perante uma acção de despejo.

              Quando as autoras dizem, no pedido, que deve ser “declarada a resolução do contrato de arrendamento, por morte do arrendatário” e “declarada a ocupação ilegal do imóvel por banda do réu”, não estão a querer dizer que o contrato de arrendamento só cessaria com a sentença que julgasse procedente esta acção, pois que na petição afirmaram expressamente que o contrato já tinha caducado por morte do arrendatário [34\: Está, pois, e desde a morte do pai e arrendatário, ocorrida em 13/10/2020, a ocupar ilegalmente o imóvel cuja propriedade pertence às autoras […]; 35\: Por isso, nos termos do art. 1051 e 1081 do CC, o contrato de locação caduca por morte do arrendatário, tornando-se imediatamente exigível a desocupação do locado e a sua consequente entregue […]]. Esses pedidos têm antes o sentido inequívoco de as autoras pretenderem que se considere que o contrato de arrendamento não existe, caducou com a morte do arrendatário, não se transmitiu para o réu e, por isso, ele não tem título para a ocupação do prédio, pelo que deve ser condenado a entregá-lo (restitui-lo) às autoras.

              A circunstância de as autoras não terem formulado nenhum pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade (propriedade + usufruto) não tem nenhum relevo, desde que o direito de propriedade resulte dos factos alegados e provados. Este reconhecimento é um pressuposto da reivindicação, não é o objecto de um pedido obrigatoriamente deduzido que, não sendo feito, teria a consequência de se deixar de estar perante uma acção de reivindicação.

              (neste sentido, vejam-se algumas das conclusões que Oliveira Ascensão tira no seu estudo Acção de reivindicação, Estudos em memória do Prof. Doutor Castro Mendes, Lex, 1995, páginas 41-42 = ROA, 1997II, páginas 511-545: A reivindicação é uma acção de condenação. A invocação da propriedade surge tipicamente como causa de pedir. A prova a fazer da propriedade é a contrapartida da outorga ao autor da faculdade de usar razões absolutas. Assim sendo, destina-se a satisfazer um interesse do réu. Na medida em que esse interesse fique satisfeito, nada mais haverá que exigir. A prova que se exige é, como em todas as acções, a adequada ao litígio concreto que foi trazido a juízo. A acção de reivindicação não representa uma excepção a este princípio.; Lebre de Freitas (Acção declarativa, 5.ª edição, Gestlegal, 2023, nota 15ª da página 54), também esclarece que o autor de uma acção de reivindicação não está onerado com deduzir um pedido (de mera apreciação) de reconhecimento do direito de propriedade, remetendo para José Oliveira Ascensão, Acção de reivindicação, ROA, 1997, II, ps. 516-520, “mas com a correcção de que, quando apenas é pedida a restituição, a verificação do direito de propriedade constitui questão de direito prejudicial e não os factos que integram a causa de pedir, os quais terão de ser alegados; ver CPC anotado, n.º 2 da anotação ao art. 193.” ; no mesmo sentido pode, hoje, ver-se, entre muitos outros, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, XIV, Direitos Reais, 2.ª parte, Almedina, 2023, especificamente páginas 214-215; Elsa Sequeira Santos, anotação ao art. 1311 do CC anotado, Almedina/CEDIS, vol. II, 2017, páginas 108-109; e Diogo Pessoa, no Comentário ao CC, Direito das Coisas, UCP/FD/UCE, 2021, páginas 165-167)

              A acção só seria de despejo se, com ela, as autoras visassem a cessação do contrato de arrendamento (art. 14/1 do NRAU: A acção de despejo destina-se a fazer cessar a situação jurídica do arrendamento sempre que a lei imponha o recurso à via judicial para promover tal cessação e segue a forma de processo comum declarativo); ora, tal não corresponde ao efeito prático-jurídico pretendido pelas autoras.

              Neste sentido, o ac. do TRL de 19/11/2015, proc.  745/14.8TVLSB.L1-2: “4. Sendo invocada como causa de pedir a caducidade do contrato de arrendamento, por morte do arrendatário, deverá ser através da acção de reivindicação que o autor, na qualidade de proprietário do imóvel, poderá exigir de terceiro, a restituição do mesmo.”

              Nesta acção, aliás, as autoras não tinham de ter alegado nada quanto ao contrato de arrendamento ou à caducidade por morte do arrendatário, nem, por isso, que a posição de arrendatário não se tinha transmitido ao réu. Assim sendo, é também irrelevante que as autoras tenham mudado de orientação quanto ao direito aplicável (antes artigos 1106 e 1107 do CC, agora art. 57 do NRAU).

