Processo  do Juízo Local Cível de Lisboa – J5

             Sumário:

            São nulas, por impossibilidade decorrente de incapacidade de gozo (art. 280/1 do CC), as doações de bens da sociedade a terceiros [para mais quando os terceiros são sócios e os gerentes fazem as doações 4 dias antes de uma assembleia destinada à sua destituição como gerentes], em relação às quais não se aleguem e provem factos que permitam concluir que elas, segundo as circunstâncias da época e as condições da própria sociedade, não são contrárias ao fim desta (art. 6/2 do CSC) ou são necessárias ou convenientes à prossecução do fim da sociedade (art. 6/1 do CSC).

               Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

              A B-LDA, intentou a presente acção contra (i) A e mulher, casados no regime de comunhão de adquiridos, (ii) J e (iii) V, pedindo que:

         (a) sejam declaradas nulas, por simulação, as compras e vendas das viaturas automóveis identificadas porque viciadas por simulação dos seus intervenientes; (b) em consequência, serem cancelados os registos das respectivas aquisições e registos subsequentes; (c) ainda, em consequência, serem as viaturas restituídas ao património da autora; (d) ser reconhecido o direito de propriedade da autora sobre as viaturas; (e) caso assim não se entenda, e com o mesmo efeito jurídico, requer sejam os negócios em causa declarados nulos por abuso de representação já que os réus A e J excederam os limites dos poderes que lhe foram conferidos, com prejuízo dos interesses da autora e com o conhecimento da ré V; (f) sem prescindir, que se declare o acto anulável, por se tratar de negócio consigo mesmo, nos termos do artigo 261 do Código Civil; em qualquer caso, (g), em consequência, sejam todos os réus condenados a pagar à autora uma indemnização devida pela privação do uso das suas viaturas desde a data de cada um dos contratos de compra e venda até efectiva restituição, no valor 500€ por mês e por viatura, de que já se encontra vencida a quantia de 10.000€; (h) subsidiariamente serem os réus condenadas a pagar à autora o valor comercial de cada uma das viaturas à data dos contratos celebrados a 27/02/2020, no valor global de 7.500€, na medida do empobrecimento desta e enriquecimento daquelas.

                Alegou para tanto, em síntese, que:

          A autora é uma sociedade por quotas cujo objecto é a exploração de um estabelecimento comercial que tem por objecto a importação, torrefacção e venda a retalho por grosso de café e outros artigos congéneres; no âmbito da sua actividade adquiriu duas viaturas automóveis: um AUDI e um ALFA ROMEO; os réus A e J foram gerentes da autora até 02/03/2020, data em que foram objecto de deliberação de destituição; a ré V é sócia da autora desde o dia 02/01/2020 e é filha do réu J e da sua mulher, com eles residindo; os réus A, J e V recepcionaram a convocatória expedida para a assembleia geral de cuja ordem de trabalhos constava a sua destituição, a 11 e 12/02/2020; a 27/02/2020, ainda na qualidade de gerentes da autora os réus A e J em conluio e sem o consentimento da autora, simularam contratos de compra e venda daquelas viaturas, tendo tais “vendas” sido objecto de registo na Conservatória no dia 06/03/2020, preenchendo e assinando os documentos de transmissão de propriedade do Alfa a favor do réu A e do Audi a favor da ré V; as viaturas eram propriedade da autora, tendo estado registadas a seu favor até 05/03/2020, sendo dela a responsabilidade pelo pagamento de todos os impostos, seguros e despesas correntes; acresce que o Alfa, antes de ser adquirido pela autora, foi por esta utilizada em sistema de locação financeira contratado com uma Leasing, à qual liquidou todas as prestações de 15/07/2001 a 15/07/2004; não existe, na contabilidade da empresa ou nos seus registos bancários, o reflexo das “compras e vendas” para os réus A e V, pois nada foi liquidado pelos contratos respectivos, nem existe factura e/ou documento equivalente emitido pela autora que sustente as transmissões; os réus  simularam o negócio de venda das viaturas, com o único intuito de se apropriarem das mesmas, antecipando a sua saída da sociedade, e dotando os réus A, mulher e V de um património a custo zero; os negócios foram realizados tão só no intuito de prejudicar a autora; pelo que são actos simulados e em consequência nulos, com todos os legais efeitos; os réus declararam falsamente, uns, vender e, outros, comprar, quando a vontade real de todos era subtrair os bens ao património da autora em benefício próprio, sem pagar qualquer valor; muito embora a autora não seja alheia aos negócios na medida em que formalmente interveio neles através dos seus gerentes, deve considerar-se alheia ao conluio entre os réus, relevando o vício da vontade que ocorreu na pessoa dos seus representantes, nos termos e para efeitos do art. 259/1 do CC, para efeitos da nulidade dos negócios simulados, com a consequente restituição dos mesmos para o património da autora; sempre tais negócios seriam nulos por abuso de representação nos termos e para os efeitos do artigo 269 do CC: face ao conluio entre os réus, acima alegado e à falta de consentimento da autora, o negócio é ineficaz perante a autora, sequer se podendo considerar a ré V como terceira uma vez que, para além de filha do réu J, também é sócia da autora; mas, mesmo que a ré V seja considerada terceira para efeitos do abuso de representação, na sua dupla qualidade de familiar do gerente e sócia da sociedade, é mais do que conhecedora do abuso enquanto tal, perpetrado pelos gerentes, ou seja, sabia da preterição dos interesses/objectivos da autora, bem como conhecia a inexistência de instruções internas para o negócio consigo celebrado, conhecendo o abuso no sentido em que este era notório e evidente, tendo assim o dever de não celebrar o negócio representativo; os réus A e J abusaram dos seus poderes, pelo que as referidas vendas são ineficazes perante a autora, nos termos dos artigos 268 e 269 do CC; caso assim não se entenda, sempre as transmissões de propriedade das viaturas são anuláveis, por se tratar de negócio consigo mesmo, nos termos do artigo 261 do CC: os réus A e J intervêm nos actos de “venda” das viaturas perseguindo interesses próprios e não no interesse da sua representada aqui autora; acrescentando-se que é o réu J que, desde a simulada venda, circula com o Audi como se seu se tratasse e inexiste consentimento da autora, uma vez que as “transferências de propriedade” em causa, além de serem desconhecidos daquela, não foram precedidos de deliberação dos sócios a autorizar a alienação em causa; em face do disposto nos artigos 397/2 e 251/1-g do CSC quando o gerente de uma sociedade por quotas queira celebrar consigo qualquer contrato, terá de obter previamente uma deliberação da sociedade que representa para celebrar tal negócio e na qual o sócio interessado não pode votar nem por si, nem por representante, o que não aconteceu nas duas transferências de propriedade das duas viaturas em causa; a seguir a autora descreve os danos que diz ter sofrido; mais à frente ainda diz que “na mera hipótese de não ter vencimento as peticionadas nulidades dos negócios, sempre os réus deveriam liquidar à autora [o valor pedido] porque, quer os 1ºs réus, quer a 3.ª ré viram o seu património enriquecido à custa do empobrecimento da autora, no valor de, pelo menos, 7.500€.

