Processo do Juízo Central Cível de Loures
Sumário:
I – É nas conclusões que o recorrente tem de especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (artigos 639/1 e 640/1-a do CPC); não é objecto do recurso qualquer decisão da matéria de facto apenas impugnada no corpo das alegações e não nas conclusões.
II – São irrelevantes as considerações tecidas pelo recorrente no corpo das alegações sobre alguns dos factos provados, com base num ou noutro documento (insuficiente, por si só, para modificar a decisão), se a fundamentação da convicção da decisão desses factos demonstra que a convicção decorreu de três meios de prova, entre eles prova testemunhal que o recorrente não põe em causa.
III – Aquilo que um recorrente afirma nas alegações de um recurso não é um meio de prova.
IV – Os arrestados, em providências decretadas sem contraditório, quando pretendam alegar factos que possam afastar os fundamentos da providência ou determinem a sua redução, devem deduzir oposição, em vez de estarem a alegar esses factos no recurso contra a decisão que decretou o arresto.
V – É nas conclusões de recurso que tem de constar a indicação, de forma sintética dos fundamentos de direito por que o recorrente pede a alteração ou anulação da decisão; é irrelevante que esses fundamentos constem do corpo das alegações se nas conclusões não consta qualquer referência a eles.
VI – Não é legalmente possível o arresto da meação nos bens comuns enquanto o casamento não estiver dissolvido, declarado nulo ou anulado ou enquanto não houver separação de bens.
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:
A-SA requereu contra S um arresto da metade indivisa de um imóvel, com vista a acautelar o seu direito de crédito sobre a requerida no valor de 85.397,34€, correspondente ao valor total com o qual a requerida se locupletou durante o período em que exerceu funções para a requerente como administrativa; justificou o receio de perda da garantia patrimonial por a requerida ter colocado à venda o referido imóvel, único bem de valor que a requerida possui, invocando, no artigo 29 que, em razão do divórcio, a requerida passou a ser proprietária de metade indivisa desse bem.
Mais tarde (1.º requerimento de 09/06/2023, antes do despacho que se segue), a requerente pretendeu alterar o objecto do arresto para todo o imóvel (em vez de só a metade dele), por problemas derivados do registo do arresto (porque entretanto se constatou que a executada estava casada de novo com o anterior marido).
O arresto foi admitido liminarmente (por despacho de 13/06/2023), tendo sido designada data para audiência final, sem contraditório prévio da requerida.
Realizou-se a audiência final, tendo sido inquiridas duas testemunhas.
Após foi proferida sentença julgando procedente o requerimento de arresto e, em consequência, decretou o arresto da meação da requerida no património comum do casal para acautelar o crédito da requerente de 85.344,70€. Foi determinado o cumprimento do disposto no artigo 781/1, aplicável por força do disposto no artigo 391/2, ambos do CPC e que, depois de realizado o arresto, a requerida fosse notificada, nos termos dos artigos 365/3, 366/1-6 e 293/2 do CPC.
A requerida recorre desta sentença, para que seja absolvida da providência decretada, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
i\ Do processo não consta o nexo causal entre a recepção dos valores e a sua apropriação pela requerida
ii\ Do processo não consta prova suficiente, seja documental ou testemunhal, que permita concluir com um grau de certeza absoluta que tenha sido a requerida a praticar a apropriação.
iii\ Se parece indubitável que a requerida procedeu de forma incorrecta à introdução dos valores recebidos nos mapas de registo diário, o mesmo não se pode dizer quanto ao nexo causal que a requerente vai fazendo ao longo do processo, entre os diferentes conceitos: de recepção de valores, processamento da liquidação das facturas e a apropriação ilegítima daqueles valores por parte da requerida.
iv\ Não se nos afigura claro o nexo causal, porquanto, dos variados documentos juntos ao processo, alguns ilegíveis, e apresentados de forma praticamente avulsa, sem qualquer legenda identificadora, não constando os comprovativos de que foi a requerida quem recebeu os valores senão em prova testemunhal [sic], independentemente de ter sido a requerida a dar as baixas das facturas, conforme consta dos mapas diários de registo.
v\ Por este motivo, falham as acusações de que é alvo por falta de prova que demonstre que foi a requerida a receber aqueles valores, carecendo assim, de fundamento, a pretensão da requerente, que deve ser desatendida pelo tribunal, absolvendo a ré da providência, livrando o imóvel em causa do encargo a que está adstrito na certidão permanente do mesmo.
