Processo do Juízo de Execução Lisboa
Sumário: Um incidente de oposição à penhora que apenas levanta questões relativamente à extensão com que a penhora foi feita (artigos 738/1-3-8 do CPC), por violar as normas da penhorabilidade parcial, mas em que, por erro, a executada começa por pedir a isenção da penhora (art. 738/6 do CPC), deve ser tratado como oposição à penhora e não como pedido de isenção de penhora. E, se fosse realmente um requerimento de isenção de penhora o juiz devia convolar a oposição em requerimento de isenção e remeter o requerimento para a execução a fim de aí o apreciar como tal (art. 193/3 do CPC).
A 23/04/2024, D, divorciada, executada por P, apresentou, ao abrigo, do disposto nos artigos 784/1-a e 785, do Código de Processo Civil, oposição à penhora.
Alega para tal, entre o muito mais, que lhe foram penhorados 2.749,55€ dos honorários que lhe eram devidos pelo IIGFEJ, em Fevereiro de 2024, depois de uma notificação do Agente de Execução ao IGEFJ da penhora da totalidade do crédito que a executada tinha perante aquela entidade, no valor de 4.453,95€; a oponente não aufere quaisquer outros rendimentos que não aqueles que advêm do patrocínio oficioso prestado no âmbito do acesso ao Direito, sendo o IGFEJ a sua única entidade pagadora (cf. docs.1 e 2 que se juntam); não possui quaisquer bens, sejam móveis ou imóveis; dispõe o art. 738 do CPC que: “1 – São impenhoráveis 2/3 da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou qualquer outra regalia social, seguro indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado. […] 3 – A impenhorabilidade prescrita no nº1 tem como limite máximo o montante equivalente a 3 salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a 1 salário mínimo nacional. […] 8 – Aos rendimentos auferidos no âmbito das actividades especificamente previstas na tabela a que se refere o artigo 151 do Código do IRS, aplica-se o disposto nos n.ºs 1 a 4 deste artigo […].” O art. 738/1 do CPC não é aplicável só a prestações periódicas: acórdãos do TRE de 28/04/2016, proc. 101/14.8TTEVR.E1, e TRP de 20/02/2017 no proc. 1034/10.2TBLSD-E.P1; a oponente é profissional liberal, no âmbito das actividades especificamente previstas na tabela a que se refere o art. 151 do CIRS; pelo que aos pagamentos feitos à executada aplica-se o regime da impenhorabilidade consagrado naqueles n.ºs 1 e n.º 3; neste sentido, o ac. do TRP de 05/10/2018, proc. 380/14.0TBFLG-A.P1; cada pagamento efectuado pelo IGFEJ não corresponde aos serviços prestados no mês anterior, sendo que raras não são as vezes em que o pagamento realizado num mês é referente a vários meses (e até anos) ou bem como de um acto ou intervenção ocorrido há vários meses; durante 2021, a oponente auferiu apenas um total de 844,14€ – cf. doc.3 que se junta.; e durante 2022, auferiu apenas um total de 997,62€ – cf. doc.4 que se junta; foi notificado o IGFEJ para a penhora de todo o crédito (vencido, vincendo, presente e futuro) que a executada detém no âmbito do patrocínio judiciário até ao montante de 40.000€ – cf. notificação junta aos autos pelo AE a 08/01/2014; à data a executada tinha a receber 4.453,95, correspondente a serviços prestados durante o período de 07/10/2021 a 30/01/2024, num total de 27 meses; a 16/02/2024 foi penhorada a totalidade do montante que deveria ter sido pago à executada no valor de 2.749,55€ – cf. doc.5 que se junta; a 07/03/2024 foi penhorada a totalidade do montante que deveria ter sido pago à executada no valor de 1.326,54€ – cf. doc.6 que ora se junta; a 16/04/2024 penhorada a totalidade do montante que deveria ter sido pago à executada no valor de 377,86€ – cf. doc.7 que se junta; o salário mínimo nacional (SMN) é desde 01/01/2024 de 820€; quaisquer que sejam os cálculos a serem feitos, o resultado será sempre o mesmo: o excesso e a ilegalidade da penhora: caso consideremos que os 4.453,95€ correspondem a serviços prestados durante os tais 27 meses, tal representa um valor mensal de cerca de 164,90€; caso queiramos utilizar 12 meses, daqui resultaria num valor de 371,16€; a penhora incidiu sobre a totalidade dos únicos rendimentos que a executada aufere; deve assim, o acto de penhora, à qual a executada se opõe, ser anulado, por excessivo e ilegal, tendo violado o quanto disposto no n.ºs 1, 3 e 8 do art. 738 CPC; e os valores apreendidos deverá ser devolvido à executada; bem como devem, igualmente, todos e quaisquer futuros créditos da oponente resultantes da sua actividade profissional, integrar-se nesses limites.
Conclui no sentido de que a oposição à penhora deve ser julgada procedente, por provada, conforme os n.ºs 1, 3, 6 e 8 do art. 738 e al. (a) do art. 784 do CPC e, em consequência,
a\ Ser concedida a isenção de penhora à executada, ao abrigo do disposto no n.º 6 do art. 738 do CPC;
b\ Ser reembolsada a totalidade dos valores indevidamente penhorados, por desrespeitarem os limites estabelecidos no art. 738, n.ºs 1 e 3 do CPC, nos termos do n.º 8 do mesmo artigo, bem como dos que vierem a exceder, por cada mês de penhora efectuada, o legalmente admissível, ao abrigo dos mesmos artigos;
c) Em qualquer das hipóteses, ser ordenada a aplicação dos mesmos limites de impenhorabilidade previstos no art. 738, n.ºs 1 e 3 do CPC, nos termos do n.º 8 do mesmo artigo, a todos e quaisquer créditos vencidos, vincendos e futuros resultantes da actividade profissional da oponente e que lhe servem de sustento.
Junta 7 documentos.
O requerimento foi autuado num apenso próprio de oposição à penhora.
A 18/06/2024 foi proferido despacho indeferindo liminarmente o incidente de oposição à penhora, por falta de qualquer dos fundamentos a que aludem as diversas alíneas do nº 1 do art. 784/1 do CPC, com custas pela executada, com a seguinte fundamentação em síntese:
O artigo 738/6 do CPC permite ao juiz excepcionalmente e a requerimento do executado, reduzir a parte penhorável dos rendimentos e mesmo isentá-los de penhora.
Não diz a lei, expressamente, por que forma se processa este incidente da execução, pelo que, haverá que ter em consideração o disposto nos artigos 292 a 294 do CPC, uma vez que, nos termos daquele primeiro artigo, em quaisquer incidentes inseridos na tramitação de uma causa, deve observar-se, na falta de regulamentação especial, o disposto nos artigos 292 a 295. Assim se decidiu nos acórdãos do TRP de 17/09/2007 [0753848] e do TRC de 30/09/2008 [210/04.1TBVGS.C1], onde se considerou que o meio processual adequado para o executado poder, por sua iniciativa, vir a beneficiar da redução ou isenção prevista no art. 824/4 é a apresentação de requerimento avulso nos próprios autos, ou seja, um incidente que deve ser processado nos próprios autos de execução, com a tramitação a que aludem os artigos 292 a 294 [a identificação dos processos dos acórdãos citados foi acrescentada por este TRL].
Na verdade, para além do mais e decisivamente, não se está perante uma situação de inadmissibilidade da extensão com que a penhora foi realizada, o que traduziria o fundamento da oposição à penhora previsto na 2ª parte, da al. (a), do n.º 1, do art. 784 do CPC. Do que se trata é, tão só, de facultar ao juiz uma ponderação de interesses entre o credor e o devedor, por forma a adequar o montante dos valores penhorados pelo agente de execução às circunstâncias particulares e específicas do caso, permitindo-lhe, a título excepcional, afastar os limites genericamente estabelecidos no n.º1 e na 1.ª parte do n.º 3, do art. 738. Ou seja, a penhora, tal como foi realizada, era admissível, designadamente, em termos de extensão. Logo, não há fundamento para se deduzir oposição à penhora, nos termos da 2.ª parte, da al. (a), do n.º 1 do art. 784.
A executada recorre deste indeferimento liminar terminando as suas alegações com conclusões que repetem o que já está transcrito acima com o acrescento (i) de que foi “por mero exercício de economia processual, [que] deduziu pedido de isenção de penhora no mesmo incidente”; (ii) a arguição da nulidade do despacho por falta de fundamentação e por não se ter pronunciado sobre a questões colocadas; e (iii) a afirmação da existência de erro no despacho por ter considerado que a violação dos limites de impenhorabilidade verificados na penhora sindicada não é fundamento para o incidente de oposição à penhora.
A executada notificou o recurso à exequente que não apresentou contra-alegações.
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A questão a decidir: se o requerimento não devia ter sido indeferido.
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Os factos que importam à decisão são os que constam acima.
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Apreciação:
Só por lapso pode ter sido proferido o despacho recorrido, lapso que decorrerá de ter sido lido apenas o que consta do pedido formulado sob a\, com referência ao n.º 6 do art. 738, sendo certo, também, que tal referência é um outro erro, agora da executada, e não “um exercício de economia processual” como ela diz no recurso, porque o requerimento de oposição à penhora não tinha nada a ver com um pedido de isenção da penhora.
São também erros da executada, (i) o que consta da arguição da nulidade do despacho, porque, como se pode ver, ele está fundamentado, e (ii) a afirmação final de que o despacho considerou que a violação dos limites de impenhorabilidade não é fundamento para o incidente de oposição à penhora.
O que o despacho recorrido afirmou, na sequência do erro decorrente da falta de leitura de todo o requerimento de oposição (do seu corpo e também dos dois pedidos finais), foi de que o que se tratava, na norma invocada pela executada, era de facultar um poder ao juiz de reduzir ou isentar da penhora e não de uma questão ligada à impenhorabilidade.
É certo que, depois, o despacho recorrido afirma, que “ou seja, a penhora, tal como foi realizada, era admissível, designadamente, em termos de extensão. Logo, não há fundamento para se deduzir oposição à penhora, nos termos da 2.ª parte, da al. (a), do n.º 1 do art. 784.”
Mas tratou-se só de o tribunal ter continuado (daí a expressão inicial: ‘ou seja’) a considerar que uma questão relativa à isenção da penhora não era uma questão relativa à extensão da penhora, seguindo os termos do ac. do TRP que o tribunal tinha acabado de invocar.
Nos dois casos tratados nos dois acórdãos referidos pelo despacho recorrido, estava em causa um requerimento avulso do executado para redução ou isenção da penhora e os tribunais recorridos consideraram que deviam ter sido deduzidos como incidentes de oposição à penhora. Os dois acórdãos – do TRP de 17/09/2007 [0753848] e do TRC de 30/09/2008 [210/04.1TBVGS.C1] – revogaram tais despachos e consideraram que o meio processual adequado para o executado poder, por sua iniciativa, vir a beneficiar da redução ou isenção prevista no art. 824/4 [agora 738/6 do CPC] era, tal como o tinham feito, a apresentação de requerimento avulso nos próprios autos. O acórdão do TRP acrescentou: “tem de ser rejeitada a posição sufragada no despacho de sustentação, porquanto a realidade processual que prende a nossa atenção não pode, de modo algum, ser subsumida à previsão constante do art. 863-A/1-a, 2ª parte [actual art. 784/1-a]: para além de haver diferente previsão autónoma e abarcante de tal realidade – o mencionado art. 824/4 [actual art. 738/6 com diferenças irrelevantes para o caso] –, não se trata de penhora que possa ser considerada legalmente inadmissível quanto à respectiva extensão (como sucederia, v. g., se ocorresse desrespeito dos limites estatuídos no citado art. 824/1-a-b [actual art. 738/1 e 2]), antes e tão só de penhora que, em homenagem aos critérios e factores previstos em tal artigo e em que avulta a salvaguarda do mínimo da dignidade humana do executado e do respectivo agregado familiar, possa ser, judicialmente, reduzida, ou mesmo suprimida por período não superior a um ano.” Note-se, embora a partir de situações inversas, a coincidência entre as partes sublinhadas do despacho recorrido e do ac. do TRP.
A entender-se de outro modo tal parte do despacho sofreria, então, realmente, de falta de fundamentação, pois que, antes disso não tinha dito nada que justificasse, minimamente que fosse, que o alegado pela executada não tinha a ver com extensão da penhora por impenhorabilidade parcial, para além de que, então, seria manifestamente errado, por ser evidente que tinha.
Entretanto, note-se que, se realmente se estivesse perante um requerimento de isenção de penhora a dever ser apresentado na própria execução, o tribunal devia ter, convolando-o, remetido o mesmo para a execução (art. 193/3 do CPC) e apreciá-lo aí (assim, por exemplo, Lebre de Freitas e outros, no CPC anotado, vol. 3, 3.ª edição, Almedina, 2022, pág. 675). Isto se ele estivesse devidamente fundamentado. Mas, como não era um requerimento de isenção, a executada não o fundamentou com a alegação dos factos que seriam necessários para apreciação dessa questão – o que impediria aquela convolação, ou a sua apreciação como tal ao mesmo tempo que a oposição à penhora, pelas putativas razões de economia processual invocadas pela executada no recurso, o que é uma outra forma de demonstrar que, ao contrário do que ela agora diz, não se tratou disso, mas de um óbvio erro de invocação da norma, por excesso.
Em suma: como a matéria do incidente deduzido pela executada é, realmente, de oposição à penhora por razões relativas à extensão dela por violação dos limites da penhorabilidade parcial, o incidente deve ser admitido se estiver em tempo.
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Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revogando-se o despacho recorrido e determinando-se que o tribunal recorrido admita o incidente e lhe dê prosseguimento se ele estiver em tempo.
Custas de parte da opoente pela exequente (que perde o recurso).
Lisboa, 24/12/2024
Pedro Martins