Proc. Cautelar Juízo Central Cível de Loures – Juiz1
Sumário:
I – Sendo o exercício do direito de remição (art. 842 do CPC) independente da notificação do eventual remidor – como é entendimento geral -, o direito caduca com o não exercício até ao momento em que podia ser exercido (art. 843 do CPC), não fazendo sentido estar a averiguar se o eventual remidor teve ou não conhecimento das circunstâncias que lhe dariam o direito a remir.
II – Para identificar o direito a obter a nulidade de um contrato por simulação (art. 240 do CC), não basta falar na declaração negocial externa, é necessário ainda e pelo menos invocar um pacto simulatório.
III – A compra e venda de um imóvel que concretiza uma burla é nula (artigos 280/2 e 281 do CC), nulidade que pode ser declarada oficiosamente, mas para tal é necessário que estejam provados os factos que consubstanciam essa burla.
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:
Em 28/04/2023, A e marido intentaram uma providência cautelar comum contra R1 e mulher e R2, na qualidade de administrador da insolvência da Massa Insolvente dos pais da requerente, pedindo que, sem audiência da parte contrária, fosse decretada (i) a suspensão da eficácia do contrato promessa de compra e venda, celebrado entre a requerente e o 1.º requerido, (ii) a suspensão de outorgar a respectiva escritura e (iii) a suspensão do registo pendente na Conservatória do Registo Predial da C, ap. 3699 de 21/04/2023.
Alegam para tanto que (com algumas simplificações, mas mantendo as construções e as frases dos requerentes):
A requerente é filha dos insolventes – insolvência declarada por sentença transitada em julgado em 12/06/2012, tendo sido nomeado Administrador de Insolvência (AI), o R2.
Os pais da requerente / insolventes eram os proprietários, desde 1981, de uma propriedade mista, estando a parte rústica descrita na CRP com o número 111[/19890508] e com o artigo matricial 7, secção 1R [de onde foi destacada a parte urbana descrita com o número 2222[/20230223 e o artigo matricial 33-P].
Em 19/06/2013, o AI vendeu numa escritura notarial o todo da propriedade em questão, conforme estava descrita com o número 111, prédio misto com 113.362 m2, aos 1.ºs requeridos, pelo preço de 150.000€, sendo referido que a venda era efectuada com a propriedade livre de ónus ou encargos.
Os pais da requerente continuaram a viver e a fazer a sua vida normal na referida propriedade; possuíram sempre a posse plena de toda a propriedade, durante estes anos e até ao presente momento.
Em princípios de Janeiro de 2022, a requerente foi abordada pelo 1.º requerido que alegou ser o proprietário do terreno em questão [sic] e pressionou a requerente a comprar o mesmo, senão vendia tudo a um terceiro. Dada a pressão sofrida e mesmo desconhecendo os factos que levavam o 1.º requerido a intitular-se proprietário do terreno e casa, por amor aos pais e tentando proteger os mesmos, os autores assinaram um contrato-promessa de compra e venda em 07/01/2022.
Recentemente o 1.º requerido informou a requerente que a escritura de compra e venda se ia realizar em breve e que era só da parte urbana.
A requerente recorreu então a um aconselhamento jurídico e só agora ficou a conhecer a dita venda.
A requerente tem a certeza que se trata de uma venda fictícia, uma simulação de negócio, pois não teve conhecimento, na época, de qualquer venda em hasta pública, e o valor da propriedade já então seria de mais de 1.200.000€.
Pelo valor escriturado, a requerente estaria disposta a exercer o seu direito de remição, de que foi impedida pelo secretismo do negócio e para o qual nunca foi notificada.
A aquisição só foi registada em 01/03/2023, apesar da apresentação 1749 ser 28/06/2013.
Haverá, com estes factos, completa nulidade dos actos praticados – primeiro a escritura foi celebrada em segredo, sem notícia pública, sem conhecimento dos interessados, neste caso a requerente, que poderia exercer o seu direito de remição, e por um valor ridículo em relação ao valor real da propriedade.
Segundo, a propriedade foi “vendida” livre de ónus ou encargos, e como acima é referido os insolventes sempre viveram na mesma. Apesar disso, o alegado proprietário resolveu desanexar a parte rústica só em 05/04/2023, sabendo que nunca teve a posse da propriedade.
Em terceiro, também o alegado contrato promessa de compra e venda deve ser considerado sem efeito, pois os promitentes vendedores dizem-se “proprietários e legítimos possuidores” do prédio misto. Ora, o 1.º requerido nunca foi possuidor da propriedade.
Ao mesmo tempo, promete vender a propriedade mista – refira-se que na data da assinatura a propriedade estava completa -, mas mais à frente, afinal é só a parte urbana! Que ainda não estava desanexada.
A requerente tem conhecimento que está pendente um registo de aquisição, na CRP da C, em que o 1.º requerido teria vendido a parte rústica por 1.000.000€.
Estamos perante um negócio simulado, desde Junho de 2013, que convêm travar, até se descortinar todos os seus contornos, indo a requerente interpor a devida acção pauliana, para averiguação de todos os factos.
[a acção principal – que intitularam de acção ou impugnação pauliana – foi intentada no mesmo dia, cinco horas depois: nela os requerentes pedem que seja “considerado nulo o negócio jurídico consubstanciado na escritura de compra e venda realizada em insolvência” e ainda que “a acção pauliana seja julgada procedente, para o reconhecimento do direito da autora, em exercer o seu direito de remição”; nela, ainda, foi junto, a 11/05/2023, o contrato de compra e venda do prédio rústico a terceiros, por declarados 700.000€]
O requerimento de não audição da parte contrária foi indeferido.
