Processo do Juízo Central Cível de Cascais
Sumário:
Se o dono da obra desistir da empreitada, impossibilitando o cumprimento da prestação do empreiteiro, o regime a aplicar é o do art. 1229 do CC e não o do art. 795/2 do CC.
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados
N intentou contra (1) A-Lda., (2) D e (3) M, casados, entre si, uma acção comum, pedindo, nos termos da petição inicial rectificada em resposta ao convite ao aperfeiçoamento, a condenação:
a) da 1.ª ré, no pagamento de uma indemnização de 55.665,78€, pelos danos causados, por incumprimento definitivo e imperfeição das obras realizadas, resultando do valor diferencial entre as obras realizadas e o valor pago;
b) dos 2.º e 3.ª réus, no pagamento de uma indemnização de 7.500€ por responsabilidade civil extracontratual pelos danos provocados à autora;
c) do réu, no valor total de 20.000€, por responsabilidade extracontratual, sendo 13.000€, relativos à fossa e acessórios e o restante aos demais objectos;
d) subsidiariamente, ser a 1.ª ré condenada por enriquecimento sem causa no valor de 79.586€.
Alegou, em síntese – no seguimento do convite ao aperfeiçoamento -, ter adquirido uma moradia em relação à qual adjudicou à 1.ª ré uma empreitada, por intermédio do casal de réus, sócios da 1.ª ré. A obra contratada foi apenas realizada em parte e de forma deficiente. Os réus, pessoas singulares, são responsáveis pelo desaparecimento de objectos que lhes foram confiados, quando a autora residiu em casa destes. Concretizou no seu articulado as circunstâncias em que adquiriu o mencionado imóvel e travou conhecimento com os réus, alegando terem-na estes convencido a realizar a empreitada, já em curso, com a 1.ª ré e a prescindir dos serviços da empresa que tinha contratado, afirmando que a parte estrutural apresentava deficiências graves, e oferecendo-lhe, inclusive, o anexo de sua casa para que pudesse aí ficar a habitar até à conclusão das obras. Em virtude de os réus terem residido em França e falarem francês e à intervenção do réu no que se refere à existência de deficiências na execução da obra, em Junho de 2019, contratou os serviços dos réus e passou a residir no anexo de casa destes, onde permaneceu desde 30 de Junho até 18 de Agosto, altura em que, devido ao mau ambiente que se gerou, foi viver para uma casa arrendada junto do imóvel onde decorriam as obras. Nessa altura, porém, os réus pessoas singulares locupletaram-se com diversos bens móveis e outros objectos que lhe pertenciam e que nunca devolveram, nomeadamente, os que identifica no seu articulado, no valor de 7.500€, para além do réu pessoa singular ter feito desaparecer da casa em construção uns ferros decorativos e danificado uma fossa Tricel, avaliada em 13.000€, retirando a parte eléctrica, causando assim prejuízos totais a rondar o valor de 20.000€. No que se refere à empreitada a cargo da 1.ª ré, alegou ter esta sempre apresentado orçamentos elevados, sem rubricas discriminadas, tendo ao longo do projecto, e até Outubro de 2019, liquidado 90.000€ (82.000€, se considerados apenas os valores documentados), quando esta apenas realizou trabalhos em montante correspondente a cerca de 27.914€, acrescido de 6.420,22€, de IVA (o que perfaz 34.334,22€), pelo que se locupletou com o valor de € 55.665,78. Após o abandono da obra pela 1.ª ré, contratou, no último trimestre de 2019, uma nova empresa para acabar as obras que a ré não quis continuar, tendo, então, apurado diversas diferenças e obras não realizadas com referência aos diversos orçamentos apresentados pela ré, no valor total orçamentado de 116.767,81€. Dessas obras, apenas foram integralmente realizados trabalhos no valor de 13.645,99€, e parcialmente realizados ou incompletos trabalhos, que considera defeituosos, no valor de 14.268,01€, perfazendo, assim, o montante global de 27.914€, conforme apurado por uma arquitecta independente por si contratada. Teve necessidade de contratar um electricista que era suposto ser pago pela 1.ª ré e ter o réu ficado nesse dia furioso e a injuriado e difamado perante terceiros, o que motivou a apresentação de uma queixa-crime, tendo, entretanto, e no seguimento do abandono da obra, sido trocada diversa correspondência entre as partes que culminaram com a resolução do contrato de empreitada e com a contratação de uma outra sociedade a fim de serem concluídos os trabalhos.
