Proc. 24525/22.8T8LSB – Juízo Central Cível de Lisboa – J1

              Sumário:

              I “As cláusulas que impõem obrigações de não concorrência, nos contratos de franquia, só são válidas se forem indispensáveis à protecção do saber-fazer, transmitido pelo franquiador ao franquiado. Para o efeito, as informações transmitidas devem ser: secretas, na medida em que o ‘saber-fazer’ não é normalmente conhecido ou de fácil obtenção; substanciais, incluindo informações indispensáveis ao comprador para utilização, venda, revenda de bens ou serviços prestados; e identificadas, pois devem ser definidas de forma suficientemente abrangente, a fim de permitir verificar se preenchem os critérios de confidencialidade e substancialidade.”

              II – Como a requerente do procedimento cautelar comum não alegou factos que, provados, permitissem concluir por um saber-fazer transmitido por si à requerida sua franquiada, não se pode dizer que as cláusulas de não concorrência dos contratos em causa nos autos sejam válidas e que, por isso, ela tenha o direito à não concorrência que pretende acautelar. 

              III – Os requisitos positivos para o decretamento da providência cautelar comum são apenas dois (i) a existência do direito tutelado e (ii) o fundado receio de que lhe seja causada  lesão grave e dificilmente reparável; o disposto no art. 368/2 do CPC ou corresponde a um requisito negativo / um facto impeditivo, que por isso não tem de ser alegado nem provado pelo requerente da providência, mas sim pelo requerido, ou é uma condição (negativa) / critério de decisão  “e a inferência que o permite dar como preenchido não se situa no plano probatório, integra-se antes no plano da matéria de direito.”

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

              G-Lda, intentou contra a T-Lda, um procedimento cautelar comum, pedindo que: a requerida seja proibida de comercializar produtos à base de CBD e de cânhamo industrial nos locais em que lhe foi concedida exclusividade pela franquia da requerente, desde logo e pelo menos pelo prazo de um ano, nos termos da cláusula 13, requerendo-se pena pecuniária por eventual descumprimento da ordem judicial, no valor de 1.000€ por dia, ao abrigo do art. 829-A do CC; subsidiariamente, caso o tribunal considere a possibilidade de ser inválida a rescisão datada de 08/08/2022, requer que a requerida seja imediatamente proibida de comercializar produtos não autorizados pela franquia e de usar marca própria no lugar da marca franquiada, até final decisão no processo principal, com igual pena pecuniária.

              Alega para tanto, em síntese, que requerente e requerida celebraram um contrato de franquia, através do qual, entre o mais, a requerente disponibilizou o seu know-how à requerida; esta veio a rescindir, ilicitamente, o contrato e passou a comercializar produtos de marca própria, apesar de estar contratualmente proibida de concorrer com a autora depois de rescisão do contrato durante um ano (cláusula de não concorrência válida ao abrigo do art. 5/3 do Regulamento 330/2010 CE que regula o art. 101 do Tratado de funcionamento da União Europeia), ou de estar obrigada a só comercializar produtos autorizados pela autora enquanto o contrato vigorar; acusa-a ainda de fazer espionagem empresarial já que, depois da data em que a rescisão teria produzido efeitos (08/08/2022), teria ido a acções de formação da requerente. E de tudo isto decorreria, sem a providência, um perigo de lesão grave ao seu direito de franquiador.

              A requerida deduziu oposição, dizendo, entre o mais, que a denuncia do contrato foi justificada pelas circunstâncias que descreve; que a cláusula de não concorrência é inválida porque não há qualquer know-how relevante que a justifique; isto é, as cláusulas que impõem obrigação de não concorrência nos contratos de franquia, só são válidas se forem indispensáveis à protecção do saber-fazer, transmitido pelo franquiador ao franquiado: as informações transmitidas devem ser secretas, substanciais e identificadas, como é entendimento da doutrina e da jurisprudência (acórdão do STJ proc.  191/10.2TVLSB.L1.S1); ora, o know-how que foi transmitido resumiu-se à formação inicial, que consistiu numa formação teórica, não certificada, de um dia, com o esclarecimento dos produtos, sendo que a generalidade do conhecimento assim transmitido é acessível a qualquer pessoa que se interesse pela matéria e é o que tem que aprender qualquer empregado de qualquer loja do sector.

