Processo do Juízo de Competência Genérica de Santa Cruz das Flores
Sumário:
I- A lei não atribui, à fixação da data a partir da qual se tornaram convenientes as medidas decretadas numa sentença de maior acompanhado, o efeito de fazer retroagir àquela data a restrição de testar que também foi decretada, pelo que um testamento outorgado antes da sentença não é nulo por falta de capacidade de testar (art. 2189/-b do CC).
II- A fixação dessa data, desde que se reporte efectivamente a uma incapacidade de o maior entender a declaração ou a uma privação do livre exercício da sua vontade, gera uma presunção natural ou judicial dessa incapacidade ou privação, o que pode levar à anulação do testamento celebrado depois dela (art. 2199 do CC).
III- No caso, a data fixada não se reportava àquelas incapacidade e privação, mas a incapacidades físicas, pelo que nem essa presunção se verifica.
IV- Não existindo caso julgado, não se pode verificar um dos seus efeitos, que é autoridade do caso julgado.
V- “Em caso de enfermidade típica, permanente e habitual, a incapacidade presume-se.” “Nesse, caso a prova de que o testamento foi elaborado durante um intervalo lúcido cabe aos interessados na sua validade.” Mas no caso aquela enfermidade não se provou.
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados
A uma acção comum contra as suas irmãs R e M, pedindo que fosse:
a) ser declarada a nulidade do testamento de T [mãe do autor e das rés – todos os parenteses rectos neste acórdão foram colocados por este TRL], outorgado no dia 17/03/2020 e, por via disso, a ré R condenada na restituição à herança aberta por óbito de T de todos os bens ou o correspondente valor, no caso de alienação gratuita ou onerosa, acrescido de juros, a contar da citação, que compõem a quota disponível;
b) em alternativa, ser declarada a anulabilidade do mesmo testamento, por incapacidade acidental da testadora, com a mesma condenação da ré R;
c) de acordo com o artigo 131/1-d do Código do Notariado, o averbamento da decisão judicial de declaração de nulidade ou de anulabilidade, consoante o decidido, do testamento, sem prejuízo do carácter oficioso da mesma, nos termos do artigo 133/5 do CN.
Alegou, em suma, que juntamente com as rés são irmãos germanos, sendo filhos de MS e de T, a qual foi professora do ensino básico, durante aproximadamente 30 anos, vindo a reformar-se por invalidez nos anos 80, devido ao stress da profissão, mais denotando naquela altura uma grande fragilidade psicológica, manifestada por medos e fobias. Em 1992 foi diagnosticado a T uma depressão, tendo sido medicada com medicamento utilizado no tratamento da depressão, sendo que a fragilidade psicológica de T foi agravada pelo falecimento do seu marido, pai do autor e das rés, que ocorreu em 2002 e, a partir dessa altura, passava grande parte das horas do dia sozinha em casa, começando a manifestar um progressivo desinteresse e apatia para o exercício das tarefas que desempenhava até ali. Em 10/11/2016, o médico neurologista G elaborou relatório médico neurológico, segundo o qual, e desde pelo menos aquela data, T padecia, entre o mais, de um quadro de demência com défices sensitivo motores associado a défices cognitivos severos pelo que atribuiu uma incapacidade não inferior a 86%. Desde pelo menos 28/08/2017, T era portadora de deficiência que, naquela data, lhe conferia uma incapacidade permanente global de 64%, sendo certo que a mesma se referia, nomeadamente, ao Capítulo X, o qual é relativo a Psiquiatria. Em 05/08/2019, em resultado de uma queda em casa, na qual fracturou o fémur, T foi conduzida pelas rés à Unidade de Saúde, tendo sido recomendado que a mesma fosse evacuada para […], para ali ser submetida a uma intervenção cirúrgica, sendo que, já naquela data, as rés, reconhecendo a incapacidade de T para decidir por si própria sobre questões, nomeadamente, de saúde, agiram em representação da mesma, recusando a respectiva transferência para outra ilha, para que ali fosse operada, e no dia seguinte, as rés voltaram à mesma Unidade de Saúde e consentiram na transferência daquela para […], onde a mesma foi então submetida a uma intervenção cirúrgica por fractura do acetábulo e colocação de prótese de anca. Em resultado do descrito, T ficou com dificuldade em deslocar-se sem a ajuda de terceiros, passando a estar física e psicologicamente muito debilitada, não conseguindo efectuar qualquer tarefa autónoma, passando a maior parte do dia acamada, não conseguindo realizar de forma autónoma as tarefas pessoais e domésticas. Não conseguia realizar sem auxílio a sua higiene pessoal diária ou alimentar-se autonomamente, não conseguia ter um diálogo fluído e coerente, dado que se esquecia frequentemente dos factos e elementos do diálogo, repetindo, a intervalos curtos, as mesmas perguntas, apresentava problemas de orientação espacial e temporal, alternando, numa mesma conversa, memórias de factos com dezenas de anos, com outras de factos muito mais recentes. Em 2021, o aqui autor propôs acção especial de acompanhamento de maior relativamente à sua mãe T, a qual correu termos no Juízo de Competência Genérica de […], tendo sido proferida sentença em 01/12/2021, na qual foi decidido o seguinte: A- Decreto a aplicação do regime legal do maior acompanhado a T, na modalidade de representação geral com administração dos bens. B- Consigno que tal medida se demonstrou necessária desde o ano 2019. C- Designo para o cargo de acompanhante a filha R. D- Designo como membros do conselho de família para exercerem funções de vogais a filha M e o filho A. E- Designo, para desempenho de cargo de protutor, a vogal M. F- Decido restringir o exercício pela acompanhada dos direitos pessoais de testar […] G- Faz-se constar que não é conhecida a existência de testamento vital e de procuração para cuidados de saúde (900.º/3 CPC). T nunca manifestou perante ninguém, nem antes, nem depois de lhe ter sido diagnosticado o estado demencial em que se encontrou até ao seu decesso, a vontade de testar, muito menos a vontade de beneficiar a co-ré R em relação ao autor e à co-ré M. Em Julho de 2021, tomou conhecimento de que a sua mãe T teria outorgado, em 17/03/2020, um testamento, através do qual institui a sua filha R como herdeira da sua quota disponível, tendo tal testamento sido outorgado na casa daquela, perante a oficial de registos do Cartório Notarial, na presença das testemunhas MJ e MR, mas também da própria ré R. Esta, antes da chegada da oficial de registos, tentou manipular T a beneficiá-la com a quota disponível. Desde pelo menos 2016, T manifestava desorientação no tempo, não conseguia manter um diálogo fluído e coerente, esquecendo-se frequentemente dos factos e elementos do diálogo, tinha dificuldade em realizar de forma autónoma as tarefas pessoais e domésticas, cuidar da sua higiene e alimentação, e gerir o seu dinheiro, padecendo de um quadro de demência. Na data da outorga do testamento, em 17/03/2020, T, com 92 anos de idade, não se encontrava na posse das suas faculdades mentais, não se tendo recordado de a oficial de registos, aquando da chegada à […], ter habitado numa casa de sua propriedade. Em 27/11/2022, foi emitido por S um parecer pericial psiquiátrico documental post-mortem da referida T, do qual consta, entre o mais, que existem indícios fortes que à data da outorga do testamento, 17/03/2020, T já não teria capacidade cognitiva nem volitiva para expressar, por sua livre vontade e por palavras suas, tal desiderato, tendo em conta a situação de saúde que apresentava e a complexidade inerente a tal acto e suas repercussões, e que tal estado seria notório para terceiros.
As rés R e M alegaram que a mãe nunca sofreu de qualquer doença ou anomalia psíquica clinicamente diagnosticada, que a tornasse incapaz de reger quer a sua pessoa quer os seus bens. A sentença proferida nos autos de acompanhamento de maior transitou em julgado em 28/12/2021 e o testamento foi outorgado em 17/03/2020, isto é, cerca de dois anos antes da decisão do acompanhamento, sendo que, dessa forma, à data do testamento, T não se encontrava legalmente restringida no seu direito pessoal de testar, por não sofrer de qualquer doença ou anomalia psíquica, estando, por isso, na posse de todos os seus direitos pessoais. Mencionam que, até à queda ocorrida em 05/08/2019, T tratava das lides domésticas, incluindo refeições, e que só a partir dessa data, por força da queda e operação a que foi sujeita, é que ficou com dificuldades em locomover-se e deslocar-se sem apoio, mantendo-se, contudo, na posse das suas faculdades mentais, lendo livros, revistas, vendo televisão e mantendo conversas sobre diversos assuntos com as pessoas que com ela conviviam, e só por essa altura consentiu que fosse contratada uma empregada doméstica, tendo, desde então, deixado de tratar sozinha da lide da casa. É falso que T sofresse de qualquer doença demencial ou manifestasse um estado de desorientação permanente no espaço e no tempo desde 2016, não existindo qualquer registo dessa situação clínica nos serviços da unidade de saúde de […]. Em 14/03/2016, T foi constituída arguida, prestou termo de identidade e residência, e foi interrogada, na qualidade de arguida, no âmbito do processo de inquérito 65/11.0TASCF, onde se investigava a emissão de falsos atestados multiusos, tendo de sua livre e espontânea vontade, declarado prescindir de defensor, não tendo o Sr. Inspector da PJ que procedeu à diligência, mencionado qualquer anomalia ou deficiência por parte da arguida T. Foi também T que, de forma livre e esclarecida, decidiu, inicialmente, não ser operada, e, posteriormente, em 06/08/2019, decidiu ser operada. Na chegada ao Hospital de […], em 08/08/2019, T referiu “muita dor na anca”, apresentando-se “orientada no tempo e no espaço”, e conforme resulta da nota de alta, de 14/08/2019, o internamento decorreu “sem intercorrências”, não existindo qualquer referência a que T tivesse apresentado qualquer sinal de um estado de confusão ou desorientação permanente no espaço ou no tempo, ou limitação cognitiva. A outorga do testamento a favor da ré R correspondia a um desejo de T, uma vez que a filha R foi a única dos três irmãos que ficou em […] junto dos seus pais, de quem foi sempre o amparo, apoio e companhia, quer em vida de ambos os progenitores, quer da mãe, após a morte do pai, no ano de 2002, tendo tal desejo sido manifestado, por diversas vezes, quer junto do autor, quer junto das rés, quer de pessoas amigas e vizinhas dela. No acto de outorga do testamento, T encontrava-se livre na sua pessoa, esclarecida e na posse das suas faculdades mentais, manifestou bem o seu interesse e a sua vontade, sabia a quem queria deixar os seus bens, percebendo bem o sentido, alcance e consequência do testamento, explicado pela Sr.ª ajudante de notário, tendo-se comportado normalmente, de forma coerente, respondendo ao que lhe foi perguntado. Em momento algum na celebração da escritura, a Sr.ª ajudante de notário denotou qualquer desorientação no tempo ou no espaço, não tendo percepcionado qualquer anomalia, nem tendo existido qualquer período de delírio ou agitação.
No decurso da audiência final, as rés apresentaram articulado superveniente pugnando pela improcedência da acção, por procedência da excepção peremptória da caducidade. Invocaram para o efeito que, no decorrer da audiência, ficaram a saber, através do depoimento da testemunha MJ, que o autor teve conhecimento da existência do testamento no próprio ano de 2020 (“em Julho ou Agosto de 2020”), ano da celebração do testamento, pelo que o autor teria de intentar a acção de anulação do testamento até ao final de Agosto de 2022, correspondente ao prazo de 2 anos constante do disposto no artigo 2308/2 do CC. Assim, tendo o autor instaurado a presente acção somente em 30/05/2023 já haviam decorrido mais de dois anos desde a data de conhecimento pelo autor dos factos geradores da alegada anulabilidade, pelo que se deve concluir pela verificação da caducidade do direito à acção por parte do autor, designadamente quanto à pretensa anulação do testamento.
O autor pugnou pela improcedência da excepção de caducidade invocada. Alegou, em síntese, que a testemunha MJ identificou temporalmente a outorga do testamento em 2021, mesmo perante a respectiva exibição, assim corroborando o conhecimento pelo autor em Julho de 2021. Segundo a testemunha AS, o autor falou-lhe do testamento no Verão de 2021, o que também foi referido pela testemunha MT. Tendo tido conhecimento do testamento em Julho de 2021, a acção interposta em 30/05/023 é tempestiva em face do disposto no artigo 2308 do CC.
Depois de realizada a audiência final, foi proferida sentença julgando a acção improcedente, por não provada, e, em consequência, absolvendo as rés dos pedidos contra elas formulados pelo autor (antes disso, já a sentença tinha dito que a ré M carecia de legitimidade substantiva ou material).
O autor recorre de tal sentença, impugnando, grosso modo, todos os factos dados como provados que vêm da contestação e querendo que fiquem provados todos os restantes factos que vinham da PI, e impugnando também a improcedência dos pedidos e pretendendo juntar um documento.
As rés contra-alegaram, opondo-se à junção do documento, para alem de se pronunciarem sobre o respectivo valor probatório; defendendo a improcedência do recurso e, no fim das contra-alegações, pretendendo a alteração da redacção de um ponto da matéria de facto.
O autor contra-alegou o recurso das rés, defendendo a improcedência daquela pretensão de alteração de um ponto de facto.
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Questões que importa decidir: da admissibilidade do documento que o autor pretende juntar ao processo; da impugnação da decisão da matéria de facto; e se o testamento deve ser declarado nulo ou deve ser anulado, com as inerentes consequências.
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Do documento
No decorrer da produção da prova, foi levantada a questão da falsidade do depoimento da testemunha MJ. Mais tarde foi deduzida acusação criminal contra a testemunha, do que foi dado conhecimento ao processo.
O autor pretende, com a apresentação do documento que juntou ao recurso, dar conhecimento a este TRL que, entretanto, a testemunha não foi pronunciada pela prática do crime.
O conhecimento deste facto, superveniente, tem relevo para efeito probatório no âmbito da impugnação da decisão da matéria de facto, pelo que o documento deve manter-se junto. O valor probatório do mesmo é questão diferente e será considerada adiante.
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Estão dados como provados os seguintes factos que interessam à decisão das outras questões a decidir [os factos 18 e 29 foram alterados – com os sublinhados e rasuras deles constantes – na sequência do decidido quanto à impugnações da matéria de facto]
1\ O autor e as rés são irmãos germanos, sendo filhos de MS e de T.
2\ T foi professora do primeiro ciclo do ensino básico durante aproximadamente 30 anos, tendo-se reformado por invalidez, já nos anos 80 do século passado, uma vez não suportava o stress da profissão.
3\ Em 1992, foi diagnosticado a T, pelo médico especialista F, entre o mais, uma depressão, tendo sido medicada com ADT 10 mg e Tranxene 5mg.
4\ O marido de T faleceu em 2002.
5\ Em 10/11/2016, G, médico neurologista, elaborou relatório médico neurológico.
6\ Desde pelo menos 28/08/2017, T era portadora de deficiência que, naquela data, lhe conferia uma incapacidade permanente global de 64%, sendo certo que a mesma se referia aos Capítulos III, VI e X.
7\ Em 05/08/2019, em resultado de uma queda em casa, na qual fracturou o fémur, T foi conduzida pelas rés à Unidade de Saúde […], tendo sido recomendado que a mesma fosse evacuada para […], para ali ser submetida a uma intervenção cirúrgica.
8\ T foi submetida a uma intervenção cirúrgica por fractura do acetábulo e colocação de prótese de anca no Hospital de […].
9\ T ficou, desde então, com dificuldade em deslocar-se sem a ajuda de terceiros, passando a estar fisicamente debilitada, não conseguindo realizar de forma autónoma as tarefas pessoais e domésticas.
10\ T não conseguia realizar, sem auxílio, a sua higiene pessoal diária e não conseguia alimentar-se autonomamente.
11\ Em 20/05/2021, o autor propôs acção especial de acompanhamento de maior relativamente à sua mãe T, a qual correu termos pelo Juízo de Competência Genérica de […].
12\ No âmbito de tal processo (11), foi proferida sentença no dia 01/12/2021, através da qual foi decidido o seguinte:
“Nos presentes autos de acompanhamento de maior, não se demonstrou possível realizar perícia psiquiátrica, tendo o tribunal dispensado a realização da perícia por manifesta impossibilidade e procedido à audição da beneficiária.
Consagra o artigo 897 do CPC: 1 – Findos os articulados, o juiz analisa os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por elas requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos. 2 – Em qualquer caso, o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e directa do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontre.”
Por seu turno, dispõe o artigo 139/1 do CC: “1 – O acompanhamento é decidido pelo tribunal, após audição pessoal e directa do beneficiário, e ponderadas as provas”.
Da conjugação das disposições legais supracitadas, resulta claro e evidente que a única diligência de prova obrigatória num processo de maior acompanhado é a audição pessoal e directa do beneficiário.
Nos presentes autos, quer na petição inicial, quer na contestação, foi requerida a produção de prova testemunhal.
A audição directa da beneficiária demonstrou-se suficientemente esclarecedora e forneceu ao tribunal todos os elementos necessários para proferir decisão.
Como já foi referido, atendendo ao consagrado nos artigos 897 do CPC e 139/1 do CC, a produção desta prova não é legalmente exigida e uma vez que se demonstra desnecessária, por o tribunal já possuir todos os elementos necessários para proferir decisão, deve ser desde já indeferida, por desnecessária.
Acresce que, além da lei proibir a prática de actos inúteis, o presente processo tem natureza urgente e a dificuldade de elaboração da perícia psiquiátrica (cuja realização acabou por se revelar impossível) já atrasou bastante o mesmo, devendo, por tudo o exposto, ser proferida, desde já, sentença.
SENTENÇA
O requerente A, propôs acção especial de acompanhamento de maior relativamente à sua mãe T, portuguesa, viúva, pensionista, com o documento de identificação […], com morada em […].
Alegou, em síntese, que a requerida padece de grande fragilidade psicológica manifestada por medos e fobias e que se encontra fisicamente muito debilitada, mantendo-se a maior parte do dia acamada, ou seja, já não consegue realizar de forma autónoma as tarefas pessoais e domésticas, que habitualmente fazia.
Alegou, ainda, que a beneficiária não consegue realizar, sem auxílio, a sua higiene pessoal diária ou alimentar-se autonomamente nem consegue levar cabo tarefas domésticas como fazer a cama, confeccionar alimentos, proceder aos pagamentos necessários de água, electricidade, telefone, bens alimentares de consumo quotidiano nem, muito menos, proceder ao seu agendamento e controlo, não conseguindo, também, ter um diálogo fluído e coerente, dado que se esquece frequentemente dos factos e elementos do diálogo, repetindo a intervalos curtos as mesmas perguntas.
Conclui no sentido de dever ser decretado o acompanhamento da requerida.