Citados, a 29/05/2023, os 1.ºs requeridos vieram deduzir oposição alegando, em síntese, que a causa de pedir dos autores assenta numa alegada violação do direito de remir da requerente, por ser filha do insolvente, por à mesma não ter sido dada a oportunidade de o exercer e que o negócio da venda, concretizado no âmbito da insolvência de seu pai, é simulado; ora, pela natureza do direito de remição e pela qualidade de terceiro do interveniente que o pretende exercer, é unanimemente entendido que se mostra dispensável a necessidade da notificação do remidor relativamente aos actos e diligências inerentes à tramitação da causa, presumindo a lei que o executado dará conhecimento oportuno ao interessado na remição das circunstâncias relevantes para o atempado exercício do seu direito; os requerentes nada alegam no sentido de que os insolventes (seus pais) não tenham tido conhecimento da venda, ou que (eles, requerentes) tenham informado o AI da sua intenção de remir; a alegada falta de conhecimento dos requerentes da venda deveu-se unicamente à sua inépcia; daqui se conclui que, por decurso do prazo, nos termos do art. 843/1-b do CPC, o alegado direito de remir da requerente extinguiu-se, por ausência do seu exercício até à celebração da escritura; quanto à existência de uma venda fictícia, por simulação, o negócio em causa foi uma venda judicial no âmbito do processo de insolvência, pelo que não há dúvida nenhuma que as partes pretenderam a celebração do negócio – o AI tem de vender os bens apreendidos e os requeridos queriam comprar; e mesmo que a alegada venda tenha sido concretizada por valor inferior ao de mercado, com o propósito de “enganar” um terceiro desconhecido, nos termos do art. 241 do CC, o negócio mantém a sua validade; pelo que de acordo com o peticionado, a pretensão dos requerentes de nulidade do negócio não tem acolhimento, pois a simulação relativa não gera a invalidade do negócio; em conclusão, os requerentes invocaram causas de pedir que inexistem, logo falta um dos pressupostos essenciais para a admissão do procedimento cautelar; à cautela, impugnam os factos alegados pelos requerentes como base da nulidade da venda de 2013; dizem que os requerentes sabiam e tinham conhecimento dessa compra e venda, “uma vez que os insolventes, pais da requerente, foi a eles comunicada” [sic]; “mais, a insolvência dos pais foi largamente divulgada na pequena localidade onde se situa o imóvel, porquanto os insolventes eram conhecidos de todas as pessoas da localidade, tanto mais que a mesmo veio na sequencia da insolvência da sociedade V, da qual aqueles eram sócios gerentes, e que, porque fulcral empregadora da região e da localidade, os insolventes, eram por demais conhecidos”; os requerentes souberam da insolvência, quer da sociedade V, quer da insolvência pessoal dos pais, quer da publicidade da venda, e da venda efectiva no processo de insolvência do imóvel; os requeridos condoídos com o descalabro da vida dos pais da requerente, aceitaram que os mesmos permanecessem numa das casas no interior do prédio em questão e nela vivessem, com uma única obrigação, zelar pelas mesmas até os requeridos alienarem ou lhes comunicassem a necessidade de abandonar o local; é neste quadro que os requerentes sabendo a intenção dos requeridos em alienar os imóveis em questão, manifestaram a intenção de comprar aquele prédio aos requeridos; à data da aquisição pelos requeridos, a parte rústica do imóvel e o ‘anexo r/c amplo para armazém’ estava arrendada pelos pais da requerente: através de contrato de arrendamento rural, outorgado em 01/02/2008, pelo prazo de 30 anos, a rendeiro, pelo valor anual de 500€; por outro lado, o ‘anexo de r/c com 3 assoalhadas, cozinha e casa de banho’, na verdade uma pequena moradia localizada junta à moradia principal, encontrava-se arrendada por contrato outorgado em Março de 2008, com uma renda mensal de 125€, a que correspondia uma renda anual de 1.500€; outrossim, no âmbito de uma acção de preferência do confinante contra os requeridos, foi-lhes disponibilizado pelo AI o relatório de avaliação que este havia solicitado por forma a obter o valor do imóvel para efeitos de venda, de 31/01/2013, tendo o imóvel como valor de liquidação 180.000€, considerando, naturalmente, os arrendamentos existentes e o principio emptio non tollitum locatum; o prédio urbano foi criado por desanexação em 23/02/2023; o registo da aquisição dos 1.ºs requeridos foi efectuado em 28/06/2013 pela apresentação ap. 1749, embora apenas transposta para o registo do novo prédio após a sua criação; os pais da requerente apenas se encontravam no interior dos imóveis, por consentimento dos requeridos; nunca em qualquer momento, afirmaram ou obstaram ao exercício dos direitos pelos requeridos sobre os bens imóveis; logo, por mero efeito da escritura celebrada pelos requeridos com a massa insolvente dos pais da requerente, a posse sobre os bens imóveis transmitiu-se para estes, nos termos do art. 1264/1 do CC.
(no relatório invocado diz-se que o arrendamento urbano foi celebrado por prazo certo de 20 anos; o relatório de avaliação atribuiu à parte rústica o valor de 6.000€ [a dividir por 115.961m/2 = 0,052€ o m2] e à parte urbana o valor de 284.750€, arredondado para 285.000€ com um valor de liquidação de 181.000€ [o que dá para o rústico um valor de liquidação de 3.819,88€ = 0,033€ o m2; tendo em conta o preço de 150.000€, a parte do rústico, nesta lógica, teria o preço de 3.165,65€ e, assim, o m2 o preço de 0,027€]; o rústico foi vendido a 21/04/2023, ver-se-á mais abaixo, a 6,17€ o m2 [700.000€: 113.365m2], ou seja, 228,5 vezes mais)
A 04/07/2023, o requerido AI deduziu oposição, excepcionando (i) a sua ilegitimidade, já que, segundo ele, era a massa insolvente de que ele é representante que devia ser parte; e (ii) a falta de interesse em agir por não ser parte no contrato-promessa em causa nem ter apresentado qualquer averbamento em qualquer conservatória e a providência não ter efeito no contrato de 2013; por outro lado, diz que não foi alegado pelos requerentes o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável, pressuposto da providência pedida; nem factos suficientes para a demonstração do “direito” que pretendem fazer valer; a requerente sabia do processo de insolvência dos seus pais e, sendo de conhecimento público a finalidade da insolvência, tinha mais que conhecimento que todos os bens dos seus pais seriam vendidos, pelo que poderia adquirir quaisquer bens ou exercer o seu direito de remição; nada é alegado pelos requerentes quanto aos requisitos da simulação na venda de 2013, que não se verifica; foi realizada uma avaliação que fixou o valor de venda, face aos ónus existentes [os arrendamentos que vai referir mais à frente], no montante de 181.000€; o AI não tinha qualquer intenção de enganar terceiros; o pai da requerente faleceu em 27/01/2020, pelo que, não corresponde à verdade que resida no imóvel até ao presente momento; foi apresentada uma proposta para aquisição do imóvel nos autos pelos 1.ºs requeridos, no valor de 150.000€; o imóvel encontrava-se onerado por dois contratos de arrendamento [os já referidos pelos 1.ºs requeridos], o que, como é evidente, acarreta desvalorização ao imóvel; os requerentes tiveram conhecimento da compra e venda, pois seriam com certeza conhecedores da insolvência dos pais, pelo que, em momento algum pode proceder a alegação de desconhecimento da venda como forma de justificar a ausência do exercício do direito de remir e que deliberadamente deixaram caducar; o prazo para a requerente exercer o direito de remição seria até à data da celebração da escritura de compra e venda: 19/06/2013.