              Depois da audiência final, foi proferida sentença, julgando improcedente o procedimento cautelar e, em consequência, não se decretou a requerida providência.

              A requerente recorre desta sentença, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (na parte útil e com simplificações):

a) Com o presente recurso visa a requerente questionar a apreciação da prova – com incumprimento e violação dos deveres plasmados no art. 5/2-a do CPC – e do dever de acautelar o resultado útil da acção – art. 2/2 do CPC.

[…]

d) Não foi considerado provado o fumus boni iuris, especificamente a alínea c do art. 5/3 do Regulamento (UE) 330/2010 da Comissão, por não ter sido considerado provado qualquer facto que fosse indispensável para proteger o saber fazer transferido pelo fornecedor para o comprador, de forma que não seria proporcional impor à requerida à abstenção do exercício de actividade concorrencial à da requerente, abstenção que geraria, mais danos para a Recorrida que para a Recorrente.

e) Foram consideradas provadas as alíneas a, b e d do referido [artigo daquele] Regulamento.

f) O tribunal recorrido não considerou provado facto que pudesse levar à conclusão de justo e fundado receio de lesão grave e irreparável ao direito da requerente.

g) Houve má apreciação da prova no respeitante à existência e transmissão do know-how, tendo havido mesmo desconsideração da prova produzida, tendo em conta os depoimentos da testemunha Humberto (11:01:12 a 11:25:41, especialmente de 0 a 8min40 e a 8m40 até 10m23 do seu depoimento), como também a declaração de parte do sócio [da requerida] J (11:41:43 a 11:57:34, especialmente de 14m35 a 15m51), bem como má interpretação do art. 406 do CPC e da cláusula 12 dos contratos de franquia.

h) A prova produzida tornou evidente a existência e transmissão do know-how à requerida, bem como a indispensabilidade, para a protecção desse know-how, da proibição de concorrência, pelo prazo de um ano após a cessação dos contratos de franquia, nos lugares em que a requerida exercia a venda de produtos à base de CBD e Cânhamo, sob outra marca ou individualmente, do que decorre estar provado o item c do art. 5/3 do Regulamento (UE) 330/2010.

i) Essa indispensabilidade, com a prova da existência e transmissão do know-how, é óbvia, porquanto o valor do know-how está intimamente ligado à clientela ali conquistada com o uso desses conhecimentos, um dos elementos que demonstram a existência do fumus boni iuris.

j) Outro elemento que demonstra o fumus boni iuris é a própria existência da cláusula 12 dos contratos de franquia que limita a livre concorrência ao abrigo do art. 5/3 daquele regulamento.

k) Também está provado o perigo de dano irreversível à requerente. Os valores intangíveis pertencentes à franquia ficam sob risco – a clientela, a imagem da marca, a confiança na marca, portanto, o valor do know-how da empresa está a ser usado de forma a lesar a requerente, visto que de um instante para outro, o cliente da requerente deixa de encontrar nos locais de costume, os produtos vendidos sob a marca dela; e a requerente considera que o prazo de um ano é necessário para que essa clientela, que é do franquiador e não do franquiado, seja informada das mudanças de ponto.

l) Também a proporcionalidade da medida cautelar requerida está presente, pois é desproporcional a não aplicação da cláusula 12, causando danos de difícil reparação ao franquiador, que tem a sua clientela surpreendida com a venda de produtos no mesmo local em que comprava os produtos vendidos sob a marca da requerente enquanto que a requerida pode encontrar outros pontos de venda para continuar no ramo da actividade.

m) É de se considerar também que o resultado útil da acção principal a ser proposta fica sob grave risco; com o passar do tempo, a clientela que era da requerente passará a ser da requerida, clientela conquistada com o uso do know-how da requerente.

o) Portanto, foi comprovada a existência e transmissão do know-how, e assim, os requisitos para a concessão da medida cautelar, o que leva à conclusão que a decisão alternativa (art. 640 CPC) deve ser a de conceder a providência cautelar requerida.

