Processo do Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz 9

              Sumário:

               I – “Se o recorrente, ao explanar e ao desenvolver os fundamentos da sua alegação, impugnar a decisão proferida na 1ª instância sobre a matéria de facto, pugnando pela sua alteração/modificação, mas omitindo nas conclusões qualquer referência a essa decisão e a essa impugnação, essa questão não faz parte do objecto do recurso.”

              II – Uma conclusão que se limita a dizer que “a procedência da acção corresponde a um erro de direito”, não tem conteúdo útil para pôr em causa a decisão da matéria de direito.

              III – A maior parte dos factos relativos ao período Covid-19 não são factos notórios.

              IV – O eventual ganho do réu não é um dano do lesado.

              V – Não se justifica a subida da indemnização pelos danos não patrimoniais em causa nos autos.

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

              T intentou esta acção contra A pedindo a condenação deste a restituir os bens listados na sentença do procedimento cautelar a apensar e que não foram restituídos à autora, majorando-se a multa diária para, pelo menos, 10€ ao dia caso o réu, notificado, opte por permanecer em incumprimento; a pagar o valor de todos os danos patrimoniais (estimados em 3.330,19€), se os bens que faltam não forem restituídos à autora, acrescidos de juros legais desde a citação até o integral pagamento; a pagar valor suficiente para reparar os danos não patrimoniais sofridos pela autora, valor este que requer seja arbitrado em valor condizente com os danos sofridos e tendo em conta a ilicitude em causa. Deu à acção o valor de 43.330,19€.

              Para tanto alega, em síntese, que era arrendatária de imóvel de que o réu era senhorio, tendo o contrato de arrendamento efeitos a partir de 01/03/2014 e sendo sucessivamente renovado. O contrato não foi comunicado às finanças e o réu não passava recibos das rendas. Em 20/06/2020, ao chegar à fracção arrendada, deparou-se com a fechadura da porta mudada, com os seus bens no interior, e sem o seu conhecimento prévio, motivo pelo qual quer a condenação do réu nos pedidos que faz.

             O réu contestou, impugnando parte dos factos alegados pela autora, entre eles a renovabilidade do contrato; alega, em suma, que a autora andou a protelar a entrega da fracção arrendada desde 01/03/2015 e só a custo pagou  parte das rendas devidas; em meados de Março de 2020 a autora informou o réu que ia deixar a casa e este em meados de Abril celebrou um contrato-promessa de venda da fracção a terceiro; em Maio de 2020 iniciou obras de reparação do telhado; em 18/06/2020 uma vizinha da autora (do 2.º andar – H) informou o réu que a casa já devia estar vazia; o comportamento da autora causou problemas de saúde ao réu; a autora já não habitava a casa com carácter permanente desde o final da 1.ª semana de Junho de 2020; admitiu que retirou roupas da autora da fracção arrendada e que mandou abrir a porta da fracção e que nela entrou junto com as pessoas que o acompanhavam, tomando “posse efectiva da casa”; comprova já ter intentado uma acção a pedir indemnização contra a autora por danos (patrimoniais e não patrimoniais) causados com a sua conduta; deduz reconvenção para ser ressarcido dos danos (patrimoniais e não patrimoniais) que diz terem sido causados pela conduta da autora; acaba por esclarecer que na outra acção pediu o valor das rendas em atraso e que nesta quer a indemnização dos danos não patrimoniais, no valor de 5000€ (sendo este o pedido formulado).

              A autora replicou, impugnando os factos base da reconvenção e pronunciando-se também sobre dois autos elaborados pela PSP juntos pelo réu na contestação.

              A 14/12/2021, a autora apresentou, a convite do tribunal, um articulado de aperfeiçoamento do alegado e pedido na PI quanto a danos patrimoniais.

              O réu impugnou parte dos factos alegados no novo articulado.

              A 13/05/2021, a autora veio, a convite do tribunal, precisar o valor do pedido por danos não patrimoniais (que diz englobar também os danos sofridos pela filha).

              No despacho saneador, declarou-se extinta instância quanto aos pedidos formulados pela autora de restituição dos bens listados na sentença proferida no procedimento cautelar e do pagamento da indemnização pelos danos patrimoniais decorrentes da omissão da restituição dos bens removidos pelo réu e relativos aos dias de multa pela demora na entrega.

              Depois realizou-se a audiência final e, após, foi proferida sentença condenando o réu a pagar à autora 240€, a título de indemnização por danos patrimoniais, e 7.500€, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a que acrescem juros vincendos à taxa legal de 4%, desde a data da citação, até integral pagamento e que à data da prolação da presente sentença totalizam 466,52€, absolvendo-o do demais. A autora foi absolvida do pedido reconvencional. Determinou-se ainda que, após trânsito, fosse remetida cópia da sentença proferida à Autoridade Tributária, para os fins tidos por convenientes, atento o facto provado n.º 5.

              O réu recorre desta sentença – para que seja alterada no sentido de o réu ser absolvido do pedido ou para que seja repetido o julgamento para nova reapreciação de toda a prova -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, de que se transcrevem as minimamente úteis e com simplificações:

         […]

         3\ Atento o conteúdo dos factos dados como assentes e o teor da prova documental junta aos presentes autos, bem como da prova testemunhal produzida em audiência final, deveria o tribunal ad quo ter julgado os factos alegados pelo réu como provados e consequente[mente] declarar a improcedência da acção.

         4\ O tribunal a quo, na análise da matéria de prova apresentada pela autora, valorizou-a, na sua grande maioria sem qualquer fundamento, contrariamente à subvalorização no que diz respeito à matéria de prova (quer testemunhal quer documental) apresentada pelo réu.

         5\ A autora em 20/06/2020 já não residia no prédio conforme foi declarado por todas as testemunhas apresentadas pelo réu e que residem ou tem negócios no imóvel.

         6\ Quanto à residência ou não da autora no prédio todas as testemunhas por esta apresentadas a tribunal não visitaram a casa da autora, apesar de anteriormente serem visitas frequentes da casa desta, depois de Abril de 2020.

         7\ As referidas testemunhas do réu declararam terem visto a autora sair do prédio com sacos Ikea com utensílios da casa.

         8\ Apesar de ter ficado provado que a autora tinha pelo menos um ano de rendas em atraso e de tal facto fazer parte da base instrutória, o tribunal a quo não condenou, como seria normal suceder, a autora no pagamento das rendas dadas como provadas.

         9\ Não foi feita qualquer prova documental ou testemunhal relativamente aos danos não patrimoniais que a autora diz ter sofrido nomeadamente não foi por esta arrolado o padre da B pessoa que a autora diz que a ajudou a ultrapassar os traumas que alega ter sofrido.

         10\ Contrariamente ao que sucedeu com a autora, o réu sofreu danos não patrimoniais graves, quer prova testemunhal quer mesmo pela indicação dos fármacos que este teve necessidade de tomar para ultrapassar as suas crises de ansiedade e stress [sic], provas estas que não foram tidas em conta pelo tribunal a quo.