Os réus contestaram, excepcionando a ilegitimidade passiva por se manter – depois do aperfeiçoamento – a alegação de terem sido os réus a serem contratados, sem se mostrar claro qual a responsabilidade imputada a cada um dos réus, bem como a violação do princípio da subsidiariedade do instituto do enriquecimento sem causa, porquanto não é alegada qualquer materialidade para o referido pedido e sua subsidiariedade face às causas de pedir antecedentes que, por via do regime da empreitada ou das participações criminais apresentadas, asseguram a respectiva tutela indemnizatória; e impugnando: no que se refere à matéria dos trabalhos realizados, defenderam ter a 1.ª ré apresentado sucessivos orçamentos, na sequência dos pedidos feitos pela autora e suas modificações, sendo estes devidamente descriminados quanto aos trabalhos e respectivos valores, os quais foram apresentados em francês e que a autora aceitou, liquidando os trabalhos à medida que as respectivas facturas lhe eram apresentadas. O valor orçamentado foi, no total, de 164.035€, tendo sido realizadas obras no valor de 82.427,36€, das quais apenas foi pago o valor de 81.022,03€, pelo que a autora se mantém em falta de 1.405,33€. A autora não pagou qualquer montante não documentado. Em relação aos valores apresentados pela autora com base no levantamento efectuado por uma arquitecta, é omitido o orçamento A/4, no valor de 36.305€, correspondente a obras efectivamente realizadas, e não se faz referência ao orçamento A/10 ter sido substituído pelo orçamento A/11, impugnando o documento apresentado a esse respeito, designadamente por não ter sido efectuado com a sua participação e não se compreenderem os valores de execução dos trabalhos aí imputados. Negaram, no mais, ter a 1.ª ré abandonado a obra, não tendo os trabalhos prosseguido devido à autora, em finais de Agosto de 2019, não ter contratado um electricista, necessário à continuação dos trabalhos, e por não se encontrar liquidada a factura A/19 que se encontrava em dívida, a que acresce o facto de não terem sido adjudicados os trabalhos relativos à colocação da fossa entretanto já descarregada no local, tendo sido a autora, no seguimento da desavença gerada, que por razões do seu interesse foi contratar uma outra empreiteira. Referiram as circunstâncias em que as partes travaram conhecimento, bem como à contratação da 1.ª ré, em substituição de um anterior empreiteiro, admitindo ter a autora chegado a residir num anexo de uma casa que o casal de réus tinha na Malveira da Serra. Contudo, a autora contratou uma empresa de mudanças para o efeito e queixou-se de lhe terem furtado diversos objectos. O réu nega ter-se apropriado de quaisquer bens, até por o anexo ser de pequena dimensão e nele não caberem todos os móveis identificados na PI de que, alegadamente, se teriam apropriado; o réu não injuriou a autora ou danificou a fossa séptica que já se encontrava descarregada no local. Em reconvenção a 1.ª ré pediu, para além dos referidos 1.405,33€, respeitante aos trabalhos realizados e não liquidados, a condenação da autora no pagamento de 76.781,46€, corresponde aos prejuízos sofridos com a não conclusão dos trabalhos orçamentados e aceites no valor de 158.103,49€ (dos quais realizou obras no valor de 81.332,03€). Pediu ainda uma indemnização de 15.000€ por danos não patrimoniais no valor de 15.000€. Os 2.º e 3.ª réus pediram uma indemnização de 7500€ por danos não patrimoniais.
A autora veio replicar, pronunciando-se quanto às excepções de ilegitimidade activa e de subsidiariedade do enriquecimento sem causa, impugnando, no mais, os factos que sustentam a reconvenção, e pedindo a sua absolvição dos pedidos aí formulados: reafirmou não ser devedora de qualquer quantia e ter sido a 1.ª ré a abandonar a obra, tendo já, oportunamente, resolvido o contrato de empreitada, pelo que não assiste a esta o direito a qualquer dos valores peticionados.
Foram considerados inadmissíveis os pedidos reconvencionais relativos à condenação da autora no pagamento das indemnizações peticionadas a título de danos não patrimoniais sofridos por cada um dos réus reconvintes; foi julgada improcedente a excepção dilatória de ilegitimidade passiva e relegado para a sentença o conhecimento da excepção peremptória deduzida a respeito da violação do princípio da subsidiariedade do enriquecimento sem causa.
Procedeu-se à realização da audiência final, no início da qual consignou-se estarem as partes de acordo quanto aos orçamentos referentes à empreitada em causa nos autos corresponderem ao resumo traduzido para português junto pelos réus como doc.20 da sua contestação, bem como que o valor pago pela autora à 1.ª ré pela realização das obras ascendeu, pelo menos, a 81.022,03€.
No decurso da audiência, foi prestado depoimento de parte pelo réu, enquanto pessoa singular e representante legal da 1.ª ré, do qual foi lavrado assentada, sendo ainda admitida a junção de versão legível de um documento resumo com o teor dos orçamentos traduzidos para português. No decurso da audiência consignou-se ter resultado das declarações de parte da autora matéria complementar ou instrumental susceptível de ser aproveitada pelo tribunal, tendo sido concedida às partes a possibilidade de exercerem o contraditório ou de tal valer como confissão, o que elas fizeram.
(este relatório utilizou, no essencial, o relatório da sentença recorrida)
Foi proferida sentença julgando a acção e a reconvenção parcialmente procedentes, condenando a autora a liquidar à 1.ª ré o valor correspondente à contraprestação devida pela liquidação integral do preço relativo à empreitada, ou seja, 76.781,46€, descontado do benefício resultante para a 1.ª ré da exoneração, nos termos do art. 795/2 do CC, nomeadamente, [d]o que se relacione com custos e encargos com mão-de-obra e material que não chegaram a ser incorporados na obra, bem como do benefício decorrente de ter já recebido o valor de 12.727,47€ por trabalhos que não foram efectivamente realizados, a liquidar ulteriormente por via incidental nos termos dos artigos 358/2 e 609/2, do CPC, sendo os 2.º e 3.ª réus absolvidos dos pedidos indemnizatórios formulados na acção; e a autora absolvida do pedido de condenação como litigante de má-fé. As custas pela acção foram fixadas em ¾ pela autora e ¼ pelos réus. As custas pela reconvenção foram fixadas em ¼ pelos réus e ¼ pela autora.
A autora vem recorrer da sentença, impugnando alguns pontos da decisão da matéria de facto e a condenação da autora.
Os réus contra-alegaram, aderindo à decisão recorrida e defendendo a improcedência do recurso.
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Questões que importa conhecer: se aqueles pontos da matéria de facto devem ser alterados e se a autora não devia ter sido condenada.
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Foram dados como provados os seguintes factos [o início do facto 9 é alterado, o facto 11 é eliminado e do facto 14 é eliminada uma expressão, tudo na sequência da decisão por este TRL da impugnação da matéria de facto]:
1\ A autora é uma cidadã francesa, residente em Portugal, que trabalha como consultora imobiliária.
2\ A autora, tendo anteriormente residido num apartamento em Lisboa, celebrou, em Janeiro de 2019, na qualidade de promitente-adquirente, um contrato promessa de compra e venda, com tradição, tendo por objecto um prédio urbano constituído por casa de cave para adega, rés-do-chão e sótão para habitação e logradouro, sito em […]
3\ A autora veio, posteriormente, a adquirir o direito de propriedade sobre esse imóvel, tendo promovido obras tendo em vista a sua reabilitação.
4\ Os 2.º e 3.ª réus são casados entre si e sócios gerentes da 1.ª ré, trabalhando ambos para a sociedade.
5\ A 1.ª ré dedica-se, nomeadamente, à actividade de construção, renovação e remodelação de imóveis.
6\ A autora e os 2.º e 3.ª réus conheciam-se socialmente, pelo menos, desde o primeiro semestre de 2019, tendo o seu contacto sido facilitado por se exprimirem em comum em língua francesa.
7\ Na altura, a autora tinha em curso uma empreitada com referência à moradia referida em 2, tendo o imóvel sido visitado pelo réu que assinalou algumas deficiências dos trabalhos, nomeadamente, relacionados com a necessidade de uma viga de suporte.
