Processo do Juízo Central Cível de Lisboa
Sumário:
I – É suficiente como alegação dos factos que preenchem o 2.º requisito do arresto (justo receio da perda da garantia patrimonial do crédito) alegar-se que a requerida só tem um prédio em seu nome e o mesmo foi expropriado, para mais se ainda se alega que é intenção da requerida proceder à sua dissolução, após receber a indemnização, conclusão que se tira por ela já não ter objecto social.
II – Mas tais alegações são postas em causa se se invoca que o contrato que está na origem do crédito respeita a parte de um prédio, a parte que depois foi expropriada, e a outra parte, de valor superior, permanece registada em nome da requerida.
III – O art. 396/3 do CPC é aplicável, por interpretação extensiva, quando é o comprador que tem direito à devolução do preço da aquisição do objecto de um contrato de compra e venda que ficou sem efeito e, por força do princípio da equiparação (art. 410/1 do CPC), quando é o promitente comprador que tem direito à devolução do preço que pagou pela coisa objecto do contrato promessa que ficou sem efeito.
Em 20/12/2023, A e outros vieram intentar um procedimento cautelar contra a R, sociedade civil sem forma comercial, requerendo que, sem audição prévia da requerida, se determinasse o arresto de um depósito de 919.131€, efectuado pela Câmara Municipal de Lisboa ao IGFEJ, em 18/01/2023, ap. 1230000014, em que é entidade beneficiária a requerida, no âmbito do processo de expropriação do terreno…
Alegam para tanto que:
1\ Por contrato-promessa de compra e venda, celebrado em 18/01/1980, a S, sociedade civil sem forma comercial, prometeu vender a G, A, F e D, que prometeram comprar, em comum e partes iguais, o imóvel constituído por um terreno com uma área aproximada de 10.450 m2, situado… a norte da via férrea, cf. certidão do contrato promessa de compra e venda e certidão predial permanente que se juntam respectivamente como documentos 1 e 2
[mais precisamente, consta do contrato, doc.1, que pela 1.ª outorgante, sociedade, foi dito “ser proprietária de um imóvel sito… sendo parte do prédio descrito sob o nº… da Conservatória do Registo Predial de L, presentemente omisso na matriz, mas já pedida a sua inscrição e composto por um terreno situado a Norte da Via férrea, com cerca de 10.450m2, no qual se encontram construções abarracadas, o qual é comummente conhecido como Quinta…; do doc. 2, informação predial – o que não é a mesma coisa que certidão – com data de 20/03/2023, consta que o prédio […] é um prédio misto, […] com a área total de 23.450m2, com os artigos matriciais… é atravessado pela via férrea Norte-Sul, composto por duas parcelas distintas; a poente da via férrea com a área total de 10.550m2 a que correspondem os artigos… com a área de 221m2, e os rústicos…, respectivamente com as áreas de 3400m2 e 6292m2, e a nascente da via férrea com a área de 12.900m2, a que correspondem os artigos […], rústicos; consta também a declaração de utilidade pública por expropriação da área de 10.550m; e a inscrição da aquisição em 23/01/1948 da propriedade, pela sociedade requerida, por compra; da declaração de utilidade pública referida no artigo 24 do requerimento inicial, parcialmente reproduzida no doc.14 referido no art. 25 do RI, mas consultável e consultada no original, vê-se que a parcela expropriada fica realmente a norte da via férrea e não a poente: pág. […] do DR].
2\ Os requerentes têm legitimidade para intentar o presente procedimento cautelar nos termos seguintes:
i\ F é o único herdeiro do promitente comprador G e de A, cf. escrituras de habilitações de herdeiros que se juntam respectivamente como documentos 3 e 4;
ii\ I é a única herdeira do promitente comprador A e de M, cf. habilitações de herdeiros que se juntam como documentos 5 e 6;
iii\ A, P, F e M, são os únicos herdeiros do promitente comprador F, cf. habilitação de herdeiros que se junta como documento 7;
3\ Os herdeiros referidos em 2iii\, celebraram, em 12/01/2010, um contrato de cessão de créditos para T, o qual lhe confere legitimidade para prosseguir judicialmente com o presente requerimento inicial, cf. contrato de cessão de créditos que se junta como doc. 8.
4\ Com a celebração do referido contrato-promessa os promitentes compradores entregaram à vendedora, a título de sinal, o montante de 1.000.000$ – cf. cláusula 13.ª do CPCV – e tomaram posse do imóvel prometido vender, onde durante anos desenvolveram várias actividades económicas.
5\ e 6\ Os promitentes compradores foram efectuando à promitente vendedora, a título de sinal e seu reforço os seguintes pagamentos (em escudos):
08-02-1980 100.000
08-03-1980 100.000
02-04-1980 100.000
02-05-1980 100.000
02-06-1980 100.000
07-07-1980 100.000
07-08-1980 100.000
08-09-1980 100.000
08-10-1980 100.000
08-11-1980 100.000
08-12-1980 100.000
08-01-1981 100.000
08-02-1981 100.000
08-03-1981 100.000
08-04-1981 100.000
08-05-1981 100.000
08-06-1981 100.000
08-07-1981 100.000
08-08-1981 100.000
08-09-1981 100.000
08-10-1981 100.000
08-11-1981 100.000
08-12-1981 100.000
08-01-1982 100.000
08-02-1982 100.000
09-02-1982 200.000
08-03-1982 200.000
08-04-1982 200.000
10-05-1982 200.000
08-06-1982 200.000
08-07-1982 200.000
08-08-1982 200.000
08-09-1982 200.000
08-10-1982 200.000
08-11-1982 200.000
08-12-1982 200.000
31-12-1982 2.610.600
– cf. certidão dos recibos de pagamento que se junta como documento 9)
[este TRL rectificou os valores para os pôr de acordo com os recibos juntos]
Do recibo de 31/12/1982, assinado, consta que:
“X, X e X, representados por X, na qualidade de sócios da Sociedade…, de acordo com 10ª condição do contrato-promessa de compra e venda celebrado em 18/01/1980, declaram ter recebido, por cheque, nesta data, a importância de 2.610.600$, ou seja, o valor que falta para perfazer o total do preço acrescido da actualização com referência a 31/12/1981, ou seja:
Dívida em 31/12/81……………………………………. 4.200.000$;
Actualização à taxa de 19,3% em 31/12/81……………. 810.600$;
Dívida actualizada em 31/12/81……………………… 5.010.600$;
Dedução das importâncias recebidas em 1982………. 2.400.000$;
Dívida nesta data, sem actualização…………………… 2.610.600$
(Nota: De acordo com a 11ª condição do referido contrato, a actualização referente à presente data de 31/12/82, será paga no acto da escritura).