              Era ao réu que, a título de defesa por excepção peremptória, cabia alegar ser o actual arrendatário, por a posição do seu pai se lhe ter transmitido (caso em que a acção de reivindicação improcederia, porque o réu teria um título que lhe permitia estar a ocupar o prédio das autoras: art. 1311/2 do CC). E se essa transmissibilidade dependia da aplicação das normas do art. 1106 do CC e esta pressuporia que o contrato de arrendamento tivesse transitado para o NRAU, era ao réu que também cabia alegar este facto positivo como facto constitutivo do seu direito.

              Portanto, o despacho de 26/10/2022 não teve qualquer relevo processual. O despacho, partindo da versão das autoras, de que as regras aplicáveis seriam as do art. 1106 do CC, o que implicava que o contrato tinha transitado para o NRAU, convidou-as a alegarem essa transição. Mas as autoras não fizeram isso, o que alegaram foi precisamente o contrário, isto é, que o contrato não tinha transitado para o NRAU.

              Se realmente o contrato tivesse transitado para o NRAU e, por isso, as regras aplicáveis fossem as do art. 1106 do CC, e as autoras tivessem, na sequência do despacho, introduzido esse facto (transição para o NRAU) aí, sim, poderia dizer-se que as autoras tinham introduzido um facto essencial para a procedência da acção e teria interesse discutir se o podiam ter feito (mas a hipótese é absurda, porque esse facto seria essencial, mas não para a procedência da acção, mas sim para a improcedência, favorecendo o réu). Mas, repete-se, não foi isso que as autoras fizeram, o que elas alegaram foi a não transição e este facto não teve qualquer influência na sorte da acção, porque era ao réu que cabia alegar e provar o facto contrário (ou seja, a transição para o NRAU para que o art. 1106 do CC pudesse ser aplicado), como matéria de excepção, de modo a ter o direito de opor o arrendamento (que lhe teria sido transmitido) às autoras, levando à improcedência da acção (art. 1311/2 do CC).

              Sendo tudo isto assim, não se verificou qualquer violação do princípio da estabilidade da instância – a acção sempre foi de reivindicação e deficiências da formulação do pedido podiam ser oficiosamente ultrapassadas na sentença -, nem qualquer alteração do pedido ou da causa do pedido.

              As irregularidades processuais – rectificação do pedido num articulado de réplica (conclusões 10 e 11); falta de decisão sobre um requerimento do réu (conclusão 13 do recurso); a hesitação das autoras quanto ao valor da acção, já que na PI deram um valor correspondente a uma acção de reivindicação, na réplica baixaram-no para um correspondente à acção de despejo, na resposta ao despacho subsequente voltaram ao valor da acção de reivindicação (conclusões 14 a 17); não ter ocorrido primeiro a discussão prevista no art. 591/1-b [o que nem sequer está indiciado, conforme se vê na transcrição feita] (conclusão 21); dois despachos de aperfeiçoamento [o que nada tem de anormal já que têm objectos distintos] (conclusões 23 e 24) – não têm qualquer relevo, porque inócuas para tudo o que antecede.

              Em suma, não se verifica qualquer nulidade da sentença.                

                                                                 *

              Para apreciação da outra questão, são os seguintes os factos provados que interessam à decisão:

         1\ A fracção autónoma correspondente à letra “D” […], encontra-se inscrita em favor da autora AB por compra, conforme Ap.1 de 14/06/1972, quando ainda era menor, e o usufruto inscrito em favor da autora A e de C, igualmente por compra, conforme Ap.15, da mesma data, a qual foi actualizada, por óbito da co usufrutuária C, passando o usufruto a ficar inscrito apenas em favor da ré A, conforme Ap.2 de 31/08/2023.

         2\ A referida fracção foi dada de arrendamento a D, por contrato escrito datado de 14/07/1975, destinando-se a habitação, pelo período de 6 meses, renovável, e a contar de 01/07/1975.

         3\ A renda acordada foi de 2.600$ mensais, a ser paga no primeiro dia do mês anterior, tendo sido sucessivamente actualizada até perfazer o montante mensal de 64,65€.