         11\ O depoimento de parte prestado pela autora é ilegal por violar o previsto no n.º 2 do artigo 452 do CPC, porém este depoimento veio a servir de suporte para a fundamentação da sentença relativamente à matéria dada como provada, a qual não deve ser tida em conta por ser ilegal e também por ir contra o já decidido no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18/01/2018.

         12\ O tribunal a quo ao decidir como decidiu cometeu um erro grosseiro na apreciação quer da matéria de facto, quer de direito, na apreciação da prova.

              A autora também recorreu da sentença, para que fosse aumentado o valor da indemnização pelos danos não patrimoniais para, pelo menos, 20.000€.

              A autora respondeu ao recurso do réu, defendendo a sua improcedência.

              O réu não respondeu ao recurso da autora.

              Depois da resposta da autora, a secção de processos do tribunal recorrido demorou 5 meses e meio a enviar o processo a este TRL.

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              Questões que importa decidir: a impugnação da decisão da matéria de facto; e a de saber se a indemnização atribuída à autora deve ser aumentada.

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              Foram dados como provados os seguintes factos:

         1\ No dia 30/11/2013, as partes celebraram contrato de arrendamento, o réu na qualidade de senhorio e a autora na qualidade de arrendatária, referente à fracção autónoma que corresponde ao 2.º andar direito, destinado a habitação, do prédio sito na Rua…, concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º… da freguesia de…. , e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia da…, correspondente ao anterior artigo… da freguesia da….

         2\ O ponto 1 da cláusula 2.ª do contrato tem o seguinte teor: “O arrendamento, que é de prazo certo, com início reportado a 01/03/2014 e termo para 28/02/2015, é celebrado pelo período de 1 ano.”

         3\ No contrato figura um fiador e terceiro outorgante.

         4\ Do ponto 3 da clª 13.ª consta: “A fiança é limitada ao prazo de 1 ano, não sendo renovada sem acordo expresso do fiador, mesmo em caso de renovação do contrato”.

         5\ O contrato de arrendamento não foi declarado junto das finanças, por exclusiva vontade do réu, e nunca foram passados recibos do pagamento das rendas.

         6\ Desde 01/03/2014 até 20/06/2020, a autora habitou no imóvel, permanentemente, com o seu agregado familiar, constituído por si e pela filha menor que reside consigo em regime de guarda partilhada.

         7\ No dia 20/06/2020, após passar o dia numa piscina, a autora ao chegar a casa, acompanhada pela filha, não conseguiu abrir a porta de casa com a sua chave, tendo constatado que a fechadura tinha sido mudada.

         8\ A autora chamou a polícia, porém não foi autorizada a abertura da porta.

         9\ Na sequência do descrito de 6 a 8, a autora pediu auxílio a uma amiga, que a recebeu em sua casa e a filha menor da autora foi para casa de seu progenitor.

         10\ Todos os bens da autora estavam dentro do imóvel arrendado.

         11\ Até ao dia 01/07/2020, a autora pernoitou em casas de amigos, usando roupas emprestadas por estes.

         12\ Em Julho de 2020, a autora arrendou outro imóvel.

         13\ Na sequência do descrito de 7 a 11, a autora sentiu-se envergonhada e angustiada.

         14\ O réu retirou os bens da autora do imóvel locado, designadamente, roupas e móveis, depositando-os num armazém, sito em Loures.

         15\ A autora contratou uma empresa de mudanças e um motorista particular para transportar os bens do armazém mencionado no ponto anterior, de volta a Lisboa, suportando os respectivos custos.

         16\ O motorista contratado deslocou-se duas vezes ao armazém mencionado em 14 e cobrou 120€ por cada viagem.

         17\ Alguns meses antes do descrito em 7, o réu começou a interpelar a autora para que esta desocupasse o imóvel pois teria a intenção de vender o mesmo, no futuro.

         18\ Em 25/09/2019, o réu enviou carta à autora informando que vendeu a casa e solicitou a sua desocupação e entrega.

         19\ Em 14/11/2019, o réu, por intermédio do seu mandatário, enviou nova carta à autora, na qual afirma que a mesma não tem nenhum título que legitime a sua estadia no locado, solicitando a sua desocupação até 23/11/2019.

         20\ Em 18/04/2020, o réu celebrou com terceiro, contrato-promessa de compra e venda.

         21\ A autora nunca recebeu qualquer comunicação por parte do réu para, querendo, exercer o seu direito de preferência na compra do imóvel.

         22\ Em 20/06/2020, não se encontravam pagas pela autora todas as rendas vencidas relativas ao contrato de arrendamento supramencionado.

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                Do recurso do réu

              O que consta da conclusão 3, quanto a matéria de facto é, quando muito, o anúncio síntese das impugnações subsequentes. Não tem qualquer conteúdo útil. Mas pode-se ainda dizer, a propósito dela, o que será dito mais desenvolvidamente a propósito da conclusão 12, isto é, que dizer que o tribunal devia ter julgado de outro modo, sem dizer como, é uma simples acusação, uma crítica inconsequente, sem qualquer valor argumentativo.

              O que consta da conclusão 4 é outra simples acusação, sem concretização e inconsequente pois que não indica nenhuma decisão da matéria de facto a que se reporte. É irrelevante, pois que apenas vale o que for concretamente apontado quanto a concretos pontos de facto que sejam devidamente identificados. Pelo que não passa de mais um simples anúncio de eventuais impugnações que sejam feitas mais à frente (e essas sim, se existirem, a serem apreciadas).

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              Nas conclusões 5 a 7, o réu impugna a decisão de dar como provado que a ré residia na fracção arrendada em 20/06/2020. Entende que a ré já lá não residia nessa data.

              Isto teria sido declarado por todas as testemunhas apresentadas pelo réu, cuja razão de ciência é a de residirem ou terem negócios no imóvel. O depoimento das testemunhas apresentadas pela autora não valeria de prova do contrário, porque elas não visitaram [desde Abril de 2020] a casa da autora (apesar de, antes de Abril de 2020, o fazerem frequentemente).

              Quanto a esta questão, o tribunal recorrido fundamentou assim a sua decisão:

         […] Os factos provados 7 a 12, resultaram das declarações de parte da autora, que foram corroboradas pelas testemunhas DG, JC e MB.

         Na verdade, o tribunal valorou as declarações de parte da autora e os depoimentos das testemunhas por si arroladas, porquanto os mesmos se revelaram escorreitos e coerentes, não se tendo suscitado dúvidas quanto à sua credibilidade. Efectivamente, as testemunhas DG, JC e MB, todos amigos da autora prestaram depoimentos espontâneos e isentos, não procurando empolar a realidade dos factos.

         No que respeita ao facto provado n.º 6, as testemunhas JC e MB frequentavam a casa da autora, confirmando que o locado estava mobilado e recheado com todos os elementos essenciais de uma habitação permanente. Acresce que, a testemunha JC conseguiu precisar que as últimas ocasiões em que foi a casa da autora ocorreram já durante a pandemia, portanto no decorrer do ano de 2020.

