Processo do Juízo de Família e Menores de Sintra
Sumário:
I – As normas da 2.ª parte do n.º 2 e do n.º 3 do artigo 1675 do CC devem ser consideradas ab-rogadas.
II – Durante a separação de facto existe um direito a alimentos de um cônjuge contra o outro (artigo 1675/2, 1.ª parte), mas tal direito pode ser negado por razões manifestas de equidade (artigo 2016/3 do CC).
III – Considerando a inexistência substancial de casamento entre requerente e requerido, a violação, por aquela, dos deveres conjugais de respeito e de cooperação, e o aproveitamento por ela, em benefício próprio, do património comum do casal e dos bens do requerido, seria iníquo, no caso, atribuir alimentos à requerente à custa do requerido.
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:
A 02/10/2020, M, dando-se como residente em AC, veio requerer, nos termos do disposto nos artigos 384 e seguintes do Código do Processo Civil o decretamento da providência cautelar especificada de alimentos provisórios contra o seu marido C, dado como residente na mesma morada, pedindo que este seja condenado a pagar-lhe a tal título o montante fixo mensal de 1.923,26€, acrescidos das despesas de saúde com consultas médicas e tratamentos, actualizáveis anualmente no mês de Janeiro de cada ano de acordo com a taxa de inflação publicada pelo INE.
Para tanto, alegou, em suma, que: ela e o requerido viveram juntos desde 2003; casaram em 2009; a requerente não trabalhava por imposição do requerido; a 08/04/2020 o requerido impediu-lhe o acesso à casa, mudou a fechadura; mudou a conta bancária em que a pensão de invalidez dele era depositada e cancelou o seguro de saúde que a abrangia; está impossibilitada de trabalhar pela idade, saúde, falta de experiência e de qualificações profissionais; vive da ajuda de familiares e amigos e tem despesas no indicado valor; o requerido tem meios que lhe permitem pagar-lhe a peticionada pensão de alimentos, incluindo entre 580€ e 600€ para arrendar uma casa na zona onde vivia com o requerido.
Foi efectuada tentativa de conciliação, a 23/11/2020, a qual se frustrou.
O requerido deduziu oposição; impugna que a requerente tenha necessidade de alimentos ou não os possa obter, pois tem uma casa própria em B, onde vive, recebe prestação de alimentos do anterior marido, apropriou-se de 250.000€, provenientes do trabalho e da reforma dele, requerido, e possui capacidade de trabalho indiciada por cerca de 10 anos que frequenta curso universitário de direito.
O acompanhante nomeado ao requerido nos autos de maior acompanhado, R, veio ratificar os autos e juntar procuração (req. de 24/1/2022).
Sucederam-se sucessivas nomeações de patrono à requerente e escusas, o que provocou retardamento dos autos por longo período. Acresceu ainda que os autos aguardaram desde 14/7/2021 até 14/1/2022 impulso processual da requerente.
(este relatório seguiu, no essencial, o relatório da sentença recorrida)
Depois de realizada audiência com produção de prova, foi proferida sentença julgando improcedente o pedido, dele absolvendo o requerido.
A requerente vem recorrer desta sentença, impugnando parte da decisão da matéria de facto e a decisão de improcedência do pedido.
O requerido contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso.
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Questões que importa decidir: se a matéria de facto deve ser alterada e se a requerente tem direito a alimentos provisórios.
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Estão dados como provados os seguintes factos [já inclui as alterações determinadas na parte deste acórdão dedicada à impugnação da decisão da matéria de facto, assinaladas com rasuras e sublinhados por este TRL, nos factos 44\ e 71\; os factos são transcritos com algumas das notas de rodapé, agora em parenteses rectos, que têm conteúdo útil e certo, para além daquelas que dizem respeito aos factos impugnados e que, por isso, importaram à impugnação e à decisão da impugnação]:
1\ Requerente e requerido casaram um com o outro, em segundas núpcias de ambos, em 13/04/2009.
2\ No dia 28/10/2019, a requerente efectuou inscrição para o ano lectivo de 2019/2020, na licenciatura em direito da Universidade de Coimbra. Do seu número de aluno consta ainda a referência ao ano de 2010 correspondendo à sua matrícula inicial no curso. A 14/10/2022,apresentava a dívida à Universidade Coimbra de 697€ de propina do ano lectivo 2021/2022 e 20€ de inscrição, cujo pagamento em prestações foi negociado, com vista a manutenção da inscrição.
3\ O casal vivia da pensão de reforma do requerido.
4\ O requerido passou à situação de pré-reforma a 01/04/2018. E foi reformado por invalidez a 01/01/2019.
5\ Ao requerido foram diagnosticadas, entre outras doenças, Parkinson, uma perturbação depressiva e glaucoma.
6\ A 26/3/2019 foi atribuída, por junta médica, ao requerido a incapacidade permanente global de 63%.
7\ A requerente teve um cancro da mama em 2016, tendo sido submetida a uma intervenção cirúrgica e feito tratamentos de radioterapia e quimioterapia.
8\ A requerente padece de um quadro depressivo/ansiedade, síndrome vertiginoso e de dificuldades respiratórias, tendo sido submetida a diversas cirurgias ao nariz e internamentos hospitalares (com a última cirurgia em 20/02/2020), sendo seguida pela Medicina do Sono no CHUC e sofre de tendinites e queixas lombares.
9\ Na sequência da Junta Médica para avaliação da incapacidade da requerente foi-lhe atribuída uma incapacidade permanente global de 60%, a 29/6/2017.
10\ A 15/5/2020, a requerente estava inscrita no Centro de Emprego, desde 28 de Março de 2018.
11\ A favor da requerente foram emitidos atestados médicos correspondentes aos períodos de 20 a 27/2/2020; 1 a 30/6/2020; 1 a 30/7/2020; 31 a 29/8/2020. Em 10 e 11/03/2020 a requerente foi internada no HC, por ocorrência nasal (relativa ao diagnosticado problema com cornetos).
12\ Em 2007, o requerido adoeceu tendo-lhe sido diagnosticado um quadro depressivo após evento cerebrovascular (vulgo AVC), o qual obrigou ao seu internamento em 2009 no HUC.
13\ Posteriormente, em Maio de 2015 foi internado no SN do HC e após a alta manteve acompanhamento ambulatório em Psiquiatria e Neurologia, pelo CHCL, até novo internamento em Outubro de 2015 no referido Centro Hospitalar.
14\ O requerido, teve um novo episódio de internamento no CHPL de 07/02/ a 08/04/2020.
15\ A 07/04/2020, a requerente foi atendida na urgência do CHUC.
16\ O requerido esteve internado desde 28/01/2020 a 08/04/2020.
17\ Regressado a casa, com a ajuda dos amigos, o requerido não permitiu a entrada na casa da requerente, pretendo pôr termo ao casamento.
18\ A requerente tentou regressar a casa sem sucesso, tendo sido impedida de o fazer pelo requerido, pelos amigos deste a pedido daquele e pela PSP.
19\ Pelas condutas praticadas então pela requerente foi instaurado processo crime, processo de inquérito 000/20.9PHSNT. Requerida abertura de instrução, a acusação foi confirmada por decisão do juiz de instrução criminal datada de 13/12/2021.
20\ Naqueles autos veio a ser proferida sentença (ora sob recurso) que julgou provados os seguintes factos [à excepção dos antecedentes criminais, não se transcrevem aqueles neste acórdão visto que esta sentença não está transitada em julgado como é referido logo no início deste facto; não se está a eliminar este facto 20, trata-se apenas de não transcrever e não considerar factos que não constam de uma sentença transitada em julgado].
[…]
26/ A arguida/assistente regista os seguintes antecedentes criminais:
– foi condenada por sentença transitada em julgado em 13/11/2006, pela prática em 19/08/2005 de um crime de violação de domicílio, na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de 5€, declarada extinta em 11/01/2008 (processo n.º 000/05.2 GA),
– foi condenada por sentença transitada em julgado em 16/11/2009, pela prática em 28/03/2005 de um crime de difamação agravada e dois crimes de injúria agravada, na pena única de 450 dias de multa, à taxa diária de 4€, declarada extinta em 18/12/2014 (suspensão da prisão subsidiária processo n. º 000/05.9TA),
– foi condenada por sentença transitada em julgado em 10/09/2018, pela prática em 05/05/2016 de um crime de violação de domicílio, na pena de 3 meses de prisão suspensa na execução por 1 ano, declarada extinta em 10/09/2019 (processo n. º 000/15.9GA),
– foi condenada por sentença transitada em julgado em 28/11/2019, pela prática em 21/04/2017 de um crime de difamação agravada e um crime de denúncia caluniosa, na pena de 6 meses de prisão suspensa na execução por 1 ano com regime de prova e pena acessória de proibição de contactos, declarada extinta em 28/11/2020 (processo n.º 000/17.4T9P),
– foi condenada por sentença transitada em julgado em 19/02/2020, pela prática em 14/10/2015 de um crime de falsidade de depoimento, na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de 5€, declarada extinta em 22/06/2022 (processo n. º 000/17.3T9P),
27/ O arguido/ofendido não regista antecedentes criminais.
21\ Realizado julgamento, foi proferida sentença, que decidiu:
a\ Absolver a arguida da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152/1-a do Código Penal e com a pena acessória de proibição de contacto com a vítima prevista nos números 4 e 5 do mesmo dispositivo;
b\ Absolver o arguido da prática do crime de injúria p. e p. pelo artigo 181 do CP de que vinha acusado;
c\ Condenar a arguida pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de perseguição agravada previsto e punido pelos artigos 154-A/1-3 e 155/1-a-b do CP, na pena de 1 ano e 8 meses de prisão;
d\ Suspender, na execução, a pena aplicada à arguida, pelo período de 1 ano e 8 meses;
e\ Condenar a arguida na pena acessória de proibição de contactos com a vítima C, por qualquer meio, incluindo da residência desta, com fiscalização pela DGRSP por meio técnico de controlo à distância, pelo período da suspensão;
f\ Julgar improcedente o pedido de indemnização civil deduzido contra o arguido, absolvendo-o desse pedido;
g\ Condenar a arguida/assistente/demandante a pagar as custas criminais e cíveis do processo, fixando-se a taxa de justiça criminal em 2 UC, nos termos dos arts. 513 e 514/1 do Código de Processo Penal, e art. 8/9 do Regulamento das Custas Processuais.
22\ O requerido alterou a domiciliação da sua reforma para outra conta bancária.
23\ A requerente nasceu a 14/07/1963.
24\ A requerente tem despesas de alimentação, higiene, vestuário, calçado, telemóvel e gastos domésticos de água, luz e gás. De água pagou, em Fevereiro de 2022, 14,95€. De luz pagou, em Março de 2022, 72,28€, reportado aos consumos dos 2 meses anteriores; seguro da casa pagou 97,95€ a 11/10/2022, reportado a um semestre.
25\ O seguro do carro de matrícula 00-00-00, correspondente ao período de 01/10/2020 a 30/09/2021 encontra-se em nome da requerente, que pelo mesmo pagou o valor de 197,01€.
26\ A inspecção do veículo de matrícula 00-00-00, realizada a 03/07/2020 orçou 31,50€, encontrando-se naquela altura ainda em nome do requerido.
27\ Em combustível a requerente gastou entre Maio e Setembro de 2020 as quantias de: 40€; 40€; 51€; 24€; 23€; 20€; 20€; 18€; 28€; 45€; 15€; 28€; 20€; 15€ e 30€. Por sua vez, em portagens, indicando Pombal/Alverca e vice-versa, gastou 11,55€ por cada viagem, nos dias 25/8/2020, 10/9/2020 e 22/9/2020. Em pagamentos à Brisa gastou entre 21/1/2022 e 2/2/2022, por 4 vezes, o valor unitário de 11,65€. No dia 7/4/2020, em deslocação por táxi ao HC, a requerente gastou 60€.
28\ A 28/11/2019 foi cedido à requerente um gato. Tem ainda um cão. De seguro animal pagou relativamente ao ano de 2022 21,80€. Com os animais, cão e gato, registou despesas de: 125,95€ (23/6/2020); 4,90€ (19/4/2021); 14,40€ (26/4/2021); 5,75€ e 4,60€ (17/9/2021); 15€ (22/12/2022); 16€ (29/1/2022); 11,55€ e 2,15€ (7/3/2022).
29\ Em destartarização e polimento de dentes, a requerente gastou 26/5/2020 45€. Em 31/3/2022 suportou despesas dentárias de 553€. Relativamente ao período de 1/7/2022 a 1/7/2023, pagou o prémio de seguro dental de 123,69€.
30\ Em medicamentos a requerente gastou, entre 23/12/2019 e 25/5/2020 […] [o total de 569,60€ em 9 meses, ou seja, a medida mensal de 63,288€].
31\ Em suporte e fato de banho para próteses mamárias a requerente gastou, a 4/8/2020, 51€.
32\ A 08/10/2019, a requerente gastou em lentes e aros 75€.
33\ Em consulta de psicóloga efectuada a 11/02/2022, com a indicação “1ª vez”, a requerente gastou 60€. Em consulta de psicologia realizada a 26/5/2020, com a indicação “seguimento”, a requerente gastou 60€.
34\ Por documento emitido a 26/05/2020, é referido que a requerente se encontra a realizar acompanhamento psicoterapêutico, sendo recomendada a periodicidade quinzenal. Por relatório de acompanhamento psicológico de 22/03/2022, é afirmada a necessidade manutenção do acompanhamento.
35\ Em consulta de psiquiatria efectuada a 25/05/2020, a autora gastou 75€. Em sessão de fisioterapia, de 01/07/2022, pagou 24€.
36\ A autora despendeu em fotocópias, impressora, tinteiros e acessórios, entre Julho e Janeiro de 2022, as seguintes quantias: 4,55€; 55€; 2,22€; 10€; 80€; 33,03€; 5,45€; 15,90€; 38,50€; 24,50€ e 56,90€.
37\ Em declaração de IRS, do ano fiscal de 2021, a requerente não declarou rendimentos. Apresentou anexo B, em que indicou a actividades agrícolas, silvícolas e pecuárias.
38\ À autora foi atribuído rendimento social de inserção, no valor de 189,51€, com início em Novembro de 2021, que se mantém.
39\ O requerido aufere a reforma mensal de 3.037,72€ e 248,01€ [valores ilíquidos] de uma renda mensal vitalícia do “FP Complementos”, da CSF.
40\ O requerido vive em casa própria, em AC.
41\ Durante a semana a requerente vivia em B [a cerca de 190km de AC], deslocando-se usualmente às sextas-feiras para casa do requerido no AC e em regra regressava a B no sábado.
42\ A requerente tem casa própria, moradia inscrita na matriz e descrita na Conservatória do Registo Predial, freguesia de B. A aquisição encontra-se registada a seu favor por apresentação de 16/4/1985, por doação.
43\ Em algumas consultas do requerido a requerente esteve presente, noutras estiveram os amigos do requerido No internamento do requerido de 2015 foi o amigo R que o levou ao hospital.
44\ O requerido incluiu a requerente na sua conta bancária. Era a requerente que detinha um cartão da conta e que a movimentava-a.
45\ O requerido dispunha de pequenas quantias monetárias que a requerente lhe deixava, para as suas despesas, de cerca de 40€.
46\ Pelas dificuldades de saúde, em especial de deslocação e visão, o requerido alimentava-se basicamente de conservas e biscoitos.
47\ Em 2012 o requerido efectuou doação da casa à requerente.
48\ A 21/5/2015, o requerido conferiu procuração a favor da requerente com amplos poderes para o representar, junto de serviços públicos e privados, entidades bancárias, seguradoras, correios, segurança social, etc..
49\ Entre Janeiro de 2015 e Abril de 2020, a requerente retirou da conta conjunta do casal a quantia de cerca de 240.000€ e deu-lhe o destino desconhecido.
50\ Em 01/07/2020 existia naquela conta a quantia de 19.900€. A 20/7/2020 o saldo da conta era de 88,10€, tendo-se a requerente apropriado da correspondente diferença.
51\ O veículo automóvel de matrícula 00-00-00, era pertença do requerido.
52\ A requerente vendeu aquele veículo à sua amiga MG, em nome da qual o veículo foi registado a 30/7/2020.
53\ Quando regressou a casa pós-internamento, em 08/04/2020, o requerido foi vítima de ameaças e perseguição por parte da requerente, que se instalou na habitação dos vizinhos da frente, tendo tentado forçar a entrada na casa.
54\ A requerente fechou a água na torneira de segurança da casa do requerido, existente nas escadas, desferiu murros na porta de casa, ameaçou arrombar a porta, ameaçou o requerido e os amigos de que o irmão os iria agredir com uma machada.
55\ O requerido solicitou a presença da PSP no prédio face àqueles factos. Em processo crime foi aplicada medida de coacção de afastamento da requerente face ao requerido.
56\ O requerido passou à pré-reforma em 1/4/2018.
57\ Em 01/01/2019 o requerido passou à situação de reforma.
58\ Caso se tivesse mantido em situação de pré-reforma até à idade de reforma, o requerido viria a receber a reforma mensal estimada de 5.231,18€.
59\ Em consequência, o requerido sofreu uma perda mensal de rendimento de cerca de 2.000€ e ainda de outras regalias, como seguro laboral de saúde.
60\ Ainda como consequência, recebeu de pronto o dinheiro existente no fundo de pensões.
61\ No ano de 2019, a requerente levantou da conta bancária do casal 91.040€.
62\ Em virtude das várias doenças de que padece, e dada a sua gravidade e consequências, o requerido tem indicação médica para ser acompanhado 24h ao dia.
63\ Também por indicação médica, tem de fazer fisioterapia e terapia da fala.
64\ O requerido é acompanhado por duas cuidadoras. Uma faz o horário diurno, das 8h às 20h, que cozinha, trata da roupa, acompanha o requerido à fisioterapia, ajuda-o a vestir e a tomar medicação, serviços pelos quais paga 1.100€ mensais. À prestadora de serviços que assegura o horário nocturno, o requerido paga 840€ mensais. De Janeiro a 08/12/2022, o requerido pagou os subtotais mensais por estas 2 cuidadoras de: 1.740€; 1.342,89€; 1.808€; 1.808€; 1.882€; 1.892€; 1.934€; 1.882€;1.934€; 1.892€; 1.946€; 840€; o que perfez o total de 20.900,89€ [conferir quadro resumo junto em audiência e declarações do acompanhante do requerido e dos membros do conselho de família, o que é válido também para as outras despesas a seguir discriminadas].
65\ O requerido efectua fisioterapia no serviço nacional de saúde.
66\ Em terapia da fala o requerido despendia mensalmente 420€, tendo gasto de Janeiro a 08/12/2022 a quantia de 2.240€.
67\ Em medicamentos o requerido despende cerca de 60 mês. De Janeiro a 08/12/2022 gastou em medicamentos 872,33€.
68\ O requerido paga de despesas domésticas cerca de 40€ de água, 73€ de luz, 36€ de TV, 25 de gás, 25,80€. De Janeiro a 08/12/2022 gastou nestes itens 1.481,77€.
69\ O requerido pagou por mês de condomínio, 11,96€ de IMI (anual de 182,42€) e 9,29€ de seguro da casa. Entre Janeiro e 08/12/2022 pagou de condomínio e de seguro 524,87€.
70\ Em despesas relativas aos problemas de visão de que padece o requerido despende cerca de 75€ mensais.
71\ Em alimentação, higiene, vestuário, calçado, telefone o requerido gastou entre Janeiro e 08/12/2022 172,03€ em vestuário e calçado; 3.651,25€ em supermercado e 1.894,99€ em despesas de restauração, maioritariamente ao jantar no sábado e/ou almoço no domingo, com os amigos, acompanhante e membros do conselho de família.
72\ Em deslocações para fisioterapia, terapia da fala, consultas, o requerido gastou de Janeiro a 08/12/2022 404,15€, sendo que outras vezes foi levado pelos amigos.
73\ No ano fiscal de 2021, o requerido declarou o rendimento bruto global de 54.450,20€, do qual foi retido na fonte 8.948€ e pagou ao Estado o reembolso de 4.017,83€; de que resulta o rendimento anual líquido de 41.484,37€.
74\ O requerido teve ainda despesas de pagamentos ao Estado, como IMI e IRS; pagamentos à segurança social; pagamentos ao banco e a advogados e obras da casa. Até 20/12/2022 tinha a pagar à segurança social o valor de 1.458€, sendo 1.008€ correspondente a contribuições de uma das cuidadoras e 450€ relativamente à outra.
75\ De Janeiro de 2022 a 08/12/2022 o requerido apresentou os seguintes totais de despesas por cada um dos aludidos meses: 4.416,76€; 4.811,03€; 2.718,06€; 3.209,54€; 3.307,15€; 4.183,13€; 7.051,99€; 2.692,78€; 2.845,25€; 3.197,02€; 3.215,08€ e 3. 096,29€.
76\ Naquelas despesas foi incluindo um fundo de maneio entre 50 a 100€ mensais [vide citado quadro de despesas, sendo que nos autos de maior acompanhado lhe foi fixado o fundo de maneio de 300€ mensais, não obstante se poder considerar que esse fundo poderá compreender algumas despesas de restauração, como os referidos almoços ao fim-de-semana com os amigos que compõem o conselho de família e que asseguram o seu acompanhamento, precisamente aos fins-de-semana, em que não tem cuidadora].
77\ A requerente foi casada em primeiras núpcias com E.
78\ O casamento entre ambos foi dissolvido por mútuo acordo, por sentença de 25/9/2003, no processo divórcio nº 000/03.6TBA do Tribunal da Comarca de L.
79\ No âmbito daqueles autos, designadamente a residência da filha menor foi estabelecida junto do pai, com pagamento de alimentos à filha pela mãe no valor de 75€ mês e o ex-cônjuge marido vinculado ao pagamento de uma prestação mensal de alimentos a favor da ex-cônjuge mulher, no valor de 275€, com início em 30/9/2003.
80\ Por decisão de 24/11/2009, do Tribunal da Relação de Coimbra, a prestação de alimentos a favor da requerente foi reduzida para 142€ mês.
81\ Por sentença de 2/7/2022 foi declarada cessada a prestação de alimentos a cargo de E e a favor da ora requerente, com fundamento no casamento desta a 13/4/2009, com o requerido [a acção deu entrada em tribunal no último trimestre de 2020, alegando o ali autor que desconhecia o subsequente casamento da ex-mulher, o que vai ao encontro do apurado quanto ao segredo que a requerente pretendia impor do casamento].
82\ No processo de maior acompanhado que correu a favor do requerido, com o nº 00000/20.3T8SNT foi decidido, por sentença de 21/6/2021:
Nos termos e com os fundamentos expostos, julgo procedente por provada a presente acção e em consequência aplico em benefício de C:
a) A medida de acompanhamento de representação especial, com constituição do conselho de família;
Nomeia-se como acompanhante R, amigo do beneficiário, melhor identificado nestes autos, com as seguintes atribuições:
No plano pessoal, o acompanhamento visará a adequada assistência/supervisão quanto às actividades da vida pessoal quotidiana no beneficiário, sem prejuízo da sua esfera de autonomia compatível com as suas capacidades, cabendo ao acompanhante, em conjunto com o beneficiário, o controlo quanto ao necessário acompanhamento médico (prevenção quanto a uma eventual evolução clínica desfavorável) e toma de medicação.
No plano patrimonial, aos actos necessários com vista à gestão do património do beneficiário que visará assisti-lo nos actos de disposição de bens e actos negociais para contrair obrigações, e na celebração de contratos que impliquem concessão de crédito ou contracção de dívidas, e bem assim, na administração do seu património, em tudo o que vá para além dos actos correntes da sua vida do dia-a-dia, devendo o acompanhante dar a respectiva autorização ou ratificação para a prática do acto;
Assistência na movimentação das contas bancárias (e gestão de aplicações financeiras), sob condição de movimentação/intervenção conjunta.
Para tanto, e tal como requerido na petição inicial deve ficar inibido de sozinho ter acesso a cheques, cartão de débito e crédito, MB Way, Homebanking, caderneta, podendo apenas movimentá-los conjuntamente com o acompanhante.
Deverá ser atribuído ao beneficiário dinheiro de bolso, em medida adequada às circunstâncias, em valor a definir, mas não superior a €300 mês, por forma a fomentar e manter as faculdades do beneficiário nesse domínio.
Para integrar o conselho de família, nomeio por não serem conhecidos factos que impeçam o exercício de tais cargos:
Para exercer o cargo de protutor, P, amigo do Beneficiário melhor identificado nestes autos.
E para exercer o cargo de vogal designa-se J, amigo do beneficiário, melhor identificado nestes autos.
As medidas decretadas tornaram-se convenientes desde 01/04/2020.”
83\ Por sentença de 1/9/2022 foi decretado o divórcio entre as ora partes, tendo sido provados os seguintes factos (sendo que foi entretanto interposto e admitido recurso da mesma) [também aqui, porque se está perante uma decisão não transitada, não se transcrevem, neste acórdão, os factos, inclusive os factos dados como provados no processo de acompanhamento, por serem factos dados como provados num processo em que a requerente não era parte].
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Da impugnação da decisão da matéria de facto
As alegações de recurso têm 53 páginas.
Na 1.ª página consta o requerimento de interposição do recurso.
As outras 25 páginas seguintes são o corpo das alegações com 194 artigos. As outras 26 páginas são 194 conclusões do recurso que são a copy paste do corpo das alegações, pelo que não têm autonomia.
Nos primeiros 23 artigos do corpo das alegações a recorrente narra inconsequentemente ocorrências do processo.
Nos subsequentes 66 artigos do corpo das alegações a recorrente analisa alegadas “discrepâncias entre a prova produzida em audiência de julgamento e até mesmo a prova documental por si apresentada e os factos provados.”
Quanto ao facto 41, refere o depoimento de uma testemunha que terá sido confrontada com extractos bancários e mais à frente, na análise do depoimento das testemunhas diz:
- Mantendo a coerência do discurso, quando confrontados com os extractos e alguns movimentos terem sido feitos no AC em datas que não fossem sextas-feiras, mantiveram [a recorrente utiliza o plural, mas para esta questão só invoca o depoimento de uma testemunha] o discurso de que a recorrente só estaria entre sexta e sábado com o recorrido.
- A testemunha J, quando confrontado com levantamentos feitos no dia 08-06-2018 (sexta-feira) e compras dias 12-06-2018 (terça-feira), 19-06-2018 (terça-feira), 20-06-2018 (quarta-feira) e 21-0-2018 (quinta-feira) diz:
00:43:46 (J) Pronto, houve uns dias em que a senhora veio cá visitar o C fora da sexta-feira. Ouça eu sempre me encontrei com a senhora e o senhor C era às sextas-feiras ou sábados e a senhora tinha sempre a preocupação de ir para cima. (2022/11/30 – 14h17m11s – de 00:43:46 a 00:43:57)
- Não podendo, por motivos claros, alterar o seu discurso.
- Relembrando que se tratam de 2 amigos de longa data do recorrido.
- Membros do conselho de família.
- E comensais no encontro semanal num restaurante custeado pelo recorrido.
- E que relatam aquilo que lhes foi dito e, na sua maior parte, pelo recorrido.
Depois a recorrente refere “os próprios extractos bancários” juntos pelo requerido, onde “se detectam vários levantamentos efectuados no AC”, nos dias em que se dizia que a requerente não estava no AC (que seria só sexta-feira e sábado).
Apreciação:
Os documentos em causa demonstram que no ano de 2018 foram feitos levantamentos em AC em 42 dias da semana diferentes de sexta-feira, ou seja, 3,5 dias por mês a recorrente pode ter estado em dias de semana diferentes de sexta-feira e sábado em AC. E em 2019 aconteceu em 39 dias.
Ora isto – pouco mais de três dias por mês, durante 2018 e 2019 -, não desmente, só por si, o que se diz no facto 41, ou seja, durante a semana a requerente vivia em B, deslocando-se usualmente às sextas-feiras para casa do requerido no AC e em regra regressava a B no sábado, sendo que vão nesse sentido as passagens do depoimento invocado.
A impugnação improcede.
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Quanto ao facto 44 – O requerido incluiu a requerente na sua conta bancária. Era a requerente que detinha cartão da conta e que a movimentava –, a recorrente faz uma série de raciocínios: (i) um deles baseado no facto de, num dia de 2019 terem sido feitos 6 levantamentos de 200€ na conta do requerido, operação que só pode ser realizada com o recurso a mais do que um cartão; (ii), outro, baseado no facto de os levantamentos em B ou arredores, serem sempre no valor de 200€ enquanto os efectuados no AC serem de 60, 40, ou 20€; (iii) um terceiro no facto de no dia 08/01/2019, existirem 2 levantamentos em Pombal de 200€ cada e um levantamento em AC no valor de 60€; por tudo isto, mesmo invocando que poderia a recorrente ter efectuado tais movimentos, teria de recorrer a mais do que 1 cartão, o que contradiz claramente que apenas existia um cartão e que este estaria na posse da recorrente.
O recorrido não diz nada quanto a isto.
A decisão da matéria de facto não tem a demonstração de que era a requerente que detinha [o] cartão da conta que [apenas] ela a movimentava, sendo que as partes entre parenteses estão pressupostas na 2.ª parte do facto dado como provado.
Apreciação:
Visto que não se pode dizer que tenha sido produzida prova da 2.ª parte do facto, nos precisos termos consignados, e visto que os documentos invocados pela recorrente indiciam o contrário, fica a dúvida sobre os pressupostos da 2.ª parte do facto, pelo que eles não podem ser dados como provados (art. 346 do CC) e por isso eles são eliminados. Assim, a 2.ª parte do facto 44 fica com a seguinte redacção: A requerente detinha um cartão da conta e movimentava-a.
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Quanto ao facto 49 – Entre Janeiro de 2015 e Abril de 2020, a requerente retirou da conta conjunta do casal a quantia de cerca de 240.000€ e deu-lhe destino desconhecido – a ré começa por dizer, em 43 que “Para além do que foi alegado anteriormente sobre ser a recorrente a única pessoa a movimentar a conta, este ponto não ser correcto, a forma como foi usado é bastante perigoso.” De 44 a 53, inclusive, desenvolve estas afirmações.
Este desenvolvimento feita pela recorrente poderia pôr-se assim: se (i) não se prova que fosse só ela a ter o cartão da conta e que só ela a movimentava; (ii) durante aqueles 6 anos (de 2015 a 2020 inclusive) o recorrido também teve necessariamente despesas com a sua subsistência (como aliás decorre dos factos provados); (iii) só os rendimentos obtidos por ele é que pagavam as suas despesas (como também decorre dos factos provados), como é que todo o dinheiro que foi retirado da conta foi apenas retirado pela recorrente, dando-lhe um destino desconhecido?
A recorrente não afasta, no entanto, o depoimento das testemunhas referidas na fundamentação da decisão recorrida que vão no sentido do que consta do facto 49. E, como o destino que é referido no facto 49 é desconhecido, daqui não decorre que esse destino não pudesse ser, por exemplo, também o pagamento das despesas do requerido. Pelo que, se justifica assim que a recorrente ponha em causa o uso que é dado do facto, mas não que diga que ele deva ser dado como não provado, ou que só deva ser dado como provado em parte, nem tal resulta necessariamente do que ela diz, em violação do ónus do art. 640/1-c do CPC, pelo que esta impugnação, para além de ser improcedente teria de ser rejeitada.
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Quanto ao facto 64 – gastos do requerido com as duas cuidadoras actuais – a requerente diz:
- Neste facto existe uma evidente discrepância entre documentos, testemunhos e mesmo a prova aceite.