         4\ Consta da cláusula 5.ª do contrato de arrendamento, sob a epígrafe “Obras”, o seguinte: “O inquilino não pode efectuar quaisquer obras, sem autorização escrita do 1.º contratante, e, as assim feitas, ficam a pertencer ao imóvel sem lugar a qualquer compensação”.

         5\ O contrato de arrendamento não foi objecto de transição para o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27/02.

         6\ O arrendatário D faleceu em 13/10/2020, no estado civil de solteiro, com a idade de 66 anos […].

         7 O réu nasceu no dia 23/09/1985, sendo filho do arrendatário.

         8\ As autoras no seguimento de uma notificação judicial avulsa dirigida ao arrendatário tendo em vista a resolução do contrato de arrendamento, tomaram conhecimento de, no seguimento do agente de execução, em 02/08/2021, ter ido ao imóvel, aí se encontrar o réu que o informou que o arrendatário, seu pai, havia falecido há uns meses.

         9\ As autoras dirigiram ao réu uma carta com aviso de recepção, datada de 20/08/2021, solicitando a desocupação do locado no prazo de 30 dias com fundamento em caducidade do contrato de arrendamento.

         10 \ O réu respondeu por carta datada de 22/09/2021, comunicando o falecimento do arrendatário à representante da autora, juntando a respectiva certidão de óbito, e invocando ter direito à sucessão no arrendamento.

         11\ O réu, em conjunto com o seu agregado familiar, composto pelos seus dois filhos menores, pelo menos desde data anterior e durante o ano precedente ao óbito do arrendatário, viveram no imóvel em conjunto com o arrendatário fazendo do locado o seu domicílio comum, aí pernoitando e fazendo as suas refeições.

         12\ O réu, pelo menos durante esse período, partilhava com o arrendatário os custos com as despesas relativas a consumos do imóvel e ao sustento comum, tendo aí permanecido a residir com os seus filhos após o óbito deste.

         13\ O réu tem o seu domicílio fiscal na morada do locado, sendo esta também a morada que consta junto da sua entidade patronal e dos recibos de vencimento, o mesmo sucedendo com a matrícula escolar dos seus filhos, pelo menos, no período anual anterior ao óbito do arrendatário.

         14\ O imóvel locado corresponde a um T1, com uma área bruta privativa de 45,6 m2, sendo o espaço comum exíguo e partilhado pelo réu e pelos seus filhos com o arrendatário em vida deste.

         15\ No decurso do contrato de arrendamento, o arrendatário, pelo menos há mais de 20 anos, realizou obras e alterações no imóvel, designadamente; remoção da divisão da cozinha, colocando-a na zona da marquise, passando a existir um quarto interior no local onde estava originalmente a cozinha; encerramento da marquise onde actualmente funciona a cozinha com caixilharia em alumínio anodizado com vidro; instalação de um tecto falso em madeira localizado no “novo” quarto interior, equivalente a uma prateleira, que é utilizado como arrumação; colocação de revestimento no piso do hall de entrada, quarto interior e sala em mármore, com peças de tonalidade amarela interrompidas por “remendos” em peças de tonalidade vermelha; colocação de um lambrim no hall da entrada em madeira, sem que o revestimento em madeira seja adequado às humidades; desactivação da tubagem de água quente da banheira com instalação de um termoacumulador dentro da divisão com tubagens à vista que abastecem a torneira e o chuveiro da banheira.

         16\ O valor despendido com a realização dessas obras, a valores estimados e actualizados ao ano de 2023, ascende a um total de 3.060€.

         17\ Desde pelo menos o ano de 2009, as rendas eram pagas pelo arrendatário às senhorias através de vales postais dos CTT.

         18\ As senhorias, por ocasião dos recibos de renda passarem a ser emitidos electronicamente, deixaram de emitir recibos de renda pelos valores que recebiam através de vales postais.

         19\ O réu, mesmo após a morte do arrendatário e sem que tenha comunicado o óbito, continuou a enviar vales postais para pagamento da renda em nome deste, ocultando essa circunstância.

         20\ As autoras, após terem conhecimento do falecimento do arrendatário, deixaram de levantar os novos vales que o réu passou a enviar em nome próprio, e comunicaram ao réu que poderia diligenciar pela restituição dos relativos aos meses posteriores ao óbito do arrendatário.

         21 \ No ano de 2020, no seguimento de uma inundação verificada na coluna do prédio onde se localiza o locado, ocorreram infiltrações na fracção que fizeram, entre outros estragos, que a porta de entrada ficasse inchada, tendo o acesso à habitação passado a fazer-se através de uma janela.