Deviamente notificada, veio a requerida apresentar contestação alegando, em síntese, que consegue orientar-se no espaço e no tempo, dependendo somente de ajuda de terceiros face às limitações físicas de que padece e que é uma pessoa capaz para reger a sua pessoa e os seus bens, isto porque não há qualquer perturbação das faculdades intelectuais intelectivas (afectando a inteligência, a percepção ou a motivação) ou das faculdades volitivas (atinentes quer a formação da vontade, quer à sua manifestação).
Procurou-se proceder, por diversos meios, à realização da perícia psiquiátrica à requerida, o que acabou por se manifestar impossível, tendo sido dispensada a realização da mesma.
O tribunal procedeu à audição directa da beneficiária, que se realizou na casa da mesma, atendendo às dificuldades físicas de a mesma se deslocar ao tribunal, tendo sido ouvidos o requerente (filho da beneficiária) e as outras duas filhas R e M.
Dada a especialidade da diligência, foi remetida cópia da gravação do auto de audição da beneficiária para que as partes pudessem exercer o contraditório.
O requerente pronunciou-se no sentido de ser decretado o acompanhamento.
A requerida, pese embora a gravação tenha sido recebida via e-mail, nada veio alegar ou requerer.
[…]
Com interesse para a boa decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1\ A beneficiária T nasceu em […]/1928.
2\ Em 28/08/2017, a beneficiária tinha, segundo a tabela Nacional de Incapacidade, um grau de incapacidade permanente global de 64%.
3\ Em 2019, em resultado de uma queda em casa, foi submetida a intervenção cirúrgica por fractura do acetábulo e colocação de prótese de anca, ficando desde então tem dificuldade em deslocar-se sem a ajuda de terceiros.
4\ A beneficiária está fisicamente muito debilitada, mantendo-se a maior parte do dia acamada e no sofá.
5\ Passa a maior parte do dia a ver televisão na companhia da filha R, com quem reside.
6\ Já não consegue realizar de forma autónoma as tarefas pessoais e domésticas.
7\ Necessita de apoio de terceiros para cuidar da sua higiene e alimentação, não sendo capaz de cozinhar sozinha.
8\ Não consegue gerir o seu dinheiro, necessitando de ajuda de terceiros para o efeito.
9\ A beneficiária não consegue ter um diálogo fluído e coerente, esquecendo-se frequentemente dos factos e elementos do diálogo.
10\ Não adquire, sozinha, quaisquer bens de que necessite.
11\ A beneficiária aufere uma pensão relativa à reforma por invalidez.
12\ A filha R tem sido a pessoa que auxilia a beneficiária nas suas tarefas domésticas e as assegura.
13\ A filha R reside com a beneficiária.
14\ A filha M reside habitualmente em […].
15\ O requerente A, filho da beneficiária, reside habitualmente em […].
16\ Nos últimos anos tem sido a filha M que tem prestado maior apoio à sua mãe, depois da sua irmã R.
17\ O requerente A visitou, entre os anos 2016 e 2020, a sua mãe em média uma vez por ano.
18\ Manifestou disponibilidade para a visitar mais vezes de hoje em diante, por ter horário mais compatível.
19\ O requerente contacta telefonicamente de forma regular com a sua mãe.
Resultaram não provados, com relevo para a decisão da causa, os seguintes factos:
A) A beneficiária consegue alimentar-se sozinha.
B) A beneficiária é capaz de reger a sua pessoa e os seus bens.
[…]
O facto 1 resultou provado do assento de nascimento da requerida.
No que concerne ao facto 2, o mesmo resultou provado do relatório médico.
No que concerne ao facto 3, o mesmo não só foi admitido por ambas as partes nos articulados, como resultou provado das declarações prestadas pelos três filhos da beneficiária quando questionados em sede de diligência de audição directa da beneficiária, em que o tribunal aproveitou para questionar os três filhos da beneficiária que se encontravam presentes na habitação onde decorreu a diligência.
Relativamente aos restantes factos provados (4 a 18), cumpre referir que todos eles resultaram provados da audição directa da beneficiária e dos pedidos de esclarecimentos efectuados pelo tribunal aos três filhos da beneficiária que se encontravam presentes na diligência e que a acompanharam.
Foi facilmente perceptível pelo tribunal as debilidades físicas e mentais da beneficiária.
Não é nada que seja estranho às regras da lógica e da experiência comum e ao curso normal da vida.
A beneficiária é uma pessoa idosa e já não possui capacidades para satisfazer as suas necessidades pessoais nem gerir o seu património.
Foi totalmente perceptível por parte do tribunal a dificuldade que a beneficiária tem em manter um discurso lógico e continuado, sendo que por muitas vezes se dispersava, não tendo, inclusive, sido capaz de identificar o ano em que nasceu.
Tem sido auxiliada por parte da sua filha R, que vive consigo, e que se tem encarregue de assegurar as necessidades básicas da beneficiária.
Nenhum dos três filhos da beneficiária colocou em causa, durante a audição directa da beneficiária, que a mesma passa grande parte do seu tempo no sofá, a ver televisão, sendo certo que á a filha R que assegura as necessidades a nível de higiene, que gere o património e que efectua as compras para casa, sendo ponto assente que a beneficiária já não se desloca às lojas ou mercados para efectuar as compras dos bens que necessita.
Aqui chegados, e uma vez que resultou absolutamente claro para o tribunal os factos relativos ao estado da beneficiária, cumpre referir que os factos 14 a 19 resultaram provados dos esclarecimentos prestados pelos três filhos da beneficiária.
A filha R referiu que é a sua irmã M quem a mais auxilia na prestação de contactos com à sua mãe, tendo acrescentando que quando foi necessário acompanhar a mãe ao […], em virtude do acidente sofrido pela mesma em 2019, foi a filha M que a acompanhou, sendo uma pessoa mais presente pessoalmente na vida da mãe do que o irmão (requerente).
Essa versão dos factos foi confirmada pela irmã M que referiu estar sempre na disponibilidade de ajudar a mãe e a irmã.
Por sua vez, o irmão A não negou esses factos, tendo reconhecido que tem dificuldades em deslocar-se a […], devido à sua vida profissional, acrescentando, porém, que tem vindo todos os anos desde 2016, o que mereceu credibilidade por parte do tribunal.
Acrescentou, por fim, que terá maior disponibilidade no futuro, uma vez que os seus horários profissionais se alteraram, o que permitirá que o mesmo venha mais vezes a […] visitar a beneficiária.
Pese embora as dificuldades do requerente em estar pessoalmente com a sua mãe e os contactos pouco regulares (a nível pessoal) nos últimos anos, a sua irmã R referiu, de modo honesto, que o irmão contacta telefonicamente com a sua mãe.
Motivação dos factos considerados não provados.
Em sede de contestação, foi apresentada a versão de que a beneficiária seria capaz de reger a sua pessoa e bens e de se alimentar sozinha, a verdade é que da audição directa da beneficiária e dos esclarecimentos pedidos aos seus três filhos resultou claro por parte do tribunal que tal não se verifica.
Aliás, cumpre acrescentar que tal versão dos factos terá, provavelmente, sido posta de parte durante o processo, uma vez que todos os interessados no desfecho do presente processo produziram as suas declarações em sentido contrário, confirmando as limitações da beneficiária.
Fixada que se encontra a matéria de facto, cumpre agora proceder ao enquadramento jurídico.
O artigo 71 da CRP consagra: “os cidadãos portadores de deficiência física ou mental gozam plenamente dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição, com ressalva do exercício ou do cumprimento daqueles para os quais se encontrem incapacitados”.
Este corolário constitucional impõe que a restrição do direito das pessoas portadoras de deficiência física ou mental seja limitada ao mínimo, restringindo-se ao necessário, sempre de acordo com o princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 18/2 da CRP.
Assim, e no caso em apreço, cumpre averiguar quais os direitos cujo exercício ou cumprimento a requerida se encontra incapacitada.
Dispõe o artigo 138 do CC, que “o maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código”.
De acordo com o normativo acima transcrito, constitui pressuposto para que possa ser decretado o acompanhamento a impossibilidade de a beneficiária exercer plena, pessoal e conscientemente os direitos ou cumprir os deveres (requisito subjectivo), que seja motivada por razões de saúde (nas mesmas se integrando patologias de ordem física e de ordem psíquica e mental), de deficiência (designadamente relacionadas com situações de cegueira, surdez e/ou de deficiências do foro mental), ou num comportamento do próprio beneficiário (requisito objectivo).
No caso em apreço, atendendo ao relatório médico que comprova o grau de incapacidade e, sobretudo, à audição directa da beneficiária e aos esclarecimentos prestados pelos seus três filhos, resultaram claras as limitações da beneficiária.
Note-se que a requerida necessita de ajuda para cuidar da sua alimentação, supervisionar higiene, garantir a compra de bens essenciais, sendo uma pessoa totalmente dependente e que já em 2017 padecia de um grau de incapacidade permanente global de 64%.
Conclui-se, desse modo, que a beneficiária se encontra impossibilitada de autonomamente satisfazer devidamente as suas necessidades e exercer os seus direitos, verificando-se a necessidade de acompanhamento da mesma, com vista a que lhe seja garantida a assistência de que carece no cuidado da sua pessoa, bem como na gestão dos seus bens e interesses patrimoniais.
Uma vez verificada a necessidade de acompanhamento da beneficiária, cumpre determinar quais as medidas de acompanhamento necessárias em face da sua situação concreta.
De acordo com o disposto no artigo 145/1 do CC, o acompanhamento da beneficiária deve limitar-se ao necessário, devendo ter como referencial os princípios da necessidade e da intervenção mínima, em face da concreta situação do beneficiário.
Tal exigência resulta, aliás, dos princípios constitucionais.
Ponderadas as limitações que decorrem da condição de saúde de que padece a beneficiária e das suas limitações para gerir as necessidades da vida corrente e o seu património, entende o tribunal afigurar-se necessário aplicar à mesma o regime de representação geral, previsto no artigo 145/2b do CC.
De igual modo, considerando que as limitações de que padece a beneficiária afectam de forma manifesta a sua vontade e capacidade de querer e entender, não lhe permitindo compreender o alcance e sentido de todos os direitos pessoais mencionados no artigo 147/2 do CC, cumpre igualmente determinar a limitação dos direitos pessoais do beneficiário previstos no referido artigo.
Sendo que as referidas medidas se revelam necessárias e convenientes, em face dos elementos constantes dos autos, desde o ano de 2019, data em que ocorreu o acidente que limitou fisicamente a beneficiária e em que já havia sido fixada a incapacidade permanente global de 64% (artigo 900/1 do CPC).
[…]
No caso em apreço, dada a disponibilidade e vontade demonstrada pela filha da acompanhada, R, será a mesma nomeada acompanhante, uma vez que além de ser filha da acompanhada (artigo 143/2-c do CC) tem sido ela a assegurar o bem-estar da acompanhada nos últimos anos, sendo a responsável pela mesma.
Demonstrou-se, aliás, unânime por parte dos três filhos da beneficiária que seria a Sr.ª R a pessoa indicada para exercer o cargo de acompanhante da beneficiária, tendo inclusive sido indicada como acompanhante pelo requerente.
[…]
Desde cedo se percebeu que uma das grandes questões a resolver neste processo seria a designação do protutor.
Em suma, o requerente entende que deve ser nomeado protutor para fiscalizar, mais de perto, a acção da acompanhante.
Por seu turno, quer a acompanhante, quer a vogal M entendem que deve ser a vogal M a nomeada para o cargo de protutor, uma vez que é uma pessoa mais presente pessoalmente na vida da sua mãe e a que o requerente se desloca poucas vezes por ano a […].
[…]
Refira-se que a situação em causa se afigura irreversível, pelo que a revisão ocorrerá de 5 em 5 anos, sendo desnecessário fixar um prazo mais curto (cfr. artigo 155 do CC).
Deixa-se, ainda, consignado que não é conhecido testamento vital da beneficiária (cf. referência citius nº 4215206).
[…]
Em face de todo o exposto, e segundo os preceitos legais elencados, o tribunal julga a acção procedente e, em consequência:
A) Decreto a aplicação do regime legal do maior acompanhado à beneficiária T, na modalidade de representação geral com administração dos bens.
B) Consigno que tal medida se demonstrou necessária desde o ano 2019.
C) Designo para o cargo de acompanhante a filha R.
D) Designo como membros do conselho de família para exercerem funções de vogais a filha M e o filho A.
E) Designo, para desempenho de cago de protutor, a vogal M.
F) Decido restringir o exercício pela acompanhada dos direitos pessoais de testar, votar, fixar domicílio e residência, deslocar-se fora da cidade de Lisboa ou no estrangeiro, decidir acerca das suas intervenções cirúrgicas, tomada de medicação e demais tratamentos médicos correntes e/ou extraordinários que se venham a tornar necessários bem como a prática de quaisquer actos que envolvam gestão de património ou administração de bens.
G) Faz-se constar que não é conhecida a existência de testamento vital e de procuração para cuidados de saúde (900/3 CPC).
[…]
13\ A sentença mencionada em 12 transitou em julgado no dia 28/12/2021.
14\ Em Julho de 2021, o autor tomou conhecimento que a sua mãe T teria outorgado, em 17/03/2020, um testamento, através do qual declarou “Que por conta da quota disponível da sua herança, institui herdeira sua filha R, divorciada, natural da freguesia e concelho de […], onde é residente no […] e “Que assim, termina esta sua disposição de última vontade, sendo o primeiro testamento que faz”.
15\ À data do aludido testamento T tinha 92 anos e o testamento foi celebrado na casa desta, perante a oficial de registos do Cartório Notarial de […], em substituição legal do notário, e na presença das testemunhas MJ e MR.
16\ No dia 24/04/2022, faleceu, no estado de viúva de MS, com 94 anos de idade, T, com última residência habitual em […].
17\ Sucederam-lhe os três filhos.
18\ Em 27/11/2022 foi emitido pela Dr.ª S, médica psiquiatra e Directora da Clínica […], um parecer pericial psiquiátrico documental post-mortem de T, solicitado pelo autor e baseado exclusivamente na ponderação de documentos disponibilizados para a análise no pedido.
19\ A pedido do autor, em 01/02/2023, e com a finalidade de clarificar o relatório neurológico elaborado em 2016 e mencionado em 5, o Dr. G emitiu, em 01/02/2023, um relatório médico neurológico.
20\ T tinha com frequência infecções urinárias.
21\ O autor, apesar de residir em […], contactava telefonicamente de forma regular com a mãe T.
22\ No dia 01/04/2022 houve uma reunião do Conselho de Família.
23\ O autor intentou a presente acção no dia 30/05/2023.
Da contestação
24\ O relatório médico neurológico referido em 5 foi solicitado por T somente para tentar obter um certificado multiusos que lhe permitisse a obtenção de benefícios fiscais.
25\ Até à queda ocorrida na data mencionada em 7, T era uma pessoa activa, dentro dos padrões da idade, sendo ela quem tratava das lides domésticas, incluindo a confecção de refeições, tratando a ré R das compras e pagamentos, de acordo com as indicações dadas pela sua mãe.
26\ Talqualmente sempre ocorreu em vida do marido de T, pai das rés e do autor, sendo que, ao longo da vida em comum, era ele (marido) quem tratava das compras e pagamentos e ela (mulher) das lides da casa.
27\ A partir da data mencionada em 7, por força da queda e operação a que foi sujeita, T ficou com dificuldades em locomover-se e deslocar-se sem apoio, passando a andar com andarilho, mantendo-se, contudo, na posse das suas faculdades mentais, lendo livros, revistas, vendo televisão e mantendo conversas sobre diversos assuntos, com as pessoas que com ela conviviam.
28\ Só a partir da data mencionada em 7, T consentiu que fosse contratada uma empregada doméstica, tendo, então, deixado de tratar sozinha da lide da casa.
29\ Em 14/03/2016, T foi constituída arguida, prestou termo de identidade e residência, e foi interrogada na qualidade de arguida, no âmbito do processo 65/11.0TASCF, onde se investigava a emissão de falsos atestados multiusos, tendo de sua livre e espontânea vontade declarado prescindir de defensor, não tendo o Inspector da PJ que procedeu à diligência mencionado qualquer anomalia ou deficiência por parte da arguida T.
30\ Foi T quem, e pese embora as dores que sentia devido à fractura que sofreu, de forma livre e esclarecida, decidiu, inicialmente, não querer ser operada e, posteriormente, em 06/08/2019 decidiu ser operada.
31\ Na chegada ao Hospital de […], em 08/08/2019, pelas 18h02, T referiu “muita dor na anca à esquerda”, apresentando-se “orientada no tempo e no espaço”.
32\ T teve alta hospitalar em 14/08/2019, o internamento decorreu sem intercorrências e a doente não apresentou qualquer sinal de um estado de confusão ou desorientação permanente no espaço e no tempo, ou limitação cognitiva.
33\ A outorga do testamento referido em 14 e 15 a favor da ré R correspondia a um desejo de T uma vez que a filha R foi a única dos três irmãos que ficou […] junto dos seus pais, de quem foi sempre amparo, apoio e companhia, quer em vida de ambos os progenitores, quer da mãe, após a morte do pai no ano de 2002.
34\ Tal desejo foi manifestado junto das rés R e M.
35\ No acto da outorga do testamento referido em 14 e 15, T encontrava-se livre na sua pessoa, esclarecida, manifestou bem o seu interesse e a sua vontade, sabia a quem queria deixar os seus bens, percebendo bem o sentido, alcance e consequência do testamento, explicado pela Sr.ª ajudante de notário.
36\ No acto da outorga do testamento referido em 14 e 15, T comportou-se normalmente, de forma coerente, respondendo ao que lhe foi perguntado.
37\ Em momento algum, na celebração do testamento referido em 14 e 15, a Sr.ª ajudante de notário denotou qualquer desorientação no tempo e no espaço, não tendo percepcionado qualquer anomalia, nem tendo existido qualquer período de delírio ou agitação.
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Da impugnação da decisão da matéria de facto
[omite-se por falta de interesse]
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Do recurso sobre matéria de direito
A sentença diz o seguinte sobre a nulidade do testamento, na parte que interessa e em síntese feita por este TRL, com simplificações:
Para além da necessidade de adopção de forma especial, o testamento e as disposições testamentárias que nele se integram obedecem a requisitos especiais para poderem ser válidos, entre os quais se inclui a capacidade testamentária activa.
O artigo 2188 do CC declara que “Podem testar todos os indivíduos que a lei não declare incapazes de o fazer”.
As situações de incapacidade testamentária activa são excepcionais e mostram-se elencadas no artigo 2189 do CC, o qual dispõe do seguinte modo: “São incapazes de testar: […] b) Os maiores acompanhados, apenas nos casos em que a sentença de acompanhamento assim o determine.”
A sanção correspondente à incapacidade de testar é a nulidade do testamento nos termos do preceituado no artigo 2190 do CC. Deste modo, o testamento feito por maior acompanhado, nos casos em que a sentença de acompanhamento assim o determine e após o respectivo trânsito em julgado, é nulo (artigo 2190 do CC), presumindo-se iure et de jure a incapacidade natural, a qual é inilidível, não admitindo sequer, por inócua, a alegação e prova de que a outorga do testamento ocorreu num intervalo de lucidez: neste sentido, o ac. do TRG de 29/06/2017, proc. 13/15.8T8VCT.G1.
Está provado que: T outorgou em 17/03/2020. Em 20/05/2021, o autor propôs acção especial de acompanhamento de maior relativamente a T. Nesse processo foi proferida sentença em 01/12/2021, através da qual foi decidido, entre o mais, que a medida de representação geral com administração de bens se demonstrou necessária desde o ano de 2019 e foi restringido o exercício pela acompanhada do direito pessoal de testar (factos 11 e 12). A sentença transitou em julgado em 28/12/2021 (facto 13).
Tomando em consideração estes factos e as normas dos artigos 2189/-b e 2190 do CC, somente podemos concluir pela improcedência do pedido principal, isto é, da nulidade do testamento em apreciação, por não se verificarem os respectivos pressupostos legais.
Com efeito, à data da outorga do testamento (17/03/2020), ainda não havia sido restringido o exercício por T do direito pessoal de testar, pois a sentença proferida no âmbito da acção especial de acompanhamento de maior somente transitou em julgado em 28/12/2021, isto é, posteriormente à data da outorga do testamento.
O segmento decisório que fixa o início da necessidade de medida de representação geral com administração de bens (no caso vertente, desde o ano de 2019) não se mostra abrangido pela força do caso julgado material.
Com efeito, a sentença de acompanhamento de maior tem natureza constitutiva, com efeitos ex nunc, estabelecendo uma nova situação jurídica que só se projecta para o futuro.
Portanto, a fixação de data a partir da qual “as medidas decretadas se tornem convenientes” (artigo 900/1, segunda parte, do CPC) não implica que alcance retroactivamente os actos praticados entre as respectivas datas (data desde a qual as medidas decretadas se tornaram convenientes e a do trânsito em julgado da sentença que decretar as medidas de acompanhamento).
Neste sentido, embora a propósito de sentença proferida em processo especial de interdição, cujos fundamentos entendemos serem igualmente aplicáveis a sentença de maior acompanhado, o ac. do TRL de 0/12/2013, proc. 1084/10.9TVLSB.L1-1, e o ac. do TRG de 29/06/2017, proc. 13/15.8T8VCT.G1: “Uma vez, portanto, que a sentença de interdição não é meramente declaratória nem, por isso, produz efeitos ex tunc (retroactivos) mas constitutiva, gerando efeitos ex nunc, ela só se projecta para o futuro. A fixação nela da data do começo da incapacidade não implica que alcance retroactivamente actos praticados entre as respectivas datas (do começo da incapacidade e da sentença).”
Contra isto, o autor diz o seguinte [sempre em síntese deste TRL e com simplificações, o que vale também para o que for dito pelas rés]:
A sentença proferida no processo de maior acompanhado decidiu restringir a capacidade de testar de T, afirmando que tal se tornou conveniente desde 2019. Ora, nos termos do ac. do TRL de 15/12/2020, proc. 19055/18.5T8SNT-A.L1-7: “I. Reconhecida judicialmente a incapacidade da requerida, com a prolação de sentença de interdição (agora, acompanhamento de maior), em que lhe foi aplicada uma medida de substituição da sua vontade, nomeadamente, para o exercício dos seus direitos pessoais, e fixada a data em que as medidas de acompanhamento se tornaram convenientes, ali se declarando também a proibição de a mesma testar a partir daquela data, apenas se têm como válidos os actos por aquela praticados anteriormente à fixação de tal medida. […].” De toda a restante doutrina e jurisprudência que o autor invoca e de que cita inúmeras passagens com considerações genéricas sobre o regime do maior acompanhado e a incapacidade de testar, nada resulta a favor do que o autor diz.
Por outro lado, depois de citar inúmera doutrina e jurisprudência sobre a autoridade e a excepção do caso julgado, o autor conclui que se impunha que a sentença, atendendo à autoridade do caso julgado, tivesse tido em conta, como definitiva e inabalável, a decisão já proferida e transitada em julgado no processo de acompanhamento, quanto à incapacidade de T, a partir de 2019, nomeadamente, para testar, como pressuposto da questão que importava decidir nesta acção, que era a nulidade do testamento precisamente devido a tal incapacidade.
As rés respondem que:
As sentenças de acção de maior acompanhado, na restrição do direito de testar, votar, circular, etc., só produzem efeitos para o futuro; decorre de forma expressa, do artigo 154/3 do CC, que “os actos anteriores ao anúncio do início do processo aplica-se o regime de incapacidade acidental”.
Ora, resultando dos autos, que T outorgou testamento em 17/03/2020 e que foi decidido aplicar o regime de maior acompanhado no âmbito do processo intentado em 20/05/2021, facilmente se conclui que tal acto (testamento) é anterior ao início do processo, pelo que o regime aplicável será o da incapacidade acidental, e não o de nulidade.
Para além disso, mas também por isso, se analisarmos a sentença do processo de maior acompanhado, verifica-se, ao contrário de quer fazer crer o autor, que a restrição do direito especialíssimo de testar não se “tornou necessária desde 2019”, nem podia, uma vez que não existe qualquer perícia ou exame médico nesse processo que refira ou demonstre que a ali beneficiária sofresse de qualquer doença mental incapacitante do foro psicológico ou psiquiátrico, que toldasse a sua vontade ou capacidade.
Como é evidente, resulta à saciedade, também de uma interpretação literal e lógica da sentença de acompanhamento, que só, e unicamente, a medida constante na al. (a) do dispositivo (modalidade de representação geral com administração dos bens) é que se demonstrou necessária desde o ano de 2019.
Ao contrário do que refere e pretende o recorrente, em lado algum, ou momento algum, dessa sentença é referido que a restrição do direito especialíssimo de testar produzia efeitos desde 2019.
Para além disso, se bem atentamos nos factos provados naquela sentença, e na fundamentação dos mesmos, verifica-se que não está provado que T sofresse de alguma doença do foro psicológico ou psiquiátrico que a tornasse incapaz de reger a sua pessoa e os seus bens, por não haver qualquer exame ou perícia nesse sentido.
Quanto à autoridade do caso julgado, trata-se de uma questão nova, que não faz parte do objecto do recurso.
Sem prejuízo, e à cautela, sempre se dirá que, ao contrário do que refere e pretende o autor, aquela sentença não se pronunciou sobre a incapacidade para testar, de T, a partir, de 2019, não sendo a validade do testamento anterior à acção de maior acompanhado objecto e pedido nessa acção.
Naquela sentença não se tomou posição, nem poderia fazê-lo, a respeito da validade de quaisquer actos da beneficiária, na certeza, porém, que quanto aos actos anteriores ao anúncio do início do processo se aplica o regime da incapacidade acidental previsto no artigo 257 do CC, ex-vi do artigo 154/3 do CC.
Assim, conclui-se não existir, no caso concreto, identidade dos pedidos (efeitos jurídicos pretendidos) e das causas de pedir.
Nem mesmo, de sujeitos (no que à qualidade jurídica das partes respeita): as aqui rés não eram parte naquela outra acção, de acompanhamento de maior, nem poderiam sê-lo, atento o objecto da mesma.
Ora, a autoridade do caso julgado apenas pode ser oposta a quem seja tido como parte do ponto de vista da sua qualidade jurídica como definido pelo artigo 581/2 do CC (Rui Pinto, Excepção e autoridade do caso julgado – algumas notas provisórias, revista Julgar online, Novembro de 2018, págs. 28 e segs.)
Apreciação:
A sentença demonstra, com fundamentação, que, no caso, a incapacidade de testar poderia resultar apenas de uma sentença proferida num processo de maior acompanhado (art. 2189/-b do CC) que não tem eficácia retroactiva, pelo que nunca se poderia aplicar a um testamento outorgado em data anterior à sentença em causa.
Contra isto, o autor consegue invocar apenas um ponto de um sumário de um acórdão do TRL que, como resulta dos restantes pontos do sumário, reporta-se a uma questão completamente diversa, qual seja, a de saber se seria “legalmente admissível o deferimento de autorização judicial, apresentada pelo acompanhante de um maior acompanhado, para testar em nome daquele […].” Por isso não tem qualquer valor aquilo que se pode retirar, por exclusão de partes, daquele ponto do sumário desse acórdão para a questão dos autos, sobre a qual aquele acórdão não se debruçou e que seria contrário a tudo o que se entende normalmente sobre o assunto, ou seja, aquilo que é dito pelos dois acórdãos citados pela sentença recorrida (e muitos outros na outra parte da fundamentação, citada abaixo), acórdãos esses que, por sua vez, invocam muita outra doutrina e jurisprudência no mesmo sentido.
Outra via de rejeição da argumentação do autor, é a das rés. Pode haver representação geral com administração de bens, sem restrição da capacidade de testar. A fixação da data a partir da qual se tornaram convenientes as medidas decretadas, só diz respeito à representação, não à restrição de testar. Aquilo que as rés dizem corresponde assim a uma leitura linear do decidido pela sentença de acompanhamento e permitiria concluir como elas o fazem e com isto se resolveriam as questões que esta parte do recurso levanta.
No entanto, pode-se entender que, tendo em conta a fundamentação da sentença, o que ela quis escrever é que todas as medidas que decretou (incluindo, pois, a da restrição de testar) se tornaram convenientes desde 2019, dadas “as limitações que afectavam – no entender da sentença – a sua vontade e capacidade de querer e entender, não lhe permitindo compreender o alcance e sentido de todos os direitos pessoais”. Ou seja, trata-se só de uma questão de redacção da decisão; noutros casos, similares, a fixação da data abrange literalmente a restrição de testar (por exemplo, no ac. do TRE de 22/03/2024, proc. 766/23.0T8BJA.E1, embora neste acórdão se escreva, por evidente lapso de escrita, com início na data da propositura da decisão, quando se quis dizer: da acção; e no caso em análise no ac. do STJ de 15/09/2022, proc. 1895/19.0T8BCLG2.S1, pois que na sentença recorrida se dizia: atendendo a todas as considerações fácticas e legais tecidas, decide-se aplicar à beneficiária a medida de acompanhamento de representação geral, […] Mais se decide que a beneficiária fica impossibilitada de celebrar negócios da vida corrente, bem como de exercer os direitos pessoais aludidos no artigo 147/2 do CC. Fixa-se desde 23/05/2016 a data a partir da qual se tornou necessária a aplicação à beneficiária de tal medida.)
Mesmo nesta leitura, o tribunal do processo de acompanhamento não decidiu que o testamento em causa ou que qualquer outro testamento seria nulo, desde que elaborado a partir de 2019, por falta de capacidade de T para o fazer, nem decidiu que esta incapacidade se verificava. A incapacidade de T seria apenas um fundamento da decisão que fixou aquela data. Ora, os fundamentos de uma decisão não fazem caso julgado (art. 91/2 do CPC – Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 1, 4.ª edição, 2021, Almedina, páginas 206-207).
De qualquer modo, a data fixada pela sentença não diz respeito, claramente, à incapacidade para testar, como resulta claramente da parte de tal sentença que se refere a essa data: “Sendo que as referidas medidas se revelam necessárias e convenientes, em face dos elementos constantes dos autos, desde o ano de 2019, data em que ocorreu o acidente que limitou fisicamente a beneficiária e em que já havia sido fixada a incapacidade permanente global de 64% (artigo 900/1 do CPC).” Ou seja, no ano de 2019, T estava com uma incapacidade permanente global de 64%, que não se reportava a qualquer demência, e teve uma queda que a limitou fisicamente. Nada disto tem a ver com qualquer incapacidade para testar.
Assim, ao fim e ao cabo, a argumentação das rés é correcta.
Mas, mesmo que a data fixada como aquela a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes tivesse também a ver com a restrição de testar, desde há muito se tem entendido, que, no que concerne a essa data, no caso de ela se reportar à incapacidade natural, ela gera apenas uma presunção natural ou judicial de incapacidade. Neste sentido vai o ac. do STJ invocado pelo ac. do TRL de 2013 citado na sentença recorrida, de 22/01/2009, proc. 08B3333: “A declaração judicial, na sentença que decreta a interdição, sobre a data do começo da incapacidade, constitui mera presunção simples, natural, judicial, de facto ou de experiência, da incapacidade, à qual pode ser oposta contraprova, nos termos do art. 346 do CC.” Acórdão do STJ que, por sua vez, cita vária doutrina no mesmo sentido.
Entre aquela doutrina citada pelo ac. do STJ está a posição de Pires de Lima e Antunes Varela, que, embora referindo-se às incapacidades contratuais e não às testamentárias, era no sentido “(d)esde que o negócio tenha sido realizado posteriormente a essa data [à fixada], há uma forte presunção [de facto, como resulta do que segue, não de juris et de jure] de que ele foi celebrado por pessoa incapacitada de entender o sentido da declaração ou privada do livre exercício da sua vontade.” [CC anotado, 3.ª edição, 1982, Coimbra Editora, páginas 156-157; os autores acrescentam: nesse sentido vai o ac. do STJ de 14/01/1975, BMJ 243, pág. 199 e ss.: A fixação da data do início da incapacidade em acção de interdição constitui presunção de facto da existência da incapacidade para efeitos de anulação do facto jurídico praticado em data posterior].
Ainda neste sentido, já no âmbito do regime do maior acompanhado, por isso depois de 2018, Heinrich Ewald Hörster e Eva Sónia Moreira da Silva, em A parte geral do CC português, 2.ª edição, Almedina, 2019, pág. 388/nota 508, dizem que a solução de Pires de Lima e Antunes Varela, na 4.ª edição, 1987, pág. 156, “pode aplicar-se também no regime do maior acompanhado, desde que a sentença de acompanhamento fixe ‘a data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes […]’.” E também o ac. do TRP de 23/05/2024, proc. 902/23.6T8PRD.P1: I – A «data […] não equivale a «data a partir da qual as medidas decretadas se aplicam», nem tem repercussão na «validade dos actos» do acompanhado. Acórdão que cita outra doutrina no mesmo sentido.
Em suma: a sentença que restringe a capacidade de testar, num processo de maior acompanhado, apenas tem efeitos para o futuro e mesmo que fixe uma data a partir da qual considera que se justificava a restrição, o que não foi o caso dos autos, essa decisão não faz caso julgado quanto à existência de incapacidade para o efeito, pois que nem sequer é esse o seu sentido.
Quanto à autoridade do caso julgado invocada pelo autor: a autoridade é um efeito do caso julgado pelo que, logicamente, pressupõe a existência deste. Assim, primeiro, o autor teria que provar a existência do caso julgado, o que, como se vê, não conseguiu.
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Da anulabilidade do testamento
Nesta parte, a sentença tem a seguinte fundamentação, sempre em síntese feita por este TRL:
Sob a epígrafe “Incapacidade acidental”, estabelece o artigo 2199 do CC que “É anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória”.
Segundo o ac. do STJ de 19/01/2016, proc. 893/05.5TBPCV.C1.S1: “I. A incapacidade acidental, a que se refere o art. 2199 do CC, afectando a vontade do testador, constitui vício volitivo que determina a anulabilidade do acto; o normativo quer proteger o testador, o seu acto de vontade unilateral, ao passo que o art. 257 do CC, que também versa sobre a incapacidade acidental, mas em actos contratuais e tem o seu campo de aplicação nos negócios jurídicos bilaterais, visa proteger, sobretudo, o declaratário desde logo exigindo como requisito de anulabilidade da declaração que o facto determinante da incapacitação acidental de entender o sentido da declaração de vontade seja notório, ou conhecido do declaratário. II. No art. 2199 do CC, prescinde-se dos requisitos notoriedade ou cognoscibilidade do vício que afecta a vontade do declarante, desde logo, por se tratar de um acto unilateral, um negócio jurídico não recipiendo, que não carece de aceitação para produzir os seus efeitos. (…)”.
Conforme Cristina Pimenta Coelho, “O regime do art. 2199 apresenta diferenças significativas quando confrontado com o contido no art. 257, n.ºs 1 e 2. Em primeiro lugar, o art. 257 vem exigir que a incapacidade seja notória ou conhecida do declaratário, exigência que não se encontra no art. 2199, dado o carácter não receptício do negócio testamentário. Em segundo lugar, deve ter-se em conta que o instituto da incapacidade acidental previsto neste artigo vai ter uma importância maior que a incapacidade acidental prevista na parte geral do CC, uma vez que as incapacidades de testar são menos rigorosas, mais restritas, que as incapacidades gerais. Recorde-se que os inabilitados por anomalia psíquica podem testar, mas também podem facilmente não ter consciência do acto que praticam e logo ser-lhes aplicado o regime da incapacidade acidental. Por outro lado, tenha-se em vista que as situações de interdição são excepcionais e que, muitas vezes, existe uma situação de demência não reconhecida pelo direito, mas uma demência permanente e também nestes casos se vai aplicar este regime.” (CC Anotado, volume II, coord. de Ana Prata, Almedina, 2020, p. 1115 [= 1090 da 1.ª edição de 2017]).
Para efeitos do preceituado no artigo 2199 do CC, o essencial é determinar se, no momento da feitura do testamento (artigo 2191 do CC: “A capacidade do testador determina-se pela data do testamento”), o testador se encontrava ou não privado de uma vontade sã.
Sublinham Pires de Lima e Antunes Varela que “Em contrapartida, a circunstância de se ter reduzido a área da incapacidade absoluta aos casos de interdição por demência não impede que, ao abrigo do disposto nos artigos 2190 e 257, se alegue a anulabilidade do testamento lavrado por quem, no momento em que o fez, se encontrava acidentalmente incapacitado de entender o sentido dele ou não tinha o livre exercício da sua vontade. Claro que nestes casos se deve ser particularmente exigente quanto a dois pontos fundamentais: primeiro, quanto à real incapacidade de captar o sentido e alcance da disposição e quanto ao domínio da vontade; depois, quanto ao momento da verificação da incapacidade de facto, não esquecendo a existência dos casos de perturbações psíquicas anómalas e passageiras, mas reais, como a embriaguez, o acesso febril, o sonambulismo”, mais acrescentando que “A primeira destas regras específicas, constante do artigo 2199 refere-se à incapacidade (tomada a expressão no sentido rigoroso próprio da falta de aptidão natural para entender o sentido da declaração ou da falta do livre exercício do poder de dispor mortis causa dos próprios bens, por qualquer causa verificada no momento em que a disposição é lavrada. A disposição legal refere-se expressamente ao carácter transitório que pode ter a falta de discernimento ou de livre exercício da vontade de dispor, por parte do testador, para significar que o vício contemplado nesta norma é a deficiência psicológica que comprovadamente se verifica no preciso momento em que a disposição é lavrada.” (CC anotado, vol. VI, Coimbra Editora, 1998, páginas 309 e 323).
Parafraseando Anabela Gonçalves, “O art. 2199 estabelece a anulabilidade do testamento celebrado com incapacidade acidental, por quem não estava incapacitado de entender e querer o sentido da declaração efectuada ou que, por qualquer causa, ainda que transitória, não tinha o livre exercício da sua vontade para poder dispor dos seus bens para depois da morte, no momento em que a declaração negocial é prestada. Tal como para efeitos do art. 257, estarão em causa episódios que afectam a compreensão e a vontade do testador, como situações de embriaguez, situações de consumo de estupefacientes, surtos psicóticos provocados por anomalias psíquicas, estados de delírio, ou demências permanentes que não tenham gerado ainda uma decisão de acompanhamento que decrete a incapacidade para testar… Assim sendo, esta norma pode abranger situações acidentais esporádicas e transitórias, como surtos psicóticos momentâneos, que diminuam momentaneamente o discernimento e o livre exercício da vontade de dispor. Pode abarcar ainda situações permanentes, como por exemplo, “uma doença que, no plano clínico, é comprovada e cientificamente susceptível de afectar a sua capacidade de percepção, compreensão, discernimento e entendimento, e passível de disturbar e comprometer qualquer acto de vontade que pretenda levar a cabo, na sua vivência quotidiana e corrente” (ac. STJ de 11/04/2013, proc. 1565/10.4TJVNF.P1.S1), podendo justificar uma acção de acompanhamento que não existe.” (CC anotado, coord. de Cristina Araújo Dias, Almedina, 2.ª edição, 2022, p. 302).
Decidiu-se no ac. do STJ de 13/04/2021, proc. 109/17.1T8BJA.E1.S1, que “(…) II. A previsão do artigo 2199 do CC abrange as situações em que o testador, apesar de ser uma pessoa juridicamente capaz, acidentalmente ou de forma permanente, quando elaborou o testamento não se encontrava em condições de compreender os termos ou o alcance da declaração produzida, uma vez que a sua capacidade de percepção, compreensão ou entendimento se encontravam seriamente diminuídas. III. É este estado de reduzido discernimento que, ao assumir um nível que não permite ao testador ter consciência do conteúdo ou alcance da declaração testamentária emitida, justifica a possibilidade da sua anulação, de modo a impedir a produção de efeitos de uma declaração provinda de uma vontade viciada.”.
Por sua vez, extrai-se do ac. do STJ de 20/06/2023, proc. 1235/18.5T8VFR.P1.S1, que “I – A incapacidade acidental para testar deve ser apreciada com especial rigor, não sendo suficiente para implementar esse conceito uma simples anomalia ou alteração das faculdades psíquicas e intelectuais do de cujus. II – Pode dizer-se que a apreciação da incapacidade acidental de testadores de idade avançada constitui um fenómeno actual, tendo em conta o prolongamento da vida a que se assiste, muitas vezes acompanhado pela disseminação de patologias de senilidade susceptíveis de determinar, em diferente medida, episódios de comprometimento psíquico, fraqueza na adopção de decisões ou enfraquecimento da denominada consciência afectiva. III – Não basta a prova de uma simples anomalia, da mera degradação ou alteração das faculdades psíquicas e intelectuais do testador, sendo antes necessária a prova de que este se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade (art. 2199 do CC). IV – Entendendo-se a referência da incapacidade ao momento da feitura do testamento (art. 2191 do CC), a causa perturbadora da livre autodeterminação do testador, constituída por uma doença ou por qualquer outra razão, deve reflectir-se directamente na prática desse acto de última vontade, sendo necessário estabelecer como que um nexo causal entre o factor perturbador e o acto que resulta perturbado – o testamento.”
Esclarece Cristina Pimenta Coelho que: “Estabelece-se uma regra muito importante para efeito de aferição da capacidade: o momento relevante para este efeito é o da data do testamento. Para sabermos qual é a data do testamento, devemos socorrer-nos do artigo 2207 do CC, que diz que a data do testamento cerrado é a data da aprovação notarial do mesmo. Tratando-se de testamento público, a data será naturalmente a do dia em que o mesmo é lavrado pelo notário. Resulta deste preceito que o momento relevante para se aferir a capacidade do testador não é o momento em que o mesmo foi escrito pelo testador (no caso do testamento cerrado), nem o momento da morte deste, mas antes o momento em que o testamento foi lavrado ou aprovado pelo notário. […] (obra citada, pág. 1108 [1084 da 1.ª edição]).
Ensinam igualmente Pires de Lima e Antunes Varela: “Por um lado, se o testamento for lavrado (ou aprovado, no caso de se tratar de testamento cerrado: art. 2207.º) numa altura em que o testador de nenhumas perturbações mentais padecia, ele não perderá a sua validade pelo simples facto de o testador vir algum tempo depois a ser inclusivamente interditado por anomalia psíquica e assim morrer.” (obra citada, página 311 e 312).
Mais esclarece Jorge Pais do Amaral que “Se o testador era incapaz no momento em que fez o testamento, a posterior aquisição da capacidade não torna válido esse mesmo testamento.” (Direito da Família e das Sucessões, 3ª edição, Almedina, página 388).
Entrando na análise do caso constata-se que o autor não logrou fazer prova dos factos por si alegados, os quais levariam a concluir que T se encontrava numa situação de impossibilidade de entender e querer os termos do testamento em causa, referido no facto 14, na data em que o mesmo foi outorgado (17/03/2020).
Com efeito, segundo os ditames do artigo 342 do CC, competia ao autor a prova da verificação dos requisitos de anulação do testamento, ou seja, recai sobre o interessado na anulação do testamento o ónus de alegar e de provar que o testador se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não ter o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória (neste sentido, a sentença invoca vários outros acórdãos).
Na verdade, ao contrário do foi alegado pelo autor, não ficou demonstrado que T apresentasse, desde 10/11/2016, um quadro de demência (factos não provados D\, Q\ e AA\, R\, S\, T\, U\), sem prejuízo de se ter demonstrado que, desde 28/08/2017, T era portadora de deficiência que, naquela data, lhe conferia uma incapacidade permanente global de 64%, sendo certo que a mesma se referia aos Capítulos III, VI e X (facto 6).
Pelo contrário, resultou demonstrado que, até à queda ocorrida em 05/08/2019 (facto 7), T era uma pessoa activa, dentro dos padrões da idade, sendo ela quem tratava das lides domésticas, incluindo a confecção de refeições, tratando a ré R das compras e pagamentos, de acordo com as indicações dadas pela sua mãe (facto 25).
Por outro lado, também não ficaram demonstrado nos autos, outros factos naquele sentido: facto não provado G\ a L\, tendo ficado provados outros neste último sentido: factos 7 e 8, 27, 28, 9 e 10.
Por outra banda, resultou provado que, por sentença datada de 01/12/2021 e transitada em julgado em 28/12/2021, foi decretada a aplicação do regime legal de maior acompanhado a T, na modalidade de representação geral com administração de bens, medida que se tornou necessária desde o ano de 2019, tendo sido restringido o direito pessoal de testar (factos 12 e 13).
Todavia, tal sentença foi proferida quase dois anos após a data da outorga do testamento (17/03/2020 – facto 14).
Acresce que a data a partir da qual se tornou necessária a representação geral com administração de bens (ano de 2019) constitui mera presunção simples, natural, judicial, de facto ou de experiência, da incapacidade, o que não só não inverte o ónus da prova da existência da incapacidade no momento do acto (testamento), como à qual pode ser oposta contraprova nos termos do disposto no artigo 346 do CC (neste sentido, o ac. do STJ de 22/01/2009, proc. 08B3333, já citado acima, o ac. do TRL de 20/04/2010, proc. 9/2000.L1-7: III – A sentença de interdição, que fixou o início da incapacidade, apenas constituiu um princípio de prova favorável à incapacidade da autora do testamento na data em que o praticou, não dispensando o autor de fazer a completa prova dessa incapacidade em tal data, já que sobre ele impende o respectivo ónus probatório. A declaração judicial sobre a data do começo da incapacidade constitui apenas uma mera presunção simples, natural, judicial, de facto ou de experiência (praesumptio facti ou hominis), da incapacidade da interdita na data da celebração da escritura de compra e venda, mas não mais do que isso.; ac. do TRC de 11/11/2014, proc. 63/2000.C1; ac. do TRE de 13/01/2022, proc. 251/20.1T8ORM.E1).
Também não se provou que a ré R, pouco antes da oficial de registos chegar para a celebração do testamento, disse à mãe T: “- mãe, vem aí a oficial de registos!! … mãe, não se esqueça do que vai dizer…” (facto não provado O), nem que, na data da outorga do testamento, T não se encontrava na posse das suas faculdades mentais, não se provando o que consta de W\, X\ e Y\.
Pelo contrário, ficou demonstrado nos autos que o testamento outorgado em 17/03/2020, foi celebrado perante a oficial de registos e na presença de duas testemunhas (facto 15) e não ficou provada a presença no mencionado acto da beneficiária do testamento (facto não provado N), o que constitui uma primeira e qualificada garantia de que a testadora T gozava, quando testou, da capacidade de entender, de querer e de adequadamente manifestar a sua vontade: ac. do TRL de 26/05/2009, proc. 100/2001.L1-7: […] II – A simples presença do notário, que é um funcionário especializado que goza de fé pública, aditada à das duas testemunhas que, segundo o art. 67/1-a-3, do CN, devem presenciar o acto, é uma primeira e qualificada garantia de que o testador gozava ainda, no momento em que foi revelando a sua vontade, de um mínimo bastante de capacidade anímica para querer e para entender o que afirmou ser sua vontade. III – Por conseguinte, não pode deixar de se entender que, tendo o testamento sido exarado perante notário, existe uma forte presunção de que o testador tem aptidão para entender o que declara. IV – Não se trata, pois, da circunstância de o testamento ser um documento autêntico, pois que este só tem força probatória plena quanto às acções ou percepções do respectivo Notário no mesmo mencionadas, únicas que, por isso, só podem ser elididas com base na sua falsidade, nada impedindo que, não obstante o testador tenha sido admitido a testar, se faça a prova, pelos meios comuns, da sua insanidade mental. V – Do que se trata, no fim e ao cabo, no caso dos autos, é do funcionamento do ónus da prova dos factos integradores do vício invocado, ónus esse que recaía sobre a autora. Logo, será ela a suportar as consequências da falta de prova, que se traduzem em ver desatendida a sua pretensão.” (no mesmo sentido, o ac. do TRL de 22/05/2018, proc. 2414/15.2T8CSC.L1-7 e o ac. TRL de 16/06/2009, proc. 337/07.8TCFUN.L1-7; e Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, vol. VI, Coimbra Editora, pág. 336 […]).
Neste sentido ainda os factos 35, 36 e 37.
Ora, tendo presente que “Saber se o testador se encontrava ou não incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou de formar livremente a sua vontade é uma conclusão jurídica a extrair dos factos apurados” (assim, o ac. do STJ de 24/05/2011, proc. 4936/04.1TCLRS.L1.S1), o quadro factual adquirido não evidencia uma situação de incapacidade de percepção, entendimento e discernimento da testadora no momento da realização do acto jurídico em que se predispôs a dispor dos seus bens para depois da morte. Com efeito, o quadro factual adquirido não demonstra um qualquer estado patológico que evidencie uma carência de capacidade intelectiva e/ou compreensiva do alcance e do sentido do testamento outorgado.
Em tais circunstâncias, conclui-se que o testamento em apreço não poder ser sancionado com a anulabilidade a que alude o artigo 2199º do CC, pelo que deve improceder o pedido subsidiário de declaração de anulabilidade do testamento em apreço.
Contra isto, o autor diz o seguinte:
Como resulta da factualidade dada com provada, na sequência da impugnação da matéria de facto, – ou seja, todos os factos que o autor pretendeu aditar de 38 a 66, a que acrescem os factos 2, 3 e 8 a 10 – a vontade de T no dia 17/03/2020, estava afectada por estado de demência impeditivo de saber o que queria e medir o alcance do acto unilateral que o testamento é.
Por outro lado, tendo em conta os factos 11, 12, 13: propositura do processo de maior acompanhado, sentença aí proferida e trânsito em julgado da mesma, sendo certo que o testamento em causa nos autos foi outorgado em 17/03/2020, ou seja, no período relativamente ao qual o tribunal considerou restringido o exercício do direito pessoal de testar da mesma.
E ainda tendo em conta a sentença referida no facto 12: transcreve os factos provados e os não provados naquela sentença e a respectiva fundamentação da convicção.
As rés contrapõem:
No que se refere a esta questão, dir-se-á não assistir qualquer razão ao autor, também nesta parte, desde logo por a mesma estar dependente da impugnação da matéria de facto pelo autor, que deve ser julgada improcedente, como atrás se referiu e pelos motivos mencionados. Nesta conformidade, bem andou o Tribunal a quo ao decidir nos termos em que o fez.
Apreciação:
A argumentação do autor do 1.º § está baseada na potencial alteração da decisão da matéria de facto. Isto é, no pretendido aditamento dos factos 38 a 66. Pretensão totalmente improcedente. Os factos 2, 3 e 8 a 10 são manifestamente irrelevantes para o efeito: os dois primeiros atenta a data a que se reportam e o conteúdo dos mesmos, os 3 últimos por se reportarem a incapacidades físicas, não mentais.
A argumentação do autor, no 2.º §, já foi tratada a propósito da nulidade do testamento: já se viu que a sentença de maior acompanhado não tem efeitos retroactivos à data fixada como sendo a data em que se tornaram convenientes as medidas decretadas naquele processo.
O máximo que se pode defender é que se, no processo de maior acompanhado, como em qualquer outro, tiver sido feita prova inequívoca de uma doença grave inequivocamente incapacitante de entender a declaração e do livre exercício da vontade de qualquer pessoa, reportada a uma data anterior a um testamento, essa prova, naturalmente, também poderá ser feita num processo posterior, e, provada essa doença, nesse outro processo, existe uma presunção natural de que aqueles efeitos incapacitantes se verificam. Pelo que, por exemplo, num processo de anulação de um testamento, por falta daquelas capacidades do testador, bastará fazer a prova dessa doença para se poder presumir essas incapacidades. E, neste caso, caberá ao interessado na validade do testamento, provar que, apesar daquela doença, o testador, no momento em que fez o testamento, entendia o que estava a fazer e podia decidir-se livremente a fazê-lo (neste sentido, o ac. do TRL de 20/06/2024, proc. 14916/21.7T8LSB.L1, com o mesmo relator do actual, mas baseado em doutrina e jurisprudência aí citada [por exemplo, o ac. do STJ de 20/06/2023, proc. 1235/18.5T8VFR.P1.S1], no sentido de que as lesões psíquicas provadas podem permitir concluir pela verificação de uma doença psíquica que deva levar à aplicação da “tese móvel” adoptada pela jurisprudência para esse tipo de situações, caso em que passa a caber ao réu, interessado na validade do testamento, fazer a prova de que o testador tinha entendido o sentido da sua declaração; neste sentido, com desenvolvimento, o anterior ac. do TRG citado pela sentença recorrida: de 29/06/2017, proc. 13/15.8T8VCT.G1).
Nos termos do ac. do STJ acabado do citar:
2\ Pode dizer-se que, em caso de enfermidade típica, permanente e habitual, a incapacidade se presume. A partir do “facto conhecido” da incapacidade do testador anterior e subsequente à feitura do testamento, é possível inferir o “facto desconhecido”, mais provável do que não, segundo o id quod plerumque accidit, da incapacidade do testador também intermédia. Nesse, caso a prova de que o testamento foi elaborado durante um intervalo lúcido cabe aos interessados na sua validade.
3\ Muito diferentemente, na hipótese de enfermidade ou patologia intermitente ou recorrente, porquanto se alternam os períodos de capacidade e de incapacidade, a referida presunção não opera e a prova da subsistência da incapacidade no momento da outorga do testamento deve ser feita por quem o impugna.
4\ O autor […] não conseguiu provar que a de cujus, no momento em que outorgou os testamentos, se encontrava num estado de incapacidade que a privasse da aptidão natural para entender o sentido da sua declaração ou do livre exercício do poder de dispor mortis causa dos próprios bens, i.e., da vontade de se autodeterminar. Nem tão pouco demonstrou uma condição permanente de incapacidade de entender e de querer susceptível de justificar uma diversa repartição do ónus da prova, com a operatividade da mencionada presunção (de incapacidade também no momento da celebração dos testamentos).
5\ Na ausência de elementos devidamente documentados ou comprovados, de sinal contrário, de natureza médico-legal – ou de outros igualmente pertinentes -, o Julgador não pondera como de importante relevância, para a prova da alegada incapacidade, a idade avançada do testador, em si mesma considerada, nem a sua enfermidade física, ainda que esta implique a necessidade de assistência continuada por terceiro. Dificuldades de mobilidade ou de deambulação, ou doenças cardíacas ou renais, não significam per se incapacidade de querer e de entender.
E nos termos do ac. do TRG também já citado:
3\ Cabe ao interessado na anulabilidade o ónus de alegar e provar os factos de onde se conclua tal incapacidade acidental – art. 342/1 CC.
4\ A pessoa portadora de anomalia psíquica determinante da sua incapacidade para se autogovernar e aos seus bens, mas ainda não declarada interdita pode testar validamente num intervalo lúcido.
5\ Cabe ao interessado na anulabilidade do acto o ónus de alegar e provar o estado de demência em período dele abrangente, presumindo-se, neste caso, naturalmente, que tal estado se mantinha no respectivo momento. Cabe ao interessado na validade o ónus de alegar e provar que, não obstante aquele estado, o testador estava, no acto de testar, em estado lúcido e capaz (lucidez episódica).
6\ Ainda que o testamento tenha sido outorgado no período que vai desde a data fixada na sentença de interdição como sendo a do começo da incapacidade até à data daquela, tal declaração apenas constitui princípio de prova (presunção simples ou da experiência) no sentido da incapacidade do testador favorável ao interessado na sua invalidade, não estando este dispensado de completar a prova da incapacidade real. Cabe, neste caso, ao interessado na validade do testamento alegar e provar que, no momento da outorga, apesar daquela presunção, o testador estava perfeitamente lúcido e capaz de entender o sentido da sua declaração e de exercitar livremente a sua vontade, ou, pelo menos, produzir contraprova sobre a prova produzida pelo interessado na validade do acto destinada a tornar duvidosos os respectivos factos.
[…]”
Ora, no caso dos autos, já se viu que nem no processo de maior acompanhado foi feita prova de tal doença, quanto mais neste, e que a fixação da data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes se baseou em incapacidades físicas da maior e não na incapacidade de entender a declaração ou na privação do livre exercício da sua vontade.
A argumentação do autor, no 3.º §, limita-se à defesa de uma tese indefensável: os factos de um processo e a fundamentação da convicção quanto a esses factos não têm qualquer valor num outro processo, para mais quando nem sequer são as mesmas as partes num e noutro (num, a ré é a beneficiária; neste, as rés são as filhas daquela). Quanto ao valor da sentença naquele proferida, a questão já foi tratada.
*
Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas, na vertente de custas de parte, pelo autor.
Lisboa, 13/02/2025
Pedro Martins
1.º Adjunto
2.º Adjunto