         Quanto aos factos provados n.ºs 7 a 12, valorou-se essencialmente, para além das declarações de parte da autora, o depoimento da testemunha MB, a quem a autora recorreu e pediu auxílio após se ver impedida de entrar na habitação, tendo pernoitado em sua casa durante duas semanas, até arrendar outra habitação. Por ter acolhido a autora, a testemunha pôde constatar pessoalmente que aquela apenas tinha na sua posse a roupa que trazia vestida. De igual modo, a testemunha DG emprestou, à autora, roupa da sua mãe e irmã, recordando-se, e tendo relatado com clareza, que se encontrou com a autora no dia seguinte aos factos e que a mesma ainda envergava roupa de praia.

         Por outro lado, o depoimento da testemunha H, residente no 2º andar esquerdo do prédio onde se situa a fracção arrendada, não revelou espontaneidade, até pela forma como repetia sempre as perguntas que lhe eram feitas, causando a impressão de que pretendia ganhar tempo para pensar na resposta. Ademais, apresentou algumas contradições, mormente ao afirmar que estava convicta que a autora já não residia e, concomitantemente, admitir não ter ficado surpreendida quando, à data dos factos, a autora compareceu no locado e chamou a PSP para abrir a porta da fracção. Por esta razão, não mereceu credibilidade do tribunal na parte em que se encontra em oposição com os demais depoimentos prestados e com as declarações da autora.

         A testemunha MM proprietário do restaurante sito no rés-do-chão do prédio, referiu que deixou de ver a autora em 2020, mas não conseguiu precisar a partir de que data, sendo certo que durante a pandemia esteve ausente de Lisboa em alguns períodos. Assim, este depoimento não é incompatível com a versão da autora e das testemunhas arroladas por esta.

         E pese embora as testemunhas DT e LR, tenham afirmado que deixaram de ver a autora no prédio em Março de 2020, tal afirmação, por si só, e conjugada com o supra exposto, não é suficiente para concluir que a autora ali não residia. Acresce que, o período indicado pelas testemunhas (Março de 2020) corresponde ao início da pandemia da COVID-19 e ao inerente confinamento, factos de conhecimento público e notórios. Acresce que, as testemunhas deslocam-se ao prédio por estarem encarregues pela fracção correspondente ao 3º andar a qual é arrendada em regime de alojamento local e que, aquando do início da pandemia, deixou de receber inquilinos. Por outro lado, o facto de se deslocarem ao prédio apenas para efectuarem a manutenção de uma fracção, em momentos pontuais, não permite percepcionar se a autora ali residia.

         Com efeito, existem nos autos elementos que permitem inferir precisamente o contrário: a conjugação das declarações de parte da autora, com os depoimentos das testemunhas por si arroladas, com o facto de existirem objectos pessoais da autora no interior do locado, sob o crivo das mais elementares regras da experiência comum, permitem concluir que a autora residia no locado à data dos factos.

         A testemunha MB acompanhou de perto a autora e percepcionou o seu estado psíquico em consequência da conduta do réu, relatando estados de angústia e aflição. Também JC, notou o desespero da autora, porquanto a mesma lhe telefonou quando se deparou com a troca da fechadura do locado. Pelas razões elencadas, os depoimentos destas duas testemunhas, em conjugação com as declarações de parte da autora, e não olvidando as regras da experiência, foram determinantes na apreciação da factualidade elencada no facto provado n.º 13.

              Apreciação:

              As testemunhas que o réu apresentou foram 5.

              DT e LR são, alegadamente, dois gestores de um alojamento local instalado numa fracção do 3.º andar do edifício em causa, fracção, essa, propriedade do réu.

              O depoimento destas duas testemunhas não merece qualquer credibilidade.

              O 1.º, DT indica como sua razão de ciência a ida frequente à fracção do 3.º andar e, por isso, o conhecimento da ausência da autora da fracção do 2.º andar esquerdo (embora vá dizendo que não sabe se a autora lá vivia). A parte transcrita no recurso pelo réu só vai até aqui. Mas depois a testemunha reconhece, após uma confusão com o ano de 2019, que só recomeçou a actividade em meio/finais de 2020 [primeiro tinha dito 2019], depois do período do confinamento do Covid-19. Sendo assim, esta testemunha de meados de Março de 2020 até 20/06/2020 não podia até saber nada. Pois que ‘meio/finais de 2020’ é necessariamente muito depois de 20/06/2020, pois que senão não incluía na expressão “finais de”. Mas a testemunha logo a seguir diz que afinal só recomeçaram em Março de 2021. Percebendo que isto tudo lhe retirava a razão de ciência, muda a tónica e diz então que a sua empresa começou a utilizar a fracção do alojamento local como escritório (no período do covid-19, em confinamento, sem “alugueres”, precisavam de um outro escritório, para além do escritório normal da empresa, que ficava logo ali a 100m?). E logo a seguir passa a falar, já não de escritório, mas sim de local de obras de remodelação: começa o confinamento Covid-19 e logo a seguir, ou um mês depois, entram em obras de remodelação. Os vizinhos MM e H – de que se falará mais à frente – não deram qualquer notícia de tais obras, ou da fase do escritório. Repete-se: estas quatro coisas diferentes, retiram qualquer credibilidade ao depoimento da testemunha: (i) razão de ciência: ida frequente ao local como alojamento em funcionamento; (ii) afinal estiveram encerrados até Março de 2021 e por isso não pode saber; (iii) afinal utilizaram o local como escritório e por isso pode saber; (iv) afinal estiveram em obras de remodelação do local e por isso pode saber.

              O colega LR (o outro “co-gestor do alojamento local), diz que conhece o réu por se terem cruzado várias vezes (1:56:34). Mas logo a seguir diz que explora como alojamento a fracção do réu. Como é que alguém nestas condições, diz que conhece o réu por se terem cruzado várias vezes? A resposta é espantosa e retira toda a credibilidade ao depoimento. Alguém que é contraparte de outrem num negócio, não conhece esta contraparte por ser ter cruzado várias vezes com ela. De qualquer modo, esta testemunha não sabe o que é que o seu co-gestor/sócio acabou de dizer e por isso tenta demonstrar que a autora não vivia lá com o seu conhecimento dos factos por ir ao 3.º andar muitos vezes na sua actividade de gestão do alojamento local. Podiam ter 3 ou 4 entradas por semana (mas o colega tinha dito que tinham estadias mínimas de 2 dias, pelo que dificilmente havia motivos para lá ir 4 vezes por semana e como não eram só 2 da empresa a lá ir, isto não equivaleria a ir lá muitas vezes cada um deles). Diz que a exploração esteve aberta. Foi só até aqui que o recurso do réu transcreve partes do depoimento. A testemunha não fala da utilização como escritório. Depois de tudo o que já tinha dito, acaba por sugerir que afinal no período em causa o que fizeram na fracção foram obras de manutenção e por isso é que sabe da ausência da autora. Mas é evidente, face ao que já foi dito, que não há razões para acreditar nestas obras de manutenção ou de remodelação, nem em nada mais do que a testemunha disse.