- Desde logo, o recorrido apenas apresenta um único recibo como doc. 13, emitido pela Srª S, no valor de 1.100€, não havendo nenhum recibo de outra cuidadora.
- Em relação à Srª L, apenas junta dois talões multibanco (doc. 11 da oposição): um no valor de 135€ e outro no valor de 40€.
- Posteriormente, juntou o recorrido em 13/12/2022 um documento emitido pela Segurança Social, onde constam os valores de remuneração de 1.008€ em nome de L e 450€ em nome de V.
- A testemunha R alegou que actualmente estaria uma empresa a assegurar parcialmente o serviço.
- E como não juntou o recorrido nenhum documento, entendeu o tribunal a quo entender como documento suficiente uma listagem feita em excel, elaborada pela próprio acompanhante, sem qualquer suporte adicional.
- Como resulta da nota de rodapé: “48 Conferir quadro resumo junto em audiência e declarações do acompanhante do requerido e dos membros do conselho de família, o que é válido também para as outras despesas a seguir discriminadas.”
Apreciação:
Como resulta das alegações da recorrente, a decisão da matéria de facto serviu-se de vários depoimentos (acompanhante e membros do conselho de família) e de documentos; a recorrente fala de um dos depoimentos mas o que diz dele não põe em causa o que consta do facto provado. Assim, da conjugação dos depoimentos e dos documentos pode resultar a convicção da prova do facto 64 e o que a recorrente diz não é suficiente para a pôr em dúvida. Por outro lado, também aqui não é possível retirar, do que a recorrente diz, a decisão que, no seu entender, devia ter sido proferida sobre este facto. Pelo que esta impugnação, para além de ser improcedente, teria de ser rejeitada.
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Quanto ao facto 71 – Em alimentação, higiene, vestuário, calçado, telefone o requerido gastou entre Janeiro e 08/12/2022, 172,03€ em vestuário e calçado; 3.651,25€ em supermercado e 1.894,99€ em restauração – a requerente diz:
- Deste facto, convirá realçar que não foi junto qualquer documento comprovativo destas despesas.
- Que o valor de 1.894,99€ em restauração, de acordo com a testemunha R, é referente ao pagamento do almoço semanal entre o recorrido, o seu acompanhante e os restantes membros do conselho de família.
Mais à frente, na análise da convicção do tribunal, a recorrente invoca passagens de dois depoimentos (P e R), devidamente localizadas na gravação, para a questão das despesas de restauração (artigos 122, 126, 127, 141 do corpo das alegações).
Apreciação:
Quanto ao 1.º argumento, diga-se que a prova das despesas não se faz só com base em documentos e se o tribunal, com base no quadro elaborado por uma testemunha, e depoimentos desta e de outros, ficou convicto quanto a tais despesas, tal é o suficiente para a prova do facto. Aliás, de acordo com as regras da experiência, o valor das despesas em causa não tem nada de especial. Quanto ao 2.º argumento – que só diz respeito à parte final do facto – as passagens transcritas pela recorrente, aquando da contra-análise do depoimento de duas testemunhas, confirmam aquilo que a própria sentença diz na análise que fez do depoimento de uma delas (R, parte final: “Quanto às despesas de restauração, correspondem maioritariamente ao jantar no sábado e/ou almoço no domingo”), pelo que ao facto 71 deve ser aditada uma explicação, mais ou menos nos termos que a recorrente implicitamente sugere. Note-se, de qualquer modo, que o facto 71 não se referia a alimentos, mas já, expressamente, a restauração. Seja como for, adita-se ao facto 71 o seguinte: “e 1894,99€ em despesas de restauração, maioritariamente ao jantar no sábado e/ou almoço no domingo, com os amigos, acompanhante e membros do conselho de família.”
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Quanto ao facto 73 – No ano fiscal de 2021, o requerido declarou o rendimento bruto global de 54.450,20€, do qual foi retido na fonte 8.948€ e pagou ao Estado o reembolso de 4.017,83€53 – a requerente diz:
- De acordo com os extractos bancários, a recorrente e o recorrido recebiam [em conjunto] um reembolso de IRS no valor de cerca de 3.500€ [o que consta do parenteses foi colocado por este TRL a título de correcção para melhor entendimento da alegação].
- Ou seja, o fazer o IRS separado resultou numa perda patrimonial de cerca de 7.500€.
- Acresce que o recorrido apenas apresentou em tribunal a declaração de IRS e o valor a pagar, em vez da liquidação de imposto.
- Documento que seria relevante para perceber o valor concreto das despesas de saúde deduzidas.
Apreciação: a recorrente, com o que antecede, não está a pôr em causa o facto 73 e se queria aditar alguma coisa tinha que ser explícita (art. 640/1-c do CPC), e não o foi; e tinha que indicar prova do “aditamento” pretendido (art. 640/1-b do CPC) – se é que há aditamento pretendido – e também não o fez; pelo que a “impugnação” é improcedente.
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Quanto ao facto não provado sob 4 – a recorrente [ao] longo dos anos foi acompanhando o requerido nos episódios de doença do mesmo, zelando pelo seu bem-estar e saúde e assegurando a gestão do património e rendimentos do casal – a recorrente diz:
- Não se compreende em que medida este facto não foi provado na sua totalidade.
- Quando as testemunhas do recorrido confirmam a presença da recorrente nas consultas hospitalares.
Apreciação:
A recorrente não especifica a prova em que apoia a pretensão, pelo que ela vai rejeitada (art. 640/1-b do CPC).
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Quanto ao facto não provado sob 7 – O estado de saúde da requerente impede-a de trabalhar, estando permanentemente de baixa – a recorrente diz:
- Desde logo, tendo trabalho, não pode estar de baixa!
- Em segundo lugar, o tribunal dá como provado, sob 9, que “na sequência da Junta Médica para avaliação da incapacidade da requerente foi-lhe atribuída uma incapacidade permanente global de 60%, a 29/6/2017.
- Ora, o grau de incapacidade do recorrido é de 63% (conforme facto provada n.º 6).
- Ou seja, 3% de diferença.
- E estes 3% são o suficiente para que, no entendimento do tribunal a quo “Não se encontra demonstrado que a requerente, apesar das suas limitações de saúde, não possa desempenhar algum trabalho compatível”.
Apreciação:
A recorrente não tem em consideração que o tribunal fundamentou especificamente a decisão de não provado e, por isso, nem tenta, sequer, rebater a fundamentação do tribunal. O simples facto de a recorrente ter uma incapacidade de 60% não impede, perante a fundamentação do tribunal (com o que este diz, por exemplo, na análise dos depoimentos das testemunhas S, M, MG e P), que o tribunal ficasse na dúvida quanto ao que era alegado no facto não provado 7 e, por isso, justifica-se a consideração de não provado do facto em causa (art. 346 do CC). A impugnação improcede.
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Quanto ao facto não provado sob 10 – É com dinheiro emprestado pelo seu irmão e por uma vizinha que a requerente tem suportado as despesas com a sua saúde, nomeadamente medicação, consultas e deslocações ao médico e hospitais – diz a recorrente:
- No entender do tribunal a quo, conforme consta da respectiva nota de rodapé: “Recorda-se que o irmão referiu na audiência de julgamento de divórcio que apenas lhe emprestou dinheiro para o gás uma vez e quando ainda vivia com o requerido.”
- Ora, deveria recordar-se o tribunal a quo que esse depoimento data de 02/02/2022.
- O depoimento da testemunha S foi prestado, nos presentes autos, em 09/11/2022.
- 9 meses depois!
- Não é essa a ideia que o tribunal pretende dar quando nas conclusões refere que “nem é o caso de ter emprestado a restante quantia nestes últimos meses”.
- Estamos a falar concretamente de 9 meses!
- Aliás a apreciação do depoimento da testemunha S é bastante crítica, tendo mesmo sido requerido pelo tribunal que fosse extraída certidão do seu depoimento para eventuais fins penais.
- Isto porque, “Referia que ele se dava com a irmã, para hoje dizer que todos os irmãos a ajudam
- Desde logo, o tribunal assentou a sua convicção no depoimento da testemunha em sede de processo de divórcio.
- Onde a testemunha terá referido que a recorrente não se dava com os outros irmãos.
- Mas se o tribunal tivesse o cuidado de ouvir todo o depoimento, ouviria no minuto 8:53 a testemunha, quando questionado sobre o casamento dos recorrente e recorrido, a dizer que “Não, ela só me disse a mim. Aos outros irmãos ela não assim grande… grande… ou tem mais convivência é comigo”.
- E na nota de rodapé o tribunal acrescenta que: “a testemunha M refere que a requerente lhe disse que dos familiares só este irmão a ajudava.”
- Curiosamente, esta testemunha no processo de divórcio, que no processo de divórcio também foi requerido pelo tribunal a quo que fosse extraída certidão do seu depoimento para fins penais, aqui já seja tida como testemunha credível.
Apreciação:
A prova de factos faz-se com elementos de prova dos mesmos – prova essa que tem de ser indicada: art. 640/1-b do CPC – e não com a análise crítica da fundamentação da decisão de não os dar como provados. Não tendo a recorrente indicado aqueles elementos de prova, a impugnação (= a pretensão de dar o facto como provado, mesmo que se pudesse dizer que existe, mas não pode, o que seria outra via para a rejeição dela: art. 640/1-c do CPC) improcede.
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Quanto ao facto não provado sob 13 – Foi a requerente que fez com que o requerido passasse da situação de pré-reforma à de reforma, usando a procuração que este havia emitido a seu favor – a recorrente diz que:
- Mais importante do que o conteúdo do facto, é a apreciação feita na nota de rodapé, segundo a qual: Não há prova cabal de tal nestes autos, ainda que a suspeita da apropriação do dinheiro existente no fundo de pensões indicie nesse sentido.”
- É que no depoimento da testemunha A foi claramente dito que a recorrente não teve qualquer intervenção na passagem para a reforma, sendo toda a documentação tratada pelo recorrido.
Apreciação:
O tribunal deu o facto – que, provado, seria desfavorável à recorrente – como não provado. Pelo que não tem sentido a crítica de que a fundamentação aponta para a falta de prova do facto – como aponta, e por isso é que o facto foi dado como não provado – ou indicar prova para dar o facto como não provado, quando, repete-se, o facto foi dado como não provado.
Em suma, de toda a impugnação da decisão da matéria de facto, procede apenas a relativa aos factos 44 e 71, nos termos já consignados.
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A seguir, nos artigos 90 a 143 do corpo das alegações, a recorrente dedica-se à análise da fundamentação da convicção do tribunal.
Trata-se de um exercício inútil.
A apreciação da prova, pelo tribunal, tem um destino final, que é a decisão da matéria de facto.
Pelo que, o que há que fazer é, a propósito de cada decisão da matéria de facto, pôr em causa a fundamentação que o tribunal deu para a decisão do facto e indicar a prova que o tribunal não considerou ou considerou erradamente.
Pelo que a análise feita, numa parte autónoma do recurso, é inútil e não tem de ser considerada, excepto na parte em que, de forma manifesta e clara, quer para o tribunal quer para a parte contrária, se traduza na concretização dos elementos probatórios das impugnações da decisão da matéria de facto feita na parte antecedente.
Ora, quanto a isso, este tribunal já considerou essa indicação na parte deste acórdão dedicada à impugnação da decisão da matéria de facto.
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Do recurso sobre matéria de direito
A sentença recorrida tem a seguinte fundamentação de direito, em síntese:
Dispõe o artigo 1675 do Código Civil que o dever de assistência compreende a obrigação de prestar alimentos e de contribuir para os encargos da vida familiar. Uma vez separados, de facto ou de direito, a obrigação de alimentos entre cônjuges adquire autonomia.
Há a ter em conta que este casal está separado desde 08/04/2020, esta acção deu entrada em tribunal em Outubro de 2020 e o divórcio entre as partes foi decretado por sentença de 01/09/2022 (ainda não transitada em julgado).
O artigo 1675/3 do CC dispõe: Se a separação de facto for imputável a um dos cônjuges, ou a ambos, o dever de assistência só incumbe, em princípio, ao único ou principal culpado; o tribunal pode, todavia, excepcionalmente e por motivos de equidade, impor esse dever ao cônjuge inocente ou menos culpado, considerando, em particular, a duração do casamento e a colaboração que o outro cônjuge tenha prestado à economia do casal.
Assim sendo, a ser confirmada a autora como culpada pela dissolução do vínculo conjugal (como resulta indiciado dos transcritos factos apurados no âmbito do divórcio e do processo crime), em regra, não tem direito a receber alimentos do outro cônjuge.
Para aferir se existem circunstâncias excepcionais, o artigo 1675/3 do CC enuncia indicativamente a duração do casamento e a colaboração que o peticionante tenha dado para a economia do casal.
No caso concreto, temos 11 anos de casamento, mas, de facto, não existiu uma verdadeira comunhão de vida. A requerente e o requerido não viviam juntos no dia a dia. Essencialmente, a requerente vinha a casa, de B onde morava ao AC, de sexta para sábado. Um vivia no AC e outro em B. Não há registo de momentos juntos com familiares, nem em datas festivas. Quanto à contribuição da requerente para a economia comum do casal, não existia. Viviam do salário e posteriormente da reforma do requerido sendo que a quantia que a requerente recebia de alimentos do seu primeiro marido (que recebeu até pelo menos Julho de 2022) não entrava na economia comum.
Foi alegado que a requerente se apropriou de cerca de 250.000€ que foram ganhos e poupados pelo requerido, o que tanto a prova testemunhal, como os respectivos estratos bancários documentam. Mesmo que outras razões não existissem (e consideramos que existem, como se verá infra), só estes factos são suficientes para concluir que não pode ser fixada qualquer prestação a favor da requerente ao abrigo do dito dever de assistência.
Relembra-se que a requerente foi acusada por crime de violência doméstica contra o marido, decisão que foi reforçada por despacho de pronúncia proferido em Julho último. Dos factos que consta da acusação e do divórcio conclui-se que a requerente votou o requerido durante anos ao abandono, tendo este sido vítima de maus tratos. O requerido foi considerado, pelas suas debilidades de saúde, uma vítima especialmente vulnerável. Foi em estado de pré-morte em que o requerido deu entrada no Hospital em finais de Janeiro de 2020. Naqueles autos a requerente veio a ser condenada por crime de perseguição agravada relativamente ao requerido e aplicada a sanção acessória de proibição de se aproximar do mesmo, estando a decisão sob recurso.
O requerido era uma pessoa completamente dependente de terceiros, pelas doenças de que padece, de que se destaca Parkinson e glaucoma, necessitava de apoio de cuidador 24 horas dia, de apoio para comer, para tomar medicamentos. Porém, estava entregue à sua sorte, enquanto a requerente fazia a sua vida por B, opondo-se inclusive a que beneficiasse da prescrita ajuda de cuidador a tempo integral. É certo que cada casal terá as suas particularidades, não está em causa propriamente o facto de não viverem juntos diariamente, o que até podia ser uma decisão acordada pelo casal, o que está em causa é que a dado momento e sem dúvida alguma pelo menos a partir do internamento do requerido em 2015, a presença da requerente era necessária. Essa presença, naquelas circunstâncias concretas de debilidade do requerido integra o dever de assistência, de cuidado, de apoio mútuo a que os cônjuges estão obrigados.
Conclui-se que não existem razões que permitam uma fixação de alimentos a cargo do requerido, sob pena de absoluta iniquidade.
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A sentença a seguir, tendo em conta que entretanto foi decretado o divórcio entre as partes, analisa a possibilidade de a requerente vir a obter alimentos do requerido enquanto obrigação de alimentos entre ex-cônjuges.
Ora, considerando que, face ao disposto nos artigos 2013 e 2019 do CC, cessa o direito a alimentos se o alimentado contrair novo casamento, iniciar união de facto ou se tornar indigno do benefício pelo seu comportamento moral, e que, segundo o artigo 2016/3 do CC, por razões de manifesta equidade, o direito a alimentos pode ser negado, e a jurisprudência que se tem pronunciado sobre estas normas (acórdãos do STJ de 03/03/2016, [proc. 2836/13.3TBCSC.L1.S1], do TRC de 14/12/2020, proc. 487/18.5T8CLD.C1 e do TRE de 30/01/2020 [proc. 178/14.6T8STB-C.E1]), conclui que quer enquanto separados, quer após decretado o divórcio, a fixação de alimentos norteia-se pela equidade; o legislador considera que não devem ser fixados, ainda que o peticionante deles necessite e o demandado tenha essa capacidade, se a culpa de quem os pede tornar a concessão iníqua.
Depois, considerando a hipótese académica de não ocorrer o caracterizado impedimento à fixação de alimentos, a sentença discute se, face aos factos provados, seria de fixar alimentos à requerida, tendo em conta as necessidades desta e as possibilidades do requerido, entendendo que não: ela não provou a sua necessidade de alimentos e a impossibilidade de os obter por si e, quanto às possibilidades do requerido, somadas as despesas do mesmo, nada resta e falta ainda valor para a contratação necessária de uma terceira cuidadora.
Nesta parte, a recorrente diz o seguinte:
De 144 a 147, põe em causa a conclusão da sentença de inexistência de comunhão da vida, dizendo que ela não teve em consideração alguns elementos de prova.
De 148 a 152 põe em causa a conclusão da sentença quanto à inexistência da contribuição da requerente para a economia comum do casal, com perguntas retóricas: O que entende o tribunal como economia comum? Ser depositado numa conta conjunta? Então e afinal a recorrente não tinha rendimentos? Não concluiu o tribunal que não se conseguia provar que a ora recorrente também não trabalhava? E invoca que se o casal tivesse continuado a declarar o IRS em conjunto, teria um reembolso de IRS, em vez de um gasto com o mesmo.
De 153 a 155, critica as ilações que o tribunal tira do levantamento pela requerente dos 250.000€, dizendo que não se sabe o destino que foi dado a esse montante, o requerido não tinha dívidas, a recorrente deixava 40€ ao recorrido, as cuidadoras existentes era pagas, em 2015 foram fazer uma viagem, e que não era claro que apenas a recorrente movimentava a conta.
Em 156 diz: quanto à possibilidade de a recorrente poder trabalhar, não se compreende essa posição do tribunal a quo perante uma declaração de incapacidade de 60% da recorrente.
Em 157 diz: sendo incompreensível que entenda o Tribunal que ter já quem a ajude desonera o seu ainda marido.
Em 158 acrescenta: discordando-se, da posição do tribunal a quo sobre a falta de fundamento legal para ter direito a receber a pensão de alimentos.
Em 159 diz: sobre os quantitativos, o Tribunal a quo argumenta constantemente a falta de comprovativo – quando aceita uma listagem elaborada pelo acompanhante do recorrido sem qualquer suporte das despesas invocadas.
Em 160 diz: Por último, e sobre a possibilidade de poder prestar alimentos, com uma gestão adequada, seria perfeitamente possível ajudar ao sustento da recorrente. O que desenvolve em 161, 162, 182 e termina em 163 dizendo: Para além de a pensão de alimentos servir de despesas para fins de IRS. E de 179 a 181 fala dos rendimentos e das necessidades do requerido.
De 164 a 169 põe em causa o facto de o tribunal ter usado a acusação criminal contra si e volta ao assunto em 178.
De 170 a 175 e 183 a 193 fala das suas necessidades.
Em 176 lembra que a sentença de divórcio ainda não transitou em julgado.
Em 177 queixa-se que os amigos [do marido] não permitem que a recorrente contacte o marido.
Em 194 conclui que o tribunal a quo decidiu mal.
O recorrido, já se disse, defendeu a decisão recorrida, no essencial com a mesma argumentação da sentença, inclusive na referência insistente ao processo crime e ao processo de divórcio.
Apreciação:
Paula Távora Victor entende que do artigo 1675 do CC subsiste apenas o n.º 1 e a primeira parte do n.º 2. A segunda parte do n.º 2 e o n.º 3 do artigo 1675 estão revogados pela alteração da intencionalidade normativa do sistema (CC anotado, Livro IV, Direito da Família, Clara Sottomayor, coord., Almedina, 2020, páginas 217 e 218 ≈ nota 1752, págs. 430-431, do Crédito compensatório e alimentos pós-divórcio, Almedina, 2020). No mesmo sentido, vai Guilherme de Oliveira, Manual de Direito da Família, Almedina, 2020 reimpressão, pág. 142, n.ºs 223 e 225.
Jorge Duarte Pinheiro, O Direito da Família Contemporâneo, Gestlegal, 7.ª edição, 2020, pág. 455, aplica aquelas normas, embora diga que elas constituem um corpo estranho num sistema que aboliu a culpa enquanto pressuposto de obtenção do divórcio e que à norma correspondente ao art. 1675/3, no direito italiano, se “atribui uma finalidade coerciva, enquanto meio conferido a um cônjuge para pressionar o outro que, sem justa causa, se afastou do lar conjugal, a restabelecer a vida em comum”, o que, acrescenta-se aqui (neste acórdão) é inaceitável no sistema português.
Luís Silveira, CC anotado, vol. II, Ana Prata, Coord, Almedina, 2017, pág. 550, entende “com dificuldade que a manutenção do dever, em situações de separação, dependa da culpa na ocorrência desta.”
Entende-se como mais correcta a posição que defende a ab-rogação daquelas normas: não é coerente que, no caso de divórcio houvesse, sem dependência de um juízo de culpa, direito a alimentos e, na situação objectivamente menos grave, da separação, esse direito dependesse de um juízo de culpa. Não é lógico. Trata-se de um lapso do legislador, que, na reforma de 2008, se esqueceu de eliminar aquelas normas (assim, a autora e obra citadas, págs. 216 a 218). Em sentido contrário, veja-se o ac. do TRP de 25/02/2021, proc. 597/19.1T8ETR-A.P1, que cita vários outros no sentido que segue.
De qualquer modo, trata-se de um direito a alimentos e este está sujeito à regra do artigo 2016/3 do CC por força do n.º 4 do mesmo artigo, já que não há, deste ponto de vista, diferença entre a separação de facto e a separação judicial.
Ora, aquele n.º 3 dispõe: Por razões manifestas de equidade, o direito a alimentos pode ser negado. E a sentença recorrida, embora aplique o artigo 1675/3 do CPC, acaba por negar o direito a alimentos da requerente com base em razões de absoluta iniquidade na atribuição de alimentos à requerente.
Assim, embora não se acompanhe a sentença quando parte da culpa da requerente na separação do casal indiciada pelo que consta da sentença de divórcio – o que a sentença recorrida faz embora ressalve que a sentença de divórcio não está transitada – para negar o direito de alimentos, nem se a acompanhe quando procura, a seguir, averiguar se existem circunstâncias excepcionais que justifiquem a atribuição de alimentos, pois do que se trata é de averiguar se razões especiais de equidade impedem que se atribua tais alimentos, já se pode acompanhar o que ela diz sobre as razões de iniquidade para não conceder o direito a alimentos.
Trata-se então de saber se se pode confirmar este juízo de iniquidade.
Para além dos acórdãos invocados na sentença recorrida (noutra parte), tem-se ainda em conta:
Rute Teixeira Pedro, no CC anotado, vol. II, citado, pág. 926, diz que: “Na densificação do conceito indeterminado ‘razões de manifesta equidade’ incluído no n.º 3 deste artigo, a apreciação da conduta dos cônjuges e a aferição do seu desvalor serão um dos factores mais relevantes na busca da solução equitativa que, em qualquer caso, pressuporá uma apreciação global de todas as circunstâncias da situação. Assim, apesar do desaparecimento da referência à culpa dos ex-cônjuges como elemento primário definidor da legitimidade para requerer alimentos, o comportamento culposo na vigência da sociedade conjugal e a sua contribuição para a ruptura do casamento pode importar a denegação do reconhecimento do direito a alimentos ao requerente, mesmo que fique demonstrado que esse sujeito se encontra numa situação de necessidade.”