8\ No seguimento desse contacto, a autora, a partir de Junho de 2019, veio a adjudicar diversos trabalhos à 1.ª ré tendo em vista a continuação dos trabalhos de reabilitação desse imóvel, em substituição da anterior empreiteira.
9\ A autora, ao longo da relação mantida com a 1.ª ré, adjudicou a esta os seguintes trabalhos objecto de descriminação nos seguintes orçamentos, cujo resumo consta do doc.20 junto com a contestação (tradução da versão original redigida em língua francesa), com equivalência parcial no documento de avaliação dos trabalhos elaborado por uma arquitecta contratada pela autora junto como doc.8 junto com a PI:
9\ A autora, ao longo da relação mantida com a 1.ª ré, aceitava os orçamentos elaborados pela ré para os trabalhos a realizar, apondo neles a sua assinatura e remetendo-os de volta à ré; depois a ré elaborava facturas com 40% do valor do orçamento – num caso, A/14, 50% e, no caso do A/3, a 2.ª factura que lhe dizia respeito foi de 50% – e remetia-as à autora (nas facturas não iam descritos os trabalhos); a autora fazia o depósito ou a transferência desses valores para a ré e enviava-lhe os comprovativos deles; a ré emitia então os recibos e iniciava trabalhos descritos nos orçamentos em causa. Todos os trabalhos dos orçamentos constam do resumo que é o doc.20 junto com a contestação (tradução da versão original redigida em língua francesa), com equivalência parcial no documento de avaliação dos trabalhos elaborado por uma arquitecta contratada pela autora junto como doc.8 junto com a PI:
– Orçamento 035/A/2, de 18/06/2019, no valor total de 46.044,46€, com IVA incluído a 23%, relativo a trabalhos de renovação do rés-do-chão: (i) na entrada; (ii) no corredor da entrada; (iii) na cozinha, sala de estar e sala de jantar; (iv) quarto 6 (hóspedes); (v) casa de banho (de hóspedes); (vi) quarto 9 (closet); (vii) quarto 10 (suite); (viii) casa de banho 11 (casa de banho suite); (ix) escritório; (x) corredor de acesso aos quartos.
– Orçamento A/3, de 23/06/2019, no valor total de 20.945,44€, com IVA incluído a 6%, relativo a trabalhos complementares no rés-do-chão.
– Orçamento A/4 de 24/06/2019, no valor total de 44.629,26€, com IVA incluído a 23%, relativo a trabalhos no exterior.
– Orçamento A/5 de 25/06/2019, no valor total de 32.511,22€, com IVA incluído a 6%, relativo a trabalhos na cave (piso térreo).
– Orçamento A/9 de 13/08/2019, no valor total de 4.915,38€, com IVA incluído a 6%, relativo a trabalhos complementares na cave (piso térreo).
– Orçamento A/11 de 02/09/2019, no valor total de 6.376,70€, com IVA incluído a 23%, relativo a suplementos no terraço e jardim.
– Orçamento A/12 de 02/09/2019, no valor total de 2.368,98€, com IVA incluído a 23%, relativo a trabalhos complementares na cave e no exterior.
– Orçamento A/13 de 02/09/2019, no valor total de 5.294,06€, com IVA incluído a 6%, relativo a construção de uma chaminé e fornecimento de tubos e montagens.
– Orçamento A/14 de 04/09/2019, no valor total de 950,18€, com IVA incluído a taxa desconhecida, relativo fornecimento e montagem de alimentação eléctrica da fossa séptica e montagem de rede de água potável,
no valor total orçamentado de 164.035,70€, com IVA incluído.
10\ Nos termos dos referidos orçamentos o valor dos trabalhos seria liquidado de acordo com as seguintes condições de pagamento: 40% com a adjudicação, 50% no decorrer da intervenção e 10% com a conclusão dos trabalhos.
11\ A autora aceitou os orçamentos emitidos pela 1.ª ré, adjudicando a esta a realização dos trabalhos aí descritos.
12\ A 1.ª ré emitiu com referência aos trabalhos adjudicados as seguintes facturas:
– FT a/1, de 19/06/2019 [=> 40% do 1.º = 35/A/2 – TRL], no valor de 18.417,74€;
– FT a/8, de 23/07/2019 [=> 40% do A/3], no valor de 8.378,26€;
– FT a/9, de 23/07/2019 [=> 40% do A/5], no valor de 13.777,65€;
– FT a/11, de 24/07/2019 [=> 50% do A/4], no valor de 22.313,43€;
– FT a/13, de 29/08/2019 [=> 50% do A/3 – dado o valor – TRL], no valor de 10.472,83€;
– FT a/14, de 29/08/2019 [=> 40% do A/9], no valor de 1.966,15€;
– FT a/15, de 03/09/2019 [=> 40% do A/13], no valor de 2.117,63€;
– FT a/16, de 04/09/2019 [=> 40% do A/11], no valor de 2.550,68€;
– FT a/17, de 04/09/2019 [=> 40% do A/14], no valor de 380,07€;
– FT a/18, de 04/09/2019 [=> 40% do A/12], no valor de 947,59€;
perfazendo o valor total de 81.332,03€, com IVA incluído.
[Este TRL acrescentou, em parenteses rectos, as referências aos orçamentos respectivos, para melhor esclarecimento dos factos, com base no que consta das próprias facturas, que não foram impugnadas, e ao abrigo dos arts. 663/2 e 607/4 do CPC].
13\ A autora liquidou à 1.ª ré, pela execução dos trabalhos adjudicados, pelo menos, o valor total de 81.022,03€, com IVA incluído.
14\ A 1.ª ré, dos trabalhos orçamentados e adjudicados, e até à sua interrupção, havia realizado trabalhos correspondentes a, pelo menos, os seguintes montantes, sem IVA incluído, com referência a cada um dos orçamentos:
– Orçamento 035/A/: 6.896,99€, correspondendo:
(i) na entrada: 1.675,93€ (235,84€ + 308,06€ + 1.132,03€ + 280€);
(ii) no corredor da entrada: não há trabalhos realizados;
(iii) na cozinha, sala de estar e sala de jantar: 2.756,26€ (125,30€ + 183€ + 1.238€ + 175€ + 619€ + 166,88€ + 144€ + 105€);
(iv) quarto 6 (hóspedes): 322,43€ (35€ + 287,43€);
(v) casa de banho (de hóspedes): 379,67€ (162€ + 35€ + 182,67€);
(vi) quarto 9 (closet): € 344,54 (€ 309,54 + 35€);
(vii) quarto 10 (suite): € 414,54 (€ 309,54 + 105€);
(viii) casa de banho 11 (casa de banho suite): 677€ (128€ + 165€ + 384€);
(ix) escritório: 163€ (128€ + 35€);
(x) corredor de acesso aos quartos: € 163,62.
– Orçamento A/3: 11.051,05€ (2.304,60€ + 962,50€ + 402,50€ + 342,90€ + 816€ + 497,85€ + 511,25€ + 105,10€ + 1.332,55€ + 421,50€ + 420€ + 212,50€).
– Orçamento A/4: 24.220,30€ (2.968€ + 742€ + 1.605,80€ + 509€ + 2.652,50€ + 645€ + 102,75€ + 1.564€ + 13.431,25€).
– Orçamento A/5: 13.831,85€ (657,70€ + 491,80€ + 4665,65€ + 985,25€ + 2288,15€ + 421,95€ + 291,20€ + 210,50€ + 2568,15€ + 471,65€ + 256,85€ + 361,50€ + 161,50€).
– Orçamento A/9: 1.043,93€ (136,20€ + 697,73€ + 210€).
– Orçamento A/11 (com inclusão do A/10 da arquitecta): 967,69€ (117,50€ + 540€0 + 310,19€).
– Orçamento A/12: 993,60€.
– Orçamento A/13: 117,90€.
– Orçamento A/14: não realizados os trabalhos,
no valor total 59.123,31€.
15\ O valor total dos trabalhos realizados, acrescido do IVA à taxa legal aplicada em cada um dos orçamentos referidos em 9, com o respectivo arredondamento legal, perfaz o montante de 68.294,56€ (8.483,30€ + 11.714,59€ + 29.790,97€ + 1.4661,77€ + 1.106,57€ + 1.190,26€ + 1.222,13€ + 124,97€), sendo diferença para o valor recebido pela ré referido em 13, de 12.727,47€.
16\ Em meados de Setembro de 2019, por ocasião da descarga no local da obra da fossa Tricel que a 1.ª ré havia encomendado vinda de França, gerou-se um desentendimento, que incluiu uma discussão acesa com acusações mútuas, entre a autora e o réu com respeito à execução da empreitada, que causou a ruptura das suas relações pessoais e profissionais.
17\ Na altura, a 1.ª ré já havia emitido a factura a/19, datada de 06/09/2020, com vencimento no próprio dia, no valor total de 12.669€, com IVA incluído, referente a obras incluídas no Orçamento A/4, e exigia o seu pagamento, o que a autora se recusou a fazer por considerar que já havia realizado pagamentos em valor superior ao que seria devido.
18\ A factura a/19 foi, posteriormente, anulada pela 1.ª ré, por nota de crédito datada de 31/12/2019, com a menção em observações: “a cliente não quer pagar”, e enviada à autora.
19\ Para além disso, não se encontrava ainda adjudicada a continuação dos trabalhos de electricidade necessários ao prosseguimento da obra pela ré, que a autora ficara de contratar a terceiros, não tendo a autora concordado com a sugestão apresentada pela ré no que se refere à contratação de um electricista a quem a ré havia pedido um orçamento e do qual lhe havia dado conhecimento em 17/07/2019.
20\ Devido ao desentendimento ocorrido, estando em falta o pagamento da factura a/19 e não tendo havido a contratação de um electricista, a 1.ª ré não deu seguimento aos trabalhos, tendo retirado os seus instrumentos de trabalho do local da obra.
21\ A autora, por sua vez, na semana seguinte mudou as fechaduras de acesso à obra, não tendo mais intenção de que a 1.ª ré tivesse acesso ao local ou prosseguisse a obra.
22\ Após o sucedido, no último trimestre de 2019, a autora contratou uma nova sociedade tendo em vista a continuação dos trabalhos, tendo sido esta a concluir as obras.
23\ Após o desentendimento ocorrido entre a autora e a 1.ª ré, na pessoa do réu, a partir de 14/09/2019, foi trocada correspondência entre as partes, com indicação pela autora de ser representada por advogados, em que esta peticionava o envio de documentação relativa à empreitada (v.g. facturas, orçamentos e autos de medição), respondendo a 1.ª ré que esses elementos eram já do conhecimento da autora.
24\ No seguimento desses contactos, a 1.ª ré, através da sua contabilista, enviou à advogada da autora o email junto como doc.7 com a PI, datado de 23/09/2019, no qual alerta para situações que devem ser seguidas para a continuidade e segurança dos trabalhos, referindo-se à necessidade da obra dever ter um projecto elaborado por um arquitecto e um engenheiro por forma a ser legalizado junto da Câmara, acrescentando que qualquer empresa que se apresente para dar continuidade aos trabalhos assumirá todas as responsabilidades no caso de não ter em atenção as situações aí elencadas.
25\ A autora, através do seu mandatário, remeteu à 1.ª ré a carta junta como doc.10 com a PI, datada de 02/07/2020, na qual alegando a existência de obras não realizadas ou feitas com diversas imperfeições, e invocando o abandono da obra em Setembro/Outubro de 2019 e a aceitação dos defeitos pela ré por não ter sido feita qualquer verificação, nos termos dos artigos 1218 e 1220 do CC, bem como o incumprimento do contrato de empreitada por recusa em acabar a obra e corrigir os defeitos, solicitou a apresentação, no prazo de 8 dias úteis, de contas tendo em vista a devolução do montante que computava em 70.000€, a apurar, bem como a pagar os danos verificados na fossa Tricel e a devolução de bens móveis que se encontravam à guarda da ré.
26\ A 1.ª ré respondeu à referida missiva nos termos da carta que consta do doc.11 junto com a PI, datada de 13/07/2020, negando ter apenas realizado trabalhos no valor indicado pela autora ou terem existido imperfeições, e alegando ter parado os trabalhos por existirem valores em dívida, incluindo uma factura emitida em Setembro de 2019, no valor de 12.669€ que a autora se recusou a pagar, acrescentando que face à contratação de outra empresa deixou de ter qualquer responsabilidade.
27\ Após a troca da referida correspondência, o mandatário da autora, em finais de Julho de 2020, escreveu um email e uma nova carta à 1.ª ré afirmando que se encontrava a analisar a documentação e a solicitar uma reunião, insistindo ulteriormente pela sua realização em novo email de Agosto de 2020.
28\ A 1.ª ré respondeu por carta junta como doc.16 junto com a PI datada de 25/08/2020, declarando não ver interesse em realizar qualquer reunião que não fosse para discutir a indemnização a que teria direito da autora por danos a causados à empresa.
29\ A autora, através do seu mandatário, remeteu à ré nova carta junta como doc.17, datada de 21/12/2020, a comunicar a resolução definitiva do contrato, nos termos do art. 790 do CC, por culpa exclusiva da ré.
30\ Em virtude da relação de confiança que inicialmente se criou entre a autora e os 1.º e 2.ª réus, a autora chegou a residir num anexo da casa dos réus, sita na Malveira da Serra, sensivelmente entre finais de Junho e meados de Agosto de 2019.
31\ A autora deixou de residir no anexo daquela casa em virtude da relação entre todos se ter vindo a degradar devido a desavenças relacionadas com a realização pela 1.ª ré das obras no imóvel da autora.
32\ A autora, aquando da mudança do apartamento em que residia em Lisboa para o anexo da casa dos réus, contratou a mudança de diversos bens móveis, tendo parte destes sido colocados no anexo e os restantes, que aí não cabiam, transportados para outros locais.
33\ A autora apresentou uma queixa-crime contra os réus, a qual deu origem ao processo 2774/20 […], o qual veio a ser arquivado por decisão de 20/12/2021, no que se refere aos crimes de ameaça e de injúria, de natureza particular e semipúblico, por intempestividade da queixa, e relativamente ao crime público de burla qualificada por não se terem recolhido indícios suficientes dos elementos do crime, nos termos do art. 277/2 do CPP.
34\ A autora, na qualidade de assistente, requereu a abertura de instrução, tendo o requerimento sido rejeitado por decisão de 21/06/2022 da Juiz de Instrução com fundamento na sua inadmissibilidade por falta de objecto, nos termos do art. 287/3 do CPP, do qual foi interposto recurso que foi rejeitado por decisão sumária do Tribunal da Relação de 30/11/2022, por manifestamente improcedente.
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Da impugnação da decisão da matéria de facto
Factos 9, 11 e 14
A fundamentação da convicção do tribunal recorrido foi a seguinte, na parte que importa:
[…]
Atento o esclarecimento prestado no início da audiência (cf. acta de 08/09/2023), resultante de acordo entre as partes, e com base nos documentos que foram juntos aos autos (de forma repetida e algo desorganizada […]), deu o tribunal como provado terem sido apresentados pela ré à autora os 9 orçamentos referidos na contestação, incluindo, a descriminação dos trabalhos, respectivas condições de facturação, e sua aceitação pela autora, com a correspondente obrigação por parte da ré de realizar os trabalhos aí adjudicados (cf. factos 9, 10 e 11).
[parenteses deste TRL – na acta de 08/09/2023, 1.ª sessão da audiência final, consta: Sem prejuízo de não ser possível a conciliação das partes, tendo em vista a facilitar a produção de prova e ouvidos os mandatários que deram a sua concordância, pelo tribunal foi determinado que consignasse estarem as partes de acordo em que os orçamentos referentes à empreitada em causa nos autos correspondem ao resumo traduzido para português junto pelos réus como documento 20 da sua contestação. Mais se determinou que se consignasse que as partes estão de acordo que o valor pago pela autora à ré pela realização das obras ascendeu pelo menos a 81.022,03€]
A este respeito importa referir ter o tribunal dado como provada a matéria relativa aos orçamentos e seu conteúdo tendo por referência o documento n.º 20 junto com a contestação, denominado “Resumo de todos os orçamentos traduzidos para português”, o qual corresponde a uma tabela, já com tradução para a língua portuguesa, com a identificação de cada um dos orçamentos, a descrição dos trabalhos aí incluídos e respectivo valor orçamentado e que, na sua quase totalidade, coincide com a descrição que consta do relatório de avaliação dos trabalhos efectuado pela arquitecta contratada pela autora, que foi junto como doc.8 com a PI.