              Outra testemunha é uma vizinha do 2.º andar, frente à fracção arrendada pela autora: testemunha H. Esta testemunha diz que, dada a situação (o aparecimento à porta, da autora com a filha, por mudança de fechadura), disse à filha da autora para ir lá para dentro (casa da testemunha) à espera do pai ou de alguém que a viesse buscar. É evidente que na altura a testemunha H, apesar de não o dizer, encarou a situação como a de uma mãe que regressa com a filha à casa onde vive e encontra a fechadura trocada, tendo que arranjar solução para a filha. Ou seja, tem muito mais correspondência com a versão da autora do que com a versão que a testemunha pretendeu dar, da autora como de alguém que já lá não reside. E o facto de a testemunha ter querido dar esta ideia – apesar do que disse antes sobre a situação – retira-lhe toda a credibilidade. É na sequência desta parte do depoimento da testemunha que a Srª juíza diz que a testemunha vai repetindo as perguntas para ter mais tempo para pensar nas respostas e, acrescenta-se aqui, quase não responde, num reconhecimento implícito de não o conseguir fazer coerentemente com a versão que pretendeu trazer aos autos. Esta testemunha H naquele dia não os viu entrar (ao réu e pessoas que o acompanhavam), nem mudar a fechadura. Ora este episódio (esbulho, despejo, mudança de fechadura da casa) teve que durar muito mais tempo do que uma entrada vulgar para a casa da autora. E mesmo assim a testemunha não deu conta disso. Assim sendo, não se dá qualquer relevo ao facto de a testemunha pensar que a autora já não vivia na fracção, pois que também a autora pode ter entrado muitas vezes na fracção sem a testemunha ter dado conta dessas entradas. Disse que dava conta de quando a autora estava em casa, pelo barulho que as visitas faziam para lá ir, não porque a autora fizesse barulho lá dentro de casa (embora o episódio narrado pela testemunha na parte transcrita pelo réu no recurso dê a ideia que isso se passava muitas vezes, a testemunha, mais à frente, esclarece que o que contou foi o resultado de uma queda da autora nas escadas, que não havia discussões na casa da autora). E a testemunha diz que nunca disse ao réu que a autora já lá não vivia, nem o réu lhe perguntou nunca isso, ao contrário do que o réu diz na contestação e a sua secretária repete por lhe ter sido contado pelo réu… segundo diz).

              Em suma, esta testemunha não convence ter razões para saber que a autora não vivia na fracção arrendada.

              Quanto ao que esta testemunha (H) terá dito num auto que o réu juntou com a contestação, e que o réu nem sequer identifica devidamente, limitando-se a chamar-lhe um documento (embora mais à frente, a outro propósito, acabe por o identificar), diga-se que naquele tal auto, misturado pelo réu com um outro auto (folhas intercaladas), ambos da PSP (trata-se do doc.12), consta um § com uma informação supostamente prestada por uma pessoa que não se quis identificar (mas que alegadamente terá sido a vizinha do 2º andar), em que se referem dados fornecidos alegadamente por esta testemunha. Tudo isto consta de um outro auto [são por isso três os autos em questão], transcrito no 2.º por um outro agente da PSP em 16/07/2020 [quase um mês depois dos factos], auto esse, o transcrito, que não se sabe quando foi elaborado pelo agente da PSP que se deslocou ao local no dia dos factos, que nem sequer está identificado. Nesse auto, repete-se, não se sabe elaborado quando, o agente da PSP pode ter colocado o que lhe apeteceu, já que não consta a validação da assinatura da testemunha em causa, alegadamente ouvida. Pelo que o mesmo não tem qualquer valor, nem que fosse por aplicação do disposto no art. 421 do CPC, pois que também não foi observado qualquer contraditório. A fundamentação da decisão de facto já tinha desvalorizado este documento (quando se refere ao facto não provado sob D) e o réu nem tenta rebater o que aí é dito. De qualquer modo, diga-se que ali é referido que a pessoa em causa não vê a autora “durante os últimos dias”, o que é muito diferente dos 2 ou 3 meses que a testemunha do 2º andar agora refere. Pelo que o documento invocado pelo réu até contradiz o depoimento da testemunha.

              O outro vizinho é o dono do restaurante que está instalado no rés-do-chão do edifício, que vai dizendo repetidamente que não sabe se a autora morava ou não lá e que de datas não sabe nada. Logicamente, o réu não aproveita este depoimento. Mas esta testemunha, pelas duas qualidades que têm, dono do restaurante lá instalado e vizinho, tinha mais razões que a vizinha do 2º para saber e dizer alguma coisa de útil ao réu, pelo que é significativo que a testemunha tente sugerir que a autora já lá não morava, mas não diga nada de útil para que, face ao que antecede, convença minimamente, e daí que o réu não o aproveite, mas, ainda assim, tente aproveitar o depoimento da testemunha do 2.º andar em piores condições. Também esta testemunha (MM) não soube da mudança da fechadura (nem por isso do esbulho), acontecimento que, ao contrário das idas e vindas da autora, daria muito mais nas vistas, por levar muito mais tempo, o que demonstra que é muito possível passaram-se coisas num edifício sem que os seus moradores saibam de tudo o que lá se passa.

              A última testemunha é a Srª D, 63 anos, secretária do réu. Não refere outra razão de ciência, nesta parte, que não o que lhe foi contado pelo réu. Não tem qualquer valor. Veja-se, que, por exemplo, que o que o réu lhe contou sobre o que lhe teria sido dito pelos vizinhos, foi desmentido pela testemunha H, a que mais parecia favorecer a versão do réu. E, do depoimento do outro vizinho, o réu nem se tenta agora aproveitar, pelo que se vê que, afinal, o que o réu disse à sua secretária não tem qualquer suporte. Não valia a pena, pois, que o tribunal recorrido se estivesse a referir a este depoimento, sem qualquer valor, pelo que a crítica do réu a este propósito não tem relevo.

              Quanto ao depoimento das testemunhas apresentadas pela autora, conjugadas com os factos referidos pela sentença – como o de a fracção arrendada ter as coisas da autora (móveis e roupa íntima da autora) e de esta estar sem roupa para vestir depois da usurpação da fracção pelo réu – não deixam qualquer dúvida sobre o que declararam. Os elementos que apontam inequivocamente nesse sentido, conjugados com os depoimentos e declarações referidos a seguir, implícitos no dito pela sentença, são óbvios: se havia um contrato de arrendamento, se esse contrato não cessou, se as todas as coisas da autora estavam lá no dia do esbulho (facto provado e não impugnado), se a autora no próprio dia do esbulho deu conta dele, é porque a autora lá vivia.