               Os réus A, J e V contestaram:

               Começaram por alegar factos relativos a causas que dizem ser prejudiciais da acção (numa delas pede-se a nulidade da deliberação sobre o consentimento e cessão de quotas à nova sócia C-Lda, e, consequentemente, a nulidade do contrato de cessão de quotas e cancelamento do respectivo registo; caso a acção seja declarada procedente, a C não teria legitimidade em actuar como sócia da autora; na referida acção pede-se ainda a nulidade de deliberação da nomeação de novos gerentes), com o fim de obter a suspensão desta acção; e continuam:              

             Esta acção, por parte da autora, é uma peça numa estratégia que a actual sócia maioritária da mesma, a C, iniciou aquando da compra da maioria do capital social da autora, sociedade familiar, em prejuízo da própria autora e dos sócios minoritários, os réus A e V; em 1998 a autora adquiriu o Audi para uso pessoal do réu J, tanto mais que este réu contribuiu com metade da verba para aquisição da viatura; esta foi sempre usado por este réu, tendo sido decidido, à data, pelo gerente, pai dos réus A e J, que o veiculo configuraria uma liberalidade da autora a favor do réu; o Alfa foi adquirido pela autora em 2001 nos termos atrás referidos, assim como outros sócios da autora usaram e fizeram suas viaturas adquiridas pela autora; tal foi uma prática corrente na autora, decidida pela gerência da mesma e com a concordância de todos os sócios; o réu J sempre suportou os custos com a manutenção da viatura em causa bem como os custos associados à via verde; os veículos em causa foram adquiridos pela autora, à data, para uso pessoal dos réus A e J, configurando uma liberalidade a favor dos mesmos; todos os sócios da autora, à data, concordaram com a transmissão dos veículos para aqueles réus; contabilisticamente, os veículos há muito que se encontram amortizados; o valor das viaturas é inferior ao mencionado pela autora; a transmissão da propriedade das viaturas da autora para os réus A e V não configura um negócio simulado: não existiu qualquer acordo simulatório entre os réus e não houve a intenção de enganar a autora, nem de lhe “subtrair” património; a autora, desde 1980 até Março de 2020, foi uma sociedade com composição societária familiar e gerida pelos sócios; esta situação só veio a alterar-se depois da entrada da C em Março de 2020 e com a nomeação de novos gerentes; o réu A requereu uma providência cautelar e intentou a respectiva acção; todavia, a autora (através da nova sócia C) continua a praticar actos, como seja o da presente acção, parecendo ignorar a pendência das acções referidas; a autora omite que é ainda proprietária de 4 veículos para dar a entender que com a transmissão dos veículos dos réus ficou sem meios de transportes suficientes para a vida comercial da mesma; os veículos de que a autora é proprietária são suficientes para a actividade normal da mesma, não sendo verdade que tenha de utilizar outras viaturas e suportar gastos acrescidos; a autora decidiu acabar com a distribuição de café pelos vários agentes e cientes do pais, o que diminuiu significativamente a necessidade de deter uma frota com tantas viaturas; por outro lado, num verdadeiro venire contra factum proprium, usa as carrinhas de que é proprietária em benefício próprio, designadamente numa obra que a mesma tem a decorrer num hotel e que não faz parte da actividade da autora; a autora oculta tais factos para vir desviar a atenção das responsabilidades em que pode incorrer, fazendo deste modo um uso reprovável do processo.

                A autora respondeu ao pedido de suspensão da acção devido à pendência de causa prejudicial, impugnando a existência de fundamento para a suspensão.

              Por despacho de 12/09/2022 foi julgada “improcedente a questão de pendência de acções prejudiciais” (“À presente data, nenhuma questão se suscita quanto à matéria da representação da autora, sendo meramente hipotéticas as consequências que os réus procuram retirar da pendência das acções pendentes no Tribunal de Comércio, pelo que não ocorre qualquer relação de prejudicialidade entre as acções”) e, consequentemente, determinado o prosseguimento dos autos”.

              Na acta da audiência prévia de 27/10/2022, a Srª juíza, para além do mais, disse que “se afigura, numa análise perfunctória dos autos, que os temas de prova que carecem de instrução e julgamento são os seguintes: valores de utilização e valores às datas das declarações de venda dos veículos; montantes e termos em que o réu J contribuiu para a aquisição do Audi, esclarecimentos que se solicita que sejam oportunamente prestados.”

              O réu J veio dizer que:

              A autora adquiriu o Audi em 1998, tendo o processo de aquisição da mesma sido tratada pelo réu J que adquiriu a mesma num stand que existia, à data, em Loures; o réu em 1998 teve um acidente com uma viatura de que era proprietário e recebeu uma indemnização do seguro pela perda da viatura, tendo usado esse montante para adquirir a viatura em causa; o Audi foi adquirida pelo valor de cerca de 8.000.000$, tendo o réu J contribuído com cerca de 3.800.000$; à data, o pai do réu J, que era quem efectivamente controlava e geria a autora, tendo em atenção que este réu necessitava de uma viatura para o exercício da sua actividade profissional na autora – deslocações para contacto com distribuidores, fornecedores, etc. – resolveu que a autora adquiriria a viatura, para uso profissional do réu J, pagando o valor restante da mesma; o réu confirma assim o alegado, melhor explicitando o aí alegado.

              Depois, a 18/01/2023, foi decidido, em despacho saneador, (a) declarar a nulidade das transmissões relativas às viaturas Alfa a favor do réu A e Audi a favor da ré V; (b) determinar o cancelamento das apresentações 8 e 9 de 06/03/2020 referente a tais viaturas, que deverá ser solicitado após o trânsito da presente decisão; (c) e condenar o réu A a entregar à autora o Alfa e (d) a ré V o Audi, prosseguindo aos autos para julgamento dos factos relativos à decisão da fixação de indemnização decorrente da privação da possibilidade de utilização dos veículos.

              Os réus vêm recorrer deste saneador sentença, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

         a\ O tribunal interpretou e aplicou incorrectamente o art. 272 do CPC ao decidir não existir prejudicialidade entre as acções de declaração de nulidade acima mencionadas e a presente acção.

         b\ Entendem os recorrentes que uma análise mais ponderada da mesma, atentando-se na materialidade das relações subjacentes entre todas as questões em causa permitirá concluir que se as acções de declaração de nulidade, no qual se pede a declaração de nulidade da transmissão a favor da sociedade C- for[em] julgada[s] procedente[s] todas as deliberações tomadas quer em assembleia geral onde a nova sócia C intervenha quer os actos praticados pela nova gerência (nomeadas pela nova socia C- cuja qualidade de socia será invalida) serão declarados nulos e/ou anuláveis.

         c\ Ou seja, a nulidade das deliberações da assembleia de 02/03/2020 ferem de nulidade qualquer deliberação posterior e põe em causa os actos praticados pela nova gerência. Ora os sócios e gerentes da autora, em consequência dessa declaração de nulidade, serão os recorrentes A (sócio e gerente) e J (gerente), os quais obviamente não irão pedir a nulidade da transmissão das viaturas tal como peticionado na presente acção.