         22\ No seguimento de queixas feitas pelo arrendatário, as autoras fizerem diligências, nomeadamente junto da administração do condomínio, que accionou o respectivo seguro, tendo em vista a reparação dos estragos causados pela inundação, tendo, ulteriormente, sido concretizadas essas reparações.

         23\ O réu é pessoa de baixa condição económica, auferindo rendimentos do trabalho pouco acima do valor da remuneração mínima mensal garantida.

         24\ O imóvel locado corresponde a uma construção associada aos empreendimentos J, conhecida por ser modesta.

                                                                 *

              Perante estes factos e relativamente à questão da transmissibili-dade do contrato de arrendamento, a única questão discutida pelo réu no recurso (num reconhecimento implícito que todo o resto da fundamentação da sentença não levanta quaisquer dúvidas), a sentença recorrida diz o seguinte, em síntese:

         A relação jurídica em causa nos autos emerge de um contrato de arrendamento que se encontra definido na lei como uma modalidade do contrato de locação que tem por objecto uma coisa imóvel (cf. artigos 1022 e 1023 do CC).

         […]

         No caso do arrendamento se referir, total ou parcialmente, a prédios urbanos é designado de arrendamento urbano e encontra-se sujeito à disciplina do CC (cf. artigos 1064 e ss. do CC), bem como a diversa legislação avulsa, destacando-se o denominado Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei 6/2006, de 27/02, sucessivamente alterada desde a sua publicação.

         O arrendamento urbano, na terminologia actual da lei, pode ser para fins habitacionais ou não habitacionais (a legislação pretérita falava em habitação, actividade comercial ou industrial, e exercício de profissão liberal).

         No caso presente, ficou provado que a fracção autónoma em causa nos autos, por contrato celebrado em 14/07/1975, foi dada de arrendamento ao pai do réu, destinando-se a mesma a habitação, e pelo período de 6 meses, sucessivamente renovável, pelo que será com base nesta relação jurídica e nas normas legais que a disciplinam, de acordo com o regime de aplicação da lei no tempo (cf. art. 12 do CC), que será decidida a presente acção.

         […]

         No que se refere às causas de caducidade do contrato de locação, prevê expressamente o art. 1051/-d do CC que o contrato caduca por morte do locatário pessoa singular.

         Contudo, tratando-se de um arrendamento urbano destinado a habitação, de acordo com o disposto no art. 1106/1 do CC, na redacção introduzida pela Lei 31/2012, de 14/08, e mantida pela Lei 13/2019, de 12/02 (que apenas revogou o n.º 2 por tautológico), o contrato não caduca por morte do arrendatário quando lhe sobreviva: (a) Cônjuge com residência no locado; (b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto há mais de um ano; (c) Pessoa que com ele vivesse em economia comum há mais de um ano.

         No caso presente, sendo reconhecido por ambas as partes o óbito do arrendatário, […] o réu […] invoca […] viver há mais de um ano em economia comum com o arrendatário seu pai com referência à data do óbito deste, ocorrido em 13/10/2020, situação que seria subsumível no mencionado art. 1106/1-c do CC.

         Da matéria de facto provada, resultou efectivamente demonstrado que o réu tem a qualidade de filho do arrendatário, uma vez que nasceu no dia 23/09/1985 sendo filho do falecido arrendatário e que, pelo menos, desde data anterior e durante o ano precedente ao referido óbito, viveu em conjunto com o arrendatário no locado, fazendo deste o seu domicílio comum.

         […]

         Com base nesta factualidade, em termos de preenchimento da causa de transmissibilidade prevista no art. 1106/1-c do CC, à luz do mencionado regime legal, deveria entender-se como demonstrada uma situação de economia comum entre o arrendatário e o réu pelo período legal exigível (ainda que se possa defender [que] ao ano precedente ao óbito se deveria acrescentar os dois anos da verificação da situação de economia comum), conforme se encontra prevista na Lei 6/2001, de 11/05 (cf. artigos 1, 2 e 4/1-e da mencionada Lei).

         Estaria, assim, aparentemente preenchida o mencionado no art. 1106/1-c do CC que, caso fosse aplicável […], autorizaria a que o réu, até independentemente da sua qualidade de filho do arrendatário, tivesse direito a ver reconhecida a transmissão da posição de arrendatário.