7\ e 8\ Com a entrada em vigor do DL 400/84, de 31/12, as partes outorgantes do contrato promessa em causa ficaram impedidas de concretizar o contrato prometido. Porquanto, “(…) verifica-se, sem margem para dúvidas que, a operação que os subscritores do contrato promessa ajuizado erigiram, não é admitida pelo clausulado do referido diploma ou, dito de outro modo, a superveniência, da vigência da ordem jurídica, daquele diploma, inviabilizou, em definitivo, a realização da escritura de compra e venda. (…)” – acórdão STJ de 03/10/2023, proc. 420/06.7TVLSB.L1.S2.
[o que consta de 7\ e 8\ não corresponde ao que foi dito ou decidido pelo acórdão do STJ. O STJ diz expressamente: “Cumpre no entanto começar por observar que se não vai apurar se a entrada em vigor do DL 400/84, de 31/12, tornou ou não supervenientemente impossível o cumprimento do contrato-promessa […], por se verificar, neste recurso, que há acordo das partes quanto a esse efeito (cf. conclusões 15ª e segs. das alegações de revista) – o itálico vem do acórdão; o que consta de 7\ e 8\ corresponde, sim, ao decidido pelo acórdão do TRL de 17/01/2013, proc. 420/06.7TVLSB.L1-8, que considerou o contrato extinto por impossibilidade absoluta superveniente não imputável a qualquer das partes e condenou os autores entregar as rendas recebidas desde a notificação do pedido reconvencional a liquidar em execução; o ac. do STJ negou provimento ao recurso dos autores.]
9\ e 10\ Através de notificação judicial avulsa de 11/01/1995 feita cumprir pela 3.ª secção, do 7.º Juízo Cível de Lisboa, a requerida requereu a notificação judicial de A, G, D e F, de que: “Ficam, desde já, à disposição dos notificandos as quantias pagas a título de prestações do preço previsto no contrato promessa agora resolvido”. cf. certidão que se junta como documento 10.
11\ Pese embora o alegado na NJ avulsa, a verdade é que a requerida nunca disponibilizou nem devolveu nenhuma quantia aos promitentes compradores.
12\ Apesar de, por diversas vezes, interpelados pelos promitentes compradores para devolverem os montantes entregues, a requerida nunca o fez.
13\ De facto, os promitentes compradores intentaram acção judicial contra a requerida com vista a que lhe fosse reconhecido o direito de propriedade sobre o prédio em apreço, todavia pelas mesmas razões que a escritura de compra e venda não se podia realizar, também a acção judicial foi improcedente.
14\ Não obstante, o tribunal de 1.ª instância ter considerado extinto o contrato promessa de compra e venda em 03/10/2011, a sentença apenas transitou em julgado em 19/12/2013, uma vez que foi interposto recurso até ao STJ, conforme certidão que se junta como documento 11.
15\ Deste modo, ou seja, com a extinção do contrato-promessa, os promitentes vendedores ficaram em dívida para com os promitentes compradores no montante de 8.310.600$.
16\ Nos termos da cláusula 9.ª do contrato promessa de compra e venda “Fica assim expressamente estipulado o afastamento do princípio nominalista referido no artigo 550.º do Código Civil, e, em sua substituição, acorda-se na actualização da obrigação pecuniária segundo o disposto no artigo 551.º do mesmo diploma.”
[as cláusulas 3 a 14 do contrato, que tratam da questão da actualização, tinham o seguinte teor: 3ª – O preço (não concretizado antes – TRL) do imóvel deverá ser integralmente pago até 31/12/1982. 4ª – Sendo de 6900 contos se for satisfeito no prazo de 6 meses contados a partir da data de assinatura do presente contrato-promessa. 5ª- E de 7500 contos se esse período de tempo for ultrapassado. 6ª – Nesta última hipótese, se for pago até ao dia 31/12/1980, não sofrerá qualquer actualização. 7ª – Se não for integralmente pago até esse dia, as quantias que estiverem em dívida nos dias 31/12/1981 e 30/12/1982 sofrerão uma actualização. 8ª – A taxa de actualização será a de inflação havida, respectivamente, durante os anos de 1981 e de 1982, valendo para a determinação do seu quantum exacto a informação que for oficialmente fornecida pelo Instituto Nacional de Estatística, ou – em caso de extinção deste ou de remoção da sua competência para o efeito – ao organismo público a que foram cometidas as mesmas funções. 9ª – Fica assim expressamente estipulado o afastamento do princípio nominalista referido no art. 550 do Código Civil e, em substituição, acorda-se na actualização da obrigação pecuniária segundo o disposto no art. 551 do CC. 10ª – Em 31/12/1982 os segundos outorgantes deverão pagar o que faltar para perfazer o total do preço, já acrescido da actualização efectuada com referência a 31/12/1981. 11ª – A quantia que resultar da actualização efectuada com referência a 30/12/1982, deverá ser paga no acto de realização da escritura definitiva. 12ª – Independentemente do prazo dentro do qual pretendem fazer o pagamento do total do preço, os segundos outorgantes deverão entregar mensalmente à primeira outorgante, até ao dia 8, e contra recibo, a quantia de 100.000$. 13ª – Estas prestações, que terão início em Fevereiro do corrente ano, serão sempre imputadas no preço do imóvel. 14ª – Os segundos outorgantes podem antecipar, total ou parcialmente, o pagamento do preço. Mas, toda e qualquer antecipação, desde que posterior a 31/12/1980, não prejudica o princípio da actualização do preço, pelo que, devidamente adaptados e reduzidos, sempre se aplicarão os critérios atrás referidos nas cláusulas 7ª e 8ª.]
17\ Nessa medida, o montante em dívida pela requerida deverá ser actualizado, de 1980 a 2013, de acordo com o índice de preços no consumidor, correspondendo ao montante global de 441.663,28€, cf. actualização efectuada com base no IPC do Instituto Nacional de estatística, que se junta como documento 12.
18\ Destarte, em face da aludida decisão judicial que declarou extinto o contrato promessa, a promitente vendedora, ora requerida, deveria ter restituído aos promitentes compradores o valor referido no número anterior.
19\ Todavia, a requerida ainda não devolveu qualquer quantia aos requerentes.
20\ Pelo que, são ainda devidos juros de mora à taxa legal em vigor, desde 19/12/2013, data do trânsito em julgado da decisão judicial acima referida, e que até ao presente momento ascendem ao montante global de 174.196,84€, cf. cálculo de juros civis que se junta como documento 13.
21\ Em face do supra exposto, a requerida tem para com os requerentes, até ao presente momento, uma dívida que ascende a 615.860,12€.
22\ Todavia, a este montante devem ser deduzidas as rendas recebidas pelos requerentes que se estimam em pelo menos 200.000€ – cf. decorre do documento 11.
23\ Nessa medida, consideramos estar demonstrado o 1.º requisito do arresto que se consubstancia na existência de um crédito, porquanto por um lado existem as certidões (contrato promessa e os respectivos recibos) e, por outro, existe a confissão da própria requerida na NJA.
24\ Acresce que, entretanto, foi publicado na 2.ª série, do Diário da República n.º 215, de 08/11/2022, o despacho que emitiu a declaração de utilidade pública com carácter de urgência para a execução da obra do “Plano Geral de Drenagem de Lisboa 2016 – 2030”, a levar a cabo pelo Município de Lisboa [declaração 127-A/2022 no DR, 2.ª série, de 08/11/2022 – TRL]
25\ E, para esse efeito, o Município de Lisboa expropriou o imóvel, objecto do contrato promessa em apreço, constituído por um terreno com uma área aproximada de 10.450 m2, situado… a norte da via férrea, de que a requerida era proprietária, e em 09/01/2023 tomou posse administrativa do mesmo, cf. auto de posse que se junta como documento 14.
26\ Ora, este era o único prédio que a requerida tinha em seu nome.
27\ Não existindo qualquer outro património em nome da requerida.
28\ Aliás, tal busca foi solicitada à Autoridade Tributária e às Conservatórias do Registo Predial, cf. email que se junta em anexo como documento 15.
29\ E recusando-se a requerida a devolver qualquer montante que seja aos requerentes, após ter dito que estava à disponibilidade dos mesmos.
30\ Nessa medida, consideram os requerentes que com a expropriação do terreno já não têm qualquer garantia de serem reembolsados dos montantes que pagaram à requerida.
31\ Sendo, pois, o passivo da requerida superior ao activo.
32\ Os requerentes entraram em contacto com a Câmara Municipal de L que os informou do valor da indemnização que, por enquanto, ainda, se encontra depositado a favor da requerida em virtude da expropriação.
33\ A CML efectuou um depósito autónomo a favor da requerida no montante de 919.131€, cf. documento 16.
34\ O qual apenas ainda se encontra depositado em virtude da requerida não concordar com o valor da indemnização.
35\ Mais sabem os requerentes que, é intenção da requerida, após receber a indemnização por parta da CML, proceder à sua dissolução.
36\ Sendo que, o crédito dos requerentes não se encontra assegurado por qualquer garantia real, ou outra.
37\ Com o seu comportamento a requerida manifesta ostensivamente uma conduta que pode ser entendida como de má-fé, com a verosímil intenção objectiva de não pagar aos requerentes, ou seja, de não devolver aos requerentes o valor do sinal e respectivos reforços devidamente actualizados, montantes entregues pelos requerentes no âmbito do contrato promessa de compra e venda.
38\ Sendo este procedimento a única forma dos requerentes poderem ver o seu direito de crédito alguma vez satisfeito.
39\ Com a urgência necessária a que não terminem as negociações entre a requerida e a CML, pois a qualquer momento poderá ser levantada a indemnização por parte da requerida, pelo que assim se impõe a procedência do presente arresto sem audição da mesma.
40\ Determina o artigo 406 do CPC [o artigo é o 391/1 na redacção da reforma de 2013 – TRL] “O credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor”.
41\ São, assim, requisitos desta providência cautelar, a existência de um crédito contra o arrestado e que o credor tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito.
42\ Face ao supra alegado, designadamente nos artigos 4 a 6, 15, 17, 20 e 21, o crédito dos requerentes tem mais do que natureza indiciária, sendo, aliás certo e líquido.
43\ Existe um justo receio de perda da garantia patrimonial do requerente porquanto o bem já não está na posse nem registado em nome da requerida, uma vez que foi expropriado.
44\ Do exposto resulta ser fundado o justo receio que os requerentes têm de perder a garantia patrimonial do seu crédito.
45\ Acresce que, no caso em apreço, salvo melhor entendimento, afigura-se que é de aplicar o n.º 3, do artigo 396 do CPC, porquanto a dívida respeita ao terreno ora expropriado, não existindo, assim, necessidade de provar o justo receio de perda da garantia patrimonial.
Os requerentes deram ao procedimento cautelar o valor de 415.860,12€.
A 28/12/2023, foi proferido despacho a determinar a notificação dos requerentes para, em 10 dias, juntarem aos autos a certidão permanente da requerida e certidão actualizada do prédio que identificam no requerimento inicial.
A 10/01/2024, os requerentes apresentaram uma certidão permanente actualizada do prédio [com o mesmo conteúdo da informação, mas datada de 05/01/2024] e informaram que a requerida não é uma sociedade comercial, mas uma sociedade civil, pelo que apenas solicitou junto do Registo Nacional de Pessoas Colectivas a respectiva inscrição no ficheiro central, a qual ainda não lhe foi disponibilizada, conforme comprovativo de pagamento já efectuado e cujo documento se protesta juntar. O que fizeram a 15/01/2024 [e do que resulta que a sociedade foi constituída no cartório a 12/10/1945 e tem NIPC desde 09/11/1978, com a CAE/P 68200 [arrendamento de bens imobiliários]].
A 18/01/2024 foi indeferido liminarmente o procedimento cautelar de arresto, com a seguinte fundamentação (em síntese e com correcções feitas por este TRL):
Os artigos 619 do Código Civil e 391/1 do Código de Processo Civil permitem ao credor, que tenha justo receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito, requerer o arresto de bens do devedor, nos termos da lei de processo.
Para que o tribunal ordene o arresto é necessário que o requerente deduza i\ factos que tornem provável a existência do crédito e que ii\ justifiquem o receio invocado (cf. artigo 392/1 do CPC).
Vejamos o requisito do justo receio de perda da garantia patrimonial.
A lei não exige que a perda de garantia patrimonial seja certa ou venha a tornar-se efectiva. Basta que haja um receio justificado dessa perda. No entanto, não basta o receio subjectivo, porventura exagerado do credor, de ver insatisfeita a pretensão a que tem direito.
Na verdade, o que é decisivo é que o credor fique ameaçado de lesão por acto do devedor e seja razoável e compreensível o seu receio de ver frustrado o pagamento do seu crédito (neste sentido, ac. STJ de 03/03/1998 in CJ, Ano VI, Tomo I, pag.116).
O receio exigido pela lei não se alicerça em qualquer subjectivismo, antes se infere de dados objectivos – factos externos – avaliados segundo o padrão do indivíduo médio (ac. do TRL de 18/11/1993 in CJ, XVIII, 5, 129).
Para que, “haja justo receio de perda de garantia patrimonial basta que, com a expectativa da alienação de determinados bens … o devedor torne consideravelmente difícil a realização coactiva do crédito” (Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. I., pág. 637).
Como observa o Prof. Alberto dos Reis, no arresto a causa de pedir são os factos concretos alegados pelo requerente como demonstração do justo receio de perda da garantia patrimonial (in CPC Anotado, vol. II, pág. 34).
No caso, os requerentes alegam que: têm um direito de crédito emergente de um contrato promessa que não foi cumprido em virtude da entrada em vigor do DL 400/84, de 31/12; a requerida só tem um prédio em seu nome e que o mesmo foi expropriado pela Câmara Municipal de L; é intenção da requerida proceder à sua dissolução, apos receber a indemnização.
Isto não é alegar factos individuais e concretos para demonstrar o justo receio de perda de garantia patrimonial, qualquer conduta de dissipação por parte da requerida; é, sim, produzir algumas conclusões sobre tal receio, receio meramente subjectivo, não tendo nenhum elemento objectivo a suportá-lo.
Não sendo alegados factos individuais e concretos pelos quais se exprimisse o receio de perda da garantia patrimonial e sendo estes que, constituem, no arresto, a causa de pedir, importa concluir que a petição inicial de arresto deve ser liminarmente indeferida (artigos 391, 226/4-b e 590/1 todos do CPC).
Os requerentes recorrem deste indeferimento liminar – para que seja revogado e substituído por despacho que admita liminarmente a presente providência cautelar e faça prosseguir os autos com a produção de prova requerida pelos requerentes – terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, em síntese:
Antes de mais refira-se que no caso não estamos perante uma situação prevista no art. 590/1 do CPC, isto é, quando «o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente». Pelo contrário foram alegados factos concretos e objectivos – a expropriação, por parte da CML, de um prédio misto pertencente à requerida e a futura dissolução da sociedade requerida – para, de uma forma também objectiva, o tribunal ter decidido o prosseguimento dos autos com a produção de prova e não o seu indeferimento liminar.
A requerida é uma sociedade civil sem a forma comercial, cujo único objecto social é “explorar” a denominada Quinta… precisamente o prédio que foi expropriado pela CML. O que significa que, tendo desaparecido da esfera patrimonial da requerida o referido prédio, a referida sociedade civil deixou de ter objecto social o que significará, sem margem para dúvidas, que a referida sociedade será dissolvida, facto que foi alegado pelos requerentes. E tendo o único património da requerida sido expropriado pela CML e sendo dissolvida a Sociedade, terá de ser dado como certo que existe o “justo receio da perda de garantia patrimonial”.
É certo que o acto de “alienação” patrimonial – a referida expropriação pela CML – não foi um acto voluntário praticado pela requerida, mas, para os devidos efeitos, teve e tem um efeito lesivo nos interesses dos requerentes.
Pois, com a referida expropriação, a requerida deixou de ter um activo importante – a denominada Quinta – o que fez reduzir significativamente a “garantia patrimonial” existente.
Ora, o desaparecimento, por expropriação, do único património imobiliário da requerida, deveria ser suficiente para que a decisão do tribunal a quo fosse outra, que considerasse como preenchido o requisito da “perda da garantia patrimonial” ou, pelo menos, que considerasse que os presentes autos seguissem os seus termos e os requerentes pudessem produzir prova, nomeadamente que as 3 testemunhas arroladas fossem inquiridas e que o tribunal pudesse requerer, junto da AT e das Conservatórias do Registo Predial, a informação solicitada.
A este propósito veja-se o acórdão do STJ de 24/11/1988, in BMJ, n.º 381, pág. 603: “há fundamento para o arresto uma vez provado que o devedor de elevada quantia se furta ao contacto com o credor e diligencia vender a farmácia, único património conhecido. […] o aludido receio é justo, quando o credor fica ameaçado de lesão; não interessa a solvência do devedor; interessa, sim, que os factos façam razoavelmente supor que o activo do seu património possa vir a ser insuficiente para satisfazer o passivo. […] é que – e antes de mais – a lei não exige que o receio seja certo, mas, sim, que seja tão somente provável (ac. do STJ de 13/04/1973, no BMJ 226, pág. 189). Repete-se – qualquer pessoa de são critério, perante tão avultada dívida, e vendo o devedor a furtar-se aos contactos para a solver e a pretender vender a farmácia, necessariamente que se comportaria como o requerente.”
[…]
*
O recurso foi admitido no modo de subida devido (nos próprios autos) e com o efeito devido (devolutivo, já que não havia nada a suspender).
Questão que importa decidir: se o arresto não devia ter sido indeferido.
*
Apreciação:
Da aparente alegação de factos suficientes para o preenchimento do 2.º requisito do arresto (receio da perda da garantia patrimonial do crédito).
O que é afirmado pelo despacho recorrido levanta desde logo duas questões:
1.ª – Os requerentes apenas alegaram, para o preenchimento do 2.º requisito do arresto – receio de perda da garantia patrimonial do crédito -, que i\ a requerida só tem um prédio em seu nome, ii\ o mesmo foi expropriado; iii\ é intenção da requerida proceder à sua dissolução, apos receber a indemnização?
2.ª – O que foi alegado não é suficiente para o efeito?
Quanto à 1.ª questão, os requerentes dizem que não foi só isso o que alegaram; alegaram, também, que: iv\ a requerida é uma sociedade civil sem a forma comercial, v\ cujo único objecto social é “explorar” a denominada Quinta…, vi\ precisamente o prédio que foi expropriado pela CML.
Quanto a iv\ trata-se de uma afirmação que consta do requerimento de arresto; já quanto a v\ e vi\, elas não foram feitas no requerimento.
Assim, o que, aparentemente, fica para preenchimento do 2.º requisito são apenas quatro afirmações (i\ a iv\). Estas quatro afirmações são suficientes para prova do preenchimento do requisito?
O despacho recorrido entende que não, pois que considera que o 2.º requisito só se preenche com a prova (antecedida, logicamente, da alegação) de um comportamento de dissipação por parte do devedor.
Mas a lei não exige esse comportamento [embora, como diz Miguel Teixeira de Sousa, obra citada, pág. 95/12: (a) A causa mais comum do justificado receio é aquela que decorre de actos (ou de possíveis actos) do devedor]. Mesmo que não seja o devedor a praticar actos, se a situação justificar o receio de perda de garantia patrimonial, o requisito fica preenchido. Assim, não importa, para o caso, que o acto que provoca a perda de uma parte do imóvel da ré tenha sido praticado por terceiro (a expropriação). [MTS, 96/14 (a) lembra que “O receio de perda da garantia patrimonial pode ser justificado por actos da natureza […], se isso se reflectir na situação económica do devedor e se o credor correr o risco de vir a perder a sua garantia patrimonial. (b) O receio de perda da garantia patrimonial pode decorrer de actos de terceiro […].
Assim, volta-se à 2.ª questão inicial: as quatro afirmações dos requerentes feitas para preenchimento do 2.º requisito são suficientes para o efeito? Isto se estivessem suficientemente indiciadas.
Relembre-se que elas são: iv\ a requerida é a uma sociedade civil em forma comercial, i\ a requerida só tem um prédio em seu nome, ii\ o mesmo foi expropriado; iii\ é intenção da requerida proceder à sua dissolução, apos receber a indemnização.
Ora, deixando de lado, para já, a iv\, que, mesmo que conjugada com as anteriores, não tem relevo, considera-se que a resposta deve ser no sentido de que sim, de que as duas primeiras (i\ e ii\) afirmações seriam suficientes e a terceira seria corroboradora do preenchimento do requisito.
A venda de o único prédio do património do devedor, ficando no património dele apenas o preço da venda em vez do prédio, tem sido considerado uma situação tipo de perigo para a garantia do crédito, pois que o dinheiro que representa o preço é de fácil sonegação (veja-se, por exemplo, Ana Carolina dos Santos Sequeira, Do arresto como meio de conservação de garantia patrimonial, Almedina, 2020, página 254, ao referir-se a bens de fácil ocultação ou dissipação, e, na página 244, nota 916, ao lembrar acórdão do STJ em que se dá relevo à situação da fácil ocultação do património; e na pág. 250 lembra que o justo receio de ocultação de bens era um dos fundamentos de que se falava antes de ser positivado o conceito geral de justo receio de perda de garantia patrimonial). Ora, isto é verdade para o recebimento do valor do prédio seja através de uma venda ou de uma expropriação (embora sem referir a hipótese, a autora acabada de citar lembra que a perda da garantia patrimonial não tem de ser imputável ao devedor e releva também causa fortuita ou acto de terceiro – obra citada, páginas 245, 255 e 257). Se, para mais, se verifica a vontade da requerida em proceder à sua dissolução, tal corrobora o perigo de perda do património/preço que serve de garantia do crédito.
Assim, considera-se que tais afirmações, se provadas, seriam suficientes para justificar o receio do credor.
Para mais, as alegações feitas pelos requerentes que podem ser aproveitadas para prova do 2.º requisito não eram só aquelas que o despacho recorrido refere.
Com efeito, ainda se pode aproveitar para tal, o facto de a dívida, reconhecida pela requerida desde inícios de 1995 (alegação do art. 10 do RI) ainda não ter sido paga (alegação dos artigos 11, 12, 19 e 29 do RI), decorridos que estão quase 30 anos, apesar de, alegadamente, a requerida ter sido notificada para o efeito (alegação do art. 12 do RI), o que justifica um acréscimo de receio.
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Da efectiva não alegação de factos suficientes para o preenchimento do 2.º requisito
Apesar do que antecede, pode dizer-se que o todo constituído pelas alegações dos requerentes e documentos por eles juntos põe em causa a alegação i\ e em dúvida as alegações v\ e vi\ dos requerentes, e, por isso, põe em causa os subsequentes raciocínios que eles fazem com base nelas e, por último, a possibilidade do preenchimento do 2.º requisito.
Veja-se: pondo em confronto o contrato-promessa, a informação predial do prédio que foi em parte objecto do contrato-promessa e os documentos relativos à expropriação, vê-se que i\ o prédio inicial tinha uma área de 23.450m2, ii\ a sociedade só prometeu vender a parte a norte da linha férrea desse prédio com a área aproximada de 10.450m2, iii\ sobrando para a sociedade a parte a sul da linha férrea, com a área de cerca de 13.000m2 (significativamente maior do que a área prometida vender), sendo que iv\ a parte expropriada foi a área prometida vender, pelo que v\ a sociedade continuou (e presume-se tal por força do registo e do art. 7/1 do Código do Registo Predial) proprietária da parte a sul.
Ora, assim sendo, o que temos de facto é: a requerida é presumida proprietária de um prédio ainda com 13.000m2, com valor presumivelmente superior ao da parte expropriada, que tem o valor de pelo menos 991.131€; a mesma pode ainda estar a exercer sobre esse prédio uma actividade económica de arrendamento. Assim sendo, não se pode concluir, como querem os requerentes, a intenção de dissolução da sociedade e, por aí, da perda da garantia patrimonial.
Sendo assim, não se pode ter por subsistente a afirmação i\ (a requerida só tem um prédio em seu nome), deixa de ter sentido a afirmação ii\ (o mesmo foi expropriado – não foi, subsiste na sua maior parte) e a lógica da argumentação dos requerentes não permite agora avançar para a afirmação iii\ (é intenção da requerida proceder à sua dissolução, apos receber a indemnização).
Pelo que, embora por outra via, se tem de chegar à mesma conclusão do despacho recorrido, ou seja, que não há afirmações de facto que possam ser objecto de prova de modo a concluir-se pelo preenchimento do 2.º requisito do arresto. Tal resulta do facto de os próprios requerentes terem juntado documentos que põem em causa as afirmações feitas por eles.
Note-se que não se está a dizer que o requerente do arresto tenha que alegar que o bem identificado constitui o único património do requerido, pois que se entende o contrário. Ou seja, entende-se que, como diz o ac. do TRC de 23/01/2001, proc. 3425/2000, lembrado por Marco Carvalho Gonçalves, página 230, nota, 687, “III – A lei não exige a alegação e prova de que os bens a arrestar constituem a única garantia patrimonial do crédito. O que interessa é que os bens cujo arresto se pede figurem no património do devedor, não tendo o credor a obrigação de saber com exactidão quais os bens que integram tal património.” O problema é que, no caso, os próprios requerentes juntaram prova documental suficiente de que a requerida é proprietária de um prédio (o sobrante da expropriação, que continua registado em nome dela). Aliás, ao invocaram o contrato-promessa de venda de parte de um prédio registado a favor da requerida, já implicitamente estavam a admitir que esta continuava proprietária da parte restante.
A tudo isto há que acrescentar que os requerentes não dizem ter feito fosse o que fosse, para, pelo menos desde que juridicamente a situação está estabilizada, isto é, desde o trânsito em julgado do acórdão do STJ de 2013, tentar cobrar a dívida. E o facto de dizerem que interpelaram a requerida para o pagamento, não afasta a omissão de actos de efectiva tentativa de cobrança ou de garantir o pagamento da dívida. Ora, é incompreensível que alguém alegue receio da perda de garantia patrimonial de uma dívida vencida para obter um arresto, que é um procedimento cautelar urgente, e não alegue ter feito algo para cobrar essa dívida durante os últimos 10 anos, para mais havendo um prédio registado em nome da requerida.
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Da desnecessidade do 2.º requisito (receio da perda da garantia patrimonial do crédito)
Apesar disso, há ainda o início de construção de direito feita pelos requerentes que se aceita como boa: ou seja, a aplicação ao caso do disposto no art. 396/3 do CPC.
Ou seja, os requerentes não basearam o seu requerimento apenas na verificação dos dois requisitos do arresto, basearam-no também na verificação da situação prevista no art. 396/3 do CPC.
O art. 396/3 do CPC dispõe que: O credor pode obter, sem necessidade de provar o justo receio de perda da garantia patrimonial, o arresto do bem que foi transmitido mediante negócio jurídico quando estiver em dívida, no todo ou em parte, o preço da respectiva aquisição.
Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (CPC anotado, vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, 2017, páginas 145 e 161, explicam que esta norma dispensa a prova, [ou melhor, dispensa o ou prescinde do requisito] do justo receio de perda de garantia patrimonial, constituída pela existência no património do devedor do bem por ele comprado, quando se pretende exigir o pagamento, total ou parcial, do respectivo preço. […] Compreende-se que se conceda ao vendedor um meio expedito que lhe garanta a cobrança do preço pelo valor da coisa vendida, independentemente do justo receio de perda da garantia patrimonial”.
Também Miguel Teixeira de Sousa, na anotação 3 ao art. 396 do seu CPC online, versão 2024/02, ao remeter para o ac. do TRL que segue esta posição [com efeito, este Professor diz: “Para garantia do crédito decorrente da venda de um bem, o credor pode obter, sem necessidade de provar o receio de perda da garantia patrimonial, o arresto do bem que foi transmitido (n.º 3) (TRL de 16/03/2017 (41/17.9T8FNC.L1-8) (…)”; este acórdão do TRL, por sua vez, diz: “Estando em dívida a totalidade ou parte do preço de um bem vendido, o credor pode obter o arresto desse bem, nos termos do art. 396/3 do CPC, sem necessidade de alegar e provar o justo receio de perda da garantia patrimonial.”] está a aderir a ela, posição que é, repete-se, a de dispensa a alegação do justo receio e não só a dispensa da prova da alegação. No mesmo sentido, ainda, Marco Carvalho Gonçalves, Tutela cautelar conservatória: perspectivas jurisprudenciais sobre o arresto e o arrolamento, 16/03/2018, https://doi.org/10.21814/uminho.ed.105.3, páginas 39-40.
Ora, a situação dos autos é o reverso daquela situação: aqui são os promitentes compradores que têm direito, devido à extinção do contrato-promessa, à restituição do preço pago para a futura escritura de compra do bem objecto dele. É o equivalente, no caso de um contrato-promessa, à extinção do contrato de compra e venda: se o vendedor tem direito ao arresto do bem objecto da compra e venda quando está em dívida o pagamento do preço, também o comprador deverá ter esse direito quando a compra e venda foi anulada e ele tem direito à devolução do preço. E a solução não deve ser outra quando está em causa um contrato-promessa em vez de um contrato de compra e venda, isto por força do princípio da equiparação (art. 410/1 do CC).
A norma deve abranger os dois tipos de situação que pertencem ao mesmo género (interpretação extensiva – Oliveira Ascensão, O direito, FCG, Lisboa, 2.ª edição, 1980, páginas 378-379 Miguel Teixeira de Sousa, Introdução ao direito, 2016, Almedina, páginas 375-377), já que nada justifica que, na situação que é o reverso da prevista, a solução legal não se aplique. Está em causa uma relação sinalagmática e um dos polos dessa relação deve ter os mesmos direitos que o outro modo, perante uma situação que seja simétrica. Assim, também aqui os promitentes compradores podem obter, sem necessidade de (alegar e) provar o receio de perda da garantia patrimonial, o arresto do bem (e mais ainda o seu sub-rogado devido à expropriação) que seria transmitido mediante o contrato definitivo quando estiver em dívida, por extinção do contrato, a restituição do preço da respectiva aquisição.
Assim, o despacho recorrido tem de ser revogado, pois que para que fosse decretado o arresto não era necessário, no caso, que estivesse alegado e provado o requisito do justo receio da perda da garantia patrimonial do crédito.
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Da decisão do arresto em substituição do tribunal recorrido
Não sendo necessário a verificação, no caso, do 2.º requisito do arresto, este TRL deve decretar desde já o arresto em substituição do tribunal recorrido (art. 665/2 do CPC), se estiveram indiciados os factos que preencham o requisito da existência de um crédito (único requisito que é exigido no caso).
Pelo que já foi dito, é evidente que esses factos estão indiciados suficientemente, pelos documentos que serão referidos a seguir a cada um deles, e isso nem sequer foi posto em causa no despacho recorrido.
São eles os seguintes:
1\ Por contrato-promessa de compra e venda, celebrado em 18/01/1980, a requerida, sociedade civil sem forma comercial, prometeu vender a G, A, F e D, que prometeram comprar, em comum e partes iguais, parte de um imóvel sito…, parte essa composto por um terreno situado a Norte da Via férrea, com cerca de 10.450m2, no qual se encontram construções abarracadas; o prédio de que fazia parte, tem o número…, e é um prédio misto, com a denominação Quinta…, com a área total de 23.450m2, com os artigos matriciais […], é atravessado pela via férrea Norte-Sul, composto por duas parcelas distintas; uma, a norte da via férrea, com a área total de 10.550m2 a que correspondem os artigos […] e com a área de 221m2, e os rústicos […], respectivamente com as áreas de 3400m2 e 6292m2, e outra a sul da via férrea com a área de 12.900m2, a que correspondem os artigos […] rústicos; o prédio, todo ele, tinha inscrita a aquisição em 23/01/1948 da propriedade pela sociedade requerida, por compra – provado pelo que consta do contrato-promessa, da certidão permanente e dos documentos de expropriação = documentos 1, 2 e 14, bem como pela declaração de utilidade pública publicada no DR.
2\ F é o único herdeiro do promitente comprador G e de A, cf. escrituras de habilitações de herdeiros que se juntam respectivamente como documentos 3 e 4;
3\ I é a única herdeira do promitente comprador A e de M, cf. habilitações de herdeiros que se juntam como documentos 5 e 6;
4\ A, P, F e M, são os únicos herdeiros do promitente comprador F, cf. habilitação de herdeiros que se junta como documento 7;
3\ Os herdeiros referidos em 2iii\, celebraram, em 12/01/2010, um contrato de cessão de créditos para T, o qual lhe confere legitimidade para prosseguir judicialmente com o presente requerimento inicial, cf. contrato de cessão de créditos que se junta como doc. 8.
4\ Com a celebração do referido contrato-promessa os promitentes compradores entregaram à vendedora, a título de sinal, o montante de 1.000.000$ – cf. cláusula 13.ª do CPCV – e tomaram posse do imóvel prometido vender, onde durante anos desenvolveram várias actividades económicas. – resulta do contrato-promessa e das decisões judiciais já identificadas.
5\ Os promitentes compradores foram efectuando à promitente vendedora, a título de sinal e seu reforço os pagamentos em escudos descriminados acima na transcrição dos artigos 5\ e 6\ do requerimento inicial nos termos e nos modos que ali constam e que se dá aqui por reproduzido na íntegra para evitar duplicações – cf. certidão dos recibos de pagamento que constam do documento 9.
6\ O contrato-promessa foi declarado extinto pela sentença da 1.ª instância de 03/10/2011, confirmada pelos acórdãos do TRL e STJ, tendo este transitado em julgado em 19/12/2013 – certidão judicial que é o doc.11.
7\ Através de notificação judicial avulsa de 11/01/1995 feita cumprir pela 3.ª secção, do 7.º Juízo Cível de Lisboa, a requerida requereu a notificação judicial de A, G, D e F, de que: “Ficam, desde já, à disposição dos notificandos as quantias pagas a título de prestações do preço previsto no contrato promessa agora resolvido”. cf. certidão que se junta como documento 10.
8\ As cláusulas 3 a 14 do contrato-promessa tinham o seguinte teor: 3ª – O preço (não concretizado antes – TRL) do imóvel deverá ser integralmente pago até 31/12/1982. 4ª – Sendo de 6900 contos se for satisfeito no prazo de 6 meses contados a partir da data de assinatura do presente contrato-promessa. 5ª- E de 7500 contos se esse período de tempo for ultrapassado. 6ª – Nesta última hipótese, se for pago até ao dia 31/12/1980, não sofrerá qualquer actualização. 7ª – Se não for integralmente pago até esse dia, as quantias que estiverem em dívida nos dias 31/12/1981 e 30/12/1982 sofrerão uma actualização. 8ª – A taxa de actualização será a de inflação havida, respectivamente, durante os anos de 1981 e de 1982, valendo para a determinação do seu quantas exacto a informação que for oficialmente fornecida pelo Instituto Nacional de Estatística, ou – em caso de extinção deste ou de remoção da sua competência para o efeito – ao organismo público a que foram cometidas as mesmas funções. 9ª – Fica assim expressamente estipulado o afastamento do princípio nominalista referido no art. 550 do Código Civil e, em substituição, acorda-se na actualização da obrigação pecuniária segundo o disposto no art. 551 do CC. 10ª – Em 31/12/1982 os segundos outorgantes deverão pagar o que faltar para perfazer o total do preço, já acrescido da actualização efectuada com referência a 31/12/1981. 11ª – A quantia que resultar da actualização efectuada com referência a 30/12/1982, deverá ser paga no acto de realização da escritura definitiva. 12ª – Independentemente do prazo dentro do qual pretendem fazer o pagamento do total do preço, os segundos outorgantes deverão entregar mensalmente à primeira outorgante, até ao dia 8, e contra recibo, a quantia de 100.000$. 13ª – Estas prestações, que terão início em Fevereiro do corrente ano, serão sempre imputadas no preço do imóvel. 14ª – Os segundos outorgantes podem antecipar, total ou parcialmente, o pagamento do preço. Mas, toda e qualquer antecipação, desde que posterior a 31/12/1980, não prejudica o princípio da actualização do preço, pelo que, devidamente adaptados e reduzidos, sempre se aplicarão os critérios atrás referidos nas cláusulas 7ª e 8ª.
9\ Os requerentes têm uma dívida à requerida de pelo menos 200.000€ de rendas recebidas – está confessado pelos requerentes e resulta, embora sem a concretização de valor, do ac. do TRL já identificado acima que decidiu condenar os autores entregar as rendas recebidas desde a notificação do pedido reconvencional a liquidar em execução.
10\ Foi publicado na 2.ª série, do Diário da República n.º 215, de 08/11/2022, despacho que emitiu a declaração de utilidade pública com carácter de urgência para a execução da obra do “Plano Geral de Drenagem de Lisboa 2016 – 2030”, a levar a cabo pelo Município de Lisboa – resulta da declaração 127-A/2022.
11\ E, para esse efeito, o Município de Lisboa expropriou o imóvel, objecto do contrato promessa em apreço, constituído por um terreno com uma área aproximada de 10.450 m2, situado [..] a norte da via férrea, de que a requerida era proprietária, e em 09/01/2023 tomou posse administrativa do mesmo – cf. auto de posse que se junta como documento 14.
12\ A CML efectuou um depósito autónomo a favor da requerida no montante de 919.131€ – cf. documento 16.
A falta de pagamento é uma alegação necessária do credor, mas não tem de ser provada por ele; é o pagamento que tem de ser alegado e provado pelo devedor, como facto extintivo (art. 342/2 do CC) e é matéria da eventual oposição ao arresto. Por isso não tem de ser objecto de apreciação na decisão do arresto, partindo-se do princípio, para efeitos do arresto, que ele não foi efectuado enquanto o devedor não alegar e provar o contrário. A matéria da interpelação para o pagamento não tem de ser objecto de apreciação, pois que a exigibilidade da dívida já decorre do que consta da notificação judicial avulsa.
Perante estes factos conclui-se que está suficientemente indiciada a existência do crédito, que os requerentes são os seus titulares e que ele já está vencido.