{na acção principal, ao contestaram em 17/10/2023, o AI disse (artigo 36) que “O imóvel foi vendido livre de ónus ou encargos que, consabido é, na venda judicial ficam imediatamente extintos quaisquer os ónus ou encargos que sobre os bens incidam, o que ocorre automaticamente, sem necessidade de qualquer despacho nesse sentido” e os agora 1.º s requeridos disseram (artigos 42 e 43 da contestação) que “A venda de todo o património, incluindo os imóveis para pagamento das dívidas aos credores dos insolventes. Sendo que estas vendas são concretizadas livres de ónus ou encargos.” [sic]}
Os requerentes responderam, em síntese, que: os pais da requerente, após a insolvência, continuaram na posse da casa e da fazenda, que ainda não perderam até hoje; a filha, não poderia entender, sem que os pais lhe tivessem dito, que até a casa haviam perdido; sempre configurou que os pais continuavam a ser os proprietários, pelo que só agora descobriram que havia um direito de remição que poderiam ter exercido; o instituto da preferência e o da remição são similares; se assim é, devem ser tratados, no respeito pelo princípio da igualdade, de modo similar, análogo; assim, se quem quer vender e comprar tem a obrigação de descobrir quem é preferente e de o notificar, por analogia também deverá ter a obrigação de descobrir quem tem direito a remir e a notificá-lo.
Por despacho de 09/08/2023, os requerentes foram notificados para, no prazo de 10 dias: 1\ juntarem aos autos a certidão da sentença de insolvência que protestaram juntar com o requerimento inicial; 2\ juntarem aos autos certidão do registo predial do imóvel em causa nos autos onde conste, de forma completa, o teor da apresentação n.º 3699 de 21/04/2023; 3\ se pronunciarem quanto à absolvição da instância dos requeridos relativamente ao pedido de suspensão do registo pendente na CRP da C – apresentação 3699 de 21/04/2023 -, fundada na preterição de litisconsórcio necessário passivo dado que o presente procedimento não foi intentado contra quem, alegadamente, adquiriu o imóvel a que corresponde o registo em causa e que tem interesse neste pedido em moldes idênticos aos dos requeridos vendedores (considerando que, dada a natureza urgente dos procedimentos cautelares, não é admissível a intervenção de terceiros de forma a sanar a ilegitimidade em causa).
Os requerentes nada fizeram.
Em 20/09/2023, foi julgada procedente a excepção de ilegitimidade do AI e proferida decisão final, julgando improcedente, por não provada, a presente providência cautelar não especificada.
Quanto à improcedência da providência, a fundamentação foi a seguinte:
Apreciemos se se verifica o primeiro pressuposto da presente providência: probabilidade séria da existência do direito.
Concorda-se com o acórdão do TRL de 21/10/2021, proc. 7128/16.3T8LRS-A.L1-2, de que os titulares do direito de remição não têm de ser notificados da realização do acto jurídico no qual têm o direito de remir; no caso, os requerentes não tinham que ser notificados da data da celebração da escritura pública de compra e venda do imóvel que era dos seus pais para exercer o seu direito, sendo que o alegado desconhecimento da venda da sua parte, não lhes atribui prazo maior para exercer tal direito de remição. Assim, não tendo exercido o seu direito de remição até no próprio dia da celebração da escritura pública de compra e venda do imóvel que era dos seus pais para os 1.ºs requeridos, celebrada a 19/07/2013, à luz do artigo 843/1-d do CPC, não podem agora, cerca de dez anos depois, pretender exercê-lo, por ter caducado tal direito. Nestes termos, não se verifica a existência do direito de remição por parte dos requerentes.
Invocam ainda que a referida venda se trata duma venda fictícia, uma simulação de negócio, pois não teve qualquer conhecimento da venda e o valor do imóvel àquela data já seria de €1.200.000, sendo que a venda realizada em 2013 só foi registada em 2023. Acresce que o imóvel foi vendido sem ónus ou encargos e os insolventes sempre lá viveram, sendo que os actuais requeridos desanexaram a parte rústica em Abril de 2023 quando a posse de tal imóvel está com os pais da requerente.
A simulação está prevista no artigo 240 do CC. Do requerimento inicial apresentado pelos requerentes, verifica-se que nada alegaram no que concerne aos pressupostos da nulidade por simulação: o facto dos requerentes desconhecerem a data da venda do imóvel em nada demonstra o acordo simulatório entre as partes outorgantes, nem mesmo a divergência entre vontade real e declarada, pois a venda foi efectuada no âmbito de um processo de insolvência, sujeito a publicações obrigatórias, nos termos do artigo 9/3 do CIRE; a compra e venda do imóvel veio a concretizar-se por escritura pública e as funções do administrador judicial são fiscalizadas pela assembleia de credores, à luz do artigo 68/1 do CIRE; uma das funções do administrador judicial é precisamente vender os bens da massa para com o produto da venda pagar aos credores, pelo que inexiste assim qualquer divergência entre a vontade real e a vontade declarada quer dos compradores quer do vendedor, sendo que também não se verifica terem sido declarações não sérias (nada alegado quanto a tal invocação); outrossim, também, não foram alegados pela requerente quaisquer factos relativos ao intuito de enganar terceiros e à existência de acordo simulatório.
O preço da venda definido na escritura pública está de acordo com o relatório de avaliação junto aos autos pelos 1.ºs requeridos, que não foi impugnado pelos requerentes, relatório este que até já fazia menção aos contratos de arrendamentos vigentes no prédio objecto de venda, à data da venda; a circunstância dos pais da requerente ainda lá estarem a residir, independentemente de se apurar a que título, em nada afecta a validade da compra e venda efectuada, no âmbito do processo de insolvência
A compra do referido imóvel pelos 1ºs requeridos está registada, desde 28/06/2023 [quis-se escrever 2013 – TRL], aquando da aquisição na sua totalidade, sendo que quando procederam à desanexação da parte urbana (que é o objecto do contrato promessa de compra e venda celebrado entre os requerentes e os 1.ºs requeridos), o registo predial dessa desanexação apenas foi levado a cabo a 23/02/2023, e deu origem à da certidão de registo predial com o número 2222 (factos 14 e 15).
Conclui-se assim que não se verifica a probabilidade da existência de negócio simulado alegado pelos requerentes.