         Simplesmente, conforme alertou o tribunal no decurso dos autos, para efeitos do disposto nos artigos 3/3 e 5/3 do CPC, atento o dever do tribunal proceder à aplicação das regras de direito independentemente das alegações das partes (cf. audiência prévia), importa ter em consideração, que em razão da lei concretamente aplicável, não será, no caso presente, aplicável tal fundamento de transmissão por morte do contrato de arrendamento.

         Com efeito, resulta assente que o contrato de arrendamento em causa nos autos remonta a 14/07/1975, o que implica que, relativamente à matéria da transmissibilidade por morte da posição do arrendatário, valem as regras que constam do art. 57 do NRAU, aprovado pela Lei 6/2006, de 27/02.

         Na verdade, nos termos do art. 27 do NRAU, por força da remissão do art. 28 para o art. 26/2 do NRAU, as normas referentes à transmissão por morte então aprovadas aplicam-se, nomeadamente, aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU (Novembro de 1990), sobrepondo-se, inclusive, ao regime que constava do art. 85 do RAU, que deixou, por isso, de ter aplicação.

         Assim, por força do mencionado art. 57 do NRAU, com as sucessivas alterações a que foi sujeito, nomeadamente pela Lei 13/2019, de 12/02, e com aplicação directa no caso dos autos, dispõe o mencionado preceito:

             “1 – O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva: (…) d) Filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.º ou 12.º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior;            e) Filho ou enteado maior de idade, que com ele convivesse há mais de um ano, portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%. f) Filho ou enteado que com ele convivesse há mais de cinco anos, com idade igual ou superior a 65 anos, desde que o RABC do agregado seja inferior a 5 RMNA.

             […]”

         Ora, no caso presente, muito embora se tenha provado que o réu, para além de ser filho do arrendatário falecido, vivia com este em economia comum há mais de um contado do óbito ocorrido em 13/10/2020, estando em causa um contrato de arrendamento celebrado em 1975, encontra-se o mesmo sujeito, quanto às causas de transmissibilidade por óbito, ao regime do mencionado art. 57/1 do NRAU, sem que se aplique – por força de expressa disposição legal nesse sentido decorrente dos artigos 26/2, 27 e 28 do NRAU – qualquer das causas de transmissibilidade previstas nas diversas alíneas do art. 1106/1 do CC.

         Conforme refere Pinto Furtado, “para o caso muito específico da morte do arrendatário habitacional e relativamente aos contratos que subsistiam à data da sua entrada em vigor, em 28/06/2006, editou a Lei 6/2006, de 27/02 (NRAU), no art. 57, referido ao seu art. 26/2, um regime transitório muito específico, que contempla algumas alterações relativamente ao que se encontrava em vigor”, sendo uma dessas alterações precisamente o caso da transmissão do arrendamento “em relação ao filho (ou enteado) com 26 ou mais anos de idade, que passa a sair da linha de transmissão em que se encontrava, à sombra do RAU” (cf. Manual de Arrendamento Urbano, volume II, Almedina, 4.ª edição, págs. 608 e 612).

         Ou seja, em relação a contratos de arrendamento anteriores ao RAU abrangidos pelo mencionado regime transitório decorrente do art. 57 do NRAU (ainda que em regimes anteriores ou mesmo posteriores ou que actualmente constam do CC, fosse admissível a sua transmissão para descendente que convivesse há mais de um ano com o primitivo, ou não, arrendatário), a verdade é que, face ao que dispõe a lei, tal não beneficia o descendente com mais de 26 anos de idade que vivia com o arrendatário e que não apresenta qualquer grau de deficiência, à data do óbito, como é o caso do réu.

         Com efeito, percorrendo as causas de transmissão da posição de arrendatário previstas no mencionado art. 57/-d-e-f do NRAU, forçoso é concluir-se não ter o réu invocado ou logrado provar quaisquer das circunstâncias aí previstas para esse efeito, porquanto apesar de ter ficado demonstrada a sua qualidade de filho e que vivia em economia comum no locado com o seu pai, tendo o réu 35 anos à data do óbito do arrendatário, não tinha idade inferior a 26 anos ou situação escolar que permitisse essa transmissão [art. 57/1-d], não apresenta qualquer grau de incapacidade superior a 60% [art. 57/1-e] e não tem idade superior a 65 anos e condições económica que justifiquem essa transmissão [art. 57/1-f].