         d\ A decisão final que vier a ser proferida na presente acção poderá, pois, ser incompatível com a decisão das acções de nulidade e criar uma impossibilidade legal, o que reforça a existência de uma causa prejudicial, que sendo de conhecimento oficioso, deve ser reapreciada e julgada pelo tribunal ad quem.

         e\ O despacho recorrido interpretou e aplicou ainda incorrectamente o art. 6 do Código das Sociedades Comerciais. Com efeito, o despacho recorrido decidiu erradamente quer em termos de matéria de facto quer de direito.

           f) O despacho recorrido decidiu sobre matéria factual sem ter sido produzida a necessária prova sobre a mesma. O despacho a quo assenta a sua decisão dando como provada a questão da liberalidade, da sua finalidade e do seu eventual prejuízo para a sociedade sem inquirir as testemunhas arroladas pelos recorrentes, sócias da autora à data dos factos, e sem ouvir os recorrentes que requereram declarações de parte.

         g\ Para apurar se a liberalidade em causa é válida, ou não, a autora teria de alegar e provar que a mesma prejudicou efectivamente a sociedade, o que não fez, limitando-se apenas a tecer considerações genéricas sobre um eventual prejuízo para a sociedade. Cabia à autora “a alegação e prova dos factos concretos atinentes à densificação daqueles conceitos”, mas ela limita-se a alegar prejuízos hipotéticos, o que, em termos de fundamentação de facto, equivale a falta de alegação.

         h\ Em matéria de direito, refere o despacho recorrido que «ainda nos termos da mesma disposição, as liberalidades que possam ser consideradas usuais, segundo as circunstâncias da época e as condições da própria sociedade, não são havidas como contrárias ao fim dessa». Ora, o atrás referido permite concluir, ao contrário do decidido, que as liberalidades em causa são válidas. A fundamentação do despacho parece, pois, estar em contradição com as conclusões que da mesma são retiradas.

         i\ As sociedades comerciais podem fazer liberalidades, sendo o critério de atribuição das mesmas pautado pelo interesse que a sociedade, à data, entende ser conveniente na prossecução da sua actividade.

            j) Nesse sentido, veja-se o ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 26/01/2017 [sic; o acórdão foi proferido no proc. 119/13.8TBMDB.G1 – aditamento deste TRL]:

          Sem embargo, e como vem sendo reconhecido, aquele princípio da especialidade tem sido desconsiderado porque, como escreve o Prof. Menezes Cordeiro, desde que os seus fins sejam lícitos, “as sociedades constituem-se livremente, de acordo com o figurino que os particulares interessados lhes queiram imprimir”, pelo que a falta de capacidade para a prática de qualquer acto pode ser ultrapassada pela via do seu pacto social e das decisões dos seus órgãos (CSC 2ª. ed., págs. 91-96). O mesmo autor defende não haver razão para excluir as doações do âmbito da capacidade das pessoas colectivas, salvo se houver uma norma a proibi-las (Direito das Sociedades, vol. I – Parte Geral, Almedina, 3.ª ed., ampliada e actualizada, pág. 382). Como refere […] o Prof. Alexandre Soveral Martins, a liberalidade “implica, em regra, a ideia de generosidade ou espontaneidade, oposta à de necessidade ou de dever, mas é compatível com um fim ou motivo interesseiro”, para concluir que “uma liberalidade não usual (por exemplo, por causa do seu valor) pode ainda ser necessária ou conveniente à prossecução do fim da sociedade. E, se assim for, ainda será válida” (CSC em Comentário, Almedina, vol. I, págs. 113-114).”

           k\ Acresce que para apurar se as liberalidades em causa são válidas, ou não, terá sempre de ser produzida prova em audiência de discussão e julgamento. Mal andou, pois, o tribunal ao decidir como decidiu.

              A autora responde ao recurso, dizendo, que a decisão que julgou improcedente a alegação de pendência de acções prejudiciais há muito está transitada em julgado (despacho de 12/09/2022), pelo que não pode ser objecto do presente recurso; depois lembra que os réus não impugnaram a matéria de facto; acrescenta que o tribunal ao ter dado como provada desde logo no saneador a matéria de facto agiu em conformidade com o disposto no art. 595/1-b do CPC, pois que os factos dados como provados assentam em prova documental não impugnada, assim como na confissão das partes, a qual não pode ser contrariada pela produção de prova testemunhal; quanto ao direito aderem, no essencial, à fundamentação do saneador-sentença recorrido.

                                                                 *

              Questão que importa decidir: se não devia ter sido declarada a nulidade das transmissões das viaturas para os réus A e V.

                                                                 *

              Foram dados como provados os seguintes factos [os factos 8 e 9 foram aditados por este TRL ao abrigo dos artigos 663/2 e 607/4 do CPC e com base na prova neles indicada]:

      1\ A autora é uma sociedade por quotas cujo objecto é a exploração de estabelecimento comercial denominado B; importação, torrefacção e venda a retalho por grosso de café e outros artigos congéneres.

            2\ No âmbito da sua actividade a autora adquiriu as seguintes viaturas automóveis: matrícula x, marca AUDI, e matrícula y, marca ALFA ROMEO.

         3\ Em 27/02/2020, os réus A e J preencheram e assinaram os documentos de transmissão de propriedade daquelas viaturas, com fundamento em “contrato verbal de compra e venda”, o Audi a favor da ré V e o Alfa a favor do réu A.

             4\ Em 06/03/2020, as aquisições foram registadas respectivamente a favor dos réus V e A.

             5\ Não foram acordadas nem pagas quaisquer quantias a título de preços.

         6\ Os réus A e J foram gerentes da autora até 02/03/2020, data em que foram objecto de deliberação de destituição.

            7\ A autora viu-se privada da possibilidade de utilização daquelas viaturas desde as datas das declarações de venda.

           8\ Os réus A e V são sócios da autora [está provado pela certidão permanente e foi admitido pelos réus].

         9\ Os réus A e J receberam as cartas para a assembleia de destituição em 11 e 12/02/2020 [está provado pelos a/r respectivos, documentos 7 e 8, não impugnados].

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              A fundamentação da decisão recorrida foi a seguinte:

         Na medida em que a oposição deduzida não pode proceder, segundo qualquer solução plausível de direito, cumpre, desde já, conhecer de mérito.

         Com efeito, nos termos do artigo 6 do Código das Sociedades Comerciais, a capacidade das sociedades compreende os direitos e as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, exceptuados aqueles que lhe sejam vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular.

         Ainda nos termos da mesma disposição, as liberalidades que possam ser consideradas usuais, segundo as circunstâncias da época e as condições da própria sociedade, não são havidas como contrárias ao fim desta.

         O acima citado preceito consagra o princípio da especialidade do fim, isto é a capacidade de gozo das sociedades comerciais encontra-se funcionalmente limitada à sua finalidade, que é lucrativa.