              Ao contrário do que o réu sugere, a testemunha DG nunca disse ter ido a casa da autora antes. A única testemunha que disse ter lá ido muitas vezes – sem deixar qualquer margem para dúvidas dado o pormenor com que o fez (tanto que o advogado da ré não perdeu muito mais do que um minuto na instância da mesma, sem procurar pôr em causa o seu depoimento) – foi JC que, ao contrário do que o réu sugere (mas a própria transcrição do depoimento, feita pelo réu, embora com muitas omissões – aqui como noutras partes, omissões não assinaladas com o usual sinal de […] -, diz o contrário), declarou, expressamente, que foi à fracção habitada pela autora pelo menos umas 7 ou 8 vezes durante o período covid-19 e por isso podia saber que esta lá habitava.

              O relevo de outra testemunha DG foi ter visto a autora, no dia a seguir ao esbulho, sem mais nada do que a roupa de praia. Teve que lhe dar roupa da família e coisas de casa. A autora estava perturbadíssima e continua muito nervosa. Foi a autora – e a filha – que lhe disseram que moravam lá na altura.

              E o relevo do depoimento da testemunha MB foi ter recebido um telefonema 30 minutos depois de a autora a ter deixado depois da piscina, a dizer-lhe aos prantos que não tinha conseguido entrar em casa por a fechadura ter sido mudada e ter depois ido para casa da testemunha, durante cerca de 2 semanas, só com a roupa de praia, tendo a testemunha que lhe emprestar roupa, inclusive roupa íntima.

              Por fim, e neste contexto de provas que a corroboram, a sentença invocou ainda as declarações de parte da autora (que este TRL não esteve a ouvir porque o réu não as invocou e este TRL não as considerou necessárias para esclarecer o que decorre dos outros elementos de prova), e o réu nada disse contra o conteúdo das mesmas à excepção da invocação contra elas do já referido doc. 12, em que alegadamente também constará algo declarado pela autora ao agente da PSP já referido, auto que não tem qualquer valor probatório, como já foi explicado acima.

              Em suma, a prova produzida pela autora permitia a conclusão de que esta estava a residir na fracção em 20/06/2020 e a prova produzida pelo réu não foi suficiente para criar a dúvida sobre o facto, pelo que o mesmo foi, bem, dado como provado (art. 346 do CC).

                                          *

              O que consta da conclusão 8 é um manifesto erro de direito. Nem a acção nem a reconvenção têm por objecto um pedido de pagamento de rendas, pelo que, como é evidente, o tribunal nunca poderia condenar num pagamento de rendas (artigos 608 e 609 do CPC). A transcrição de depoimentos feitas pelo réu, nesta parte, é despropositada, pois não serve para nada.

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              Na conclusão 9 pode-se ver uma impugnação da decisão do facto 13.

              A fundamentação do tribunal para dar este facto como provado já foi transcrita acima e nela são referidos três elementos de prova.

              A simples afirmação do réu de que não foi feita prova (nem documental nem testemunhal) de tal facto, apesar da invocação, pelo tribunal, de 3 elementos de prova, torna clara a falta de argumentação do recurso do réu, isto é, que a conclusão não passa de uma afirmação gratuita, sem fundamentação, pelo que não tem de ser considerada por este TRL. Designadamente, o tribunal não tem que emitir nenhum juízo sobre se a autora ainda devia ter produzido um outro meio de prova, depois de já ter indicado 3 que considerou suficientes para o efeito e que o réu nem sequer analisa.

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              Na conclusão 10 pode ver-se uma impugnação da decisão quanto aos factos não provados sob G – A não entrega do locado pela autora provocou ao réu, stress, ansiedade e descontrolo do sistema nervosoe HDevido à situação descrita no ponto anterior, o réu toma medicação (Fluoxetina, Nodepe, Sedoxil e Flexiban).

              O tribunal recorrido fundamentou assim a decisão destes pontos da matéria de facto.

         No que respeita aos factos não provados G e H, à luz das regras gerais do ónus da prova, incumbia ao réu provar os danos que alegou, contudo, não resulta dos autos quaisquer elementos que permitam corroborar os prejuízos alegados, restando concluir pela sua não demonstração.

              O réu transcreve para prova destes factos partes dos depoimentos das testemunhas co-gestoras do alojamento local instalado no 3.º andar propriedade do réu (9 + 4 linhas de texto) e da secretária do réu (9 linhas de texto). E sugere que a indicação dos fármacos também seria um elemento de prova.

              Os depoimentos dos dois co-gestores já foram analisados e a total falta de credibilidade dos mesmos já demonstrada, pelo que não têm como convencer. O facto de a secretária do réu, com uma ligação ao mesmo de dezenas de anos, dizer que este andava muito nervoso com a situação não é prova suficiente do nexo de causalidade da conduta da autora com a situação invocada pelo réu. Esteve podia andar muito nervoso por ter feito um contrato de arrendamento e não o ter comunicado às finanças e não saber sair da situação. A simples indicação do nome dos fármacos não é um elemento de prova, mas uma afirmação de facto sujeita a prova. Em suma, a argumentação do réu não convence que estes factos devam ser considerados como provados.

              De qualquer modo, note-se que a sentença recorrida disse, fundamentadamente, que “resultou do vertido supra que o contrato de arrendamento celebrado entre as partes se renovou sucessivamente, sendo válido e eficaz. Assim, o réu não tinha qualquer fundamento legal para exigir a entrega do locado.” Ora, não tendo o réu discutido o Direito, não tem nenhum interesse saber se a conduta da autora, que não era ilícita, de não entrega da fracção arrendada lhe provocou quaisquer danos.

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              Quanto à conclusão 11:

              O réu confunde declarações de parte e depoimento de parte. O tribunal não invocou qualquer depoimento de parte, mas sim as declarações de parte. De qualquer modo, a ter havido a preterição de alguma formalidade na produção das declarações de parte com relevo para a decisão da causa, o réu devia ter arguido a nulidade em tempo, isto é, no caso, na audiência de 17/10/2022, sob pena de não o poder fazer mais tarde (artigo 199/1 do CPC).

            Nesta matéria o réu invoca o ac. do TRG de 18/01/2018 (sem o identificar devidamente). Das passagens que cita constata-se que se trata do acórdão proferido no processo 294/16.0Y3BRG.G1, acórdão  que trata de uma questão diferente daquela que está em causa na conclusão 11. O acórdão aponta para a necessidade de corroboração das declarações de parte por outra prova para que elas tenham valor probatório suficiente. Ora, a sentença recorrida serviu-se das declarações de parte apenas como mais um elemento de prova e referiu que elas estavam corroboradas por essa outra prova. Pelo que a argumentação do réu não tem aplicação ao caso.