Maria João Romão Carreira Vaz Tomé, CC anotado, Livro IV, citado, pág. 1104 (anotação ao art. 2016) diz que “A lei não define ‘razões manifestas de equidade’, tendo antes recorrido às técnicas legislativas da cláusula geral e dos conceitos indeterminados. Trata-se da necessidade de permeabilidade e de adaptação da ordem jurídica aos seus fundamentos ético -sociais. Na apreciação global das circunstâncias do caso concreto, a culpa na ruptura da relação conjugal continua, por isso, através da implementação valorativa daquele conceito indeterminado, a desempenhar algum papel, ainda que nem sempre visível, no âmbito da obrigação de alimentos. […] Assumindo esta, todavia, um papel residual, produz efeitos apenas no an e não no quantum da obrigação de alimentos. São igualmente susceptíveis de implementar o conceito indeterminado em apreço algumas situações subsumíveis quer ao art. 2013/1-c, que prevê a violação grave, por parte do alimentando, de deveres – gerais ou especiais – perante o alimentante, – como causa de cessação da obrigação de alimentos, quer ao art. 2019, in fine, segundo o qual obrigação de alimentos cessa no caso de o alimentante se tornar indigno do benefício pelo seu comportamento moral. […] Sendo anterior ou contemporânea do divórcio, a conduta do alimentando é susceptível de ser considerada como ‘razão manifesta de equidade’ para lhe recusar o direito a alimentos.”
Mais ou menos no mesmo sentido, mas com mais desenvolvimento, também Paula Távora Victor, Crédito…, por exemplo, nas páginas 201 a 223, especialmente 208 a 223.
Posto isto
A sentença começa por lembrar que não existiu entre a requerente e o requerido uma verdadeira comunhão de vida, durante os 11 anos de casamento (até à separação) [o que a sentença diz sobre os rendimentos será considerado a seguir, noutra perspectiva (e nesta são irrelevantes as objecções da requerente de 148 a 152)].
Tendo em conta os factos 40, 41 e 1.ª parte de 42, concorda-se com a sentença: o casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste Código (art. 1577 do CC), o que implica, desde logo que os cônjuges devem escolher de comum acordo a residência da família e nela devem viver, salvo motivos ponderosos em contrário (art. 1673 do CC). Ora, mesmo que, só perante os factos provados, não se possa imputar a situação de ausência de comunhão de vida à requerente, pois que, como também diz a sentença, a situação existente pode ter derivado da vontade dos dois cônjuges, o que interessa é que, objectivamente, não há a plena comunhão de vida visada pelo casamento.
Note-se que o que se retira dos factos assinalados acima é que cada um dos cônjuges vivia em casa própria e, em geral, só se encontravam cerca de um dia por semana na casa do requerido, sem que tenham sido alegadas quaisquer razões justificadas desta vivência sem comunhão de habitação. A objecção da requerente (de 144 a 147) baseia-se numa improcedente impugnação da matéria de facto.
Concordando-se com a sentença nesta conclusão, já não se concorda com a seguinte, ou seja o aproveitamento da alegação de que a requerente se apropriou de cerca de 250.000€ que foram ganhos e poupados [poupança de que, aliás, não há prova] pelo requerido, pois que, como se viu, a imprecisão do facto 49 não permite dizer que a requerente se tenha apropriado dos tais 240.000€ (é de 240 que se trata e não de 250). Assim, aqui coincide-se parcialmente com a requerente diz de 153 a 155, retirando-se relevância ao que ela diz na parte restante.
Também não se concorda com a sentença quando ela aproveita a acusação pelo crime de violência doméstica da requerente contra o marido, desde logo porque essa acusação foi julgada improcedente e, de qualquer modo, uma acusação nunca é uma condenação e menos ainda uma condenação transitada em julgado. Nem se concorda que a sentença aproveite os factos que constam da acusação crime e depois das sentenças crime e de divórcio, pois aqueles são de uma acusação e estes são de duas sentenças que não estão transitadas em julgado. Também aqui, pois, se coincide, no essencial, com o que a requerente diz de 164 a 169, 176 e 178.
Mas já é aproveitável o que a sentença diz sobre a violação pela requerente dos deveres a que os cônjuges estão obrigados entre si e a descrição que a sentença faz dos factos conexos, na medida em que eles podem ser retirados dos factos dados como provados neste processo, valoração que agora que desenvolve neste acórdão:
O facto 6 (incapacidade global de 63% do requerido), tendo em conta ainda os factos 12 e 13 e o que ocorreu em 14 dão conta de um cônjuge (requerido) em condições de saúde precárias, durante o casamento, que precisaria do auxílio do outro cônjuge (requerente) sem que este lha desse, como decorre dos factos 45 e 46, o que representa a violação do dever de cooperação (art. 1674 do CC). Sendo que os factos 7, 8, 9, 11 e 15 não demonstram que a requerente não pudesse prestar essa ajuda, para mais tendo em conta o que está provado em 2, 10 e 53 a 55.
Os antecedentes criminais da requerente, constantes do facto 20, relativos a factos ocorridos depois do casamento, em 2015, 2016 e 2017, dão nota de um comportamento da requerente que viola o dever de respeito, na vertente “do dever de cada cônjuge não se conduzir na vida de forma indigna, desonrosa e que o faça desmerecer no conceito público” (Guilherme de Oliveira, Manual citado, pág. 138).
Os factos 25, 26 e 27, ligados aos factos 51 e 52, neste contexto, revelam o aproveitamento em benefício próprio, pela requerente, do património do requerido, o que é uma violação do dever de respeito, no sentido “de que cada membro do projecto conjugal tem uma obrigação especial de se abster de lesões nos direitos absolutos do seu cônjuge – uma obrigação maior do que qualquer outra pessoa” (autor e obra acabados de citar, pág. 139).
Os factos 49 e 50, demonstram que a requerente faz uso dos rendimentos do casal em proveito próprio, desconsiderando o património do casal, isto é, desconsiderando o casamento (tendo em conta, quanto a 49, que a requerente não alegou o que é que fez com o dinheiro, e só ela o podia saber, isto independentemente de já se ter sugerido [na discussão sobre o facto 49] que se tem de aceitar que parte desse dinheiro serviu para as despesas do requerido; e, quanto a 50, que se dá como provada a apropriação de quase 20.000€ [depois dos 240.000€]] e isso não foi impugnado pela requerente).
Os factos 77 a 81 demonstram a violação pela requerente do dever conjugal de respeito: esteve a receber do ex-marido uma pensão de alimentos apesar de estar casada com o requerido.
Tendo em conta o que antecede, a decisão de separação e de pôr termo ao casamento (formal), que resulta de 17 é uma reacção, justificada, do requerido ao comportamento da requerente, reacção que aliás não tinha quaisquer consequências práticas para a requerente que não habitava na casa do requerido (apenas lá passava cerca de um dia por semana, como referido).
A contra-reacção da requerente, revelada nos factos 53 a 55, desproporcional à reacção justificada do requerido, demonstram um absoluto desrespeito da requerente pelo requerido – ou seja, a violação conjugal do dever de respeito -, ainda seu cônjuge formalmente.
Considerando, por tudo isto, a inexistência substancial de casamento entre requerente e requerido e a violação, por aquela, de vários dos deveres conjugais e o aproveitamento, em benefício próprio, do património comum do casal e dos bens do requerido, seria, realmente, iníquo atribuir alimentos
à requerente à custa do requerido (não tendo qualquer valor as simples afirmações conclusivas da requerente em 158 e 194), independentemente do que pudesse ser dito sobre a necessidade da requerente (questão que, por isso, não se apreciará, sendo pois irrelevante o que é dito pela requerente em 156, 157, 159 a 163, 170 a 175, 177 e 179 a 193).
*
Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Sem custas porque a requerente está delas dispensada.
Lisboa, 13/07/2023
Pedro Martins
1.º Adjunto
2.º Adjunto