         Tal tem sido, de resto, o entendimento unânime da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, podendo indicar-se a título exemplificativo os seguintes acórdãos e respectivos sumários:

         Do TRL de 06/10/2022, proc. 829/19.6T8AMD.L1-8: “(…) No que à transmissão por morte concerne, aplica-se o disposto nos artigos 57 e 58 da NRAU, ainda que os contratos de arrendamento tenham sido celebrados antes da entrada em vigor do RAU, ex vi artigos 26, 27 e 28 do mesmo diploma, e não já o art. 1106 CC […] (redacção da Lei 6/2006 de 27/2 – NRAU).”

         Do TRL de 12/04/2018, proc. 30642/16.6T8LSB.L1-8: “(…) II – No que à transmissão por morte concerne, aplica-se o disposto nos artigos 57 e 58 da NRAU, ainda que os contratos de arrendamento tenham sido celebrados antes da entrada em vigor do RAU, ex vi artigos 26, 27 e 28 do mesmo diploma, e não já o art. 1106 CC (redacção da Lei 6/2006 de 27/2 –NRAU). III – Tendo falecido a locatário, em 04/03/2016, não há lugar à transmissão do arrendamento para o seu filho, não obstante este residir com esta, há mais de um ano porquanto o réu não alegou e, por maioria de razão, não logrou provar, ser portador de deficiência com grau de incapacidade superior a 60%, em consonância com o preceituado no art. 57/1-e do NRAU, operando-se a caducidade do contrato de arrendamento.”

         Do TRG de 29/09/2022, proc. 5332/19.1T8BRG.G1: “(…) II – A Lei 6/2006 de 27/02 veio estabelecer o NRAU, tendo no seu art. 59 regulado a sua aplicação no tempo, dispondo no seu n.º 1: “O NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias”, estando estas normas transitórias contempladas nos artigos 26 a 58 da referida Lei. III – Os artigos 26/1, 27 e 28/1 impõem a aplicação do novo regime a todos os contratos celebrados não só na vigência do RAU, aprovado pelo DL 321-B/90 de 15/10, como também aos contratos de arrendamento para habitação celebrados em momento anterior ao da sua vigência, com as especificidades previstas no mencionado art. 26. O que significa que se aplica o art. 26/2 que estabelece que à transmissão por morte aplica-se o disposto nos artigos 57 e 58, sendo que o primeiro refere-se aos arrendamentos para habitação e o segundo aos arrendamentos para fins não habitacionais. IV – O actual regime do art. 1106 do CC não é aplicável aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do NRAU, valendo para estes o regime transitório consagrado no art. 57 da Lei 6/2006 de 27/02, que estabelece condições mais restritivas para a transmissão mortis causa do arrendamento habitacional. V – O artigo 57 do NRAU, ao prever um regime transitório para a transmissão do direito ao arrendamento habitacional por morte do arrendatário, restritivo da expectativa jurídica da ré, representa uma legítima opção do legislador, não se apresentando como violador dos princípios da igualdade e da confiança consagrados nos artigos 13 e 18 da CRP. VI – Não se encontrando a ré em nenhuma das situações previstas nas alíneas do art. 57/1 do NRAU, mormente na sua alínea (e) aplicável ao caso em apreço, não se lhe transmite o arrendamento para habitação e não ocorrendo transmissão do contrato de arrendamento por morte da arrendatária, sua mãe, a morte desta constitui causa legal de caducidade automática desse contrato e da consequente obrigação de restituição do locado ao senhorio após o decurso de seis meses sobre a data da morte do locatário.”

         Do TRP de 07/10/2019, proc. 2346/18.2T8GDM.P1: “I – O NRAU, relativamente aos contratos de arrendamento para habitação celebrados anteriormente à sua entrada em vigor, passou a não permitir a transmissão do arrendamento para os descendentes maiores de 26 anos que não sofram de qualquer incapacidade ou que tenham uma incapacidade inferior a 60% (ver art. 57, norma transitória). II – Com esta limitação, reforçou-se o cariz social da transmissibilidade da posição de arrendatário, restringindo-se esta aos descendentes que, em princípio, terão dificuldade económica em aceder ao gozo de uma habitação segundo as regras actuais do mercado, entendendo o legislador não ser a mera convivência, no locado, com o arrendatário falecido suficiente para motivar a imposição de sacrifícios ao interesse do senhorio (em ver cessado o contrato sujeito a um regime vinculístico) e ao interesse público (de ampliação do mercado de arrendamento), cedendo o interesse daqueles perante estes. (…) V – Não se encontrando o réu em nenhuma das situações previstas nas alíneas do citado art. 57/1 do NRAU, cuja aplicação não pode ser afastada, é de concluir pela caducidade do arrendamento, com a morte de sua mãe.”

