[Transcreve-se, do voto de vencido, apenas a parte relativa à questão da admissibilidade da reconvenção num procedimento especial de despejo; se e quando o acórdão for publicado, colocar-se-á aqui um link para o mesmo]
Como lembra Lebre de Freitas (A acção declarativa comum, 4.ª edição, Gestlegal, páginas 399-400, notas 18 e 19), a discussão vem desde o CPC de 1939 a propósito do processo sumaríssimo. Se não se admite a resposta à contestação, não se poderia admitir a reconvenção. Admitindo-se aquela, deve admitir-se esta.
A maioria da doutrina (Castro Mendes, Remédio Marques, Lebre de Freitas, Teixeira de Sousa) inclinou-se no sentido da admissibilidade da reconvenção no processo sumaríssimo a partir da alteração do art. 795 do CPC pela reforma de 1995-1996), “que levava a aplicar as disposições estabelecidas para o processo sumário, que, por sua vez, subsidiariamente recorria às do processo ordinário.”
Em coerência com esta posição, Lebre de Freitas criticava a “solução legal para a acção declarativa do DL 269/98” de não admitir a reconvenção, visto que “a admissibilidade da reconvenção obedece a exigências de economia processual”, que “o interesse do réu em deduzir, no processo da acção contra ele proposta, pedidos estreitamente conexos com os do autor não é de menosprezar”, principalmente “tendo em conta o regime da compensação no novo CPC” e “a manifesta a conveniência de decidir […] no mesmo processo […] outras situações de conexão que, segundo o art. 266-2, justificam a reconvenção (maxime, a de coincidência da causa de pedir reconvencional com a causa de pedir da acção ou com o fundamento da excepção deduzida e a de direito a benfeitorias).”
Expressamente a propósito do PED, Rui Pinto dizia: “Dado não ter corrido prévio processo judicial, deve entender-se que o direito de defesa determina que o conteúdo da oposição sejam quaisquer fundamentos que possam ser invocados no processo de declaração. […] Portanto, pode ser oposta impugnação e excepção e, bem assim, fazer-se valer o direito a benfeitorias. Se tal era admissível em sede de art. 929/1 = 860/1 do nCPC […] não [pode] deixar de ser admitido, sob pena de violação do direito à tutela efectiva da posição material do inquilino. Assim, consoante as possibilidades dadas pelo direito substantivo, tanto poderá pedir a condenação do senhorio no pagamento do valor das benfeitorias, como o reconhecimento do direito a levantá-las, por via reconvencional.” (Manual da execução e despejo, Coimbra Editora, Agosto 2013, páginas 1185-1186 = Novo regime processual do despejo, 2.ª edição, Coimbra Editora, Abril 2013, págs. 153-154 – este autor, segundo lembra Pinto Furtado, na obra citada no acórdão a que este voto fica anexo, mudou entretanto de posição).
O acórdão do TRL de 06/03/2014, proc. 2389/13.2YLPRT.L1-2, lembrado por Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 1.º, 4.ª edição, reimpressão de 2021, Almedina, pág. 536, considerou que é indispensável conceder a autorização da reconvenção fundada no direito à indemnização por benfeitorias, ao arrendatário que invoque ter beneficiado o prédio arrendado no procedimento especial de despejo, com fundamento no direito fundamental à jurisdição.
O ac. do TRP de 29/02/2016, proc. 5560/12.0TBVFR-A.P1, dizia que para o caso de oposição ao PED, sustenta a possibilidade de reconvenção J.H. Delgado de Carvalho, Acção executiva para pagamento de quantia certa, 2.ª ed., Quid Juris, 2016, pág. 495.
Com base nestas posições, principalmente na de Lebre de Freitas, a contrario, visto que no regime do PED, a oposição ao requerimento é notificada pelo BNA ao requerente (art. 15-H/1), ou seja, a oposição não é notificada só com a notificação para julgamento, e é possível a existência de um novo articulado sempre que seja necessário garantir o contraditório (art. 15-H/2), ou seja, no PED pode haver um articulado de resposta, o ac. do TRL de 27/04/2017, proc. 3222/16.9YLPRT.L1-2 (relatado pelo signatário deste voto), defendeu a admissibilidade da reconvenção no PED.
O acórdão do TRL de 29/09/2020, proc. 2723/19.1YLPRT.L1-7, sistematiza assim as razões para a admissibilidade da reconvenção no PED:
Razões de economia processual e de tutela efectiva do arrendatário aconselham, em princípio, a sua admissão.
Será esse claramente o caso se estiver em causa a eventual extinção total ou parcial da dívida reclamada pelo autora (art. 15, nº 5) através da invocação pelo réu da compensação de créditos (art. 847 do C.C.).
Mas também se nos afigura essa a forma mais adequada de proteger o interesse do arrendatário se este pretender reclamar do senhorio o seu crédito por benfeitorias ou despesas relativas ao imóvel (arts. 1036 e 1273 do C.C.), tendo em conta o direito que lhe assistirá de reter o locado, nos termos do artigo 754 do CC, quando obrigado a entregar o mesmo.
Admitindo-se que tal direito apenas deveria ser exercido em acção autónoma que constituiria causa prejudicial relativamente ao PED, acabaríamos por contrariar, de igual modo, o carácter urgente deste mesmo procedimento (ver art. 272/1, do CPC).
A tramitação própria do PED não é necessariamente incompatível com a reconvenção. Embora corresponda a esta a forma de processo comum declarativo, sempre pode o juiz admiti-la, adaptando o processado (art. 266, nº 3, e 37, nºs 2 e 3, do CPC).
Constituindo o PED um processo declarativo especial, naquilo que não esteja especialmente regulado valem as regras gerais e comuns do CPC e em tudo o que não estiver prevenido numas e noutras, vale o que se acha estabelecido para o processo comum (art. 549 do CPC).
Finalmente, a possibilidade da existência de um novo articulado sempre que seja necessário garantir o contraditório (nº 2 do art. 15-H) tanto poderá servir para responder à matéria de excepção como para responder à matéria da reconvenção deduzida ao abrigo do art. 266 do CPC.
Com desenvolvimentos, também os acórdãos TRL de 05/04/2022, proc. 937/21.3YLPRT.L1-A-7, e do ac. do TRP de 13/07/2022, proc. 1047/21.9YLPRT.P1, seguem a tese de admissibilidade da reconvenção.
O ac. do TRL lembra que mesmo “no âmbito do processo especial de acção declarativa do DL 269/98, de 01/09” se tem hoje admitido a reconvenção, como se vê nos acórdãos de 13/11/2018 e 16/06/2020, proferidos nos processos n.º 45824/18.8YIPRT-A.L1 e 77375/19.8YIPRT-A.L1, “onde se apreciou a questão da problemática da dedução da reconvenção nas acções especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias, na vertente da invocação da compensação judiciária, que actualmente deve ser sempre deduzida por via reconvencional, atento o disposto no art. 266/2-c do CPC, para concluir que aos réus deve ser permitido defender-se mediante a invocação da compensação, sob pena de tal meio de defesa lhe ficar definitivamente vedado (ainda que não se encontre impedido de, em acção a instaurar posteriormente, vir a pedir o reconhecimento do seu crédito, tal reconhecimento não ocorrerá a tempo de o poder contrapor ao crédito do autor, sendo que, se o autor vier a propor acção executiva, dificilmente logrará o reconhecimento da compensação mediante a dedução de embargos de executado), pelo que, na prática, ainda que possua (no âmbito dessa mesma relação), um contracrédito contra o autor, o réu seria obrigado a, em primeiro lugar, satisfazer o crédito do autor, correndo o risco de o seu contracrédito não vir a ser satisfeito.”
E o acórdão salienta que assim se aderiu “ao entendimento do professor Miguel Teixeira de Sousa, quanto ao facto de a reconvenção ser a única forma prevista no CPC para a alegação da compensação nas acções declarativas (cf. art. 266º, n.º 2, c)), considerando que […] os poderes de gestão processual e de adequação formal que são concedidos ao juiz (cf. art. 6/1 e 547 CPC) justificam o afastamento da inadmissibilidade da reconvenção com base na inadequação da tramitação das acções especiais – cf. AECOPs e Compensação, Blog do IPPC, entrada de 01/05/2017; esta posição foi posteriormente reiterada pelo Professor em comentário ao acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra n.º 12373/17.YIPRT-A.C1 – cf. AECOP; Compensação; reconvenção, 30-04-2018.
O ac. do TRP cita ainda Edgar Valles (Arrendamento Urbano – Constituição e Extinção”, 2ª ed., 2020, págs. 165/166) que escreve o seguinte:
“É nossa opinião que no PED a oposição comporta a possibilidade de reclamação de benfeitorias, pois o arrendatário goza do direito de retenção por benfeitorias (art. 754º CC). Como tal, pode reter o locado até que seja pago por tais benfeitorias. Sendo assim, o direito de retenção constitui uma causa impeditiva de desocupação do locado. Também não obsta o facto de o pedido ter de ser deduzido por via de reconvenção, quando o procedimento abrange só duas peças (requerimento de despejo e oposição). O STJ, por ac. de 06/06/2017 [147667/15.5YIPRT.P1.S2], contrariou a tese da inadmissibilidade da reconvenção em procedimentos especiais, adoptando uma posição mais flexível (CPC anotado, António Geraldes e outros, Almedina, pág. 304). É certo que esta possibilidade abre a via para paralisar o despejo, pois aquilo que se pretendia ficar consumado em três meses acaba por se prolongar por largo período de tempo. Poderá, no final, concluir-se que não foram realizadas benfeitorias ou que estas não conferem direito à indemnização. Mas em tais casos, pode funcionar a norma do art. 15º-D/4-e, que responsabiliza o requerido pelos danos causados ao requerente e prescreve a condenação em multa de valor não inferior a 10 vezes a taxa devida, em caso de dedução de oposição cuja falta de fundamento não devia ser ignorada. Não admitir a possibilidade de reclamação de benfeitorias, seria, na prática, suprimir o direito de retenção do arrendatário, quando não há norma expressa a fazê-lo…”
O referido ac. do STJ diz, entre o mais: I – Inexiste motivo de justiça material que justifique o tratamento desigual que se consubstancia em admitir a reconvenção em procedimento de injunção instaurado por comerciante contra um outro comerciante e destinado à cobrança de quantia de valor superior a metade da alçada da Relação, mas em rejeitá-la em procedimento de injunção destinado à obtenção do pagamento de importâncias de valor inferior. II – Pretendendo a ré exercer o direito à compensação de créditos (e assim deixar de suportar, pelo menos em parte, o risco de insolvência da contraparte), a rejeição da reconvenção perfila-se como um prejuízo não menosprezável para aquela, cabendo, por outro lado, que não esquecer que o legislador civil facilita a invocação daquela forma de extinção das obrigações e que a celeridade é uma condição necessária, mas não suficiente, da Justiça.
O acórdão exemplifica, no seu texto: Se a compensação não for admitida neste caso a recorrente terá que pagar neste momento a quantia que porventura deve (suponhamos a quantia pedida de (€4265,41) para depois exigir em outra acção o pagamento dos €50.000 (se a contraparte então os puder pagar); mas se a compensação for admitida não se expõe (ou não se expõe na mesma medida) a esse risco de insolvência, ficando satisfeita imediatamente na parte em que houver compensação.”
Foi também esta a posição do ac. do TRL de 13/09/2022, proc. 1522/21.5YLPRT.L1-7 e a da decisão singular do TRL de 06/02/2023, proc. 1481/22.7YLPRT.L1-7 (não publicado – de Isabel Salgado. Depois de a reconvenção ter sido admitida, o PED com reconvenção foi julgado logo a seguir e decidido a 03/07/2023, o que, descontando o prazo do trânsito em julgado da decisão individual, põe em causa os alegados atrasos provocados pelas reconvenções; foi a não admissibilidade da reconvenção que levou ao atraso do processo).
Pedro Martins