              Com as alegações de recurso, a requerente apresentou um documento, sem alegar qualquer justificação para a apresentação do mesmo nesta altura.

              A requerida contra-alegou defendendo que não foram observados pela requerente os ónus da alegação impostos pelo art. 640 do CPC.

              Questões que importa decidir: a prévia relacionada com a apresentação de um documento; se a requerente observou os ónus de alegação necessários para a impugnação da decisão da matéria de facto e, nesse caso, se a impugnação procede; se estão verificados todos os pressupostos necessários à procedência da providência cautelar comum requerida.

                                                                 *

                                            Documento apresentado

              Para a junção de um documento com as alegações de um recurso, os recorrentes têm de invocar as situações excepcionais que o justificam (artigos 651, 425 e 423/2 do CPC).       Como a requerente nada alegou para o efeito, não se admite o documento apresentado, que terá de ser desentranhado, com condenação da requerente em multa (artigos 443/2 do CPC e 27/1-4 do RCP), que se fixa em ½ UC.

                                                                 *

              Foram dados como provados os seguintes factos:

1. As partes celebraram contrato de franquia nas datas de 05/03/2020 (loja S), 02/10/2020 (loja A), 14/01/2021 (loja A e E), 22/06/2021 (loja L, entretanto já fechada), sendo a empresa autora o franquiador e a empresa ré a franquiada. (doc. 01, doc. 02, doc. 03, doc. 04 , doc. 05– contratos de franquia).

2. A requerente dedica-se à comercialização e distribuição de produtos de cânhamo industrial e CBD.

3. A taxa mensal foi fixada para cada loja, a ser paga até o dia 05 de cada mês, da seguinte forma: 1 – S – 1000€ mais IVA durante o 1.º ano do contrato; 500€ mais IVA durante o 2.º ano do contrato. 2 – A – 1000€ mais IVA nos primeiros 12 meses; 500€ mais IVA a partir do 13.º mês até o 24.º mês. 3 – A e E – 1000€ mais IVA durante o 1.º ano do contrato; 500€ mais IVA durante o 2.º ano do contrato. 4 – L – 15.000€ mais IVA pagos de uma só vez após 30 dias da data da assinatura do contrato ou 500€ mais IVA durantes os primeiros 3 anos.

4. Segundo artigo 1, ponto 2.1 [ou melhor, naturalmente, 1.2 – TRL] dos contratos de franquia as partes pactuaram zona de exclusividade nas cidades de S, A, A e E, L.

5. Nos termos do artigo 3.4 desses contratos, o franquiado está obrigado a disponibilizar ao consumidor, nos pontos de venda, somente produtos cuja venda seja autorizada pelo franquiador, bem como está obrigado a comprar exclusivamente do fornecedor referenciado, sempre com o fim de garantir o padrão e qualidade G [trata-se de uma síntese que vem do requerimento inicial, que não está precisamente de acordo com o teor de todos os cinco contratos de franquia, mas as divergências são superficiais para o caso – TRL].

6. Por carta datada de 08/08/2022, a requerida comunicou à requerente que considerava denunciados os contratos de franquia relativos às lojas que a requerida dispõe em C (A), E, S e A.

7. Após a data referida em 6, a requerida passou a explorar as suas lojas, de S, A, A e E, sob marca própria, comercializando produtos à base de cânhamo industrial e CBD.

8. Consta do/s contrato/s de franquia, no artigo 12 [a sentença deu relevo, do modo que se segue, à diferença de redacção deste artigo nos vários contratos, o que não tinha sido feito pela requerente, que tinha optado por uma síntese do estilo facto 5 – TRL]:

         É proibido ao franquiado, por um período de um ano, a partir da expiração deste contrato, por qualquer motivo que seja, a fim de proteger o know-how do franquiador e outros direitos de propriedade intelectual e industrial, participar, directamente ou indirectamente, no território em que  operava, de rede que realiza actividades semelhantes às da rede da requerente e que provavelmente competiria com ela”;

         e/ou

         (…) ou a exercer por conta própria, isoladamente ou em conjunto, actividades semelhantes as da rede da requerente, ou que possam caracterizar concorrência.”