         Como tal, nada mais resta do que considerar não poder ocorrer a transmissão do contrato de arrendamento em causa nos autos para o réu, porquanto, ainda que este tenha provado a convivência com o arrendatário seu pai mais de um ano antes do respectivo óbito, em face da sua idade, nessa data, e à ausência de preenchimento das condições legais que, nos termos do art. 57 do NRAU o permitissem, não poderá suceder, por transmissão legal, na posição de arrendatário.

         Razões pelas quais, independentemente do não cumprimento atempado pelo réu do dever de comunicação do óbito a que se refere o art. 1107 do CC, tendo há muito decorrido o prazo a que se refere o art. 1106/5 do CC, deverá ser considerada como improcedente a causa de transmissão invocada pelo réu para justificar o não reconhecimento da caducidade do contrato de arrendamento e obstar à obrigatoriedade de entrega do locado.

                                                                 *

              Apreciação:

              No mesmo sentido da decisão recorrida, vejam-se ainda:

              O já citado ac. do TRL de 19/11/2015, proc. 745/14.8TVLSB.L1-2:

         “1. Nos termos conjugados dos artigos 59/1, 26/1 e 27 do NRAU, aprovado pela Lei 6/2006, de 27/02, a todos os contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do NRAU – contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo DL 321-B/90, de 15/10 e aqueles que foram celebrados durante a vigência do RAU – aplica-se, em matéria de transmissão por morte, o disposto no artigo 57 do NRAU.”

         […]

              E o ac. do TRE de 19/05/2019 proc. 3373/17.2T8LLE.E1:

         I – Estando em causa a apreciação dos efeitos operados pela morte do arrendatário na relação contratual, no sentido de averiguar se ocorreu a caducidade do contrato de arrendamento ou a transmissão da posição contratual do falecido, é aplicável o regime legal em vigor à data do óbito;

         II – Tratando-se de contrato de arrendamento para habitação celebrado antes da entrada em vigor do NRAU, aplica-se o regime previsto no artigo 57 da Lei 6/2006, de 27/02, na redacção emergente da Lei 79/2014, de 19/12, em vigor à data do óbito do arrendatário, ocorrido a 11/03/2017.

         […]

              O que antecede não deixa qualquer dúvida sobre a correcção da sentença recorrida, pelo que, para se evitar estar a repetir o que já foi dito nela, vão-se apreciar apenas os argumentos do réu contra a sentença:

              Quanto às conclusões 39 e 40: quando se está a discutir o regime aplicável à transmissibilidade do contrato por morte não se está a discutir o sentido das declarações negociais, pelo que, mesmo pela lógica do réu, o art.1111 do CC, vigente em 1975, obviamente não se aplica, pois, que o óbito ocorreu em 13/10/2020.

              Quanto às conclusões 41 a 45, o réu desconsidera, sem qualquer fundamentação, quer o que diz a sentença recorrida, quer o que diz a lei citada na sentença recorrida quanto à inaplicabilidade do regime dos artigos 1106 do CC, tal como resulta expressamente do art. 59/1 do NRAU.

              Quanto à conclusão 46, o réu desconsidera, sem qualquer fundamentação, o que a sentença diz sobre a não aplicação do art. 85 do RAU: nos termos do art. 27 do NRAU, por força da remissão do art. 28 para o art. 26/2 do NRAU, as normas referentes à transmissão por morte então aprovadas aplicam-se, nomeadamente, aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU (Novembro de 1990), sobrepondo-se, inclusive, ao regime que constava do art. 85 do RAU, que deixou, por isso, de ter aplicação.

              Quanto às conclusões 47 a 52, o réu tenta demonstrar que seria discriminatório, logo inconstitucional, nos contratos não transitados para o NRAU, impedir a transmissão do arrendamento para um filho a viver em economia comum, quando o art. 1106 do CC o permite, desde que reunidos, em ambos os casos, os requisitos do art. 1106/1-c do CC, sendo que para o efeito o réu desconsidera a circunstância de o Tribunal Constitucional já se ter pronunciado sobre a questão em sentido negativo.