                                                                 *

              Do corpo das alegações, consta a impugnação de outros factos, mas tal é irrelevante, pois que é nas conclusões que tem de constar a precisa identificação dos pontos de factos impugnados (arts. 639/1 e 640/1-a do CPC). Apenas por exemplo, aproveita-se o ac. do STJ de 06/06/2018, proc. 4691/16.2T8LSB.L1.S1, invocado pela autora na resposta: “Se o recorrente, ao explanar e ao desenvolver os fundamentos da sua alegação, impugnar a decisão proferida na 1ª instância sobre a matéria de facto, pugnando pela sua alteração/modificação, mas omitindo nas conclusões qualquer referência a essa decisão e a essa impugnação, essa questão não faz parte do objecto do recurso.” (o acórdão indica suficiente doutrina e jurisprudência no mesmo sentido).

              Em suma, a impugnação da decisão da matéria de facto improcede no seu todo.

                                                                 *

              O que consta da conclusão 3, quanto a matéria de direito, é a simples colocação do destino do recurso na procedência da impugnação da decisão da matéria de facto. Como esta foi improcedente, logo por aqui nada mais havia a considerar.

              O que consta da conclusão 12 quanto a matéria de direito não contem qualquer argumentação jurídica: dizer que a procedência da acção corresponde a um erro grosseiro de direito, é o mesmo que não dizer nada.

              As conclusões não podem limitar-se a uma singela “afirmação de procedência do pedido da recorrente, antes contendo todo um raciocínio lógico-jurídico a contrariar as razões adoptadas no aresto posto em crise […]” acórdão do STJ de 19/02/2008, proc. 08A194, lembrado por João Aveiro Pereira no seu estudo sobre O ónus de concluir nas alegações de recurso em processo civil.

              No mesmo sentido, o Prof. Alberto dos Reis (CPC anotado, vol. 5º reimpressão, Coimbra Editora, 1981, pág. 360) lembra o ac. do STJ de 10/12/1943 que decidiu que “não satisfaz ao disposto no art. 690 [agora 639/1 do CPC] a alegação do recorrente que, a título de conclusão, se limita a solicitar a absolvição do pedido e a revogação da sentença apelada, pois o artigo exige que nas conclusões se indiquem resumidamente os fundamentos por que se pede a alteração ou anulação da sentença ou despacho.” E comenta: “A doutrina do acórdão é perfeitamente exacta.”

              Como o réu não aduz um único fundamento de ataque da decisão recorrida, porque não diz, minimamente que seja, por que é que a decisão recorrida devia ser outra ou por que é que está errada, não há fundamentos que tenham que ser conhecidos.

                                                                 *

              Do recurso da autora sobre o montante da indemnização

              A sentença recorrida esclareceu, com fundamentação, que (faz-se uma síntese): havia entre autora e réu um contrato de arrendamento para habitação que era válido (artigo 1069/1 do CC), que era renovável (artigos 1094/1 e 1096 do CC) visto que era de prazo certo e não tinha sido acordado que não seria renovável. O alegado pelo réu e os factos provados não correspondem a qualquer oposição à renovação do contrato (artigos 1079 e 1097/1-2 do CC), nem a outra forma de cessação do contrato, pelo que este se foi renovando e estava em vigor à data do esbulho. A existência de rendas em atraso (cujo pagamento é peticionado pelo autor no âmbito do processo n.º 9505/21.9T8LSB), é irrelevante, porquanto, o senhorio, aqui réu, não resolveu o contrato, com fundamento no incumprimento por parte da arrendatária, aqui autora. O facto de a fiança ter sido limitada ao prazo de um ano, não obsta à renovação do contrato de arrendamento. A própria lei (art. 654 do CC) prevê a desvinculação do fiador em prazo diverso da duração do negócio em relação ao qual foi prestada a fiança. Continuando o contrato em vigor em 20/06/2020, o contrato de arrendamento celebrado entre as partes estava em vigor, pelo que incumbia às partes cumprirem as obrigações decorrentes daquela relação jurídica material. Desta feita, ao proceder, com dolo, ao arrombamento da porta e troca da fechadura do imóvel arrendado, o senhorio violou as obrigações principais a que estava adstrito, concretamente, permitir à arrendatária o gozo e fruição do imóvel arrendado, tornando-se responsável pelos prejuízos lhe causou (arts. 406, 798, 562, 563 e 566, todos do CC). A conduta do réu, para além de consubstanciar incumprimento contratual, é manifestamente atentatória do direito à reserva da intimidade da vida privada. A reserva da vida privada consubstancia, desde logo, um direito fundamental expressamente protegido composicionalmente no artigo 26 da Constituição da República Portuguesa e, é, simultaneamente, um direito de personalidade, tutelado nos artigos 70 e 80 do CC. A indemnização abrange os danos patrimoniais (art. 564 do CC) e também os danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, em conformidade com o disposto no artigo 496/1 do CC. Estes últimos não são susceptíveis de avaliação pecuniária. A sua indemnização é fixada com recurso à equidade, em conformidade com o disposto no artigo 496/4 e 494 do CC.

              Nada disto foi discutido pelas partes e corresponde ao regime aplicável.

              A sentença, de seguida continuou assim, sempre em síntese:

              Na fixação do montante indemnizatório destes danos, o julgador deve considerar todas as circunstâncias concretas do caso, como o grau de culpa do agente, a gravidade dos danos, o contexto da actuação do agente, etc.. A conduta perpetrada pelo réu causou à autora constrangimentos, sentindo-se envergonhada, humilhada e angustiada, por se ver privada do seu lar e dos seus bens. A fracção arrendada constituía a casa morada de família da autora pelo que, ser privada do mesmo, assim como de todo o seu recheio, consubstancia gravidade objectiva merecedora de tutela jurídica. A habitação constitui o espaço de maior conforto, privacidade e intimidade de que uma pessoa dispõe. É de destacar o facto de a filha menor da autora estar presente no momento em que esta última se viu privada de entrar no seu lar, sendo forçada a encaminhar a menor para casa do pai e a recorrer à ajuda de uma amiga, que a deixou pernoitar na sua casa durante duas semanas. Por outro lado, não podendo aceder à sua casa, a autora ficou privada dos bens pessoais, incluindo os bens mais básicos, como roupa, que, durante aquele período lhe foi emprestada por amigos. Assim, atento o supra exposto, à gravidade da conduta do réu e ao lapso temporal em que autora esteve privada dos seus bens pessoais, entende-se justo e adequado atribuir 7.500€ a título de compensação por estes danos.

              A autora termina as alegações do seu recurso com as seguintes conclusões, que se transcrevem na parte útil e com simplificações:

         III\ Impunha-se a fixação da indemnização em 20.000€ face à gravidade dos factos provados, ao grau de culpa, contexto de actuação e situação económica do réu, bem como a gravidade dos danos sofridos pela autora, ao circunstancialismo do caso em concreto e ao seu contexto temporal: início da pandemia da COVID-19.

         IV\ Decisões dos tribunais de recurso (em casos não análogos, porém de menor ou igual gravidade) atribuem montantes indemnizatórios claramente superiores ao arbitrado pelo tribunal a quo.