         e/ou

         O franquiado reconhece que esse compromisso de não concorrência é essencial para a protecção do know-how secreto, substancial e identificado, passado a ele pelo franquiador no contexto da execução deste contrato, nos termos do artigo 5/3 do Regulamento n.º 330/2010 CE, o qual regula o artigo 101 do TFUE. Em caso de violação deste compromisso, o franquiador poderá contratar um especialista cuja tarefa será avaliar o valor dos danos sofridos pelo franquiador e por toda a rede de Franquias, levando em consideração, em particular, a possível disseminação do conhecimento do franquiador aos concorrentes, o que é expressamente aceito pelo franquiado, o qual se compromete a pagar imediatamente, na conta do franquiador, o valor determinado pelo especialista, bem como o valor dos seus honorários.”

         e/ou

         o franquiado finalmente declara que se compromete, por si e por todos os seus sucessores e cessionários, considerando-se solidariamente responsável por qualquer violação cometida por estes em relação ao franquiador. “

         e/ou

         as partes acordam também que a violação à cláusula de não concorrência, a qual visa a protecção de bem imaterial da empresa (know-how ou segredo empresarial), além dos danos materiais a serem apurados por especialista, conforme retro mencionado nesta cláusula, acima, obriga o franquiado ao pagamento, desde logo, a título de compensação pelos danos morais decorrentes, de €20.000, ao franquiador, como valor mínimo, sem descartar majoração desse valor se o resultado da apuração dos danos pelo especialista indicar lesão gravíssima ao direito de protecção ao segredo empresarial.”

9. Consta do[s] contrato[s] de franquia, no artigo 10, que o contrato expira no final do prazo, e que o franquiado pode rescindi-lo antes do seu termo, por qualquer motivo e a qualquer momento, sob reserva de cumprimento das obrigações estabelecidas em 12 [os plurais foram introduzidos por este TRL].

                                                                 *

              Apreciação

              Quanto à impugnação da decisão relativa à matéria de facto:

              A requerida tem, no essencial, razão.

              A requerente não deu minimamente cumprimento do disposto no art. 640/1-a-c do CPC, o que tinha de fazer sob pena de rejeição.

              Ou seja, não especificou os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, nem a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

              No máximo, o que resulta das conclusões do recurso é que a requerente entende, segundo ela ao contrário do que o tribunal recorrido teria entendido, que ficou provada a existência e transmissão de know-how, assim, sem mais nada.

              Ora, dizer isto, é o mesmo que nada, pois que tal não corresponde a dizer qual era o saber-fazer que existia e que foi transmitido.

              Aliás, o que a requerente quer que se dê como provado é uma das condições legais previstas no art. 5/3 do Regulamento da EU, e não um facto.

              O que também se revela na afirmação da requerente de que o tribunal recorrido entendeu que não ficou provada a existência e transmissão de saber-fazer. Ora, não foi isto que o tribunal recorrido disse, nem podia ter dito. O que o tribunal recorrido disse, como se verá a seguir, obviamente na parte da fundamentação de direito da sentença, foi que “não resultou provado qualquer facto que permita concluir que a obrigação é indispensável para proteger o saber-fazer transferido pelo fornecedor para o comprador”, isto é, não ficou provado nenhum facto que permita concluir pela verificação da condição prevista no art. 5/3-c do Regulamento.

              Pelo que não era o elemento da previsão legal que a requerente tinha de defender que estava provado, o que não faz sentido, mas sim os factos que permitissem concluir por esse preenchimento, o que, como se vê, ela não fez.

              Assim, rejeita-se a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

                                                                 *

              A sentença recorrida tem a seguinte fundamentação na parte que interessa [e transcrevendo-se com simplificações]:

         São requisitos do decretamento de qualquer providência cautelar inominada, nos termos do disposto no art. 362 do CPC:

         – A probabilidade séria de existência do direito ameaçado, (fumus boni iuris);

         – O justo e fundado receio de que alguém cause lesão grave e dificilmente reparável ao direito dos requerentes, (periculum in mora);

         – A inexistência de providência específica para acautelar esse direito;

         – Não ser o prejuízo resultante do decretamento da providência superior ao dano da que com ela se pretende evitar.

         Estes requisitos são cumulativos entre si, estando a sua verificação sujeita ao princípio da prova indiciária produzida, isto é, a summaria cognitio.

         […]

         No que respeita ao direito invocado pela requerente, ele funda-se na violação ilícita de pacto de não concorrência acordado entre as partes aquando da celebração dos contratos de franquia.

         Vejamos.

         Dispõe o artigo 101 do TfUE:

    1. São incompatíveis com o mercado interno e proibidos todos os acordos entre empresas, todas as decisões de associações de empresas e todas as práticas concertadas que sejam susceptíveis de afectar o comércio entre os Estados-Membros e que tenham por objectivo ou efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado interno, designadamente as que consistam em:

       a) Fixar, de forma directa ou indirecta, os preços de compra ou de venda, ou quaisquer outras condições de transacção;

         b) Limitar ou controlar a produção, a distribuição, o desenvolvimento técnico ou os investimentos;

         c) Repartir os mercados ou as fontes de abastecimento;

    d) Aplicar, relativamente a parceiros comerciais, condições desiguais no caso de prestações equivalentes colocando-os, por esse facto, em desvantagem na concorrência; e) Subordinar a celebração de contratos à aceitação, por parte dos outros contraentes, de prestações suplementares que, pela sua natureza ou de acordo com os usos comerciais, não têm ligação com o objecto desses contratos.

         2. São nulos os acordos ou decisões proibidos pelo presente artigo.

        3. As disposições no n.º 1 podem, todavia, ser declaradas inaplicáveis:

             – a qualquer acordo, ou categoria de acordos, entre empresas,

             – a qualquer decisão, ou categoria de decisões, de associações de empresas, e

        – a qualquer prática concertada, ou categoria de práticas concertadas, que contribuam para melhorar a produção ou a distribuição dos produtos ou para promover o progresso técnico ou económico, contanto que aos utilizadores se reserve uma parte equitativa do lucro daí resultante, e que:

         a) Não imponham às empresas em causa quaisquer restrições que não sejam indispensáveis à consecução desses objectivos;

       b) Nem dêem a essas empresas a possibilidade de eliminar a concorrência relativamente a uma parte substancial dos produtos em causa.”

         O Regulamento (UE) n.º 330/2010 da Comissão de 20/04/2010, relativo à aplicação do artigo 101/3 do TfUE a determinadas categorias de acordos verticais e práticas concertadas veio, no seu artigo 5/3, determinar que:

             […] a isenção [de aplicação do art.101/3 já mencionado] prevista no art. 2 aplica-se a qualquer obrigação directa ou indirecta que impeça o comprador, após o termo do acordo, de produzir, adquirir, vender ou revender bens ou serviços, desde que reúnam as seguintes condições:

        a) A obrigação diz respeito a bens ou serviços que concorrem com os bens ou serviços contratuais;

          b) A obrigação é limitada às instalações e terrenos a partir dos quais o comprador exerceu as suas actividades durante o período do contrato; 

       c) A obrigação é indispensável para proteger o saber-fazer transferido pelo fornecedor para o comprador.

       d) A duração da obrigação é limitada a um período de um ano após o termo do contrato.

         Conforme resulta da prova indiciariamente produzida, estão verificadas as condições previstas no artigo 5/3-a-b-d do Regulamento, mas não resultou provado qualquer facto que permita concluir que a obrigação é indispensável para proteger o saber-fazer transferido pelo fornecedor para o comprador.

         Com efeito, não logrou a requerente provar a transmissão de qualquer saber-fazer, pelo que, no caso concreto, não é imposto à requerida que se abstenha de exercer actividade concorrencial à da requerente.

         Tudo visto, julga-se não verificado o requisito de existência do direito do requerente (fumus boni iuris).

                                                                 *

              Apreciação:

              O acórdão do STJ invocado pela requerida na oposição, acórdão de 08/10/2013, proferido na revista 191/10.2TVLSB.L1.S1, afasta todas as razões da requerente:

         I– As cláusulas que sejam indispensáveis para impedir que os concorrentes se aproveitem do património de conhecimentos, da técnica e da assistência do franquiado não constituem restrições à concorrência, no sentido do artigo 81 do Tratado de Roma.

         II –É lícita a inclusão, num contrato de franquia, de uma cláusula proibitiva de concorrência, desde que limitada no tempo e respeite os limites e fins da indispensabilidade da protecção e salvaguarda do saber transmitido pelo franquiador.

         III – As cláusulas que impõem obrigações de não concorrência, nos contratos de franquia, só são válidas se forem indispensáveis à protecção do “saber-fazer”, transmitido pelo franquiador ao franquiado.

         IV- As informações transmitidas devem ser:

         – secretas, na medida em que o “saber-fazer” não é normalmente conhecido ou de fácil obtenção;

         – substanciais, incluindo informações indispensáveis ao comprador para utilização, venda, revenda de bens ou serviços prestados;

         – identificadas, pois devem ser definidas de forma suficientemente abrangente, a fim de permitir verificar se preenchem os critérios de confidencialidade e substancialidade.

         V- Sendo nula, no caso concreto, a cláusula de não concorrência, por não ter havido transmissão de know-how relevante, para cuja protecção seja indispensável uma cláusula de não concorrência, ficou sem qualquer suporte a cláusula penal de 25.000€ estabelecida para a pretensa violação daquela cláusula de não concorrência, cuja validade a cláusula penal pressupunha.

              A argumentação do acórdão (que aproveita parte do acórdão do STJ de 05/02/2013, revista 3371/08.7TVLSB.L1.S1) pode ser usada no caso, apesar de se estar a referir ao então Regulamento (CE) n.º 2790/1999, da Comissão, e ao art. 81/3 do Tratado de Roma (com a redacção que lhe foi dada pelo Tratado de Amesterdão), pois que as normas em causa são idênticas às em causa nestes autos [o mesmo se passa em relação ao Regulamento (UE) 2022/720 da Comissão de 10/05/2022 relativo à aplicação do artigo 101.º, n.º 3, do TfUE, que substitui desde 01/06/2022 o 330/2010, segundo a requerente informa no texto das suas alegações], e não deixa dúvidas sobre a bondade da sentença recorrida.

              No mesmo sentido, por exemplo, o ac. do TRL de 29/05/2018, proc. 1587/16.1YRLSB.L1-7: “[…] Não resultando, todavia, apurada a transmissão pelo franquiador ao franquiado de saber-fazer relevante, que deva considerar-se secreto, substancial e identificado, deve considerar-se inteiramente nula a referida cláusula por ser em si mesma contrária às normas comunitárias sobre concorrência.”

              Isto sem sequer ser necessário trazer à colação o Regime das Cláusulas Contratuais Gerais, imposto pelo DL 446/85, com as alterações subsequentes, a que o ac. do STJ também dá aplicação, e os problemas derivados da falta de previsão de uma compensação pela não concorrência (veja-se, por exemplo, o ac. do STJ de 10/12/2009, processo n.º 09S0625: I – A possibilidade de, no contrato de trabalho, se estipular, por escrito, a obrigação de o trabalhador não exercer, no período máximo de 2 anos subsequentes à cessação do contrato, actividade cujo exercício possa efectivamente causar prejuízo ao empregador, com a atribuição ao trabalhador de uma compensação adequada durante o período convencionado, consignada no artigo 146/2 do Código do Trabalho de 2003, não viola o princípio da liberdade de trabalho consagrado no artigo 47/1 da Constituição da República Portuguesa; vejam-se também as páginas sobre a obrigação de não concorrência, com referências a uma indemnização compensatória na fase pós-contratual, à norma do art.13-g do DL178/86, contrato de agência, e ao regime das cláusulas contratuais gerais em Maria de Fátima Ribeiro, O contrato de franquia, Almedina, 2001, páginas 287 a 296).

              Ou seja, tem que se dizer, como o fez a sentença recorrida, que não existem factos que permitam concluir que tenha sido transmitido à requerida, pela requerente, “qualquer know-how relevante, pelo que a indicada cláusula de não concorrência não preenche o requisito de indispensabilidade à protecção do saber-fazer transmitido”, ou seja, não se prova que haja “qualquer know-how relevante que justifique que a requerida pudesse ficar impedida de exercer actividades concorrentes com requerente. Por isso, a cláusula 12.ª do contrato é de considerar nula, como se considera.” [entre aspas parafrasearam-se frases do referido acórdão do STJ]. E sendo nula, dela não se pode retirar o direito invocado pela requerente. Pelo que não existe o fumus bonus juris, como disse a sentença recorrida.

              Note-se que as características do saber-fazer que o ac. do STJ descreve, constam das definições do próprio Regulamento, artigo 1/-g: Para efeitos do presente regulamento entende-se por: “saber-fazer”, um conjunto secreto, substancial e identificado de informações práticas não patenteadas, resultantes de experiências e ensaios efectuados pelo fornecedor. Neste contexto, por «secreto» entende-se que o saber-fazer não é geralmente conhecido nem de fácil obtenção; por «substancial», entende-se que o saber-fazer é considerável e útil para o comprador para efeitos de utilização, venda ou revenda dos bens ou serviços contratuais; por «identificado», entende-se que o saber-fazer deve ser definido de uma forma suficientemente abrangente, a fim de permitir verificar se preenche os critérios de confidencialidade e substancialidade; […].” (desenvolvendo-as, para além de L. Pestana Vasconcelos, citado pelo acórdão, também Maria de Fátima Ribeiro, obra citada, páginas 166 a 179).

              Aproveitando o acórdão do STJ, André Lipp Pinto Basto Lupi, no estudo Revisão judicial de contratos de franquia: análise comparativa entre o direito brasileiro e o direito português, RJLB, Ano 5 (2019), nº 4, página 238, diz:

         “Outro tema relativo ao contrato de franquia, este já conhecendo maior repercussão no âmbito judicial, respeita a cláusula de não concorrência, que, como se sabe, tem regulação comunitária.

         Em aplicação à normativa europeia, os tribunais portugueses afastam com alguma frequência a validade dessa cláusula, por compreendê-la violadora do regulamento, na medida em que restringem indevidamente a concorrência.

         Serve de razão para tanto, por exemplo, a interpretação de que não há “saber-fazer” suficiente que tenha sido transmitido pelo franquiador e seja digno de protecção. Nesta linha, cursos elementares de formação inicial, com matérias disponíveis, no geral, ao público, não caracterizam transmissão de know-how passível de protecção. Outro argumento a endossar a invalidade da cláusula tange a falta de exclusividade dos produtos, quando há similares à venda em estabelecimentos concorrentes.

         O mesmo acórdão esclarece que o contrato de franquia sub judice era um contrato de adesão. Por conseguinte, é aplicável o RCCG, contido no DL 446/85, com as alterações subsequentes.  E assim posto, cabe anular a cláusula contratual que exclui qualquer compensação ao franquiado, quando lhe impõe expressamente a limitação de sua liberdade de estabelecimento e de trabalho, em todo o território nacional, por violar o princípio de boa-fé, na forma estipulada no art. 15 do DL 446/85.

         […]

         Vislumbra-se, portanto, além da necessária limitação da obrigação no tempo e no escopo, o critério de ser indispensável para validade a efectiva transmissão de um saber-fazer. Estes traços parecem definidos de forma consistente na jurisprudência portuguesa, em linha com a normativa europeia.”

              Tudo isto pode ser chamado à colação, embora não estejam em causa relações jurídicas que tenham conexão com outro estado membro da UE, dado o disposto no artigo 10/3 da Lei da Concorrência, Lei 19/2012, de 08/05, ao remeter para regulamento da EU adoptado nos termos do disposto no artigo 101.º/3 do TFUE.

              Tudo isto justifica também que se diga que a requerente faz uma leitura errada da sentença recorrida. A sentença não considerou válida a cláusula 12 dos contratos de franquia. O que ela fez, pelo contrário, foi dizer que “a requerente [não logrou] provar a transmissão de qualquer saber-fazer, pelo que, no caso concreto, não é imposto à requerida que se abstenha de exercer actividade concorrencial à da requerente, o que pressupõe a invalidade das cláusulas, e, por isso,  julga não verificado o requisito de existência do direito do requerente.

              Ora, embora este TRL não vá tão longe – no sentido de já se poder dizer que as cláusulas não são válidas -, considera, no entanto, que se pode pelo menos dizer que a requerente não provou os factos suficientes para se poder concluir pela verificação de uma condição de que dependia a validade das cláusulas e que, por isso, não se pode dizer que esteja sumariamente provada a existência do direito da requerente.

              Para uma situação semelhante, num outro ramo de direito, veja-se o ac. do TRL de 20/10/2010, proc. 4883/07.5TTLSB.L1-4:

         II- A cláusula de não concorrência impede o trabalhador de exercer livremente uma actividade profissional e, por ser contrária aos direitos fundamentais do trabalhador, a proibição de concorrência deve ser proporcionada ao escopo prosseguido que reside na tutela dos interesses da empresa. Por isso, pode dizer-se que as cláusulas de não concorrência são válidas desde que sejam indispensáveis à protecção dos interesses da empresa.

         IV- Cabe ao empregador que invoca em seu favor a cláusula de não concorrência demonstrar que os conhecimentos adquiridos pelo trabalhador no decurso do contrato implicam riscos particulares específicos para a empresa. Na falta de um interesse do empregador justificado pelo risco de uma concorrência diferencial a cláusula é nula.

         V – Este interesse legítimo do empregador tem de ser alegado e provado pelo empregador, pois o mesmo não se presume, e, no caso concreto, não se deduz das funções legalmente atribuídas ao trabalhador.

         VI -No caso vertente, a autora, ora recorrente, não cumpriu esse ónus de alegação pois, não alegou factos relativos aos conhecimentos específicos e perigosos a que teria acesso o réu, a que know-how acedeu, que segredos conheceu, que clientela poderia desviar.

                                                                       *

              Afastado que está um dos requisitos necessários à procedência da providência, fica afastada a apreciação de outras razões da requerente ou das outras considerações tecidas pela sentença recorrida para o não decretamento da providência.

              Esclareçam-se, no entanto, duas coisas: a 1.ª é que a eventual nulidade decorrente de, na 1.ª instância, não ter sido proferido um despacho de aperfeiçoamento do requerimento inicial, para que a requerente a completasse com a alegação dos factos pressupostos no art. 5/3-c do regulamento, não é de conhecimento oficioso e a possibilidade da sua arguição precludiu com a notificação da designação para julgamento (art. 199/1 do CPC).

              A 2.ª é a de que os requisitos para o decretamento da providência cautelar comum são apenas dois (arts. 362/1 e 368/1, ambos do CPC): a existência do direito tutelado e o fundado receio de que lhe seja causada  lesão grave e dificilmente reparável. O (iii) requisito enumerado pela sentença tem apenas a ver com a delimitação do âmbito do procedimento e o (iv) – não ser o prejuízo resultante do decretamento da providência superior ao dano da que com ela se pretende evitar (art. 368/2 do CPC) – ou é um requisito negativo / facto impeditivo, que por isso não tem de ser alegado nem provado, como é bom de ver, pelo requerente da providência, mas sim pelo requerido (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, 2017, páginas 7, 8, 25 e 39-42), ou é uma condição (negativa) de não decretamento da providência cautelar / um critério de decisão, pelo que a inferência que o permite dar como preenchido não se situa no plano probatório, integra-se antes no plano da matéria de direito (Miguel Teixeira de Sousa, CPC online, 2023, anotação ao art. 368). A ser como diz Teixeira de Sousa, continua a poder dizer-se que é o requerido que corre o risco de não ficarem provados factos que permitam, em seu benefício, aquele juízo de inferência, pelo que será do seu interesse (e não do requerente) alegá-los.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

              Custas, na vertente de custas de parte, pela requerente

              A requerente vai condenada em 1/2 UC de multa pela apresentação do documento (‘decisão’) com o recurso; o mesmo deve-lhe ser restituído (desentranhado e oculto dos autos) à sua custa.

              Lisboa, 14/09/2023

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto