Processo: 5565/21.0T8ALM do Juízo Central Cível de Almada – Juiz 2
Sumário:
Os autores não lograram provar factos suficientes para se poder concluir pela tradição da coisa, mas, no máximo, por uma entrega de favor, pelo que não se pode falar de uma transmissão da posse que pudesse levar à usucapião, mas sim numa simples detenção (art. 1253/-b do CC).
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados
C e A intentaram a presente acção comum contra J, pedindo que se declare que uma fracção autónoma que identificam é propriedade deles por a terem adquirido originariamente por usucapião.
Para tanto, alegaram, em síntese, que residem aquela fracção desde 1982, data em que os construtores promitentes vendedores da fracção lhes entregaram as chaves da mesma, para que a acabassem e a utilizassem como coisa sua; que desde então custearam, como se fossem seus proprietários, os acabamentos finais da fracção e são eles que pagam, desde então as contribuições do condomínio e despesas de reparação da sua fracção e de partes comuns do edifício; não obstante a existência do contrato-promessa e de dizerem que têm a posse desde a entrega das chaves, dizem também que inverteram o título de posse, não dizendo, no entanto, como é que a inverteram.
Juntam, entre outos, um documento com a entrega das chaves (onde não consta a referência a qualquer finalidade; consta, sim, uma lista de 6 pontos com anomalias ou faltas), uma certidão predial (da CRP) onde o edifício está registado em nome dos promitentes vendedores antes da constituição da propriedade horizontal (e onde também estão registadas uma sentença de 2002 de uma acção proposta entre o mais pelos autores contra os promitentes vendedores em que estes foram condenados a pagar aos autores uma determinada verba garantida por direito de retenção sobre a fracção prometida vender e uma penhora da fracção numa execução pelas finanças em que é executado o proprietário promitente vendedor) e uma caderneta predial (das Finanças) de 2019 em que o titular da fracção é o promitente vendedor.
O réu contestou, impugnando, alegando, em síntese, que a fracção lhe foi adjudicada por despacho emitido pelo Serviço de Finanças do Barreiro, num procedimento de venda; o autor, na qualidade de promitente comprador, celebrou o contrato promessa que invoca, pelo preço prometido de 700.000$, mas não procedeu ao pagamento integral do preço aos promitentes vendedores, nem aos pagamentos periódicos referentes ao Imposto Municipal; e mais tarde licitou no processo de execução fiscal e procedimento de venda referidos acima, cujo bem penhorado é a fracção identificada, tendo apresentado uma proposta de 75.000€ e não impugnou ou deduziu oposição ao referido procedimento de venda em execução fiscal; o réu deduziu, ainda, pedido reconvencional, nos termos do qual peticionou que os autores sejam condenados a: (a) reconhecerem o direito de propriedade do réu sobre a fracção e a entregarem-na ao réu livre e devoluta de pessoas e bens e a pagaram-lhe 700€ mensais a título de indemnização, pelos prejuízos decorrentes da ilegítima ocupação e recusa na entrega, a partir da data, 31/08/2021, em que foram notificados pela Autoridade Tributária e Aduaneira para procederem à entrega ao réu, até à efectiva entrega a este; e (b) pagarem ao réu uma sanção pecuniária compulsória de 500€ por dia, a partir da data do trânsito em julgado da sentença proferida nos presentes autos, até ao seu efectivo cumprimento; (c) pagarem-lhe uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de 5.000€; (d) seja cancelado o registo na Conservatória do Registo Predial referente à ap. 38 de 2019/03/24 a favor dos autores [trata-se do registo em 24/03/2019 de uma acção de reconhecimento do direito de propriedade da fracção, proposta pelos autores contra os promitentes vendedores, não contra o réu desta acção].
Os autores replicaram, impugnando factos de uma putativa excepção, dizendo que pagaram os acabamentos do imóvel, acabamentos esses da responsabilidade dos promitentes vendedores, por acordo com estes e por compensação do pagamento do preço de aquisição da fracção em questão, em montante muito superior aos 700.000$ anunciados no contrato-promessa.