Mas o valor indiciado do crédito não é o indicado pelos requerentes: os 8.310.600$ não foram pagos em início de 1980, como os requerentes sugerem, mas sim todos os meses de todos aqueles anos e duas vezes em 31/12/1982. Assim, é a data de cada um daqueles pagamentos e não a data de início do pagamento do preço (18/01/1980), data da celebração do contrato, como pretendem os requerentes, que serve de data de partida da actualização até 19/12/2013
Assim:
18/01/1980 1.000.000$ => 56.390,39€
08-02-1980 100.000 5.536,07€
08-03-1980 100.000 5.460,17€
02-04-1980 100.000 5.415,23€
02-05-1980 100.000 5.418,48€
02-06-1980 100.000 5.367,49€
07-07-1980 100.000 5.315,92€
07-08-1980 100.000 5.263,29€
08-09-1980 100.000 5.251,73€
08-10-1980 100.000 5.200,77€
08-11-1980 100.000 5.171,29€
08-12-1980 100.000 5.039,26€
08-01-1981 100.000 4.894,39€
08-02-1981 100.000 4.821,58€
08-03-1981 100.000 4.758,30€
08-04-1981 100.000 4.641,34€
08-05-1981 100.000 4.610,90€
08-06-1981 100.000 4.577,94€
08-07-1981 100.000 4.463,24€
08-08-1981 100.000 4.353,53€
08-09-1981 100.000 4.290,46€
08-10-1981 100.000 4.219,15€
08-11-1981 100.000 4.171,60€
08-12-1981 100.000 4.075,02€
08-01-1982 100.000 3.995,51€
08-02-1982 100.000 3.891,60€
09-02-1982 200.000 7.783,21€
08-03-1982 200.000 7.591,15€
08-04-1982 200.000 7.451,07€
10-05-1982 200.000 7.447,35€
08-06-1982 200.000 7.376,53€
08-07-1982 200.000 7.380,22€
08-08-1982 200.000 7.260,43€
08-09-1982 200.000 7.173,63€
08-10-1982 200.000 7.129,42€
08-11-1982 200.000 7.070,03€
08-12-1982 200.000 6.895,58€
31-12-1982 2.610.600 90.007,96€
Assim, o valor dela, actualizado em Dez/2013, era de 347.161,23€ (cálculo efectuado com a mesma ferramenta utilizada pelos requerentes que só tem em conta os meses e não os dias). E os juros civis, entre 19/12/2013 a 20/12/2023 são de 138.978,63€ (também aqui o cálculo foi efectuado com a mesma ferramenta utilizada pelos requerentes). Por isso, a dívida actualizada, com juros, em 20/12/2023 (data do requerimento inicial de arresto) é de 486.139,86€, e não de 615.860,12€ como pretendem os requerentes.
Por outro lado, os requerentes reconhecem dever cerca de 200.000€ de rendas. Esse valor foi referido pela requerida no pedido reconvencional deduzida na acção intentada pelos requerentes em 2006 que, como se viu, teve parcial procedência no ac. do TRL confirmado pelo ac. do STJ. Tal valor, naturalmente, também tem, pelo menos, de ser actualizado, nem que seja por igualdade de raciocínio face à dívida da requerida para com os requerentes, embora, se, entretanto, não houver acordo das partes, terá de ser liquidado em execução de sentença como decidido já pelo ac. do TRL. A actualização, pelo menos desde fins de 2006 a 20/12/2023, dá o valor de 264.545,45€ (utiliza-se a mesma ferramenta de cálculo utilizada pelos requerentes).
Assim, o arresto deve ser decretado pela diferença entre 486.139,86€ e 264.545,45€, ou seja, 221.594,41€, que é o valor da dívida indiciada, compensada com o valor da dívida também indiciada e actualizada dos requerentes perante a requerida tal como confessada (embora sem a actualização) pelos requerentes.
Esta redução do valor do arresto, tem em consideração, ainda, o que é disposto no art. 393/2 do CPC: Se o arresto houver sido requerido em mais bens que os suficientes para segurança normal do crédito, reduz-se a garantia aos justos limites.
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Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso, revoga-se o despacho recorrido e, em substituição dele, julga-se parcialmente procedente o procedimento cautelar, decretando-se o arresto de 221.594,41€ no depósito identificado no início (logo no 1.º §) do relatório desta decisão singular.
Notifique os requerentes do arresto (à cautela, faça-o na pessoa dos 3 advogados constituídos).
Sem esperar pelo trânsito, notifique (com as formalidades da citação pessoal – carta registada com a/r ou, se tecnicamente possível, por via electrónica, preferencialmente de forma automática, nos termos do art. 773/8, aplicável por força do art. 391/2 do CPC), com as referências necessárias (quer do depósito em causa – identificado no 1.º§ da 1.ª página desta decisão singular onde ele está transcrito de acordo com o doc. 16 do requerimento inicial -, quer da requerida, indicando-se o seu nome, o endereço que consta da certidão junta a 15/01/2024 e o endereço que consta do recibo do depósito junto com o requerimento inicial de arresto e o NIPC), o arresto ao IGFEJ-IP (isto é, de que o valor de 221.594,41€, parte do depósito em causa, fica à ordem do processo e tribunal de 1.ª instância recorrido, só podendo ser movimentado, quanto a esse valor, pelo referido processo e tribunal), com a advertência ao IGFEJ-IP que deverá comunicar (por escrito ou por via electrónica se a notificação tiver sido feita por esse meio) a este TRL, no prazo de 2 dias úteis, o montante arrestado ou a eventual inexistência actual do depósito, ficando o IGFEJ responsável pelo montante arrestado.
Depois de demonstrada (com a resposta do IGFEJ) a realização do arresto, cite, através de carta registada com a/r à requerida (na morada constante do registo) o procedimento de cautelar e esta decisão que decretou o arresto com a menção de que lhe é lícito, em alternativa, (a), reclamar para a conferência, em 10 dias, do despacho que decretou o arresto, quando entenda que, face aos elementos apurados, ele não devia ter sido deferido; ou, (b), deduzir oposição, em 10 dias, quando pretenda alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinem a sua redução.
Depois de notificado o arresto à requerida, devolva os autos à 1.ª instância dando conhecimento aos requerentes e à requerida.
Se e quando transitar a decisão que decretou o arresto, ele deve ser notificado aos requerentes (para os efeitos do art. 373/1-a do CPC).
Custas do arresto pelos requerentes.
Sem custas do recurso.
Lisboa, 28/03/2024.
Pedro Martins