         Assim, os actos que extravasem a capacidade das sociedades comerciais são nulos, nos termos do artigo 294 do Código Civil.

         E bem se compreende que assim seja: constituindo as sociedades uma construção jurídica, cuja actividade é garantida pelo seu capital social, mal estaríamos se, por liberalidade, os sócios pudessem esvaziar os activos societários, com prejuízo da respectiva garantia patrimonial e do princípio da igualdade entre credores.

         Tudo conforme ac. STJ de 27/01/2010, proc. 2380/05.2TBOER.S1 [só sumário]:

             “I – A capacidade de direito (ou capacidade de gozo) das sociedades comerciais, entendida esta como a medida da extensão da sua susceptibilidade de serem sujeitos de relações jurídicas, colhe a sua regulamentação legal no art. 6/1 do CSC, do qual se extrai que “a capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessárias ou convenientes à prossecução do seu fim”, fim esse que, nas sociedades com aquela indicada natureza, se pauta pela obtenção de lucros a distribuir pelos respectivos sócios ou accionistas (artigos 980 do CC e 2, 21/1a, 22, 31, 33, 176/1-b, 217 e 294, entre outros, do CSC).

             II – De acordo com o princípio da especialidade do fim, que integra o factor determinante e específico da constituição das sociedades, quer civis, quer comerciais, os actos gratuitos mostram-se, regra geral, excluídos da capacidade de gozo daquelas sociedades, por não necessários ou convenientes à prossecução do aludido fim, como se estatui no art. 160/1, a contrario, do CC, relativamente às sociedades civis, pelo que a sua prática por parte daquelas tem como directa e imediata consequência que sobre os mesmos incida a ocorrência do vício respeitante à sua nulidade.

             III – A exclusão da prática pelas sociedades de actos gratuitos sofre uma excepção relativa às liberalidades usuais, nos termos estatuídos no art. 6/2 do CSC.

             IV – Nas doações inseridas no âmbito daquela qualificação, de que se mostram desde logo excluídas as liberalidades que se enquadram nos donativos conformes aos usos sociais (art. 940/2 do CC) e em que se exige que o seu objecto não extravase o que se encontra estabelecido em termos de normalidade social, relativamente à actividade desenvolvida pela respectiva sociedade, englobam-se os brindes a clientes, as ofertas feitas pelos promotores de vendas, as gratificações aos trabalhadores, os donativos, objecto de devida publicitação, do patrocínio a iniciativas culturais ou desportivas ou efectuados no âmbito do estatuto do mecenato.

             […]”

         Em suma, os patrimónios dos sócios e os patrimónios das sociedades são distintos e separados, pelo que não podem aqueles sócios realizar liberalidades utilizando o património destas, não podendo as sociedades sair da sua finalidade lucrativa fora dos casos contados acima elencados, isto é, quando a liberalidade se encontrar funcionalmente dirigida ao cumprimento do objecto social.

         Nos termos expostos, improcede o argumento de que as transmissões seriam válidas por corresponderem a doações/liberalidades, dissimuladas.

         Por tal razão, assumindo os réus que a finalidade das atribuições patrimoniais foi uma liberalidade, haverá que concluir, como se conclui, pela nulidade das declarações de transmissão e, ipso facto, pelo reconhecimento das obrigações de os réus restituírem à sociedade os veículos acima identificados, como um efeito normal do carácter retroactivo da invalidade do negócio, na modalidade de nulidade – cf. artigos 286, 294 e 289 do CC. Verificando-se a nulidade das transmissões, procedem, também os pedidos de cancelamento das aquisições, como uma decorrência lógica do decidido, por força do disposto nos artigos 3/1-b, 8 e 8-A/1-b do Código de Registo Predial, aplicável ex vi do artigo 6 do DL 54/75, de 12/02.

                                                                 *

              Apreciação:

              As conclusões a\ a d\ do recurso, correspondentes às 5 primeiras páginas do mesmo (que tem 11 páginas) dizem respeito à suposta existência de uma causa prejudicial que justificaria a suspensão da instância (art. 272/1 do CPC), ao contrário do que foi decidido por despacho de 12/09/2022.

              Como o despacho de 12/09/2022 se trata de um despacho que decidiu pelo prosseguimento da acção, em vez de pela sua suspensão, não seria susceptível de recurso imediato (art. 644/2-c do CPC, a contrario), pelo que ao contrário do defendido pela autora, o despacho não transitou em julgado e pode ser agora impugnado.

              No entanto, a decisão de suspender ou não a instância com base na existência de uma causa prejudicial é uma decisão discricionária (o art. 272/1 do CPC diz: o tribunal ‘pode’) e como tal não é susceptível de recurso enquanto tal (art. 630/1, parte final, do CPC).  

              Aquela decisão, no entanto, pode ser impugnada quanto ao seu pressuposto da inexistência de causa prejudicial, isto é, quando, como é o caso, o tribunal tiver decidido não suspender por entender que não se verificava a causa prejudicial (conforme decorre da parte do despacho transcrita acima para este efeito).

              Como os réus discutem a fundamentação de tal despacho ao nível da existência de uma causa prejudicial (o despacho que decidiu pela não suspensão fê-lo com base no entendimento de que não existia causa prejudicial, não com base no entendimento de que, apesar de se verificar uma causa prejudicial, não se justificava que a instância fosse suspensa, e os réus entendem que se verifica a causa prejudicial), a decisão pode ser agora impugnada, tendo, se o resultado for positivo, o efeito de levar à anulação de todo o processado posterior a tal despacho.  

              Mas os réus não têm razão: uma causa é prejudicial de outra quando o resultado dessa causa decide parte daquilo que está por decidir na outra, determinando necessariamente o resultado desta.

              O que não é o caso, pois que a questão posta na acção que os réus dizem que é prejudicial, não tem a ver com aquilo que nesta acção tem de ser decidido.

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              A conclusão e\ não tem autonomia, sendo uma síntese genérica do que consta das outras.

                                                                 *

              A conclusão f\ crítica o facto de não se ter produzido prova pessoal sobre dadas questões em termos genéricos (“da liberalidade, da sua finalidade e do seu eventual prejuízo para a sociedade”). Mas a crítica é irrelevante porque inconsequente: não diz que qualquer um dos factos dados como provados está mal decidido, nem diz que se tivesse sido produzida aquela outra prova poderia ter ficado provado outro facto com influência na decisão de direito.

                                                                 *

              Nas conclusões g\ a k\ os réus tratam da questão principal.

              O saneador-sentença, com a invocação do sumário do acórdão do STJ de 2010, coloca a questão nos termos tradicionais e que são seguidos pela maioria da doutrina e da jurisprudência, sintetizados naquele sumário.

              O artigo 6/1 do CSC trata da questão da capacidade de gozo das sociedades comerciais, como é o caso da autora: estas não têm, como regra geral, capacidade para a prática de liberalidades, pois que “[a] capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim […]” e o fim [mediato] das sociedades comerciais é o lucro como decorre do art. 980 do CC (“[…] a fim de repartirem os lucros resultantes dessa actividade”). Excepcionalmente, são válidas as liberalidades que caiam no âmbito do art. 6/2 do CSC: “As liberalidades que possam ser consideradas usuais, segundo as circunstâncias da época e as condições da própria sociedade, não são havidas como contrárias ao fim desta.”