              O ac. do TRG de 29/09/2022, proc. 5332/19.1T8BRG.G1, já citado pela sentença recorrida, refere: “V – O artigo 57 do NRAU, ao prever um regime transitório para a transmissão do direito ao arrendamento habitacional por morte do arrendatário, restritivo da expectativa jurídica da ré, representa uma legítima opção do legislador, não se apresentando como violador dos princípios da igualdade e da confiança consagrados nos artigos 13 e 18 da CRP.” E para o efeito vários acórdãos do TC que desenvolvem o assunto no mesmo sentido.

            O ac. do TRP de 07/10/2019, proc. 2346/18.2T8GDM.P1, também já citado pela sentença recorrida, também se referia à questão, com invocação de vários acórdãos do TC: III – A aplicação do referido regime transitório não enferma de inconstitucionalidade, não gerando a referida não inclusão destes descendentes no art. artigo 57.º, do NRAU, inconstitucionalidade de tal norma, por violação do princípio da igualdade, pois que, as razões, eminentemente sociais, de consagração legal das situações aí previstas, a reclamar e justificar o sacrifício de direitos e interesses privados ou públicos (como o de propriedade de senhorio e da ampliação do mercado de arrendamento segundo as actuais regras), não estão presentes naquele caso. Na verdade, não se verifica uma discriminação injusta e arbitrária, dado caber aos referidos descendentes, capazes, excluídos, diligenciar, activamente, pela satisfação das suas necessidades, estando todos os outros casos consagrados, presumivelmente, em situação mais desfavorecida e, mesmo, vulnerável. Surgindo, na família, os “laços de sangue” e a “relação conjugal” ou de “união de facto”, em posição de igualdade, tal paridade deixa de existir, para os referidos efeitos, no momento em que os descendentes adquirem, naturalmente, capacidade de organizarem as suas vidas, de constituírem a sua família e de proverem pela satisfação das suas necessidades, pessoais e familiares. IV – E também não configura violação do direito à habitação, pois que tal direito (v. art. 65.º da Constituição da República Portuguesa), reveste, acima de tudo, natureza programática, dirigindo-se ao Estado, que o assegura por variados meios, e, desde logo, no nº1, do art. 57.º, do NRAU, foi salvaguardada a parte mais frágil e de essencial relevo do direito à habitação, com a eleição dos aí previstos beneficiários na transmissão por morte do arrendamento, nomeadamente nos contratos mais antigos, sujeitos a um regime vinculístico, e com protecção das pessoas mais vulneráveis, situações essas em que mais se reclama e justifica especial protecção.

              Por sua vez, o ac. do TRE de 19/05/2019 refere o seguinte sumário do acórdão do STJ de 04/06/2013, revista n.º 653/07.9TBTVR.E1.S1, publicado no site do STJ, que já dava a razão da distinção material dos dois regimes: I – Relativamente ao regime da transmissão da posição contratual do arrendatário habitacional, por morte deste, o NRAU consagrou uma solução aplicável aos arrendamentos celebrados após a sua entrada em vigor – a do art. 1106.º do CC – e outra aplicável aos arrendamentos celebrados anteriormente à sua entrada em vigor – constante do art. 57.º do NRAU. II – A explicação para tal dicotomia residirá, para o regime introduzido pelo art. 1106.º do CC, no sistema da renovação automática dos contratos de arrendamento para habitação, ao passo que o regime transitório do art. 57.º do NRAU visou aperfeiçoar as regras de transmissão do arrendamento, no âmbito do cariz vinculístico da grande maioria dos contratos a que era aplicável, diminuindo em algumas circunstâncias a possibilidade de transmissão do arrendamento. III – Esta distinção não afronta qualquer princípio constitucional, nomeadamente os princípios do respeito e garantia da democraticidade económico-social ou da confiança (art. 2.º da CRP), igualdade (art. 13.º da CRP), proibição de retroactividade de leis restritivas dos direitos, liberdades e garantias (art. 18.º da CRP), e do direito à habitação (art. 65.º da CRP).

              Em suma, não se verificou a transmissão da posição do arrendatário para o réu e as normas das quais decorre esta solução não sofrem de inconstitucionalidade, pelo que o réu não pode opor um arrendamento inexistente à pretensão das autoras (art. 1311/2 do CC). Pelo que a acção tinha de proceder.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

              Sem custas (visto que o réu beneficia de dispensa do pagamento delas por ter apoio judiciário).

              Lisboa, 23/05/2024

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto