Processo do Juízo Local Cível de Lisboa
Sumário:
Se um dos réus contestou, impugnando quase todos os factos alegados pela autora, a revelia do outro réu é inoperante, mesmo que a autora venha a desistir do pedido contra o réu que contestou, pelo que os factos não podiam ter-se por confessados (artigos 567/1 e 568/-a do CPC).
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:
A 24/08/2018, a U-SA, intentou uma acção comum contra os sucessores do de cujus L, (i) A, descendente, (ii) B, também descendente, (iii) herdeiros incertos e desconhecidos, pedindo a condenação dos réus a reconhecerem a existência do crédito da autora sobre a herança, de 6.172,36€ de capital e 21.838,74€ de juros à taxa anual contratada de 23,57%, calculados desde o último extracto enviado a 02/09/2007 até 24/08/2018 [artigo 13 da PI], acrescida dos juros moratórios que se vencerem desde 24/08/2018 sobre 6.172,36€ e até integral pagamento, à mesma taxa, devendo este crédito ser satisfeito pelos bens da herança.
Alegou para tanto, em síntese, que:
1\ No exercício da sua actividade de emissão e comercialização de cartões de crédito, por solicitação de L, em 14/04/2000, a autora atribuiu ao mesmo um cartão de crédito com o n.º 000000000000000;
2\ Nos termos do contrato assim celebrado, foram acordadas e aceites, entre outras, as seguintes regras:
– A autora obrigou-se a efectuar aos comerciantes a quem o titular, por meio do uso do cartão que aquela emitiu e lhe entregou, tenha feito aquisições de bens e / ou serviços, seja em Portugal ou no estrangeiro, o pagamento integral do respectivo preço, até ao limite máximo de utilização convencionado, e bem assim, a reembolsar as instituições de crédito junto das quais tenha, se aplicável, efectuado levantamentos em numerário e a crédito, designadamente em caixas automáticas de multibanco e visa;
– Mensalmente, a autora emitia e enviava ao titular, para a morada por este indicada no pedido de adesão, o extracto da conta-cartão, conjuntamente referente ao citado cartão, contendo (i) a descrição e os valores das transacções efectuadas, pagas pela U em nome do titular, (ii) os valores que por estes fossem devidos à U pela prestação de serviços, (iii) os valores respeitantes a correcções ou movimentos de estorno quando devidos, (iv) os valores respeitantes a anuidades, juros, impostos e encargos devidos a serviços solicitados pelo titular à U e (v) os pagamentos que tenham sido efectuados no mês e por referência ao extracto anterior pelo titular à U;
– O titular comprometeu-se a, pela titularidade do cartão, pagar uma anuidade do montante em cada ano em vigor e, bem assim, a pagar à autora, 20 dias após o data da emissão de cada extracto de conta mensal, a quantia total neste indicada como estando em dívida ou, em alternativa, a efectuar o pagamento em prestações mensais nunca inferiores a 5% do valor total em dívida, caso em que seriam debitados juros sobre o valor que ficasse em dívida, calculados por aplicação da taxa que, a cada momento, fosse a convencionada;
– O titular obrigou-se a não utilizar o cartão para além do limite máximo de utilização convencionado para a respectiva conta-cartão;
– Foi convencionado o domicílio do titular do cartão em causa, sendo ainda convencionado entre as partes que, no caso de não ser efectuado o pagamento integral do saldo indicado em cada extracto, sobre o valor do capital remanescente em dívida seria aplicada uma taxa de juro mensal, que poderia ser revista pela autora, sendo tais alterações comunicadas ao titular através de cláusulas contratuais actualizadas enviadas pela autora ou no extracto de conta;
2\ Ao longo do período de vigência do contrato celebrado, ocorreram alterações legislativas que obrigaram a autora a reformular as condições gerais de utilização do cartão, sendo ainda feitas alterações para assegurar acrescidas condições de segurança, tendo tais alterações sido enviadas para o domicílio convencionado e sendo a última taxa comunicada e aplicável de 23,57%;
3\ Tendo tomado conhecimento dessas novas condições gerais de utilização, direitos e deveres das partes, o titular do cartão não usou da faculdade de, caso delas discordasse, rescindir o contrato, antes dando o seu acordo tácito às alterações em causa, acordo consubstanciado, também, pela utilização do cartão em data posterior;
4\ Conforme extracto da sua conta-cartão oportunamente (20 dias antes do seu vencimento) enviado ao cuidado do titular em 02/09/2007, deveria o mesmo ter pago à autora, até ao dia 22/09/2007, um total de 12.213,44€;
5\ E juros moratórios à taxa convencionada anual de 23,57%, contabilizada sobre o capital em dívida (6.172,36€) e bem assim devedores dos juros vincendos que se contarem, à mesma taxa, até ao pagamento efectivo e integral.
6\ Conforme assento de óbito que se junta como documento n.º 71 [certidão de 21/12/2009], o titular do cartão faleceu a 29/02/2008, facto de que autora apenas tomou conhecimento em sede de acção judicial que contra o mesmo havia apresentado, a qual correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro Silves – Inst. Local – Sec. Comp. Gen. – J2, sob o n.º 0/00.3TBSLV [substitui-se aqui aquilo que constava da sentença que se tinha limitado a dizer, mal, que a autora tinha alegado que: o titular do cartão faleceu a 22/08/2018].
A nível de direito, a autora disse:
Impondo-se o pontual cumprimento do contrato por ambas as partes (artigo 406/1 do Código Civil), tendo a autora prestado a sua obrigação contratual, ao de cujus competia pagar à autora a quantia em dívida, pelo que, não o tendo feito, faltou ao cumprimento da sua obrigação, presumindo-se culposa essa falta de cumprimento, e originando um dever de indemnizar a autora (artigos 762/1, 798 e 799/1 do CC);
Não tendo sido pago à autora o montante em dívida no prazo convencionado, incorreu o devedor em mora a partir desse momento, devendo reparar os danos daí decorrentes, correspondendo esse dever de indemnizar aos juros a contar do dia da constituição em mora à taxa anual de 23,57% por esta ter sido a estipulada e ser diferente da taxa de juro legal (artigos 804/1, 805/2a, 806/2 e 559 do CC).
Aquando do falecimento do de cujus e, através da sucessão, as situações jurídicas patrimoniais (activas ou passivas) que compunham a esfera jurídica daquele foram transmitidas aos seus sucessores, que assim assumem as obrigações do mesmo e, existindo bens que componham a herança, respondem estes colectivamente pela satisfação dos créditos do de cujus; no caso vertente, resulta comprovada a existência de acervo hereditário que permitiria satisfazer os créditos existente sobre a herança; nesta conformidade deve ser reconhecido o crédito da autora sobre a herança (artigos 2068, 2091/1e 2098 do CC) [a sentença não tinha transcrito a parte sublinhada e em vez de componham tinha transcrito compunham – parenteses deste TRL].
Os réus A e B foram citados pessoalmente (a 18/09/2018) e os herdeiros incertos e desconhecidos foram citados editalmente.
A ré apresentou a 21/09/2018 uma certidão de escritura de repúdio da herança com data de 11/06/2013.
A 26/09/2018 a autora juntou, depois de notificada para o efeito pelo tribunal, cópia do pedido de adesão assinado pelo falecido, com carimbo de 07/02/1991, tendo a assinatura na primeira página e as condições gerais na 2.ª página (no verso). As condições gerais de utilização do cartão de crédito particular constam de um outro documento (doc.2 deste requerimento = doc. 1 da PI que a autora dizia ser o pedido de adesão e respectivas condições gerais – art. 2 da PI; nesta PI não havia doc.2…), sem ligação ao anterior, com uma nota onde se diz que elas foram elaboradas de acordo com o previsto no aviso 11/2001, de 20/11, do Banco de Portugal, e do Regulamento CE 2560/2001 do Parlamento Europeu e do Conselho de 19/12/2001. Os réus nunca foram notificados desta junção, apesar dos despachos de 14/09/2018 e de 21/12/2018.
A 03/10/2018 a autora juntou aos autos comprovativo de ter requerido apoio judiciário, que lhe foi concedido, na modalidade de nomeação de patrono oficioso e de pagamento faseado da taxa de justiça e demais encargos, bem como da compensação devida ao patrono nomeado.
A 18/10/2018, o réu fez juntar aos autos o comprovativo de ter pedido, nesse dia, na segurança social, dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e nomeação e pagamento de compensação de patrono; no requerimento dizia: “Pretendo contestar o processo apresentando a escritura de repúdio da herança. Preciso de um mandatário com descrito na acção.” [sic]
A 26/11/2018, a solicitação do tribunal, o réu informou que, para além dele e da irmã, não tinha conhecimento de outros herdeiros do falecido.
A 12/06/2019, a ré contestou, impugnando quase todos os factos alegados pela autora, pugnando pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido.
A 15 e 17/10/2019, a segurança social informou que o pedido de apoio judiciário formulado pelo réu foi indeferido e esclareceu que na mesma data foi notificado o requerente.
A 23/01/2020, a autora, dando-se por notificada da contestação apresentada pela ré, veio apresentar desistência do pedido deduzido contra esta ré, ao abrigo dos arts. 285/1 e 286/2 do CPC.
A 03/03/2020, foi efectuada a citação dos herdeiros incertos e desconhecidos na pessoa do MP.
A 20/10/2010 o tribunal determinou a notificação da autora para juntar aos autos a certidão de nascimento do réu, o que a autora faz por requerimento de 11/11/2020.
Por decisão proferida a 18/03/2021, foi homologada a desistência do pedido contra a ré.
A 14/04/2021, a autora requer que a acção apenas prossiga contra o réu, não devendo prosseguir contra herdeiros incertos uma vez que os herdeiros já se mostram devidamente identificados nos autos.
A 26/04/2021, foi proferido o seguinte despacho: atenta a disponibilidade do objecto e a qualidade do requerente, ao abrigo do disposto nos artigos 285/2, 286/1, 289 e 299, todos do CPC, julgo válida a desistência da instância constante do requerimento que antecede, a qual homologo, e, em consequência, declaro cessados os termos do processo quanto aos referidos incertos. Custas pela autora, na proporção de 1/3 das devidas até ao momento. Registe e notifique. A presente acção prosseguirá os seus normais trâmites, apenas, contra o réu. E, uma vez que este, regularmente citado, não contestou, considero confessados os factos articulados pela autora na petição inicial. Assim sendo, cumpra o disposto no art. 567/2 do CPC.
A autora veio apresentar a 11/05/2021 alegações por escrito, nos termos do disposto no artigo 567/2 do CPC, renovando os argumentos que já sustentara na sua PI.
A 21/12/2022 foi proferida sentença julgando a acção procedente por provada e condenando este réu nos pedidos.
A sentença fez o relatório, no essencial (salvo a correcção do ponto 6 operada por este TRL e ali ressalvada), coincidente com o que consta acima, com a reprodução da petição inicial, quer quanto aos factos quer quanto ao direito e descrição das circunstâncias supervenientes com relevância.
Depois, a sentença disse que “atenta a pretensão deduzida e as razões de facto e de direito invocadas pela autora, revestindo a causa de evidente simplicidade e não se configurando qualquer situação de excepção prevista no artigo 568 do CPC, determinante da inoperância da revelia do ré contra quem prossegue a acção, cumpre proferir decisão nos termos do artigo 567/3 do CPC, justificando-se que a presente sentença se limite à parte decisória, com fundamentação sumária do julgado.”
A seguir acrescentou que:
“Ao abrigo do disposto no art. 567/1 do CPC, têm-se por provados os factos alegados pela autora na petição inicial, acima sumariados, que aqui se dão por reproduzidos, ressalvando-se que o falecimento do de cujus se encontra devidamente atestado por certidão de óbito junta aos autos.
Atenta a ausência de contestação por parte da ré e à simplicidade das questões decidendas, por aplicação do disposto no art.567/3 do CPC, adere-se integralmente aos fundamentos de facto e de direito invocados pela autora, que aqui se têm por reproduzidos e para os quais se remete.”
Em nota esclareceu: Sobre a dispensa de reprodução dos factos alegados tidos por provados, nos termos previstos no art. 607/4 do CPC nas acções não contestadas, de manifesta simplicidade, como a presente, vide o acórdão do TRL de 27/01/2021, proferido no âmbito do proc. 4899/19.9T8LRS.L1-4 (por análise do art. 57/12 do CPT, análogo ao 567/1-3 do CPC, sendo, por isso, transponível para o presente caso a respectiva fundamentação), bem como as referências jurisprudenciais aí citadas.
Notificado da sentença por carta elaborada a 21/12/2022, o réu apresentou recurso da mesma a 12/01/2023.
O corpo das alegações tem o seguinte teor:
Nos artigos 1 a 5 transcreve os factos que considera que foram dados como provados, correspondentes a alguns dos que foram alegados pela autora; e nos artigos seguintes diz:
6\ Uma vez que o titular do alegado cartão de crédito faleceu, no dia 29/02/2008, [a autora] presumindo a aceitação da herança por parte do réu, que na verdade, não se verificou, intentou contra ele e contra a sua irmã a presente acção, por serem os herdeiros/sucessores do de cujus e da herança aberta pelo falecimento do mesmo.
7\ No entanto, também o réu, tal como a sua irmã, não aceitou a herança, aberta com o falecimento do seu pai, tal como se prova, através, da escritura notarial de repúdio outorgada no dia 27/09/2018, cuja cópia certificada se junta como doc.1 e se considera, para os devidos efeitos, como integralmente reproduzida.
8\ Com o repudio da herança aberta pelo falecimento do seu pai, o réu terá de se considerar como não chamado a essa herança, não podendo, nesta medida, ter sido condenado no pedido, por não ter recebido qualquer bem da herança, ao invés do que foi indevidamente reconhecido na sentença recorrida.
9\ A sentença recorrida ao reconhecer o crédito da autora sobre a herança do de cujus, violou, de forma flagrante o disposto nos artigos 2068, 2091/1 e 2098, todos do CC.
10\ O réu não recebeu qualquer património da herança aberta pela morte do seu pai, não podendo nesta medida, responder por uma divida, exclusivamente, contraída pelo seu pai, com quem, aliás, o recorrente, não falava, nem tinha qualquer contacto há vários anos.
11\ De acordo com o disposto no artigo 2062 do CC, “os efeitos do repúdio da herança retrotraem-se ao momento da abertura da sucessão, considerando-se como não chamado o sucessível que a repudia.”
12\ Igualmente, nos termos do disposto no artigo 2063 do CC o repúdio está sujeito à forma exigida para a alienação da herança, motivo pelo qual, o repudio do recorrente, observou, igualmente, a forma legalmente exigida.
13\ Mais, a autora, quando tomou conhecimento que a ré havia repudiado a herança do de cujus, veio apresentar desistência do pedido deduzido contra ela, recusando a sub-rogação dos credores, prevista no artigo 2067/1-2 do CC, ou seja, no prazo de seis meses, não aceitou a herança em nome da repudiante.
14\ Ao invés, preferiu a autora que o réu fosse condenado, por não ter deduzido contestação à acção, ao abrigo do disposto no artigo 567/1 do CPC.
15\ Em face da ausência da contestação, por parte do réu, o tribunal, através da sentença recorrida, considerou provados os factos alegados pela autora na sua petição inicial aderindo, integralmente aos fundamentos de facto e de direito invocados pela autora.
16\ No entanto, com a contestação apresentada pela ré, o tribunal tomou conhecimento de diversos factos, que não permitiriam ao tribunal, aderir integralmente aos fundamentos de facto e de direito invocados pela autora, cuja sentença, além do mais, não enunciou de forma descriminada, os factos provados e não provados, como se impunha, devendo, nos termos do disposto no artigo 662/2-a-d do CPC, ser a sentença recorrida, anulada, em sede de decisão de facto.
17\18 “[…] na fundamentação de facto de uma sentença devem ser descritos factos jurídicos. Por outras palavras, aquilo que o tribunal deve considerar provado e não provado são factos jurídicos, ou seja, os acontecimentos (e circunstâncias) concretos, determinados no espaço e no tempo, passados e presentes, do mundo exterior e da vida anímica humana que o direito objectivo converteu em pressuposto de um efeito jurídico e não conceitos conclusivos e de direito” (acórdão do TRL [de 28/09/2021], proc. 1336/20.0T8FNC.L1-7).
19\ A sentença recorrida, sobre a adesão in totum às alegações apresentadas pelo autora sobre a decisão sobre a matéria de facto, além de não ter descriminado os concretos factos provados e não provados, é deficiente, obscura e contraditória sobre factos concretos da matéria de facto (artigo 662/1-c do CPC), conforme, se passará a demonstrar, em sede de conclusões.
Nas conclusões do recurso (20 a 41) o réu trata do que antecede e de muitas outras questões.
Na conclusão 20 vai invocando as impugnações feitas pela ré na sua contestação, embora sem o dizer expressamente, mas em m\ e n\, ainda da conclusão 20\ diz:
m) Mais, o próprio contrato respeitante à atribuição do cartão de crédito, tem aposto uma assinatura, que foi impugnada, desde logo pela filha de de cujus, irmã do réu, que alegou de imediato que conhecia bem a assinatura do pai, e que a assinatura aposta naquele documento não é a assinatura do falecido, o que feria, desde logo o contrato de nulidade, bem como, todas as suas respectivas consequências jurídicas;
n) No entanto, o tribunal recorrido, omite, por completo estas incongruências e considera como provado também estes factos, (artigos 13 a 16, 18 a 20, 22 e 23) o que não se pode aceitar;
E na conclusão 21 diz:
Conforme o exposto não podia o tribunal recorrido considerar confessados os factos referenciados no artigo 20, por se tratar de factos que o Tribunal tomou conhecimento e que impunham decisão sobre a matéria de facto diversa, não podendo, o tribunal considerar confessados todos os factos alegados na petição inicial, tal como considerou.
Termina dizendo que:
A Relação deverá anular e alterar a decisão recorrida proferida sobre a matéria de facto, considerada provada, determinando que o tribunal de 1ª instância fundamente a decisão proferida, sobre os concretos pontos alegados na conclusão 20, ordenando a renovação de prova ou produção de prova, designadamente, através da admissão do documento n.º1, ora junto, por a confissão por força da falta de contestação da sentença recorrida, só poder ser relevante no que respeita aos factos e não à matéria de direito, e mesmo em relação aos factos abrange apenas aqueles que não estão sujeitos a forma vinculada, ou seja, cuja prova só possa ser feita, nomeadamente, por documento.
A autora contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso; entre o mais diz que:
“[…] cabe referenciar que as alegações apresentadas pelo réu, mais não são do que uma quase réplica da contestação apresentada pela ré, outrora parte no presente processo, […]
[…]
Ainda, veio o réu, em reprodução da contestação, aí sim, contestação, apresentada pela sua irmã indicar que a assinatura não era a do de cujus pois aquela “conhecia bem a assinatura do pai, e que a assinatura aposta naquele documento não é a assinatura do falecido” sem juntar qualquer tipo de prova documental, bastando-se com aquela mera declaração para se fazer de fazer valer de algo que não é verdade com o intuito de se eximir de uma circunstância que não lhe convém.
[…]”
*
Questões que importa decidir:
O recurso (art. 16 do corpo das alegações, reflectido nas conclusões 20, parte final, e 21) levanta uma questão que é prejudicial de todas as outras e cuja procedência é manifesta, qual seja, a da relevância da contestação apresentada pela ré contra os factos dados como confessados pelo tribunal.
Os factos que importam à decisão desta questão constam do relatório supra.
Apreciação:
O art. 567/1 do CPC, dispõe que se o réu não contestar, tendo sido ou devendo considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa ou tendo juntado procuração a mandatário judicial no prazo da contestação, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor.
O art. 568 do CPC, sob a epígrafe ‘excepções, diz que “Não se aplica o disposto no artigo anterior: (a) Quando, havendo vários réus, algum deles contestar, relativamente aos factos que o contestante impugnar; […]”.
Ora, como dizem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, 2017, pág. 542: “A excepção não é prejudicada pela superveniente desistência do autor relativamente ao réu contestante (Manuel Gonçalves Salvador, Efeitos da contestação quanto ao réu revel, O Direito, 94, págs. 274-294; Castro Mendes, Direito Processual Civil, cit. II, pág. 591 [= AAFDL, 1980, vol. III, pág. 128, nota 1 – TRL]; contra; ac. do STJ de 18/07/1961, BMJ. 109, pág. 612].
No mesmo sentido, Castro Mendes / Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, vol. II, CIDP/AAFDL, 2022, pág. 71, acrescentam: “[…] mesmo que este contestante venha posteriormente a confessar o pedido ou a celebrar transacção com o autor. […]”.
E, entre muitos outros, os acórdãos do TRP de 21/09/2010, proc. 474/04.0TBOAZ-I.P1; do TRP de 20/04/2023, proc. 7559/20.4T8VNG.P1, com um voto de vencido que não diz respeito a estas conclusões; ac. do TRE de 24/10/2019, proc. 105/18.1T8STR.E1 : 3 – A desistência do pedido quanto aos litisconsortes contestantes não tem, a virtualidade de convolar a revelia inoperante das rés numa revelia operante porquanto a contestação de um dos litisconsortes aproveita sempre aos demais réus e a situação de revelia e os efeitos da mesma aferem-se no momento da contestação, perdurando até à decisão final do processo; ac. do TRP de 26/2/2019 (172/18.8T8OVR-A.P1): I – Quando, havendo vários réus, somente um deles contestar, os factos impugnados pelo réu contestante consideram-se impugnados a favor dos demais qualquer que seja a sorte da acção em relação ao contestante. II – A situação de revelia e os seus efeitos aferem-se à data da contestação e perduram até à decisão final do processo, razão pela qual fica vedado o desentranhamento da contestação, ainda que sob requerimento do seu apresentante. III – Se o autor desiste do pedido que formulou contra o réu contestante e ele é, por isso, absolvido do pedido, a situação de revelia não operante do réu não contestante subsiste, tendo o autor de provar, em sede de audiência de julgamento, os factos que lhe imputa. […]; com comentário do Prof. Miguel Teixeira de Sousa, publicado em 23/07/2019, Jurisprudência 2019 (63), no blog do IPPC: “A RP decidiu bem. Depois de o acto de contestação por um dos réus ter produzido efeitos em relação ao réu não contestante através do regime da revelia inoperante (artigo. 568/-a CPC), esse acto deixou de poder ser revogado pelo réu contestante. Note-se também que não há nenhuma incompatibilidade entre a desistência do pedido relativamente ao réu contestante e a permanência da contestação deste réu no processo.”; e o ac. do TRC de 07/10/2014, proc. 257058/11.5YIPRT.C1.
Assim, a contestação da ré, com impugnação de quase todos os factos alegados pela autora, aproveita ao réu e, por isso, os factos alegados pela autora não se podiam ter dado como confessados.
A procedência desta questão prejudica todas as demais, que, por isso não se conhecem.
*
Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revoga-se a decisão que deu como provados os factos alegados pela autora, devendo o processo prosseguir os seus normais termos com aproveitamento da contestação da ré.
Custas de parte, do recurso, pela autora.
Lisboa, 13/07/2023
Pedro Martins
1.º Adjunto
2.º Adjunto