              Logo, cabe àquele que está interessado na verificação da nulidade alegar a existência da liberalidade, para se poder dizer preenchida a regra da nulidade por incapacidade (art. 342/1 do CC) e ao contra-interessado alegar e provar o facto que impede a verificação da nulidade para se poder dizer preenchida a excepção (art. 342/2 do CC).

              Pelo que à sociedade autora bastava alegar a liberalidade. Era aos réus que incumbia alegar e provar os factos que permitissem qualificar a liberalidade como usual (sendo que as condições do art. 6/2 do CSC são cumulativas: segundo as circunstâncias da época e as condições da própria sociedade), o que eles não fizeram.

              E não o fizeram porque sugerem que eram eles os proprietários das viaturas, podendo, pois, dispor delas (transmitindo-as aos réus A e V). Mas é só uma sugestão, sendo que os factos que alegam não são suficientes para afastar aqueles factos dos quais resulta que a proprietária das viaturas era a autora, que são os factos 1 a 4 e 6 dados como provados.  Repare-se, aliás, que embora daqueles factos não conste expressamente que as viaturas estavam registadas a favor da autora (o que funcionaria ainda como presunção de propriedade: art. 7 do CRP, aplicável por força do art. 6 do DL 54/75, de 12/02, corroborando a prova directa da propriedade que consta dos factos provados), isso decorre claramente deles, pois que se as viaturas foram agora registadas a favor do réu A e V tal só foi possível com base na actuação dos réus A e J como gerentes da sociedade transmitente das viaturas, por, naturalmente, ser ela a proprietária registada.

              De resto, os réus ao longo dos articulados apresentaram versões contraditórias dos factos, o que, se, por um lado, afasta a credibilidade de qualquer delas, por outro, aponta para que as viaturas foram compradas pela autora: primeiro dizem que as viaturas foram compradas pela sociedade para uso pessoal deles, mas, depois, o réu J vem dizer que a viatura foi adquirida pela sociedade para a “sua actividade profissional na autora – deslocações para contacto com distribuidores, fornecedores, […]”. Em qualquer caso das versões, a aquisição foi pela sociedade. O facto de o dinheiro utilizado na compra poder ser em parte do réu J não retira valor à admissão de que as viaturas foram compradas pela autora; o que poderia derivar disso era apenas algum direito de crédito para o réu J contra a sociedade autora. O facto de “outros sócios da autora [terem] usa[do] e f[eito] suas viaturas adquiridas pela autora” não pode preencher, só por si, a previsão de doações usuais tal como definidas pelo art. 6/2 do CSC.

              Portanto, os réus nem sequer alegam que a sociedade deu as viaturas aos réus A e V e por isso logicamente não podiam alegar, nem alegaram, os factos que tornassem tais doações liberalidades usuais, pelo que, ao contrário do que eles dizem, não há factos por eles alegados que, provados, pudessem conduzir à validade das doações.

              Provada a liberalidade, sem que sequer se alegassem os factos que a tornassem uma liberalidade usual, a nulidade tinha que ser declarada pelo tribunal, que foi o que se passou, sem que exista qualquer contradição na fundamentação aduzida.

              Os réus dizem que a autora tinha de alegar e provar que as doações prejudicaram a sociedade. Mas, na lógica da construção seguida pelo saneador-sentença (nulidade por impossibilidade legal por falta de capacidade: art. 6/1 do CSC e 280/1 do CC, ou, noutras construções, por ser um negócio celebrado contra a lei: art. 294 do CC), o prejuízo para a sociedade não é um pressuposto da nulidade.

              A posição que antecede é, apenas por exemplo, a de Antunes Varela (CC anotado, vol. I, 1982, 3.ª edição, Coimbra Editora, pág. 164: quanto ao artigo 160 do CC, que corresponde ao art. 6/1 do CSC e quanto à consagração do princípio da especialidade, embora com uma larga atenuação do seu teor), Castro Mendes (Direito Civil, Teoria Geral, Vol. I, AAFDL, 1978, pág. 180: quanto ao princípio da especialidade que reduz a capacidade de gozo da pessoa colectiva a uma capacidade de gozo meramente específica, quanto aos fins, no caso das sociedades fim económico lucrativo, e quanto ao objecto, págs. 503 a 512: as sociedades não têm o direito de fazer doações – dado que a doação nunca pode ser ou necessária ou mesmo conveniente para o seu fim lucrativo. Devendo, em todo o caso, usando uma distinção referida no art. 904/2 do CC, frisar que não há doação … nos donativos conforme aos usos sociais), Mota Pinto (A Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, Coimbra Editora, 2005, páginas 318 a 321: capacidade jurídica – de gozo de direitos – específica; aplicação do princípio da especialidade do fim; aceitação da posição de Manuel de Andrade que faz derivar do princípio da especialidade do fim a incapacidade das sociedades comerciais para fazer doações, que decorre do art. 160/1/2 do CC = art. 6/1 do CSC: a proibição não é total: artigos 940/2 do CC e 6/2 do CSC: nulidade por fala de capacidade jurídica do doador; com efeito, no sistema do CC, a invalidade dos negócios viciados reveste em princípio a forma de nulidade), Heinrich Ewald Hörster e Eva Sónia Moreira da Silva (A parte geral do CC português, 2.ª edição, Almedina, 2019, págs. 431 a 432), Carvalho Fernandes (TGDC, I vol., 2.ª edição, 1999, páginas 487 a 492: a solução que propõe não legitima a prática de doações em geral, pelas sociedades, mesmo a título esporádico. É, por exemplo, nulo o acto de doação de um bem da sociedade a favor de um dos sócios seja a que título for), Raul Ventura (Sociedades por quotas, vol. III, Almedina, 1991, pág. 169: As restrições ao poder representativo dos gerentes não devem ser confundidas com as limitações à capacidade da sociedade. Por definição, os gerentes só podem vincular a sociedade em actos para os quais esta tenha capacidade; faltando a capacidade da sociedade, o acto não pode ser praticado, em nome da sociedade, seja quem for que a represente. A capacidade da sociedade por quotas está fixada no art. 6 do CSC. Dois casos de incapacidade, praticamente relevantes, estão expressamente previstos no art. 6, n.ºs 2 e 3. As liberalidades que possam ser consideradas usuais […] não são havidas como contrárias ao fim desta; portanto, para liberalidades não cobertas por este preceito, a sociedade é incapaz), Carlos Osório de Castro (com desenvolvimento; em Da prestação de garantias por sociedades a dívidas de outras entidades, ROA 1996, vol. II, págs. 565 a 593, especialmente páginas 566 e 579-580, com relevo para as relações do n.ºs 1, 2 e 3 do art. 6 entre si, o primeiro como regra e os segundos como excepções, factos impeditivos a serem alegados e provados pelos interessados em que o acto não fique invalidado pela incapacidade de gozo; todo o estudo demonstra que a capacidade, em causa nos n.ºs 1, 2 e 3 do art. 6, não se confunde com as questões da vinculação e responsabilidade da sociedade, resolvidas pelos n.ºs 4 e 5 do art. 6; o estudo surge em consequência do estudo do 1.º estudo de Pedro de Albuquerque referido abaixo e tem sequência num outro estudo, De novo sobre a prestação de garantias por sociedades a dívidas de outras entidades: luzes e sombras,  publicado na ROA 1998, páginas 823 a 858, que é uma resposta à resposta de Pedro de Albuquerque contida no 2.º estudo deste autor também referido abaixo), Menezes Cordeiro (no Manual de direito comercial, vol. II, 2001, Almedina, págs. 203 a 209: a capacidade das sociedade é limitada pelo princípio da especialidade, que não é inútil; para além de valer como justificação da ampla capacidade concedida, em situações-limite, a ultrapassagem dos fins invalida os actos praticados. São nulos, por impossibilidade jurídica, uma vez que ninguém pode praticar um acto que ultrapasse a sua esfera abstracta de acção: art. 280/1 do CC. O princípio da “especialidade” torna-se, assim, num dado tradicional, estruturante, pela positiva, da capacidade de gozo das sociedades […] sendo dogmaticamente útil para disciplinar situações-limite. Não se justificam tentativas de o desconsiderar. Uma sociedade comercial tem fins lucrativos. Na liberalidade interessada, a sociedade pratica um acto gratuito, mas com fins de receber vantagens ulteriores. Trata-se de uma operação comercial comum, própria das práticas habituais e que não suscita quaisquer dúvidas. Na liberalidade autêntica, a sociedade cai fora da lógica comercial. São doados bens e serviços apenas por animus donandi da empresa e dos seus administradores, sem fitos comerciais. Aí intervém o art. 6/2: […]. No âmbito da delimitação da capacidade das sociedades em função dos seus fins, lidamos com realidades de tal modo óbvias que nem se põe o problema da tutela de terceiros de boa fé: todos sabem – ou devem saber – que não é fim de uma sociedade entregar-se a actos de benemerência e isso descontando os âmbitos normais dos patrocínios e dos donativos conformes com os usos. Além disso e por definição, falta aqui o investimento de confiança que justifique a tutela), Manuel Januário da Costa Gomes (Assunção fidejussória de dívida, Teses, Almedina, 2000, páginas 566 a 578) Jorge Manuel Coutinho de Abreu (Curso de Direito comercial, vol. II, 2011, 4.ª edição, Almedina, páginas 187 a 207), Alexandre Soveral Martins (Capacidade e representação das sociedades comerciais, páginas 471 a 476, em Problemas do direito das sociedades, IDET/Almedina, 2002, e no CSC em comentário, vol. I, 2010, IDET/Almedina, páginas 108 a 114), Filipe Miguel Cruz de Albuquerque Matos (Responsabilidade civil por ofensa ao crédito ou ao bom nome, Almedina, 2011, páginas 363 a 383) e Mafalda Miranda Barbosa (A nulidade dos swaps ad nutum: considerações a propósito do ac. STJ 20/12/2022, na Revista de Direito Civil, 2023, 2, páginas 410 a 415).        

              A posição destes últimos autores já aponta, no entanto, para uma nuance da posição tradicional: pode haver liberalidade interessadas [ou com finalidade interesseira] válidas, o que, por exemplo, é justificado por Alexandre Soveral Martins dizendo que o art. 6/2 do CSC não trata de todas as liberalidades, podendo haver liberalidades não usuais que sejam necessárias ou convenientes à prossecução do fim da sociedade. E, se assim for, ainda serão válidas (mais ou menos neste sentido, por exemplo, o ac. do TRE de 25/06/2009, proc. 79/08.7TBSRP-A.E1: As doações de sociedades comerciais só serão ilegais se estiverem em oposição aos interesses delas. Não poderá ser havida como ilegal uma doação de um lote de terreno a um proprietário, para que este dê o seu consentimento a um loteamento que ficaria diminuído em área e valor, acaso não invadisse terreno de tal proprietário).

              Esta variante põe, principalmente, em termos práticos, a questão do ónus da prova: se a liberalidade interessada é válida, há que provar o interesse que torna válida a liberalidade, ou seja que ela é necessária ou conveniente para a sociedade. Assim, os factos que permitam concluir por esse interesse, ou, dito de outro modo, pela necessidade ou conveniência dela, são factos impeditivos da nulidade da liberalidade, logo a serem provados por aqueles que querem beneficiar da mesma (art. 342/2 do CC). É a posição de Carlos Osório de Castro nos estudos citados e decorre também da posição de Jorge Coutinho de Abreu (obra citada, páginas 200 a 202) e de Alexandre Soveral Martins (obra citada, páginas 115 e 116), estes embora a propósito da norma do art. 6/3 do CSC. Na formulação do último: “Se é justificado um interesse próprio da sociedade […] quem tem o ónus de alegar e provar que aquele interesse existe é aquele que tem interesse em afirmar a validade […]. Para que […] deva ser considerada nula, basta que não se prove que existe esse justificado interesse próprio da sociedade […]. Assim também Miguel Teixeira de Sousa, O que realmente se estabelece no artigo 6.°/3 do CSC, em comentário ao ac. do STJ 12/3/2019, proc. 11197/14.2T2SNT-F.L1.S2, Revista de Direito das Sociedades ano, 2019, 1, a páginas 251 a 256 = blog do IPPC, post de 15/07/2019 [https://drive.google.com/file/d/1Cw03c9GOcRfH8MSbcQL6QdvT4T-MMj71/view]: Em suma: – O artigo 6.º, n.º 3, CSC contém uma norma que se destina a proteger a sociedade (inclusivamente, da actuação dos seus próprios órgãos); – Esta protecção espelha-se no plano probatório, dado que essa norma estabelece a presunção de que a prestação de garantias a dívidas alheias é contrária aos fins da sociedade; – Esta presunção pode ser ilidida por um terceiro, mediante a prova de que a sociedade garante tem justificado interesse na prestação da garantia ou de que se trata de uma sociedade em relação de domínio ou de grupo; – Qualquer outra interpretação do disposto no artigo 6.º, n.º 3, CSC é contrária a parâmetros indiscutíveis na área da distribuição do ónus da prova).

              Manuel Januário da Gosta Gomes, também a propósito do art. 6/3 do CSC, defende, no entanto, que é à sociedade, interessada na declaração da nulidade, que cabe provar a falta de interesse e explica esta solução, aqui grosso modo, dizendo que há uma presunção natural de que o acto corresponde a um interesse próprio, pela razão de que é a sociedade quem sabe do seu interesse (páginas 576 e 577, onde desenvolve a afirmação em termos que são normalmente utilizados pela jurisprudência).

            Considerando também a questão como de capacidade de gozo das sociedades, vejam-se, para além do ac. do STJ invocado na decisão recorrida, ainda, e apenas por exemplo, os acórdãos: do STJ de 09/05/2023, proc. 3318/16.7T8LSB-B.S1, com discussão da questão do ónus da prova (seguindo a posição acima referida como sendo a de Januário da Costa Gomes), com um voto de vencido (que segue a posição contrária). Do TRP de 28/11/2022, proc. 1245/18.2T8PVZ.P1: III – A sociedade comercial tem por objecto a prática de actos comerciais, sendo o seu fim o lucro. IV – A capacidade de gozo de uma sociedade comercial, tal como a de qualquer pessoa colectiva em geral, compreende todos os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim (vejam-se o artigo 6/1 do CSC e o artigo 160/1 do CC). V – Ao contrário do que sucede com as pessoas humanas, a capacidade de gozo das entidades ideais tais como as pessoas colectivas em geral e as sociedades comerciais, em particular, é finalisticamente limitada. VI – Por não ter qualquer contrapartida para a ré sociedade, constitui um acto gratuito a sua vinculação ao pagamento à primitiva autora das obrigações pecuniárias assumidas por esta perante a entidade bancária que lhe mutuou o capital de 60.000€. VII – Não sendo esse acto necessário ou conveniente ao fim lucrativo da sociedade ré, nem se mostrando um acto usual, segundo as circunstâncias da época e as condições da sociedade ré, enferma o mesmo de nulidade por violação do disposto no artigo 6/1 do CSC. Do STJ de 10/09/2020, proc. 1872/18.8T8LRA.C1.S1. Do TRC de 07/09/2020, proc. 142/19.9T8FND-B.C1: I – Accionando-se garantias reais e/ou pessoais prestadas por sociedades a dívidas de outras entidades, compete/basta a quem invoca (normalmente, a sociedade que as prestou) a nulidade de tais garantias, por violação do princípio da especialidade do fim (constante do art. 6.º/1 do CSC), provar que tais garantias foram prestadas gratuitamente, pertencendo à contraparte interessada na validade de tais garantias (normalmente, o banco beneficiário de tais garantias) provar a verificação de alguma das duas excepções constantes da 2.ª parte do art. 6.º/3 do CSC. II – A circunstância da sociedade que prestou as garantias estar em melhor situação para provar a não verificação de alguma das duas excepções constantes da 2.ª parte do art. 6.º/3 do CSC não consubstancia uma situação de inversão do ónus da prova, podendo/devendo a sua “melhor situação” ser ponderada/considerada em sede de apreciação da prova produzida. III – Numa situação de non liquet – em que fica sem se saber se a sociedade garante teve ou não interesse na prestação da garantia ou em que fica sem se saber se a sociedade garante uma sociedade com que está ou não em relação de domínio ou de grupo – a solução da lei aponta clara e indiscutivelmente para a nulidade da garantia gratuita e não para a sua validade. IV – A segunda excepção constante do n.º 3 do art. 6.º do CSC deve ser alvo duma interpretação restritiva, não valendo tal excepção para toda e qualquer sociedade garante, independentemente da sua posição na relação do domínio, mas valendo apenas, quando se está perante relações de domínio, para a sociedade dominante e já não para a dependente; ou seja, a segunda excepção constante do n.º 3 do art. 6.º do CSC não permite a constituição de garantias pessoais ou reais ascendentes. Do TRG de 10/07/2018, proc. 234/14.0TCGMR.G1 (põe a carga da sociedade autora o ónus da alegação e prova da ausência de interesse próprio na assunção).  Do TRG de 22/02/2018, proc. 2522/16.2T8BRG.G1: VIII- Em termos de ónus probatório relativamente ao interesse próprio para efeito da violação ou não do princípio da especialidade consagrado naquele comando legal, a melhor interpretação é a que coloca a cargo de quem invoca a falta de interesse o ónus de a provar, sob pena de decaimento na respectiva invocação.” Do STJ de 04/04/2017, proc. 5371/15.1T8OAZ.P1.S1. Do STJ de 26/11/2014, proc. 1281/10.7TBAMT-A.P1.S1: III – Competia à sociedade executada demonstrar e provar que o negócio em questão mais não era do que um liberalidade feita pela executada (art. 342/1 do CC) contrária ao fim societário da mesma, e como tal nulo (art. 280/ do CC), provando, no caso, a inexistência de interesse próprio, isto é, os requisitos da nulidade que pretende aproveitar, e isto porque ninguém melhor que a própria sociedade estará habilitada a fazer a prova da existência ou não desse mesmo interesse próprio, a que alude o art. 6 do CSC. Do STJ de 26/09/2013, proc. 213/08.7TJVNF-A.P1.S1. Do STJ de 18/10/2012, proc. 160-Q/2001.L1.S1 [aqui estava em causa o ónus da prova da gratuitidade do acto, naturalmente a cargo da sociedade autora]. Do TRP de 13/12/2011, proc. 213/08.7TJVNF-A.P1 (pondo a cargo da sociedade o ónus da alegação e da prova da inexistência de interesse próprio na assunção da dívida). Do TRP de 30/05/2011, proc. 1393/08.7TBMAI.P1 (pondo o ónus da prova da falta de interesse a cargo da sociedade garante). Do TRP de 29/09/2008, proc. 0853640. Do STJ de 28/10/2003, proc. 03A2485. Do TRC de 17/10/2000, CJ2000, tomo 4, páginas 37 a 39. Do TRL de 27/01/2000, CJ2000, tomo I, páginas 100 a 103 (incumbe ao réu o ónus de provar o justificado interesse próprio da autora na constituição da garantia […] por se tratar de factos impeditivos do direito à declaração da nulidade). Do TRP de 20/05/1999, CJ1999, tomo III, páginas 189 a 196 (com o ónus da prova da existência do interesse a cargo do garantido).

              Por sua vez, a construção que os réus fazem com recurso à invocação do acórdão do TRG, corresponde a uma outra concepção: a capacidade de gozo das sociedades afinal não é uma capacidade específica, delimitada pelo fim do lucro, pelo que a sociedade pode, regra geral, fazer as doações que quiser, que, assim, são válidas excepto se a sua invalidade resultar por outra via legal.