Também não se verifica a coacção moral, prevista no artigo 255 do CC: Os 1.ºs requeridos ao manifestarem a sua vontade de vender o imóvel, estão a exercer um direito legítimo, não constituindo essa intenção de venda um mal ilícito. Se a requerente sentiu ameaçada a residência dos seus pais pelo exercício de tal direito dos requeridos e assim decidiu assinar o contrato promessa, tal circunstância não constitui coacção à luz do artigo 255/3 do CC.
Por fim, também não se verifica o enriquecimento sem causa, à luz do artigo 473 do CC, porque a venda do imóvel dos insolventes aos 1.ºs requeridos teve uma causa – a insolvência.
No que concerne ao pedido (iii) não se verificando a existência provável do direito invocado relativamente ao pedido (ii) e às demais questões suscitadas, soçobra também este pedido que sempre o tribunal não poderia conhecer por não ter sido junta a certidão predial completa, não obstante tenha os requerentes sido notificados para tal efeito.
Os requerentes recorrem desta sentença – para que seja revogada, dizem – terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
De A\ a C\ dizem que a sentença é nula por não estar assinada (artigos 153/1 e 615/1-a do CPC).
Em D\ chamam a atenção para um erro de escrita: em vez de CC escreveu-se do CPC…
E seguem:
E\ Ao contrário do referido na sentença recorrida, aos requerentes foi preterido objectivamente o seu direito de remição na venda judicial do imóvel que era dos pais da requerente. E como prova efectiva dessa evidência, e como resulta dos factos provados, é o facto de os requerentes desconhecerem por completo a venda judicial do imóvel, bem como o facto de os pais continuarem a viver no citado imóvel, não obstante a venda do mesmo. Acrescente-se ainda o facto de os requerentes terem assinado o contrato promessa de compra e venda do mesmo imóvel de forma a recuperar o mesmo para os seus pais. Aliás, todas estas conjugações resultam da própria experiência e conhecimento prático do tribunal.
F\ Mais, em consequência de tais factos, a venda efectuada no âmbito da insolvência foi simulada, pese embora a mesma ter decorrido no âmbito de um processo de insolvência. Aliás, muito estranho os requeridos pretenderem, posteriormente à sua aquisição por via judicial, vender o imóvel em causa aos requerentes.
G\ O instituto da remição encontra-se regulado no artigo 842 e seguintes do CPC e tem como propósito de defender o património familiar, de obstar a que os bens saiam da família do executado para pessoas estranhas, sendo considerado um direito de preferência qualificado pela jurisprudência.
H\ Tem-se entendido que se mostra dispensável a necessidade da notificação do remidor relativamente aos actos e diligências inerentes à tramitação da causa, presumindo a lei que o executado dará conhecimento oportuno ao interessado na remição das circunstâncias relevantes para o atempado exercício do seu direito. Ou seja, não é aplicável ao direito de remição, por analogia, a norma que prevê a notificação dos preferentes prevista no artigo 818 do CPC, entendendo o legislador afastar a notificação dos titulares do direito de remição para o exercício desse direito porque, sendo eles familiares directos do executado e dada a finalidade do instituto (protecção da família), parte-se do pressuposto de que o executado lhes deu a informação necessária sobre a venda, presumindo-se ser suficiente esse meio de conhecimento (recaindo o ónus sobre o executado).
I\ Ora, uma coisa é os requerentes não terem que ser notificados da data da celebração da escritura pública de compra e venda do imóvel que era dos seus pais para exercer o seu direito de remição e outra coisa completamente diferente é o facto de todos os envolvidos não terem dado o mínimo conhecimento aos requerentes da venda do imóvel, onde se incluem os seus pais.
J\ Ou seja, não está dado como provado na matéria assente na sentença recorrida que os requerentes tivessem conhecimento directo ou indirecto da venda do imóvel, em consequência do processo judicial de insolvência. É evidente e factual que os requerentes desconheciam por completo a venda judicial do imóvel.
K\ Assim sendo, estando impedidos de exercer o seu direito de remição até à concretização da escritura pública por desconhecimento completo e por ninguém lhe ter transmitido tal facto, onde se incluem os seus pais, pese embora terem decorridos cerca de dez anos depois da escritura, os requerentes ainda podem exercer tal direito de remição pelo facto de ainda não ter caducado tal exercício do direito de remição.
L\ Aliás, a sentença, apesar de invocar tal caducidade, não concretiza quando ocorreu essa caducidade.
M\ Assim sendo, e ao contrário do referido na sentença, verifica-se a existência do direito de remição por parte dos requerentes.
N\ Verificando-se, pois, o primeiro pressuposto da providência cautelar e que é a probabilidade séria da existência do direito de remição.
O\ Ao contrário do decidido na sentença, verifica-se a probabilidade da existência de negócio simulado. Com efeito,
P\ Tal venda foi fictícia, simulada, pois, os requerentes não tiveram qualquer conhecimento da mesma, àquela data já o valor do imóvel era de 1.200.000€, sendo que a venda ocorrida em 2013 só foi registada em 2023. Acresce que, o imóvel alegadamente foi vendido sem ónus ou encargos e os insolventes sempre ocuparam o mesmo e, inclusive, os requeridos desanexaram a parte rústica em Abril de 2023 e quando os pais da recorrente ainda estavam na posse do imóvel. Assim, todos estes factos assentes na matéria de facto são elucidativos da probabilidade da existência de negócio simulado, pois demonstram a existência de divergência entre a vontade real e a vontade declarada, intuito de enganar terceiros e acordo simulatório.
Q\ De acordo com os factos dados como provados, existe a coacção moral prevista no artigo 255 do CC, ao contrário do decidido. Com efeito,
R\ A requerente sentiu-se ameaçada a residência dos seus pais pelo comportamento dos requeridos, e assim foi obrigada a assinar o contrato promessa em causa, pelo que tal circunstância constitui coacção à luz do artigo 255/3 do CC.
Os 1.ºs requeridos responderam repetindo aquilo que já tinham dito na oposição, para além de dizerem que a sentença está assinada digitalmente como devido.
Questões que importa decidir: da nulidade da sentença e se se verificam os requisitos necessários à procedência do procedimento relativamente aos dois primeiros pedidos (i e ii) e apenas quanto aos 1.ºs requeridos – já que os requerentes, nas conclusões do recurso, não tocam na questão do pedido (iii), nem na ilegitimidade do AI. Quanto aos erros de escrita, o apontado é perfeitamente irrelevante e por isso não se perderá tempo com ele.
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Da nulidade da sentença
O tribunal recorrido já esclareceu, tal como os 1.ºs requeridos – que não se verifica a falta de assinatura, uma vez que a Sr.ª juíza signatária que proferiu a decisão assinou electronicamente a sentença proferida, tal qual dispõem os artigos 132/1-2 do CPC e 19/1-2 da Portaria 280/2013, de 26/08, com a actual redacção.
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Estão dados como provados os seguintes factos [transcreveram-se mais cláusulas do contrato-promessa – facto 2 – para melhor esclarecimento e corrigiram-se alguns erros de transcrição; corrigiu-se a redacção da 1.ª parte do facto 11 que era confusa, pondo-a aliás em conformidade com a 1.ª parte do facto paralelo 12; corrigiu-se a redacção dos factos 14 e 15 para a pôr minimamente de acordo com as certidões prediais juntas]:
1\ A requerente é filha de P e M.
2\3\ Os pais da requerente eram legítimos proprietários, desde 1981, de uma propriedade mista denominada Q, freguesia de C, concelho de A, com uma parte urbana e outra rústica, estando a parte rústica descrita na Conservatória do Registo Predial de A com o número 111 e inscrita na matriz predial com o artigo 7, secção 1R, da referida freguesia, de onde foi destacada a parte urbana descrita com o número 2222 e inscrita na matriz com o artigo 33-P, da mesma freguesia.
4\ Os pais da requerente foram considerados insolventes singulares, por sentença transitada em julgado em 12/06/2012, no âmbito do processo 1169/12.7TBBRR.
5\ Foi nomeado Administrador de Insolvência, o 2.º requerido.
6\ No escrito particular intitulado de contrato promessa de compra e venda celebrado entre os requerentes, como promitentes compradores, e os 1ºs requeridos como promitentes vendedores, consta […]:
Cláusula Primeira:
1/ Os promitentes vendedores são proprietários e legítimos possuidores do prédio misto, denominado Q, freguesia de C, concelho de A, cujo imóvel urbano encontra-se descrito na CRP de A sob a descrição número 4444 do livro 97 e sob a matriz predial urbana 55 com a licença de habitação emitida pela CM A,
2/ sendo que o imóvel é constituído igualmente por um imóvel rústico que se encontra descrito na CRP de A sob o mesmo e inscrito na matriz predial rustica com o artigo 7 ARV, secção R, da freguesia de C.
Cláusula Segunda
1/ Os promitentes vendedores pretendem proceder à desanexação do imóvel rústico do imóvel urbano junto da CM A para procederem à venda deste último.
2/ Pelo presente contrato promessa de compra e venda os promitentes vendedores prometem vender livre de quaisquer ónus ou encargos o imóvel urbano descrito na CRP A, sob a descrição 4444 do livro 97 e sob a matriz predial urbana 555 com a licença de habitação emitida pela CM A.
3/ Em caso algum o presente contrato promessa de compra e venda se refere ao imóvel rustico que será desanexado antes da outorga do contrato prometido.
4/ O contrato prometido encontra-se condicionado a que a CM A permite desanexar o imóvel rústico do imóvel urbano aqui prometido vender.
5/ Caso a CM A indefira definitivamente a desanexação do imóvel rústico, os Promitentes Compradores e os Promitentes Vendedores desde já aceitam nada ter a reclamar da contraparte a título de indemnização pela não outorga do contrato prometido ou a qualquer outro título.
Cláusula Terceira
O preço acordado da venda do imóvel é de €420.000.
Cláusula Quarta
1/ O escrito particular de compra e venda do imóvel urbano será celebrado até ao dia 31/05/2022.
2/ Caso a CM de A não tenha ainda autorizado a desanexação do imóvel rústico de modo a efectuar o contrato prometido referente ao imóvel urbano aqui prometido vender até 31/05/2022, o prazo para a outorga do contrato prometido prorroga-se automaticamente até 30 dias após o deferimento da desanexação pela CM de A.
[…]
Cláusula Quinta
Os Promitentes Vendedores entregarão aos Promitentes Compradores toda a documentação necessária à realização da escritura de compra e venda do prédio urbano identificado na Cláusula Primeira […]
Cláusula Sexta
Correm por conta dos Promitentes Compradores todas as despesas e encargos respeitantes à aquisição do imóvel, […] e outras que digam respeito à aquisição do prédio urbano identificado no n.º 2, da Cláusula Segunda.
Clausula sétima
Promitentes compradores e promitentes vendedores declaram que todas as cláusulas acordadas e estipuladas neste contrato são essenciais para a sua vontade de contratar, pelo que, o incumprimento de qualquer delas acarreta o incumprimento de todo o contrato promessa com todas as consequências daí resultantes […].
[…]
Este contrato-promessa de compra e venda de prédio urbano é feito em duas vias, ambas valendo como originais, ficando cada uma das Partes Contratantes com 1 exemplar assinado em seu poder.
7\ Em 19/06/2013, o AI, no âmbito do processo de insolvência, vendeu a propriedade descrita em 2\, conforme estava descrita com o número 111, prédio misto com 113362 m2, ao 1.ºs requeridos, por escritura notarial.
8\ O valor da venda foi fixado em 150.000€ e é referido que a venda é efectuada com a propriedade livre de ónus ou encargos.
9\ A requerente não exerceu o direito de remição até à data da realização da escritura pública de compra e venda referida em 7\.
10\ A insolvência dos pais da requerente era conhecida pelos requerentes e pelos pais.
11\ À data de aquisição pelos 1.ºs requeridos, a parte rústica do imóvel e o anexo r/c amplo com armazém estava arrendada pelos pais da requerente através de contrato de arrendamento rural a agricultor autónomo outorgado a 01/02/2008 pelo prazo de 30 anos ao rendeiro J, pelo valor de renda anual de €500.
12\ À data da aquisição pelos requeridos, os pais da requerente tinham arrendado a B, pelo prazo de 20 anos, com início em 01/03/2008, o anexo do composto de 3 assoalhadas cozinha e casa de banho [no] rés do chão […], pelo valor de €125 mensais.
13\ No relatório de avaliação do imóvel 2\ elaborado em Janeiro de 2013 pela X, junto como doc.3 da oposição, foi determinado como valor indicativo de liquidação 181.000€.
14\ Encontra-se descrito na CRP de A sob o número 111/19890508 [corrigiu-se o lapso evidente de numeração, já que depois da barra constava a data do prédio 2222 – TRL] o prédio misto denominado Q em nome dos 1.ºs requeridos pela ap. 1749 de 28/06/2013. A parcela de terreno para ampliação do logradouro com 955m2 foi desanexado da parte rustica do prédio 111 [esta foi uma das descrições que o prédio foi tendo; depois da desanexação do urbano o prédio 111 passou a ter, finalmente, a natureza apenas de rústico com a área de 113.365m2 – TRL].
15\ Encontra-se descrito na CRP de A sob o número 2222/20230223 o prédio urbano denominado Q [com a área de 4195m2, sendo coberta a de 599,45m2; inclui a casa de r/c para habitação, anexo de r/c, r/c amplo para arrecadação, capela anexa e logradouro, constando – TRL] que foi desanexado da parte rustica do prédio 111 [a parcela de terreno para ampliação do logradouro com 955m2 – TRL] em nome dos 1ºs requeridos pela Ap. 1749 de 2013/06/28 registado no sistema em 2023/03/01.
Apreciação:
De alguns dos erros dos requerentes
Antes de mais diga-se que várias das alegações dos requerentes não correspondem notoriamente aos factos; apenas por exemplo:
Dizem que o objecto do contrato-promessa era todo o prédio (urbano + rústico), quanto o contrato-promessa especifica que a venda será só do urbano e que o rústico seria desanexado (conforme decorre de variadíssimas cláusulas do contrato-promessa transcrito no facto 2).
Dizem que a aquisição pelos 1.ºs requeridos só foi registada em 01/03/2023, quando a aquisição foi registada em 28/06/2013 (conforme facto 14, mais precisamente fl. 8 da certidão permanente do prédio 111).
Dizem que os 1.ºs requeridos resolveram desanexar a parte rústica só em 05/04/2023, quando no próprio contrato-promessa já se previa a desanexação da parte rústica e só assim o contrato-promessa se manteria (de novo, contrato-promessa transcrito no facto 2).
Posto isto,
Do supostamente ainda vigente direito de remição
Os requerentes pretendem obter a suspensão (i) da eficácia de um contrato-promessa celebrado em 07/01/2022 de venda de um prédio e (ii) do registo de uma venda de um outro prédio (destacado de um outro) que os 1.ºs requeridos já teriam feito.
Isto com base (i) no facto de o contrato de 2013, com o qual os promitentes vendedores adquiriram o imóvel prometido vender e o imóvel já vendido a terceiro, ser nulo e (ii) a requerente ter sido pressionada a celebrar o contrato-promessa.
A nulidade do contrato de 2013 é baseada nos seguintes factos: (i) o seu desconhecimento dessa venda até 2022 / secretismo do negócio / falta de notificação para exercer o direito de remição / a aquisição de 2013 só ter sido registada em 2023; (ii) o facto de o prédio ter sido vendido por 150.000€ quando valia mais de 1.200.000€ (tanto que agora os 1.ºs requeridos querem vender a parte urbana por 420.000€ e já terão vendido a parte rústica por 1.000.000€ segundo diziam); (iii) alegação da inexistência de ónus ou encargos quando afinal a propriedade estaria ocupada / possuída por outrem.
Com base nestes factos entendem que se verifica a simulação da compra e venda de 2013. Falam também da coacção moral, mas esta só é invocada para a anulação do contrato-promessa de 2022, pelo que, para já, não interessa. E invocam um enriquecimento sem causa só na parte de direito, sendo inexistente qualquer tentativa de enquadramento dos factos alegados nesta hipótese e os requerentes no recurso já deixaram cair esta argumentação que não tinha qualquer hipótese de sucesso.
Os requeridos e a sentença recorrida resolveram pegar na questão da falta de notificação para exercer o direito de remição como se ela fosse o direito invocado pelos requerentes. E os requerentes, na parte essencial do seu recurso, o que discutem é, precisamente, esse direito. Tendo em conta o que é dito pelos requerentes na acção principal, compreende-se que a discussão tenha incindido neste direito.
É evidente, no entanto, que não era isto que estava em causa no procedimento cautelar e é também evidente que, com base neste direito, seria improcedente a providência cautelar, pois que, se a lei considera que o exercício do direito não está dependente da notificação do titular para o efeito (no mesmo sentido, e para além dos muitos acórdãos invocados já pelo tribunal recorrido através do ac. do TRL que cita, pode-se apontar ainda Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 3.º, 3.ª edição, Almedina, 2022, pág. 834), é porque lhe é indiferente o conhecimento que este tenha, ou não, dos factos que dão origem a esse direito e, por isso, não importa para nada averiguar tais factos. Ou o titular do direito exerce o direito até ao momento oportuno, ou não o exerce e o direito caduca.
A argumentação em contrário dos requerentes é notoriamente artificial e contraditória: nas conclusões G\ e H\ referem o entendimento unânime sobre a matéria (independência de qualquer notificação) e as razões do mesmo, mas nas conclusões E\ e I\ a N\ pretendem ter ainda aquele direito porque à requerente não teria sido dado conhecimento (o que é o mesmo que dizer: notificado) de que o imóvel ia ser vendido.
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O direito que foi realmente invocado
Mas o direito invocado era antes o direito de não cumprir o contrato-promessa de 2022. E esse direito os requerentes faziam-no derivar da nulidade do contrato de 2013.
Essa nulidade aparentemente decorreria da simulação do contrato de 2013. A sentença recorrida analisou a questão da simulação e o resultado quanto a esta é igual ao resultado a que este TRL chega, pondo as coisas de forma diferente apenas para não estar a repetir o que já foi dito de outras formas:
O art. 240/1 do CC estatui que: Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado.
Tradicionalmente diz-se, por isso, que são três os requisitos da simulação: um acordo simulatório, a intenção de enganar terceiros e uma divergência entre a vontade e a declaração.
Também se pode dizer que “a divergência é entre duas declarações negociais, uma ostensiva ou externa (‘para inglês ver’) e outra oculta ou interna que as partes guardam para si. A divergência resolve-se pela prevalência que o pacto simulatório (ou contradeclaração) confere à declaração interna” (Carlos Ferreira de Almeida, Contratos V, Almedina, 2017, páginas 102-103).
Continua este Prof.: “A declaração oculta pode ter um de dois conteúdos: ou diz apenas que o contrato ostensivo não vale (simulação absoluta) ou indica quais são os elementos da declaração externa que são substituídos pela declaração interna (simulação relativa). […]
Aquilo que a lei designa como vontade real corresponde afinal a uma outra declaração – o pacto simulatório […].”
Ora, no caso, os requerentes não alegam a existência de qualquer pacto simulatório, pelo que, quando falam da simulação o fazem em termos simplesmente conclusivos sem qualquer suporte factual. Isto é, os factos alegados não identificam de forma suficiente uma simulação; só a título de alegação de direito é que se pode perceber que estão a invocar a simulação. Dito de outro modo: os factos alegados respeitam apenas à existência de uma declaração externa, o que pode preencher a previsão de muitas normas, de variada natureza, mas não, só por si, da simulação.