         […]

         VI\ os danos sofridos pela autora ainda se prolongam aos dias de hoje dado a dificuldade da mesma em conseguir ter estabilidade emocional e profissional.

              No corpo das alegações a autora consubstancia o que diz nas conclusões, dizendo, em síntese, que:

         i\ a sentença recorrida desconsiderou que os actos praticados pelo réu tiveram ocasião durante o início da pandemia da COVID-19 e da inerente aplicação de medidas excepcionais – mormente o confinamento no domicílio – facto de conhecimento público e notório. A autora teria sido privada do único local que tinha para se alojar e pernoitar, colocando à data não apenas a sua segurança em causa, mas também a sua saúde.

         ii\ A sentença teria também desconsiderado a situação económica do réu, que é um conceituado arquitecto, actualmente caracteriza-se profissionalmente como empresário e é proprietário de inúmeros bens imóveis, os quais, tanto quanto é do conhecimento da autora e conforme foi afirmado por uma testemunha em sede de audiência e julgamento, são objecto de arrendamento.

         iii\ A mais, conforme resulta do facto provado 20, a fracção em causa foi objecto de contrato de promessa de compra e venda, tendo sido posteriormente, segundo o réu, pelo preço de 250.000€.

         iv\ A autora foi arbitrariamente despejada e viu-se, com a sua filha menor, privadas ambas dos seus bens mais pessoais para que, em contraponto, o réu conseguisse, vender um imóvel, e como tal lucrar com os seus actos ilícitos.

         v\ Não assume qualquer equidade o valor arbitrado pelo tribunal a quo, porquanto o réu, ainda que pague o valor a que foi condenado tem um ganho desrazoável por se fazer valer da sua condição de senhorio.

         vi\ É incontestável a importância dada, nomeadamente pela Lei 12/2019, de 12/02, ao assédio no arrendamento praticado pelos senhorios (aquela lei proíbe e pune o assédio no arrendamento urbano).

         vii\ Quando algum proprietário deseja ser restituído à posse do seu imóvel arrendado, antes do término do contrato de arrendamento, são amigavelmente atribuídos valores bem mais significativos do que o valor arbitrado à autora.

         viii\ Se olharmos para o valor de mercado dos imóveis na zona em que a autora vivia, percebe-se que o valor de indemnização arbitrado quando muito seria suficiente para a autora prover suficiência financeira e garantir a celebração de um novo contrato de arrendamento na mesma zona (tendo em conta os exagerados valores que vêm sendo exigidos a título de caução e garantia dos imóveis arrendados).

         ix\ A autora invoca dois acórdãos no sentido de que a jurisprudência (ainda que em casos não análogos ao presente), em situações maioritariamente menos gravosas, fixa indemnizações bem divergentes da que consta na decisão objecto deste recurso. São os acórdãos do STJ, de 23/10/2012, proc. 2398/06.8TBPDL.L1.S1, no qual se considerou adequada a indemnização de € 50.000 « (…) pela imputação, pública e reiterada, através de um órgão de comunicação social (no caso, um relevante canal de televisão) a um cidadão (em concreto um cidadão com demonstrada e reconhecida intervenção a nível cívico, público e político) de envolvimento em actos de pedofilia e envolvimento sexual com menores, ainda que objecto de posterior rectificação, […]. E o de 02/12/2020, processo 24555/17.1T8LSB.L1.S1, no qual se confirmou a condenação de um jornalista e a indemnização atribuída pela segunda instância: «Num quadro em que foram produzidas afirmações com animosidade e intenção ofensiva, cuja falsidade a ré não podia razoavelmente ignorar e sendo objectivamente passíveis de, quer pelo conteúdo quer pela forma, denegrirem a honra e o bom nome do autor, no domínio da vida privada deste, ponderando casos congéneres e as demais circunstâncias do caso, tem-se por adequado fixar a indemnização em 25.000€.”

         x\ Continua a autora a dizer que pese embora a falta de similaridade destes julgados com o que vivenciou a autora, facto é que esta se sentiria infinitamente menos lesada com a divulgação pelos meios de comunicação social de informações não verdadeiras sobre a sua pessoa.

         xi\ Por outro lado, em não havendo majoração da indemnização arbitrada em primeira instância, “valerá a pena” para muitos senhorios praticarem os mesmos ilícitos que praticou o réu, passando a ser este mais um caso – dentre muitos que certamente ainda virão – em que “o mais forte” prevalece sobre “o mais fraco”.

            Acrescente-se que, xii\, na petição inicial a autora invocava um ac. do TRL, de 04/10/2017, proc. 6087/2007-2, em que foi atribuída uma indemnização de 2500€ por uma situação similar, embora transitória, mas que se prolongou por vários meses, e com três entradas ilícitas na casa do autor.

              Apreciação:

            Quanto a i\: são factos notórios, segundo o art. 412/1 do CPC, os factos que são do conhecimento geral.

              A maior parte dos factos relativos à COVID-19 não são factos do conhecimento geral, pois que decorrem do conteúdo de centenas de diplomas legais, que só um estudo cuidado e especializado permite conhecer bem a nível de consequências na vida de todos os dias. O máximo que se pode dizer é que, para já, é do conhecimento geral apenas uma ideia já difusa do momento do início do período do confinamento imposto pela legislação COVID-19, ou seja, em meados de Março de 2020. Ora, basta isto para pôr em causa a argumentação da autora nesta parte, pois que um facto praticado em 20/06/2020 não ocorreu no início da pandemia provocada pelo COVID-19.

              Dois artigos publicados no Diário de Notícias de 01/06/2020 e 02/03/2021, (i) Cronologia de uma pandemia em português. Os três meses que mudaram o país e (ii) 12 meses, 12 momentos na evolução da pandemia em Portugal, permitem, por exemplo, fazer este relato muito por alto: o estado de emergência, com confinamento, foi declarado a 18/03/2020. E terminou a 02/05/2020. Mas depois seguiu-se um período de estado de calamidade, prolongado até 14/06/2020, com diversas medidas de confinamento que só foram sendo levantadas por fases, sendo que em 16/05/2020 o primeiro-ministro pedia que os portugueses regressassem às ruas, frequentando lojas, restaurantes e cafés, embora com cautelas. Mas em 29/05/2020, o Governo aprovou a terceira fase do plano de desconfinamento, com restrições e regras especiais para a área de Lisboa, devido ao aumento de casos de covid-19. E a 15/07/2020 a situação de calamidade foi renovada em 19 freguesias da Área Metropolitana de Lisboa (a mais atingida na altura), sendo que esta tem 118 freguesias.

              Faz-se este relato muito genérico – com base em notícias que não são prova suficiente de nada e que não foram sujeitas a contraditório -, apenas para demonstrar que nada há de notório no que é que se passou de facto durante o período do COVID-19, em cada momento e em cada local do país e que qualquer afirmação precisa que se fizesse a propósito teria de estar sujeita a prova produzida com observância do contraditório.