Foi realizada a audiência final e a 23/03/2024 foi proferida sentença julgando a acção improcedente, por não provada e, consequentemente, absolveu o réu do pedido deduzido pelos autores e julgou parcialmente procedente a reconvenção condenando o autor a: (a) reconhecer o direito de propriedade do réu sobre a fracção e a devolver a fracção ao réu livre e devoluto de pessoas e bens; (b) a pagar-lhe 700€/mensais a título de indemnização, pelo dano de privação de uso, a partir da data de 31/08/2021 data em que foi notificado pela Autoridade Tributária e Aduaneira para proceder à entrega do imóvel ao réu, até à efectiva entrega a este; e ainda a pagar-lhe uma indemnização, a título de danos não patrimoniais, no valor de 1.500€; foi ainda ordenada a remessa de uma certidão da decisão à CRP para efeitos de cancelamento do registo da presente acção.
(note-se, entretanto, que não consta dos autos que a acção tenha sido registada – o que não quer dizer que não tenha sido registada, tanto mais que foi requerida e entregue uma certidão para esse efeito)
Os autores interpuseram recurso desta sentença – para que seja substituída por outra que conclua pela declaração / reconhecimento do direito de propriedade adquirido por usucapião a favor deles, da fracção autónoma, e pela improcedência dos pedidos reconvencionais.
O réu não contra-alegou.
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Questões a decidir: se a sentença devia ter reconhecido os autores como proprietários, com as consequências inerentes para a reconvenção.
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Foram dados como provados os seguintes factos:
1\ O réu tem inscrito a seu favor, pela apresentação […] de 2019/07/09, a aquisição da fracção autónoma designada pela letra C, a que corresponde o 1.º andar direito, destinado a habitação, sito na Rua G […], descrito na Conservatória do Registo Predial do Barreiro a ficha […] da freguesia do Barreiro e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo […] da actual união de freguesias de Barreiro e Lavradio [trata-se de uma inscrição provisória por natureza: art. 92/2-b do CRP – aditamento deste TRL, ao abrigo dos artigos 663/2 e 607/4 do CPC].
2\ Tal fracção autónoma sempre foi propriedade de F e de L, até ao momento em que foi adjudicada ao réu, por despacho emitido pelo Serviço de Finanças do Barreiro em 24/08/2021, no procedimento de venda número […], através da compra por este efectuada, no âmbito do processo de execução fiscal número […].
3\ O autor, na qualidade de promitente comprador, celebrou em 30/09/1976, com os proprietários referidos em 2, estes na qualidade de promitentes vendedores, o contrato-promessa de compra e venda à fracção autónoma, pelo preço de 700.000$.
4\ O autor licitou no processo de execução fiscal e procedimento de venda referidos em 2, o bem penhorado referido em 1, tendo apresentado uma proposta de 75.000€, não tendo apresentado qualquer impugnação ou oposição do referido procedimento de venda em execução fiscal.
5\ Em 27/04/1982, foram entregues as chaves da fracção ao autor, sendo que este, desde essa data, passou a lá residir.
6\ A autora passou a residir com o autor na fracção por volta do ano 1984.
7\ Os autores pagaram aos promitentes vendedores 30% do valor referido em 3.
8\ Os autores custearam, a suas expensas, a colocação, na fracção, de uma cozinha (nova), pintaram as grades das janelas, taparam rachas e pintaram e substituíram interruptores de electricidade que se foram estragando.
9\ (…) O que sucedeu à vista dos vizinhos.
10\ O autor paga há mais de 30 anos as contribuições do condomínio e despesas de reparação da sua fracção e despesas de reparações de partes comuns do prédio.
11\ Os construtores enviaram ao autor algumas facturas de manutenção dos elevadores do prédio.
12\ Os autores não procederam aos pagamentos periódicos referentes ao Imposto Municipal sobre Imóvel reportados à fracção.
13\ A ATA, por ofício de 30/08/2021, notificou o autor para que procedesse à entrega da fracção ao réu, por ter sido adjudicada a este, na venda judicial número […].
14\ O autor foi notificado para o efeito, todavia, não procedeu à entrega da fracção.
15\ Por carta registada com aviso de recepção de 16/11/2021, o réu, através do seu mandatário, procedeu à interpelação do autor para que procedesse à entrega voluntária da fracção, o que até à presente data não sucedeu.
16\ O réu tem vivido angustiado, ansioso, desgostoso e frustrado por não poder usufruir da fracção desde a respectiva aquisição.
17\ A fracção autónoma tem um valor locativo mensal de, pelo menos 700€ mensais.
18\ O autor reside, actualmente, sozinho na fracção.
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A fundamentação da sentença recorrida é a seguinte em síntese, na parte que se refere às questões da posse e propriedade da fracção:
Os autores não lograram demonstrar que após a celebração do contrato-promessa, habitaram a fracção autónoma, na convicção de serem exclusivos proprietários e que eram vistos enquanto tal.
A posse válida para usucapião assenta no exercício, durante certo lapso de tempo, na prática de actos típicos do exercício de um direito real, designadamente, a propriedade, aparentando ser-se o titular de tal direito.
A exteriorização de tais comportamentos e atitudes – corpus – revela a intenção e vontade de quem quer beneficiar e aproveitar desse direito –animus.
O exercício do poder de facto como se fosse proprietário é diverso do exercício do poder de facto em termos de qualquer outro direito real ou de crédito ou tão só de mera condescendência ou tolerância de outrem, ou seja, a actuação como possuidor em nome próprio não se confunde com a actuação como possuidor em nome alheio ou mero detentor – artigos 1251 e 1253 do CC.
Constitui entendimento consolidado na doutrina e na jurisprudência, que a qualificação da natureza da posse do promitente comprador que, no âmbito de um contrato-promessa de compra e venda de um bem obtém a tradição deste, ‘depende fundamentalmente, de uma ponderação casuística que valore adequadamente os termos e o conteúdo do negócio, as circunstâncias que o rodearam e as vicissitudes que se seguiram à sua celebração’ – vide, entre outros, os acórdãos do STJ de 12/07/2011 [proc. 899/04.1TBSTB.E1.S1 – esta identificação consta da contestação] e 12/03/2015 [proc. 3566/06.8TBVFX.L1.S2 – esta identificação consta da contestação].
Se dessa ponderação resultar comprovada a intenção do promitente vendedor de transferir, desde logo, para o promitente comprador, a posse do bem correspondente ao direito de propriedade – o que pode acontecer, excepcionalmente, nos casos em que: o promitente comprador já pagou a totalidade ou a quase totalidade do preço; as partes, por razões específicas, não têm o propósito de realizar o contrato definitivo; a entrega da coisa é feita pelo promitente vendedor ao promitente comprador como se dele fosse já e este passa a agir como tal, ou ainda em que a tradição seja motivada ou acompanhada de circunstâncias incompatíveis com acto de mera tolerância, revelem ou consolidem expectativa da irreversibilidade da situação – impõe-se concluir que, nestas situações, a posição do promitente comprador com tradição do bem merece a qualificação originária de verdadeiro possuidor, o que determina, a seu favor, o início da contagem do prazo necessário para a verificação da usucapião, nos termos dos artigos 1251, 1263/-b e 1287, todos do CC – conforme se refere no acórdão do STJ de 11/03/2021 [proc. 3944/16.4T8BRG.G1.S1 – identificação completada por este TRL].
Outras situações há em que apesar da entrega inicial do bem ao promitente vendedor ter conferido a este apenas e tão só a mera detenção ou posse precária, enquadrável no art. 1253 do CC, esta posse em nome de outrem converte-se em posse em nome próprio quando há uma situação de inversão do título de posse, prevista no art. 1265 do CC, caso em que ocorre, supervenientemente, a aquisição de posse por parte do promitente comprador, nos termos do art. 1263/-d do CC, facto que acarreta a favor deste o início da contagem do prazo para a aquisição do direito de propriedade, por usucapião.
No caso em apreço, os autores não pagaram a totalidade do preço em causa e não se vislumbra que a matéria de facto provada designadamente, o facto 11, possa consubstanciar a inversão do título da posse, porquanto, do envio de facturas referentes aos elevadores, pelos promitentes vendedores para os autores, não emerge, necessariamente, que aqueles os reconheçam como proprietários e que os autores tenham imposto tal posição aos promitente vendedores.
Deste modo, há que concluir que o poder de facto que os autores vêm exercendo não ultrapassa os limites da mera detenção ou posse precária decorrente da tolerância do possuidor e da condescendência deste (art. 1253/-b do CC).
Deste modo, não logrando demonstrar os autores os requisitos da aquisição originária, soçobra o por si peticionado, devendo, assim, improceder.
Cumpre, agora, analisar a pretensão do réu.
No caso em apreço, o réu goza da presunção de titularidade do direito de que se arroga, nos termos constantes do art. 7 do Código do Registo Predial, pois que, encontra-se registada a favor do réu a propriedade da fracção (facto 1).
E como o autor não demonstrou ter título válido para a sua detenção, o pedido reconvencional deverá ser considerado procedente e, consequentemente, ser determinada a restituição da fracção ao réu.
Os autores dizem o seguinte contra isto:
b\ Quanto à motivação para a decisão de facto, provada e não provada, em resumo entende a decisão recorrida que o autor inviabilizou a verificação do direito de que se arroga, ao ter apresentado uma proposta de compra da fracção no âmbito do processo executivo fiscal identificado na decisão de facto.
c\ O problema consiste em saber se, sim ou não, os autores adquiriram por usucapião o direito de propriedade sobre a fracção autónoma ajuizada. Nos termos do artigo 1287 do CC, a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação.
d\ Olhando para os factos provados, designadamente os 2, 3 e 5 a 11, mostra-se suficientemente demonstrado que os autores adquiriram por usucapião o imóvel identificado no processo: isto porque exerceram sobre ele posse pública e pacífica, nos termos acima definidos e durante mais de 20 anos ininterruptos até à propositura desta acção, já que o promitente vendedor entregou-lhes a fracção para que a utilizassem como coisa sua, o que efectivamente veio a suceder desde 1982.
e\ Simplesmente, há muito que vem sendo aceite pela doutrina e pela jurisprudência que em determinadas hipóteses a posse exercida pelo promitente comprador que detém a coisa é uma posse boa para usucapião e susceptível, portanto, de levar à aquisição do direito de propriedade, justamente por se mostrar em concreto revestida do mencionado elemento psicológico, isto é, da intenção de agir como dono da coisa. Os autores praticam desde 27/04/1982, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja, os actos que demonstram, no seu conjunto, que se consideram donos da fracção, maxime tal a qualificação jurídica que merece o facto de nessa data as chaves da fracção terem sido entregues pelos promitentes vendedores ao autor a fim de a utilizar como coisa sua e de a partir de 27/04/1982, assim como de terem pago, os autores e máxime o autor, as despesas de reparação e manutenção do imóvel, as quotas do condomínio, ter exercido o cargo de administrador de condomínio por diversos anos, porque proprietário da fracção em questão, tudo aliado à circunstância, de somente “razões burocráticas” – ausência da licença de habitação – terem impedido a realização do contrato prometido.
f\ A usucapião inutiliza por si as situações registais existentes, não sendo prejudicada pelas vicissitudes de que neste aspecto o imóvel tenha sido objecto. A presunção decorrente do registo não prevalece sobre a decorrente de posse anterior (art. 1268 do CC); e se esta, mesmo que não registada, se revestir das características que acima se puseram em relevo, demonstrando a parte interessada que exerce sobre a coisa imóvel os poderes de facto integradores do corpus da posse com o animus correspondente ao direito de propriedade, sem violência e à vista de qualquer possível interessado, segue-se que ocorre a aquisição do direito de propriedade no prazo máximo de 20 anos.
O facto de o autor ter apresentado uma proposta de compra do imóvel identificado não lhe retira a conformação do direito que já havia adquirido, precisamente, porque, também, adquirido em momento anterior à apresentação dessa mesma proposta, não tendo cabimento no âmbito do processo fiscal o reconhecimento de qualquer direito de propriedade, por impropriedade do meio.
g\ Mostram-se violadas, pela decisão recorrida, as normas dos artigos 1251, 1265 e 1287 do CC. O sentido com que foram interpretadas de acordo com o entendimento dos autores, foi o de que estes não inverteram o título da posse sendo que a interpretação a conferir a estas normas e por referência ao caso sub iudice é aquela que já consta dos inúmeros acórdãos mencionados ou seja que a posse exercida pelo promitente comprador que detém a coisa é uma posse boa para usucapião e susceptível, portanto, de levar à aquisição do direito de propriedade, justamente por se mostrar em concreto revestida do mencionado elemento psicológico, isto é, da intenção de agir como dono da coisa – acórdãos do STJ de 09/09/2008, proc. 08A1988, de 12/03/2009, proc. 09A0265, e de 05/06/2012, proc. 4944/04.2TVPRT.P1.S1.
Apreciação:
Os autores começam as conclusões do recurso a dizer que a sentença tem como fundamento que “o autor inviabilizou a verificação do direito de que se arroga, ao ter apresentado uma proposta de compra da fracção no âmbito do processo executivo fiscal.” Mas na própria conclusão esclarecem que tal fundamento aparece na “motivação para a decisão de facto.” Ora, como resulta da transcrição parcial da fundamentação de direito da sentença recorrida, não foi aquele o fundamento que levou à improcedência da acção.
O fundamento da decisão recorrida é antes o de que os autores não chegaram sequer a sequer possuidores da fracção como proprietários, porque a posse que foi transmitida ao autor em 1982 não era uma posse de proprietário, mas sim uma detenção ou posse precária (art. 1253/-b do CC).
E a posição dos autores contra este fundamento não tem base legal, nem doutrinária ou jurisprudencial, antes pelo contrário, já que os acórdãos por eles invocados dizem, no essencial, exactamente o mesmo que os acórdãos invocados pela sentença recorrida:
Assim, o ac. do STJ de 09/09/2008, proc. 08A1988:
I\ A qualificação da natureza da posse do beneficiário da traditio, no contrato promessa de compra e venda, depende essencialmente de uma apreciação casuística dos termos e do conteúdo do respectivo negócio.
II\ O contrato promessa de compra e venda de um prédio, só por si, não é susceptível de transferir a posse ao promitente comprador.
III\ Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração da escritura de compra e venda, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando numa situação de mero detentor ou possuidor precário.
IV\ Os poderes que o promitente comprador exerce de facto sobre a coisa, sabendo que ela ainda não foi comprada, nem paga a totalidade do preço, não são os correspondentes ao direito do proprietário adquirente, mas os correspondentes ao direito de crédito do promitente adquirente perante o promitente alienante.
V\ A posse em nome próprio do promitente comprador pressupõe a prova da inversão do título da posse em que aquele se encontrava, que terá de ser efectuada por oposição aos promitentes vendedores e levada ao conhecimento destes, em virtude da posse em nome próprio não ter sido originariamente conferida aos autores.
E também os outros dois acórdãos do STJ, como se vê dos primeiros pontos dos respectivos sumários, embora estes para situações inversas em que, realmente, nesses casos, ao promitente-comprador foi reconhecida uma verdadeira posse em nome próprio, por força das circunstâncias concretas desses casos que não se encontram no caso dos autos. Daí que os autores tenham sentido a necessidade de “aditar” factos – que não estão provados – nas conclusões do recurso d\ e e\ (embora não tenham impugnado a decisão da matéria de facto – os factos “aditados” foram sublinhados por este acórdão para os identificar e para não os estar a repetir agora), de modo a que o caso se parecesse com os dos acórdãos invocados.
Assim: o acórdão de 12/03/2009, proc. 09A0265:
I\ Em regra, o promitente-comprador de fracção predial, que obteve a traditio apenas frui um direito de gozo, que exerce em nome do promitente-vendedor e por tolerância deste – sendo, nesta perspectiva, um detentor precário já que não age com animus possidendi, mas apenas com corpus possessório (relação material).
II\ Importa, casuisticamente, averiguar se a posse do promitente-comprador, que obteve a traditio, deve ser qualificada como posse precária – o que acontece em regra – ou, se deve ser qualificada como posse em nome próprio.
[…]
E o ac. do STJ de 05/06/2012, proc. 4944/04.2TVPRT.P1.S1:
I\ O contrato-promessa (bilateral ou unilateral), em princípio, não tem eficácia translativa da propriedade, visto tratar-se de um contrato de natureza meramente obrigacional cujo objecto não é o contrato prometido, mas a obrigação de o celebrar (obrigação de facere), daí que, em regra, não seja título de posse.
II\ Mas a tradição da coisa, em função de um contrato-promessa, pode conferir a posse real e efectiva – posse em nome próprio – e não a mera detenção, como normalmente acontece, situação que se verifica, por exemplo, quando foi paga a totalidade do preço convencionado, ao mesmo tempo que o promitente-vendedor entrega a coisa ao promitente-comprador (ou ao beneficiário da promessa unilateral de venda) para ele agir sobre ela, como se fosse sua.
Ora, no ac. do STJ de 2009, ao contrário do que se passou no caso dos autos, provou-se que, a autora pagou a quase totalidade do preço (faltava apenas pagar 249,40€ do preço global estipulado em 22/97/1977, que eram de perto de 9000€; realizou obras, em 1978 e 1979, de quase o mesmo valor (8111€), que foram autorizadas pelo promitente-vendedor que, para tanto, lhe entregou as plantas, alçados, planos eléctricos e de conduta de água da fracção; que as obras de reconstrução incluíram deitar paredes abaixo e substituição de pavimentos, azulejos e pintura de paredes; que a escritura que incumbia ao promitente vendedor marcar fora aprazada para 30/01/1978 mas não foi realizada, apesar de solicitada pela autora; que a partir da entrega a autora sempre pensou que ia efectuar a escritura pública de compra e venda, e ainda que, o promitente-vendedor nunca lhe exigiu a entrega do andar e que esta, no dia 03/08/1982, fez a declaração na competente repartição de finanças para efeitos de isenção de sisa.
E no ac. do STJ de 2012, provou-se o preço foi pago na íntegra, que a parcela prometida comprar se destinava a dar melhor caminho para as traseiras das propriedades do promitente comprador e logo lhe tendo sido entregue pela promitente vendedora/proprietária, constando do documento em causa que “o promitente comprador fica desde já na posse do referido terreno, podendo nele fazer as benfeitorias que assim o entenda” e este passou desde logo a transitar, a pé e em veículos, pela parcela referida, tendo-a transformado em caminho e utilizando-a como tal, no acesso aos seus prédios, assim procedendo à vista de todas as pessoas, sem oposição de ninguém, convencido de que era dono dela. Isto é, os autores transformaram a parcela de terreno em caminho de acesso às traseiras das suas propriedades, pelo qual transitam a pé e em veículos, praticaram reiteradamente e de forma duradoura, sobre a parcela, um dos poderes essenciais que integra o direito de propriedade, isto é, o poder de transformar, adaptando-a aos seus particulares interesses, a coisa possuída. Os actos de transformação da parcela, cujo preço pagaram na totalidade à promitente-vendedora, em caminho de acesso às suas propriedades, e a sua posterior utilização para essa finalidade, consubstanciam, claramente, actos materiais de posse em nome próprio. Resulta, ainda, da promessa documentada, a própria investidura na posse, uma vez que, como dela consta “o promitente comprador fica desde já na posse do referido terreno, podendo nele fazer as benfeitorias que assim o entenda”, o que, aliado ao facto de a promitente-vendedora ter já recebido do autor o preço da venda, revela com toda a evidência, a sua intenção de o investir na posse real e efectiva da parcela em causa.
Na petição inicial, os autores invocavam também o acórdão do STJ de 11/09/2012, proc. 4436/03.7TBALM.L1.S1:
[…]
IV\ Iniciando-se a posse a partir da tradição material operada na sequência de um contrato-promessa, dum modo geral o promitente-comprador deve ser havido como um mero detentor ou possuidor precário, nos termos do art. 1253-c, do CC, uma vez que possui em nome do promitente-vendedor até à realização do contrato definitivo.
V\ Por si só, o contrato-promessa não é susceptível de transmitir para o promitente-comprador a posse, já que o que normalmente sucede é o contrato-promessa transmitir apenas o elemento material (corpus), mas não o elemento psicológico (animus) da posse verdadeira e própria.
Como se pode ver, também este acórdão diz o mesmo que os anteriores, embora, de seguida, face às circunstâncias concretas do caso considere que o autor tinha realmente uma posse como proprietário boa para aquisição para usucapião:
VI\ Em determinadas hipóteses, contudo, a posse exercida pelo promitente-comprador que detém a coisa é uma posse boa para usucapião e susceptível, portanto, de levar à aquisição do direito de propriedade, por se mostrar em concreto revestida do mencionado elemento psicológico, isto é, da intenção de agir como dono da coisa.
VII\ Considerando que, na sequência do contrato-promessa, o promitente-vendedor entregou aos réus a fracção autónoma que prometeu vender-lhes, para que a utilizassem como coisa sua, e que os réus praticam desde Outubro de 1977, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja, actos demonstrativos, no seu conjunto, de que se consideram (e são considerados) donos da fracção, tendo pago as despesas de reparação e manutenção do imóvel, as quotas do condomínio e arrendado a fracção a sucessivas pessoas, somente a ausência da licença de habitação tendo impedido a realização do contrato prometido, verifica-se que os réus adquiriram por usucapião o imóvel em causa.
A diferença é, pois, substancial: no caso do acórdão, a fracção autónoma foi entregue para que os réus a utilizassem como coisa sua, o que eles fizeram, somente a ausência da licença de habitação tendo impedido a realização do contrato prometido. No caso dos autos, não se sabe para que é que a fracção foi entregue nem porque é que o contrato-definitivo não foi celebrado. Para além de que os autores só pagaram 30% do preço da venda prometida.
Os autores citam ainda, na PI, um outro acórdão, agora do TRC [de 25/02/2014] processo 1350/11.6TBGRD.C1, aparentemente com o objectivo de se aproveitaram da posição que está na base do decidido no Acórdão de uniformização de jurisprudência de 14/05/1996, [proc. 085204] publicado no DR II série, de 24/06/96, isto é, de que o detentor da coisa, ou seja o que tem o poder de facto, ou o corpus, está dispensado de provar que possui com intenção de agir como titular do direito real correspondente.
Os autores esquecem que, seja como for, só é boa, para usucapião, uma posse e que os factos correspondentes a esta se têm de provar. Ora, no caso, o que o tribunal recorrido afirma, com o suporte da jurisprudência invocada, é que os autores não chegaram a entrar na posse da fracção.
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Em suma: os autores entraram na detenção da fracção devido a uma entrega da fracção, não constando dos factos provados por quem é que a entrega foi feita. Esta falta de concretização de quem é que fez a entrega não permite dizer em que tipo de posse o autor foi colocado (pois que nem sequer se sabe se o que lhe entregou o imóvel era seu possuidor), o que seria suficiente para impossibilitar falar numa posse de proprietário boa para usucapião.
Aceitando-se, para efeitos de discussão, que se tratou de uma entrega da coisa pelo promitente vendedor, que era o proprietário registado da fracção, e que este a entregou ao autor na sequência do contrato-promessa celebrado (outra coisa qualquer teria de ter sido alegada e provada pelo autor, como facto constitutivo do seu direito de adquirir a propriedade devido a uma posse boa para usucapião: art. 342/1 do CC), e não se sabendo mais nada sobre essa entrega, então, no máximo, o autor teria adquirido a mera detenção da fracção ou posse precária, por não haver factos suficientes para se dizer que houve uma tradição da posse. Os factos provados permitem, no máximo, falar numa entrega de favor, numa disponibilização material da coisa por mera tolerância, logo numa detenção ou posse precária (art. 1253/-b do CC).
Nada se provou, depois disso, que permitisse concluir pela conversão da detenção, numa posse, pelo autor, em nome próprio, como proprietário (art. 1265 do CC): Para haver uma inversão do título da posse, o detentor tem de alegar factos que se traduzam numa oposição ao possuidor ou actos acto de terceiro capaz de transferir a posse.
Ora, os autores não alegavam quaisquer actos seus de oposição ao possuidor, tanto mais que alegavam que a posse tinha sido transmitida por este com a entrega das chaves.
Por fim: o facto de os autores custearam, a suas expensas, a colocação, na fracção, de uma cozinha (nova), terem pintado as grades das janelas, tapado rachas e pintado e substituído interruptores de electricidade que se foram estragando (facto 8) não passam de actos que podem também ser praticados por qualquer detentor de um imóvel interessado em boas condições de residência na mesma; e o facto de o autor pagar há mais de 30 anos as contribuições do condomínio e despesas de reparação da sua fracção e despesas de reparações de partes comuns do prédio e ter eventualmente pago algumas facturas de manutenção dos elevados do prédio (factos 10 e 11), não serve para comprovar a transmissão da posse, nem são actos de oposição ao promitente vendedor de modo a possibilitar a inversão do título da posse.
Em suma, os factos provados permitem apenas dizer que o autor foi colocado, por uma entrega de favor, na detenção da fracção, não na posse da mesma. No entendimento da posição dominante da jurisprudência (nesse sentido todos os acórdãos referidos acima), houve tradição da coisa, mas a posse não se transmitiu porque não se verifica o animus. Noutro entendimento, não se provaram factos que se traduzissem numa tradição (art. 1263/-b do CC – sendo que o ónus da prova do facto da tradição cabia aos autores: José Alberto Vieira, A posse, 2018, Almedina, página 648), apenas factos que no máximo permitem supor uma entrega de favor (art. 1253/-b do CC). Veja-se José Alberto Vieira, obra citada, páginas 630-649. Em qualquer destes entendimentos não se prova a posse.
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Registe-se, entretanto, o seguinte: os autores não impugnaram a decisão da matéria de facto, pelo que a matéria de facto de que este TRL se pode servir é apenas aquela que foi dada como provada (sem prejuízo do aditamento feito este TRL ao facto 1 de o registo a favor do réu ser um registo provisório, já que se trata de um facto provado por documento autêntico e constante de documento invocado pelo tribunal recorrido para prova do facto 1); por outro lado, note-se que a parte dispositiva da sentença contem decisões distintas e que todas as conclusões do recurso dos autores só põem em causa a questão da aquisição por usucapião da fracção pelos autores, não havendo uma única conclusão que sequer tenha um começo de tratamento da questão da propriedade da fracção pelo réu decorrente da presunção do registo predial (excepto na parte em que ele estaria em conflito com a posse – parte da conclusão f\); pelo que a improcedência dos pedidos reconvencionais apenas poderia ser uma consequência da procedência do recurso contra a improcedência da acção (artigos 635, n.ºs 2 e 4, do CPC). Assim, este tribunal não pode considerar, oficiosamente, o efeito do facto de o registo da aquisição da propriedade pelo réu ser um registo provisório – provisório devido ao registo, provisório, da acção dos autores contra os promitentes vendedores, de que, nestes autos, não se sabe o resultado).
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas, na vertente de custas de parte, pelos autores.
Lisboa, 12/09/2024
Pedro Martins
1.º Adjunto
2.º Adjunto