Pelo que a simulação não foi invocada de facto e, por isso, o requerimento da providência não podia ser aperfeiçoado: fazer um convite ao aperfeiçoamento seria convidar a parte a invocar, só então, o acordo simulatório que seria essencial para identificar a simulação invocada em abstracto a nível de Direito.
O que os requerentes dizem contra a inexistência da alegação da simulação, em F\, O\ e P\, para além de não corresponder, em vários aspectos, já referidos acima, à realidade, é irrelevante: i\ o facto de se repetir que a venda foi simulada não é um argumento; ii\ o dizer-se que a simulação pode ocorrer no âmbito de um processo de insolvência, apesar de ser verdade, não supre a falta de alegação de factos; iii\ a estranheza invocada não é qualquer facto; iv\ o eventual desconhecimento não corresponde a simulação; v\ dizer-se que a venda ocorreu em 2013 e só foi registada em 2023, não corresponde à verdade; vi\ o simples facto de os pais da requerente terem continuado a viver na vivenda não corresponde a um ónus ou encargo, pelo que a circunstância desse facto não ser referido na escritura é irrelevante.
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Da coacção moral quanto ao contrato de 2023
Quanto à coacção moral, prevista no art. 255 do CC: ela pressupõe, segundo o n.º 1 da disposição legal, uma declaração negocial determinada pelo receio de um mal de que o declarante foi ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração.
Dizer que a requerente foi pressionada ou sentiu ameaçada a residência dos pais pelo comportamento dos requeridos não é alegar, em termos de facto, qualquer ameaça, muito menos uma ameaça ilícita. O facto de os pais da requerente ficarem, em termos de facto, sem a vivenda por ela ser vendida pelo respectivo proprietário é a consequência de um acto lícito. O facto de os requerentes serem confrontados com isso, não corresponde a qualquer ameaça ilícita.
De novo há, aqui, a total ausência de alegação de factos relevantes para a existência de uma coacção moral.
Subjacente a isto, e à invocada simulação, há um pano de fundo que se intui e que será referido a seguir, mas tal não substitui a necessidade de alegação de factos.
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Da nulidade decorrente da eventual aquisição do imóvel com a prática de um crime
Os factos alegados pelos requerentes apontam para a possibilidade da verificação de um vício diferente que nem sequer foi aflorado por eles, embora decorra, ao nível de suspeita, do conjunto de elementos que constituem os autos (considerando também aquele a que este está apensado).
Veja-se:
O que os requerentes dizem é que um prédio dos insolventes, que teria o valor de 1.200.000€ [ou 1.120.000€, ou 1.420.000€], foi vendido pelo AI por 150.000€, sem ónus nem encargos. E dizem que se trata de uma venda feita no âmbito de uma insolvência e por um administrador da insolvência.
Uma insolvência destina-se a liquidar os bens dos insolventes para pagar aos credores as dívidas dos insolventes (art. 1/1 do CIRE), tendo o AI o dever de actuar de forma a proteger os interesses dos credores (o que decorre, por exemplo, dos artigos 1/1, 46/1, 55/1, 59 e 81/4, todos do CIRE).
Uma venda no âmbito de uma insolvência, por um AI, por apenas 12,5% do valor real do bem vendido, justificado com base na elaboração de um relatório pericial que desvaloriza o bem dada a existência de arrendamentos que oneram o imóvel, levando à aceitação desse valor ou à não oposição ao mesmo pelas entidades encarregues da fiscalização ou controlo dos actos do AI, ou ao eventual consentimento para a venda (art. 161/3-g-4-5 do CIRE), arrendamentos que, depois, é como se não existissem, pode levar à suspeita da prática de um crime, para, através desse contrato de compra e venda, se conseguir um enriquecimento ilegítimo para algum ou todos os intervenientes com elevado prejuízo patrimonial para os credores (eventualmente também para os próprios insolventes). Ou seja, no caso, um crime de burla de montante consideravelmente elevado (artigos 217/1, 218/2-a, 202/-b do Código Penal).
Recorde-se que para justificarem um preço tão reduzido para um imóvel com um valor muito mais elevado, os requeridos vêm sugerir que o imóvel estava onerado com dois arrendamentos que o desvalorizariam, tanto que haveria um relatório de avalização do imóvel, com esses dois arrendamentos, dando-lhe apenas o valor de liquidação de 181.000€. Pois que, lembram, os arrendamentos subsistem à venda do imóvel. Só que o imóvel foi vendido com a menção de que estava livre de ónus e encargos e, assim sendo, a credibilidade desta justificação é muito fraca. Tanto mais que os requeridos nem sequer dizem o que é que aconteceu, entretanto, aos arrendatários, o que confirma a suspeita de que eles não existiam pelo menos logo depois dela.
Para além disso, apenas uns meses depois de terem apresentado esta justificação, os requeridos, vêm dizer uma coisa completamente diferente: os arrendamentos caducam com a venda judicial. Com isto sugerem que os arrendamentos, como já se indiciava, não existiam ou deixaram de existir depois da venda. Ora, isto, por um lado, avoluma a suspeita de que os arrendamentos não existiam e por isso é que eles não foram referidos como tal na oposição ao requerimento de providência. Por outro lado, confirma também a suspeita de que o preço da venda do imóvel não foi diminuído pela existência dos arrendamentos. Por fim, duas justificações manifestamente contrárias entre si (i\ o imóvel foi vendido barato porque tinha arrendamentos e estes subsistem à venda; ii\ os arrendamentos caducam com a venda judicial), afastam reciprocamente a respectiva credibilidade.
Afastada a credibilidade das justificações apresentadas para um valor escandalosamente mais baixo do que o valor real [o rústico pode ter sido vendido em 2013 por 0,027€m2 e acabou por ser vendido a 6,17€/m2, ou seja, 228,5 vezes mais], pode continuar a falar-se na suspeita da prática de um crime.
A aquisição de um imóvel através de um contrato que pode concretizar uma burla é o fruto de um contrato contrário à ordem pública (a lei proíbe a prática de burlas), para além da burla poder ser o próprio fim do contrato comum a ambas as partes; logo estaríamos perante um contrato nulo (artigos 280/2 e 281 do CC).
Neste sentido, veja-se Jorge Morais Carvalho, Os contratos de consumo, Almedina, 2012, páginas 106 a 108:
“Torna-se importante perceber, neste ponto, se existe e qual é a consequência civil quando um contrato se encontra de alguma forma associado a um ilícito penal.