A requerente respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência do mesmo.
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Questão que importa decidir: se não devia ter sido decretado o arresto.
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Foram dados como factos indiciariamente provados os seguintes:
Os factos 1 a 33 não têm interesse para publicação.
34. No mês de Maio [de 2023], a requerente teve conhecimento que a requerida colocou à venda o prédio no qual habitavam.
35. O imóvel em causa corresponde ao prédio urbano […].
36. A venda do referido imóvel encontra-se a ser a publicitada através dos sítios da internet […]
37. A venda do prédio em questão está a ser publicitada pelo preço de 330.000€.
38. Pela apresentação 1038 de 2017/07/25, foi registada a aquisição do direito de propriedade desse imóvel em nome da requerida e de B, casados entre si [em segundas núpcias] no regime de comunhão de adquiridos [a parte entre parenteses rectos foi colocada por este TRL com base no que consta da certidão predial e ao abrigo dos arts. 663/2 e 607/4 ambos do CPC].
39. Sobre o prédio em causa encontra-se registada […] uma hipoteca a favor de um Banco, como garantia de um crédito no montante máximo de €168.437,28; e uma outra a hipoteca a favor do mesmo Banco, como garantia de um crédito no montante máximo de €19.140,60.
40. Como património do casal é conhecido, além do prédio acima identificado, o veículo automóvel, marca Mercedes, adquirido, no estado de usado, em 2020.
41. À requerida não é conhecido o desenvolvimento de qualquer actividade profissional desde a data em que foi despedida pela requerente.
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Apreciação:
Por força dos artigos 639/1 e 640/1-a do CPC, numa interpretação que está de há muito estabilizada, os recorrentes têm, ao impugnar a decisão sobre a matéria de facto, de obrigatoriamente especificar, nas conclusões do recurso, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados.
O nexo causal e a apropriação de valores impugnados pela requerida são uma inequívoca ilação que resulta dos factos dados como provados de 2 a 8 e 12 a 28.
Nas conclusões do recurso da requerida não consta que ela esteja a impugnar nenhum desses factos.
Tal bastaria para a rejeição do recurso da impugnação da decisão da matéria de facto.
E como as 5 conclusões do recurso da requerida não contém qualquer outra matéria a considerar – pois que se limitam a ser variações sobre a impugnação do nexo de causalidade e da apropriação – tal implicaria, sem mais, a improcedência do recurso.
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De qualquer modo, acrescente-se:
No corpo das alegações, a requerida vai tecendo considerações sobre alguns dos factos dados como provados de 4 a 8 e 12 a 33. Tal é irrelevante pois que, como já se disse, é nas conclusões que tem de constar a precisa identificação dos pontos de factos impugnados (arts. 639/1 e 640/1-a do CPC). Apenas por exemplo, veja-se o ac. do STJ de 06/06/2018, proc. 4691/16.2T8LSB.L1.S1: “Se o recorrente, ao explanar e ao desenvolver os fundamentos da sua alegação, impugnar a decisão proferida na 1ª instância sobre a matéria de facto, pugnando pela sua alteração/modificação, mas omitindo nas conclusões qualquer referência a essa decisão e a essa impugnação, essa questão não faz parte do objecto do recurso.” (o acórdão indica suficiente doutrina e jurisprudência no mesmo sentido).
Ainda assim, diga-se que as considerações tecidas pela requerida no corpo das alegações sobre alguns dos factos provados, com base num ou noutro documento (insuficiente para, por si só, modificar a decisão), são irrelevantes pois que a fundamentação da convicção da decisão da matéria desses factos demonstra que a convicção decorreu de três meios de prova, entre eles prova testemunhal que a requerida não põe em causa [disse a sentença recorrida: “Os factos 4 a 8 e 12 a 32 indiciariamente assente[s] decorrem da sentença junta aos autos, proferida no processo nº419/21.3T8TVD, em articulação com os documentos 5 a 75 e o depoimento prestado testemunhas P e M […]”]. Ora, baseando-se a prova dos factos também em prova testemunhal, que a requerida não põe em causa – aliás a requerida admite isso ao dizer, na conclusão iv\, “senão em prova testemunhal” -, é irrelevante que se diga que um ou outro documento não provaria um facto ou que poria em causa a apreciação da prova de um dado facto como provado.
Por outro lado, a requerida também utiliza como principal elemento de prova aquilo próprio que ela vai dizendo no recurso, mas as alegações de recurso não são um elemento de prova, nem muito menos um elemento que prova que pudesse ter sido considerado na decisão recorrida.
Por fim, a requerida faz uma série de afirmações que seriam factos, segundo ela, a considerar no recurso (mesmo sem indicar qualquer prova deles, a não ser aquilo que ela própria vai dizendo). Isto não tem valor, pois que não é num recurso que se vai produzir prova sobre uma providência cautelar. Os requeridos, nas providências cautelares decididas sem contraditório, podem, depois de notificados das decisões, optar (art. 372/1 do CPC) ou por (a) recorrer, nos termos gerais, do despacho que a decretou, quando entendam que, face aos elementos apurados [que podem impugnar de facto com base na prova produzida nos autos], ela não devia ter sido deferida; ou (b) deduzir oposição, quando pretendam alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinem a sua redução, aplicando-se, com as adaptações necessárias, o disposto nos artigos 367.º e 368.º. O que não podem, como se disse e como decorre daquela alternativa, é fazer afirmações de factos novos num recurso pois que neste não se vai produzir prova sobre essas afirmações de facto (sobre isto, veja-se Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 2.º, 3.ª edição, 2017, Almedina, páginas 55-56).
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No meio do corpo das alegações, a requerida tece considerações abstractas sobre os direitos que cada um dos cônjuges tem num regime de comunhão de bens, o que tem a ver com o facto de o arresto ter sido requerido sobre a ½ de um bem concreto (e, mais tarde, sobre um bem em concreto). A requerida não tem em consideração o facto de o tribunal recorrido ter alterado o objecto do arresto para a meação do património comum. Pelo que o que ela diz sobre esta matéria, para além de ser irrelevante por não constar das conclusões do recurso, é errado por não ter em consideração o decidido.
Algumas outras, esparsas, considerações de direito que a requerida vai tecendo, não têm qualquer relevo, pois que, como já dito, aquilo que consta do corpo das alegações, mas não tem reflexo nas conclusões do recurso, não faz parte deste: como diz o ac. do STJ de 14/05/2002, proc. 02A1138: “É corrente o entendimento segundo o qual o âmbito objectivo de um recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente formula ao alegar, conclusões estas que servem para sintetizar os fundamentos pelos quais se defende a revogação ou a alteração da decisão recorrida – art. 690/1 [hoje 639/1] do CPC. A importância deste sistema está em que não há que conhecer, nem das questões versadas no arrazoado que antecede as conclusões, mas não estão contidas nestas, nem das que apenas nestas, e não naquele arrazoado, figuram.”
Em suma, o recurso improcederia tendo em conta as alegações da requerida.
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Entretanto, o recurso da requerida chamou pelo menos a atenção para a diferença entre o que foi requerido pela A-SA (arresto de ½ de um bem; depois: arresto de todo o bem) e o que foi decidido (arresto da meação dos bens comuns).
E isto levanta uma questão oficiosa que tem a ver com o que foi decidido.
Apesar de o artigo 1696/1, parte final, do CC, sugerir, ao falar na responsabilidade da meação nos bens comuns, que esta pode vir a ser penhorada, a verdade é que essa penhora não pode ser feita enquanto o casamento não estiver dissolvido, declarado nulo ou anulado, ou não houver separação de bens. Isto porque a penhora de bens destina-se a vendê-los na execução e o resultado da venda da meação seria que o património comum do casal passasse a ter como titular um terceiro em vez de um dos cônjuges, o que, na prática, corresponderia a reconhecer aos cônjuges (em conluio com terceiro) o poder de disposição da meação nos bens comuns, poder que não têm (art. 1685/1 do CC, a contrario) e poria em causa a lógica da existência de uma propriedade de mão comum.
Uma das formas de proteger esta propriedade de mão comum era, antes da reforma de 1995/1996 do CPC, permitir a penhora da meação nos bens comuns, mas não deixar seguir a execução enquanto o casamento não estivesse dissolvido, declarado nulo ou anulado ou os cônjuges não estivessem separados de bens. Era a moratória que estava prevista na 2.ª parte do art. 1696/1 do CC, adjectivada no art. 825 do CPC.
Com a eliminação dessa moratória por aquela reforma do CPC, o regime da responsabilidade da meação nos bens comuns por dívidas próprias de um dos cônjuges passa agora pela possibilidade de penhorar logo os bens comuns e posterior citação do cônjuge do executado para requerer, querendo, a separação de bens: artigos 740 a 742 do CC.
Ou como diz Nuno Andrade Pissarra, O incidente de comunicabilidade de dívidas conjugais, O Direito, 2014, III, páginas 787-788, “Como desapareceu a moratória, é hoje em dia possível penhorar bens comuns por dívidas próprias sem ter de se aguardar pela dissolução da comunhão patrimonial conjugal. Mas, porque os bens comuns não podem responder enquanto bens comuns (salvo no caso do art. 1696/2 do CC) sob pena de se ferir o património do cônjuge não responsável, a extinção da moratória tem, verdadeiramente, o significado de autorizar o credor exequente a provocar a imediata separação de bens”.
Daí que, Jorge Duarte Pinheiro, O direito da família contemporâneo, Gestlegal, 7.ª edição, 2020, páginas 503-504, diga: “[…] embora o art. 1696/1 do CC preveja a responsabilidade subsidiária da meação nos bens comuns pelas dívidas incomunicáveis, a meação nunca é penhorada ou vendida para pagamento de dívidas. Como resulta dos artigos 740-742 do CPC, a penhora recai sobre bens concretos.”
Isto na lógica de que, como aquele autor tinha acabado de dizer, “o que confere à comunhão conjugal a natureza de contitularidade de mão comum é [não a ausência de quotas, mas] antes o regime da respectiva quota. Ao contrário da quota na compropriedade (cf. art. 1408/1), um cônjuge não pode dispor válida e eficazmente da sua meação nos bens comuns, enquanto não cessar a própria comunhão patrimonial, nos termos que a lei prevê. O art. 690 exclui a hipoteca da meação dos bens comuns do casal. O art. 1730/2, permite doações por conta da meação e não doações da própria meação. No quadro das normas sobre actos de disposição dos bens do casal, somente o n.º 1 do art. 1685 se refere à meação nos bens comuns e para admitir a prática de actos cuja eficácia seja posterior à dissolução do casamento. […]”
No mesmo sentido, com alguma divergência de fundamentação (não admite a existência de quotas), Guilherme de Oliveira, Manual de direito da família, Almedina, 2020, págs. 224-225, diz: “Os vários titulares do património colectivo são sujeitos de um único direito, e de um direito uno, o qual não comporta divisão, mesmo ideal. Não tem, pois, cada um deles algum direito de que possa dispor ou que lhe seja permitido realizar através da divisão do património comum. Assim, antes de estar dissolvido o casamento ou de ser decretada a separação de pessoas e bens entre os cônjuges, não podem estes dispor da sua meação nos bens comuns p. ex., vendendo-a, doando-a, hipotecando-a (art. 690), assim como não lhes é permitido pedir a partilha dos mesmos bens antes da dissolução do casamento.”
A solução legal é outra depois de dissolvido, declarado nulo ou anulado o casamento ou de os cônjuges estarem separados de bens (ainda sem partilha). Como os ex-cônjuges ganham o poder de dispor da sua meação, os credores passam a poder penhorá-la o que dá conteúdo útil aos artigos 743 e 781 do CPC.
Jorge Duarte Pinheiro, obra citada, pág. 568: “Com a cessação das relações patrimoniais dos cônjuges, ou a separação superveniente de bens conjugais, termina a comunhão matrimonial de bens. Enquanto não ocorrer a partilha, os bens que antes integravam o património comum continuarão em contitularidade, mas […] a natureza da nova contitularidade aproxima-se da da indivisão hereditária […] Na fase que precede a partilha, a alienação da chamada meação do cônjuge seguirá o regime da alienação de quota da herança (artigos 2124 e s.) e não da alienação da quota em compropriedade (art. 1408, v. g., n.º 3). […]”.
Guilherme de Oliveira, obra citada, págs. 286-287, de novo com divergências de fundamentação, mas com o resultado prático equivalente na parte que agora interessa, diz:
“Com o divórcio termina a ‘comunhão conjugal’ que, até à conclusão de uma partilha do património comum, será uma ‘comunhão pós-conjugal’, uma comunhão ordinária que apresenta as dificuldades referidas quanto ao seu estatuto – a lei parece mandar aplicar as regras da compropriedade (art. l404) mas vários autores entendem que o estatuto conveniente é o da comunhão hereditária. O que é certo é que já não se aplicam as regras conjugais da administração ou das ilegitimidades, de modo que cada cônjuge já pode administrar e dispor dos bens que foram sempre considerados como próprios. E também é certo que cada um deles não pode dispor de metade, em concreto, de cada um dos bens que eram comuns, pois antes da partilha não se sabe com que bens virá a ser preenchida a meação de cada um dos ex-cônjuges.”
Mas, até lá, o que os credores podem é indicar à penhora bens comuns em concreto e, concluída a fase da penhora e apurada, pelo agente de execução, a situação registal dos bens (constatando que são comuns), são citados para a execução: (a) O cônjuge do executado, quando a penhora tenha recaído sobre bens imóveis ou estabelecimento comercial que o executado não possa alienar livremente, ou quando se verifique o caso previsto no n.º 1 do artigo 740.º (art. 786/1 do CPC). Sendo que então “1. O cônjuge do executado, citado nos termos da primeira parte da alínea (a) do n.º 1 do artigo anterior, é admitido a deduzir, no prazo de 20 dias, oposição à penhora e a exercer, nas fases da execução posteriores à sua citação, todos os direitos que a lei processual confere ao executado, podendo cumular eventuais fundamentos de oposição à execução. 2 – Nos casos especialmente regulados nos artigos 740.º a 742.º, é o cônjuge do executado admitido a exercer as faculdades aí previstas.” (art. 787 do CPC).
Em suma: enquanto dura a comunhão conjugal, não é possível a penhora da meação; se, por dívida própria do devedor, o credor quer executar o devedor, pode indicar à penhora bens comuns, penhora a que se seguirá oficiosamente, se for o caso, a citação do cônjuge do executado pelo agente da execução.
O Professor Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, vol. II, CIDP/AAFDL, 2022, pág. 738, não entende assim as coisas e diz, quanto às execuções por dívidas próprias de um dos cônjuges “antes de haver título executivo quanto ao crédito acautelado”, que “a meação nos bens comuns é um bem próprio do cônjuge executado, pelo que a penhora desta meação – que é, no fundo, a penhora de um bem indiviso (art. 781/1 do CPC) – não justifica a intervenção do cônjuge do executado na execução pendente” (a mesma posição é sustentada no estudo sobre A execução das dívidas dos cônjuges: perspectivas de evolução (versão de 23/02/2018, pág. 6).
Ou seja, este Professor admite a penhora da meação nos bens comuns. Mas não fala das – e por isso não afasta as – objecções decorrentes do regime substantivo descrito acima, nem diz o que é que se faria a seguir com essa penhora e como é que se poderia admitir o resultado de um património de mão comum passar a ser, com a venda da meação, da contitularidade de um cônjuge e de um não cônjuge.
Ora, como diz Lebre de Freitas, A acção executiva, 7.ª edição, Gestlegal, páginas 238-239, embora sem se referir a esta questão: “uma vez que a penhora consiste na apreensão de um bem com vista a uma ulterior transmissão, seria inútil admiti-la quando, segundo a lei substantiva, o bem apreendido é objectivamente indisponível.”
O ac. do TRC de 28/06/2017, processo 947/15.0T8CBR-B.C1, lembra também (e aplica-a, num caso em que se penhorou também um imóvel, deixando ao exequente a opção de manter ou não as duas penhoras: a do imóvel e a da meação) e cita a posição de Remédio Marques, Curso de Processo Executivo Comum à face do Código Revisto, Almedina, [2000], pág. 215, nota 592, de que “podendo penhorar-se imediatamente (mas subsidiariamente) bens comuns do casal, concretos e determinados – uma vez que foi abolida a moratória nas execuções movidas contra um dos cônjuges –, nenhum interesse prático tem para o exequente a penhora do direito à meação, posto que o seu único efeito será o de dar preferência ao exequente sobre o produto dos bens comuns que, havendo dissolução, venham a caber ao executado, relativamente a credores com penhoras subsequentes sobre os concretos bens que, pela partilha, sejam adjudicados ao cônjuge do executado.”
Esta posição implica, por isso, o entendimento de que o anterior regime da moratória, apesar de ter sido revogado expressamente pela reforma de 1995/1996 [recorde-se a 2.ª parte do art. 825/1 do CPC, na redacção revogada em 95-96: “Penhorado o direito à meação, a execução fica suspensa até que se dissolva o matrimónio ou seja decretada judicialmente a separação de bens.], pode ser reconstruído pela doutrina e pela jurisprudência, voltando a aplicar-se nos seus precisos termos, admitindo-se a penhora do direito à meação, enquanto o casamento se mantém, suspendendo-se a execução até à cessação da comunhão conjugal.”
Mas, pelo que já foi dito acima, entende-se que não é assim. A reforma do CPC de 1995-1996 revogou expressamente o regime processual que adjectivava a moratória na execução e os tribunais não podem criar de novo e aplicar uma moratória inexistente legalmente.
Já depois da cessação da comunhão conjugal e até à partilha efectiva dos bens, não há dúvida, como resulta da doutrina que se começou por citar, de que a meação pode ser penhorada, o que dá, repete-se, conteúdo útil ao artigo 743 e 781, ambos do CPC.
Assim, por exemplo, o ac. do TRC de 28/06/2017, processo 947/15.0T8CBR-B.C1 (mas este acórdão, em vez de aplicar ao caso o art. 743 do CPC, aplica o art. 740 do CPC). No mesmo sentido, mas quanto ao arresto, veja-se o ac. do TRP de 23/10/2018, proc. 6024/17.1T8VNG-C.P1, que se citará abaixo.
Isto quanto à penhora.
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Quanto ao arresto e enquanto dura a comunhão conjugal, há duas posições definidas (que se passam a referir nos termos das normas actuais):
Há quem defenda que os credores podem requerer o arresto de concretos bens comuns, procedendo-se depois à citação do cônjuge do arresto nos termos da citação referida acima para penhora, tendo em conta o disposto no art. 391/2 do CPC [: “o arresto consiste numa apreensão judicial de bens, à qual são aplicáveis as disposições relativas à penhora, em tudo o que não contrariar o preceituado nesta secção.”]
E há quem defenda a posição contrária (não podem ser arrestados bens em concreto).
No primeiro sentido, diz Abrantes Geraldes, Temas da reforma do PC, vol. IV, 2001, Almedina pág. 192, nota 334 [citado pela sentença recorrida, mas em edição posterior]: “Se tiverem de ser arrestados bens comuns do casal, devem respeitar-se as regras prescritas para a penhora, atenta a relação de instrumentalidade. Porém, no ac. da STJ, de 06/07/2000, in CJSTJ, tomo II, pág. 141, considerou-se inadmissível o arresto de bens comuns do casal, em procedimento instaurado contra um dos cônjuges. Não encontramos justificação para este entendimento uma vez que as normas da penhora são supletivamente aplicáveis ao arresto. Por outro lado, não se vêem obstáculos a que seja citado o cônjuge do requerido para promover a separação de meações. A tutela dos interesses do credor não prescinde do arresto de bens comuns do casal.”
E também Ana Carolina dos Santos Sequeira, Do arresto como meio de conservação da garantia patrimonial, Almedina, 2020, páginas 305 a 307 [com a indicação de vária jurisprudência num e noutro sentido para além da que vai ser referida abaixo, reconhecendo que é maioritária a que entende que não é possível], com defesa da inaplicabilidade da citação do cônjuge do arrestado, pois que ele virá a ser citado, se for o caso, na altura própria, isto é, aquando da eventual penhora.
Mas, no 2.º sentido, veja-se o Professor Teixeira de Sousa (no estudo citado pela sentença recorrida, de Dez2017: Inadmissibilidade de arresto de bens comuns do casal em procedimento instaurado contra um único dos cônjuges antes de haver título executivo quanto ao crédito acautelado): “O arresto de bens comuns num procedimento instaurado contra um único dos cônjuges antes de haver título executivo quanto ao crédito assegurado não é admissível, porque esse arresto não é oponível ao cônjuge do arrestado e, por isso, não lhe pode ser exigida que requeira a separação dos bens comuns do casal; […e] também porque a imposição de uma separação de bens ao cônjuge do arrestado é manifestamente desproporcional perante uma tutela provisória, cautelar e caducável de um eventual crédito sobre o cônjuge arrestado.” [refere outra jurisprudência num e noutro sentido para além da citada neste acórdão].
No mesmo sentido, vão os acórdãos do TRE de 16/05/2006, proc. 710/06-1, do TRE de 20/09/2011, proc. 322/04.4GBPSR-B.E1, e do TRP de 12/7/2017, proc. 159/17.8T8AVR.P1, também citado pela sentença recorrida. Também assim, mas apenas para este período anterior ao fim da comunhão conjugal, o ac. do TRP de 23/10/2018, proc. 6024/17.1T8VNG-C.P1, citado abaixo.
A 1.ª posição dá mais consistência prática ao indiciado direito de crédito do credor. É implicitamente a posição da requerente deste arresto. Mas esta posição não foi seguida pela sentença recorrida [com, como se vê, apoio jurisprudencial] e a requerente não recorreu dela, pelo que este TRL não tem que tomar posição sobre a questão (que vincularia, desnecessariamente os três membros do colectivo), já que não pode alterar a sentença recorrida num sentido favorável à exequente sem que esta tivesse interposto recurso contra tal decisão (art. 635/5 do CPC), como a requerente o poderia ter feito ao abrigo do art. 636 do CPC.
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Quanto à meação (durante o casamento), como se vê dos acórdãos anteriormente citados, nenhum deles admite o arresto (há apenas um acórdão, do STJ, que a admite, e vai ser citado já a seguir).
Nesse sentido, vai também Abrantes Geraldes, obra citada, pág. 205, nota 379 [nos termos citados pela sentença recorrida ou seja numa edição posterior à citada acima], com uma anotação crítica ao ac. do STJ de 20/02/2001, proc. 3799/00, publicado nos sumários no sítio do STJ, que admite que o arresto possa recair sobre a meação nos bens comuns): “dificilmente se enquadra no novo regime constante do artigo 1696 do CC e do artigo 825 do CPC”).
A posição dos Professores Jorge Duarte Pinheiro e Guilherme de Oliveira também sustenta esta conclusão como se viu acima.
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Já quanto ao período posterior ao fim da comunhão conjugal (mas antes da partilha), dois daqueles acórdãos são expressos na não admissão do arresto mesmo depois do fim da comunhão conjugal (o ac. do TRE de 16/05/2006, proc. 710/06-1, e o ac. do TRE de 20/09/2011, proc. 322/04.4GBPSR-B.E1).
Há um outro que a admite e no mesmo sentido vai a doutrina citada acima.
É o ac. do TRP de 23/10/2018, proc. 6024/17.1T8VNG-C.P1: I – A indivisão que permanece no período entre a dissolução da comunhão conjugal e a partilha dos bens comuns tem uma natureza e regime distintos da comunhão conjugal que a precede. II – Com a dissolução do casamento deixa de haver um património comum com a natureza de património colectivo e passa a existir uma situação idêntica à indivisão, em que cada um dos ex-cônjuges pode dispor da sua meação e pedir a sua separação, através da partilha. III – Assim sendo, nesse período de indivisão, por dívidas da sua exclusiva responsabilidade, é legalmente admissível o arresto do direito do ex-cônjuge devedor à meação nos bens comuns. [o sublinhado foi colocado por este TLR].
Considera-se que é esta a única solução correcta quanto a esta concreta questão, mas este último não é o caso dos autos já que a requerida continua casada.
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Assim, voltando atrás, no caso dos autos, não estando o casamento dissolvido, já se viu que não há quem defenda a possibilidade do arresto da meação nos bens comuns.
A sentença recorrida seguindo a posição da inadmissibilidade do arresto de bens comuns em concreto, terá entendido, face à aparente desprotecção do credor que resulta desta posição, que já seria aceitável o arresto da meação, e poderá ter-se sentido apoiada pela posição dos Professores Teixeira de Sousa e Remédio Marques quanto à penhora da meação.
Mas as razões adiantadas acima pelo Prof. Miguel Teixeira de Sousa não apontam neste sentido, dada a relevância que dá à inoponibilidade do arresto ao cônjuge do arrestado e à inexistência de título executivo; seja como for, entende-se, pelo que se disse acima, que a penhora da meação nos bens comuns não é legalmente possível e, por maioria de razão, também não é possível o arresto da meação.
Pois que o arresto se destina a ser convertido em penhora e esta a que o bem seja vendido, mas a meação não pode ser vendida sem que o casamento esteja dissolvido, declarado nulo ou anulado ou os cônjuges estejam separados de bens.
Se se permitisse que este arresto da meação nos bens comuns se mantivesse com vista a vir a converter-se numa penhora da meação, não haveria quaisquer normas do CPC que regessem o que se passaria a seguir a isso, pelo que na prática ou não se admitiria a execução, ou, a ser admitida, ela teria de ficar suspensa até que se verificasse a eventual cessação da comunhão conjugal (é a posição de Remédio Marques para a penhora) e tal implicaria a recriação judicial de um regime que foi expressamente revogado pela reforma de 1995/1996 do CPC.
E tudo isto – a manutenção de um arresto legalmente impossível (não está na disponibilidade de qualquer dos cônjuges, nem mesmo em conjunto) -, não daria a mínima certeza de se estar a proteger a requerente do arresto, que a pusesse a coberto das consequências de novo divórcio da requerida, pois que o tribunal onde a execução fosse requerida não seria obrigado a aceitá-la, ou a dar seguimento a uma execução com penhora da meação que a lei não quer que ocorra (a não ser que a comunhão conjugal já tenha cessado). Para além de que se estaria a atrasar a possibilidade de a requerente do arresto vir a seguir outras opções legais para protecção do seu indiciariamente provado crédito contra a requerida.
Ora, se o arresto da meação não é legalmente possível (e não tem uma sequência processual possível), este TRL não pode deixar que o mesmo se mantenha.
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, mas oficiosamente revoga-se a decisão recorrida.
Custas, na vertente de custas de parte, pela requerente do arresto (é ela a, ao menos formalmente, prejudicada com a decisão deste recurso).
Lisboa, 09/11/2023
Pedro Martins
1.º Adjunto
2.º Adjunto