              Esta posição tem início em Oliveira Ascensão (Direito comercial, vol. IV, sociedades comerciais, Lisboa, 1993, páginas 47 a 57 e 315 a 317, e Direito Civil Teoria Geral, vol. I, Coimbra Editora, 1998, págs. 227 a 239: o princípio da especialidade não tem praticamente nada que ver com a capacidade de direito, ou seja, a limitação pelo fim não significa uma limitação da capacidade ou só o significará em situações extremas, quando a prossecução do fim for incompatível com a titularidade de certas situações jurídicas e que a eventual anomalia residirá no desvio em relação ao fim e não na incapacidade; os actos estarão então inquinados, mas o seu vício, qualquer que ele seja [mas não é a nulidade], não pode ser oposto a terceiros de boa fé), foi desenvolvida por Pedro de Albuquerque (em dois estudos extensos publicados na ROA, o 1.º em 1995/III, A vinculação das sociedades comerciais por garantia de dívidas de terceiros páginas 689-711, e o 2.º em 1997/I, da prestações de garantias por sociedades comerciais a dívidas de outras entidades, páginas 69 a 147), Pedro Pais de Vasconcelos (Teoria Geral de Direito Civil, 9.ª edição, 2019, Almedina, 160 a 168 e 174 a 184: o art. 6/1 do CSC não tem a ver com a capacidade de gozo das sociedades, mas com a questão da legitimidade; parte da disposição do art. 6/4 do CSC, que transpõe para o direito interno a solução constante do art. 9 da 1.ª Directiva CEE sobre direito das sociedades, para concluir que se a sociedade se vincula pelos actos dos seus órgãos mesmo que estes ultrapassem o seu objecto (fins imediatos da sociedade) [pelo que, naturalmente, elas têm capacidade de gozo para a prática desses actos]) e António Agostinho Guedes (Comentário ao CC, UCP/FD/UCE, 2014, páginas 352 a 354) e é seguida actualmente por Menezes Cordeiro (por exemplo, no CC comentado, I, Parte Geral, CIDP/Almedina, 2020, pág. 458: afasta a vigência do princípio da especialidade do fim, pelo que a capacidade de gozo das sociedades comerciais não tem os limites da gratuitidade; logo os actos gratuitos seriam, em princípio, válidos; por exemplo, no caso da doação de bens a sócios, diz que tal invalidade poderá resultar do disposto nos artigos 31 e 32 do CSC).

              Seguindo esta posição, veja-se o acórdão do STJ de 21/09/2000, publicado na CJ/STJ, 2000, tomo III, págs. 36 a 40: I – O acto ou negócio jurídico praticado pelos sócios-gerentes de uma sociedade não pode ser considerado nulo com o fundamento de que, considerado o princípio da especialidade, a sociedade não tem capacidade de gozo para o realizar. […] III. Invocando a sociedade autora que não tinha nisso [naquele acto] qualquer interesse […] cabe-lhe o ónus da prova dessa falta de interesse”.

              Esta posição, em termos genéricos, leva necessariamente à conclusão de que as liberalidades, mesmo que não usuais, não são nulas; em circunstâncias especiais, elas poderão ser nulas; mas, então, terão que ser os interessados na conclusão da invalidade a ter de alegar e provar os factos que poderão levar a ela.

              O caso dos autos é um daqueles que demonstra que não é de aceitar esta última posição doutrinal pelo menos para este tipo de casos: é inconcebível que uns gerentes de uma sociedade por quotas que se dedica à exploração de um estabelecimento de importação, torrefacção e venda a retalho por grosso de café e outros artigos congéneres, possam doar veículos automóveis dessa sociedade a terceiros, impossibilitando a sociedade de utilizar tais veículos para o exercício da sua actividade comercial (para mais – mas só como argumento corroborante, com base nos factos aditados – quando esses terceiros são sócios da sociedade e tal doação acontece depois de os sócios gerentes que as fazem terem sido convocados dias antes para uma assembleia de destituição deles como gerentes) e que para a declaração da nulidade de tais doações se exija que seja a sociedade a alegar e a provar a falta de condições para a validade dessas doações, quer no sentido de demonstrar que não se está perante uma liberalidade usual, quer no sentido de que ela não é necessária ou conveniente para a sociedade.

              Nos termos de Mafalda Miranda Barbosa, obra citada, pág. 412: “Cremos […] que há, no mínimo, uma categoria de actos que pode ser excluída da capacidade de gozo de certas pessoas colectivas. Pensamos nos negó­cios gratuitos – mormente nas doações – e nas sociedades comerciais, cujo fito é a obtenção de lucro, para que seja distribuído pelos sócios. Animadas por um espírito de liberalidade (animus liberandi), as doações envolvem um empo­brecimento, sem que haja – por se tratar de um contrato unilateral – a entrada de uma prestação correspectiva na esfera da pessoa colectiva. Nessa medida, as doações contrariam abertamente o escopo lucrativo das sociedades, estando excluídas da sua capacidade de gozo.”

              E se se seguisse a posição de Manuel Januário Costa Gomes quanto ao ónus da prova, tal como o faz parte grande da jurisprudência, sempre se pode dizer que, no caso, quem tinha melhor conhecimento dos factos, isto é, dos factos que poderiam demonstrar o interesse da sociedade na prática daquelas doações, seriam os réus ex-gerentes, que os realizaram como gerentes da sociedade. Pelo que seria a eles que caberia o ónus da alegar e provar os factos que apontassem para esse interesse. E como não os alegaram, não os podem provar.

              Em termos gerais, pode dizer-se, com Carlos Osório de Castro (segundo estudo citado, páginas 827 e 829), que a posição de Oliveira de Ascensão está na dependência de se configurar a incapacidade como uma categoria generalizadora, quando, pelo contrário, a lei liga a incapacidade de gozo das sociedades ao seu fim lucrativo, pelo que o desvio do fim importa a incapacidade. Em relação à desconsideração do princípio de especialidade do fim, ou, em termos mais amplos, à desconsideração da solução legal expressa do problema como de incapacidade, pode dizer-se, com o primeiro Menezes Cordeiro, que “o princípio da ‘especialidade’ torna-se, assim, num dado tradicional, estruturante, pela positiva, da capacidade de gozo das sociedades […] sendo dogmaticamente útil para disciplinar situações-limite. Não se justificam tentativas de o desconsiderar.” Ou, nos termos de Mafalda Miranda Barbosa, obra citada, página 413: “Na verdade, embora os autores chamem a atenção para o facto de o princípio da especia­lidade do fim poder abalar a confiança de terceiros que entrem numa relação contratual com a sociedade, o certo é que, ao consagrá‑lo, o legislador pon­derou o conflito entre os valores em diálogo e resolveu‑o num determinado sentido, dando prevalência à salvaguarda do fim.” Quanto à construção da validade dos actos pela via da vinculação das sociedades desconsidera que é o n.º 4 do art. 6 do CSC que se tem de subordinar à regra geral do art. 6/1 do CSC e não ao contrário. Como explica Coutinho de Abreu, é dentro do círculo maior dos actos válidos em consequência da capacidade de gozo das sociedades comerciais que se inscreve o círculo menor dos actos que os representantes das sociedades comerciais podem praticar. Pelo que os actos que podem vincular as sociedades comerciais têm de ser actos para os quais aquela tem capacidade.

              Considera-se, por isso, como correcta a posição que o saneador- sentença seguiu com a adesão ao acórdão do STJ de 2010 e, assim sendo, que, tendo o tribunal recorrido já todos os dados necessários de acordo com ela para a decisão da questão da invalidade das doações das viaturas, a decisão está correcta e podia ser já proferida, como o foi.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

              Custas de parte do recurso pelos réus.

              Lisboa, 25/01/2024

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto

    Nota: Veja-se ainda, no sentido seguido pelo acórdão, Carlos Ferreira de Almeida, Contratos V, Invalidade, Almedina, 2017, páginas 44 a 51, mas também 36 a 44.