              Portanto, não se podem considerar factos notórios provados as afirmações que a autora faz em i\ e, assim, eles não podiam ser tomados em consideração na fixação da indemnização.

              Quanto a ii\ – a autora não impugnou a decisão da matéria de facto, de modo a aditar factos provados, pelo que nada do que consta de ii\ pode ser considerado.

              O mesmo vale quanto à 2.ª parte de iii\ e, por isso, fica também prejudicado o nexo de causalidade pressuposto em iv\.

              Quanto a iv\, v\ e xi\, a autora trata de possíveis lucros do réu com a prática do acto ilícito, ou seja, o valor obtido a mais pelo réu com a venda de um imóvel, não ocupado por um arrendatário, mas sim livre de pessoas e bens, e, implicitamente, de função preventiva da responsabilidade civil. Mas um eventual ganho do lesante não é um dano do lesado, nem é uma situação hipotética a reconstituir (art. 562 do CC) e a prevenção de factos semelhantes não tem função autónoma na responsabilidade civil antes decorre da fixação da indemnização de um dano e que por isso tem este dano como limite.

              Assim, por exemplo, Paulo Mota Pinto, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Coimbra Editora, 2008, pág. 826: “[…] a prossecução autónoma destes objectivos repressivos ou preventivos, acima do limiar da compensação, não parece ter sido autorizada pela nossa lei. Deve, antes, entender-se que o art. 562.º (como resulta também do confronto com o art. 563.º) se reporta apenas à situação em que estaria o lesado, e não à situação do lesante (embora o teor literal da disposição parecesse consentir ainda esta última interpretação), e que tal sustentação de uma “indemnização” apenas em fins sancionatórios ou preventivos é vedada acima do “limiar da compensação” a que aquele art. 562.º se refere. E a argumentação com aquelas finalidades para explicar soluções como as da irrelevância da causa virtual, não se limita a conceder-lhes relevância no quadro da compensação, antes transpõe este limiar, e, nesta medida, transforma a “indemnização” em algo de qualitativamente verso.”

              E também Maria de Lurdes Pereira, Direito da responsabilidade civil, A obrigação de indemnizar, AAFDL 2021, páginas 38-40, com indicação de outra doutrina num e noutro sentido: “[…] não há base no direito português da responsabilidade civil que legitime a condenação numa «indemnização punitiva», seja no âmbito da violação de direitos de personalidade, seja de quaisquer outros direitos ou interesses protegidos, salvo quando a própria lei autorize que a indemnização seja quantificada em montante superior ao dano. A «indemnização punitiva» não é admissível nem quando consista em dar ao lesado uma quantia sempre que não sofreu qualquer dano ou um dano inferior, nem quando, sendo caso disso, esteja em causa a recuperação do lucro obtido pelo lesante, sem que esse lucro tenha por contrapartida uma perda do titular do direito perturbado. Em qualquer das versões, ela não tem qualquer base no nosso direito da responsabilidade civil.”

              De qualquer modo, no caso, teria que ter ficado provada, para eventual consideração daquele ganho, pelo menos a venda do imóvel e depois teria que haver factos que provassem aquela diferença de valores. Como nem sequer foi provada a venda, o problema fica afastado.

              Quanto a vi\, face ao que consta da fundamentação da sentença e ao valor da indemnização atribuída (ver-se-á mais à frente quando se falar sobre a parte xii\), a autora não tem razão em supor que aquela não tenha dado o possível relevo, nesta acção, ao comportamento do senhorio réu. E caberia à autora impulsionar outros meios de reacção contra tal comportamento permitidos pela Lei 12/2019, de 12/02.

              Quanto a viii\, não se vê razão para considerar que a indemnização atribuída devesse garantir ainda o que a autora pretende em viii\, sendo que a autora nem sequer diz o que é que deveria ser ainda garantido.

              Quanto a ix\, vê-se, pelas passagens citadas dos acórdãos em causa, que eles nada têm a ver com o tipo de situação que está em causa nos autos, o que aliás é reconhecido pela autora.

              Quanto a x\, trata-se de um simples exercício de especulação retórica por parte da autora, artificial, para tentar comparar o que é incomparável.

            Quanto a xii\, trata-se de utilizar aqui, contra a argumentação da autora, a jurisprudência que ela própria invocava na petição inicial para um caso, esse sim, com analogia com a situação (consta no sumário do acórdão: O art. 1040/1 do CC, que concede ao locatário o direito à redução da renda proporcional ao tempo de privação ou diminuição do gozo da coisa locada que resulte de motivo não atinente à sua pessoa ou à dos seus familiares, não exclui o direito do locatário a ser ressarcido por outros danos emergentes da conduta do locador, nomeadamente angústia e insegurança por ter tido de pernoitar por alguns dias dentro do seu automóvel e, por mais de uma vez, sem autorização e informação prévia, o locador ter entrado no arrendado, pegado nos pertences do locatário e tê-los posto porta fora.) Ora, nesse caso foi atribuída uma indemnização de apenas 2500€, o que só por si demonstra, como se sugeria na parte sob vi\, que a sentença recorrida considerou a gravidade do comportamento do réu que a autora salientava nessa parte. Se não o fizesse não podia ter atribuído uma indemnização com aquele valor.

           Outras situações de perturbação do direito à habitação, também têm dado direito a indemnizações de montante muito inferior (assim, por exemplo, o acórdão do TRL de 11/03/2021, proc. 223/19.9T8VFC.L1-2, em que o ladrar constante de dois cães privava os autores de descanso, sossego e tranquilidade, atribui a cada um dos autores de 2000€, por uma situação que durou perto de 2 anos; neste acórdão são referidos vários outros em que também estava em causa o direito à habitação; o ac. do TRL de 04/11/2021, proc. 839/20.0T8AGH.L1-2: A ré deixou por acabar a construção da casa de habitação dos autores; tal implicou um período de, no máximo, 7,5 meses de exposição dos autores aos elementos naturais e os inerentes sentimentos de insegurança e receio, bem como desgosto pela situação; atribuiu-se uma indemnização de 1000€ para cada um dos autores por estes danos não patrimoniais).

              Por último, a autora para pedir um valor superior desta indemnização falava nos danos da sua filha. Mas os danos desta não estão em causa já que ela não é autora.

              Em suma: a autora não tem razão nas suas críticas ao valor da indemnização fixado pelos danos não patrimoniais. Dito de outro modo: os argumentos que utilizam não demonstram a necessidade do aumento dessa indemnização.

                                                                 *

              Pelo exposto, julgam-se ambos os recursos improcedentes.

              Custas do recurso do réu, na vertente de custas de parte, pelo réu.

              Sem custas quanto ao recurso da autora, porque esta está dispensada delas por lhe ter sido concedido apoio judiciário nessa modalidade.

              Depois do trânsito em julgado, ter-se-á que cumprir a comunicação às finanças determinada pela sentença recorrida.

              Lisboa, 26/10/2023

              Pedro Martins

             1.º Adjunto

             2.º Adjunto