A resposta é relativamente simples no caso de o objecto ou o fim do contrato, neste caso comum a ambas a partes, serem penalmente sancionados. Os artigos 280.º, n.º 1, e 281.º do Código Civil resolvem a questão no sentido da nulidade do negócio jurídico. Assim, não se suscitam dúvidas de que um contrato celebrado entre duas pessoas para que uma delas mate um terceiro é nulo.
Nas demais situações, a situação é mais complexa, sendo importante distinguir, por um lado, se a lei penal se dirige directamente ao contrato e, por outro lado, em caso de resposta afirmativa, se tem em vista sancionar o comportamento das duas partes ou apenas o comportamento de uma.
[…]
Dirigindo-se a norma penal também a aspectos com relevância contratual, é necessário distinguir consoante se trate de repressão do comportamento das duas partes ou apenas do de uma delas.
Sancionam o comportamento das duas partes de um eventual contrato associado, entre outros, os crimes de […]. Nestes casos, a nulidade do contrato é a consequência adequada, do ponto de vista do direito civil, para fazer face à contrariedade à lei, mesmo não estando em causa o objecto do contrato. Com efeito, em todas estas situações, a prática do crime resulta da própria celebração do contrato, não fazendo sentido a sua manutenção ou a aplicação de sanção civil diversa. Têm aqui aplicação, consoante o elemento do contrato em causa, os artigos 280.º, 281.º ou 294.º do Código Civil.
[…]
Pode, assim, concluir-se que a circunstância de um contrato se situar em torno da prática de um crime não implica necessária e automaticamente a sua invalidade, sendo indispensável interpretar a norma penal, fazendo relevar o interesse protegido, e a sua relação com o negócio jurídico. Se a prática do crime consistir na celebração do contrato ou disser respeito ao seu objecto, este é geralmente nulo, uma vez que o ilícito penal se encontra no âmago do negócio jurídico.
[…]”
E o ac. do STJ de 07/06/2016, proc. 2835/14.8TCLRS.L1.S1:
1. Não podem os tribunais ser alheios ao sentido de justiça dominante na sociedade que é o que as pessoas de bem acolhem intemporalmente. Um negócio jurídico de compra e venda e outros sequentes, tendo por objecto imóveis de outrem, que o vendedor adquiriu por actuação criminosa sancionada com sentença transitada em julgado, não pode ser considerado válido: é nulo por ser legalmente impossível, decorrendo essa nulidade do art. 280 do Código Civil.
[…]
3. A provarem-se os factos alegados pela autora, o tribunal poderá considerar a nulidade dos negócios jurídicos celebrados pelos réus, invocados como causa de pedir, não só pela via do conhecimento oficioso de simulação absoluta, se provados os pertinentes requisitos, como também por violação do art. 280 do Código Civil, como se assinalou.
4. A ordem jurídica não tolera, que, com base em actos sancionados com condenação penal transitada em julgado, possam subsistir negócios jurídicos de cariz patrimonial lesivos da autora, praticados pelo arguido, agora 1º réu, que são sequentes e supõem a sua actuação criminosa – um crime de burla qualificada e outro de falsificação de documento (uso de documento falso) – e que beneficiaram os demais réus em indiciado conluio. Tal julgamento terá que observar o princípio do contraditório, devendo as partes ser previamente notificadas da possibilidade de tal julgamento, visando evitar que se profira decisão-surpresa.
Um contrato nulo não transmite direitos.
Logo, o imóvel comprado no contrato de 2013 não passaria a ser propriedade dos 1.ºs requeridos. Por isso, não podiam transmitir a propriedade do imóvel. Assim sendo, também o contrato-promessa de 2022 seria inválido e não teria de ser cumprido pelos requerentes.
Os factos que permitem a conclusão a que se chegou estão indiciados pelo conjunto dos elementos que este TRL pode considerar.
Neste sentido, por exemplo, para além do já citado ac. do STJ de 07/06/2016, proc. 2835/14.8TCLRS.L1.S1, veja-se Carlos Ferreira de Almeida (obra citada, páginas 233-234):
“A nulidade pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal, em qualquer fase da acção, desde que, naturalmente, o acto declarado nulo tenha influência no objecto do processo.
Este poder judicial abrange a simples requalificação do pedido ou da excepção, mas também a sua modificação com base em factos que constem do processo. A nulidade declarada oficiosamente pode assim alterar a causa fundadora da nulidade invocada ou substituir o pedido de anulação, de resolução ou de ineficácia ou a condenação em restituição em vez de indemnização. Pode igualmente impedir a procedência do pedido ou de excepções, com base por exemplo em ilegalidade ou ofensa aos bons costumes, mesmo que estes factores de nulidade não tenham sido suscitados por qualquer das partes.”
Mas não estão provados – sendo que os requeridos podiam ter muito a dizer contra os indícios arrolados se tivessem sido colocados perante a respectiva alegação -, pelo que, com base neles este TRL não pode declarar a nulidade do contrato.
E não faz sentido deixar seguir o processo com o fim de se virem a conseguir elementos de prova desses factos e então declarar nulo o contrato, pois que os factos não foram alegados pelos requerentes (não alegaram, da burla, art. 217/1 do CP – de que nem sequer falaram -, por exemplo, i\ a intenção de obter para o contratantes ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, ii\ o erro ou engano astuciosamente provocados pelos contratantes com essa intenção e iii\ o nexo de determinação de outrem [comissão de credores, assembleia de credores, juiz – a não oposição, o não impedimento à venda ou o consentimento – à prática de actos por causa desse erro ou engano). Por outro lado, o juiz só pode declarar oficiosamente a nulidade se puder dizer que ela já está provada no momento em que o processo termina.
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Apesar do que se disse acima, tendo em conta que o prazo de prescrição de um crime de burla especialmente qualificada é de 10 anos (art. 118/1-b do CP) e corre desde o dia em que o facto se tiver consumado (art. 119/1 do CP) ou seja, no caso, ocorreria com a entrada na massa insolvente do preço diminuto acordado, não se vê utilidade na comunicação ao MP dos indícios apontados (comunicação que de outro modo seria obrigatória por força dos artigos 242/1-b do CPP e 386/1-d do CP).
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Em suma: não estando indiciando nenhum direito dos requerentes à não celebração do contrato-promessa de 2023 a providência não podia ser, como não foi, decretada.
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, com custas pelos requerentes.
Lisboa, 14/12/2023
Pedro Martins
1.º Adjunto
2.º Adjunto