A partir da análise destes dois documentos, que assumirão, como se referirá, maior importância para efeitos de apuramento dos trabalhos realizados, e considerando os esclarecimentos que sobre estes foram prestados, tanto pelos depoimentos e declarações de parte e depoimento de parte das testemunhas ouvidas no decurso da audiência, foi possível ao tribunal concluir quais os orçamentos e trabalhos concretamente adjudicados, sendo certo que, em termos de prova documental comprovativa, e sem prejuízo de outras repetições, estes encontram-se, na sua quase totalidade, juntos aos autos, de forma sequencial, com a primeira contestação apresentada pelos réus.
Assim, com a ressalva do documento referente ao orçamento A/3 não ter sido junto na sua versão completa e de resultar do próprio documento que o orçamento A/5 foi objecto de rectificação (cf. documentos juntos com a contestação), sem que tal afecte a descriminação feita nos documentos para os quais remete a factualidade, ficou provado que tais orçamentos foram emitidos pela 1.ª ré e adjudicados pela autora, com identificação das diversas áreas da casa intervencionadas, trabalhos concretos a realizar e valores discriminados, não ficando, assim, provado o alegado pela autora a respeito dos orçamentos não conterem rubricas discriminadas, nem havendo prova de que os valores apresentados fossem elevados (cf. facto não provado H).
Atendendo aos referidos orçamentos, e atento o resumo constante da tabela junta pelos réus, concluiu, pois, o tribunal que a adjudicação dos trabalhos correspondeu ao valor total de 164.035,70€, com IVA, conforme alegado pela ré (cf. facto 9), tendo existido acordo das partes (cf. acta da audiência 08/09/2023 e assentada do depoimento de parte do réu) a respeito da autora ter liquidado por conta destes, pelo menos, 81.022,03€ (cf. facto 13). Não se provou, no mais, a entrega de qualquer outro valor por parte da ré, nomeadamente, em numerário, nomeadamente, por não ter sido produzida qualquer prova pela autora a respeito dessa factualidade que, assim, ficou por demonstrar, e cujo ónus da prova cabia à autora (cf. facto não provado I).
Com base nos documentos juntos aos autos, no caso, as facturas juntas com a contestação (com exclusão da factura a/19 que veio a ser objecto de anulação), e não existindo igualmente divergência a esse respeito, deu, finalmente, o tribunal como provada cada uma das facturas emitidas pela ré com respeito aos diversos orçamentos e o respectivo valor total facturado, com IVA, corresponder a 81.332,03€ (cf. facto 12), salientando-se a circunstância da taxa de IVA referida pela ré, nos orçamentos por esta apresentados– sem que destes resulte justificação para tal –, nem sempre se mostrar coincidente (taxas de 6% ou 23%), o que também explica a existência de algumas diferenças entre a tabela da ré e a avaliação da arquitecta da autora.
De referir, ainda, que quanto aos trabalhos concretos adjudicados e ao apuramento dos trabalhos realizados, para efeitos de comparação entre a tabela junta pela ré e o relatório de avaliação da arquitecta, atendeu o tribunal essencialmente, aos valores inscritos em cada uma das rubricas ou linhas, uma vez que estes coincidiam entre si. Tal identidade não se verifica, contudo, a respeito da descrição dos trabalhos, porquanto se verificou, em muitos casos, uma diferença na descrição desses trabalhos, o que foi justificado por, em ambos os casos, corresponderem a traduções da descrição original feita em francês, o que explica as diferentes enunciações dos trabalhos contidas documentos-resumo apresentados.
Por esta razão, e até pela imprecisão quanto à identificação dos trabalhos em causa, não incluiu o tribunal na matéria de facto a descrição exaustiva dos trabalhos orçamentados (cf. arts. 50 a 68 da PI aperfeiçoada), antes se baseando, para efeitos comparativos, nos valores inscritos nos documentos-resumo apresentados que para estes remetem, tendo sido possível concluir, na medida do possível face à natureza técnica da matéria e à circunstância da obra ter sido, entretanto, concluída, qual o valor dos trabalhos efectivamente realizados em obra pela 1.ª ré na qualidade de empreiteira (cf. facto 13).
O critério do tribunal para dar como provada esta matéria e que, adiante-se, levou a que, considerando o IVA indicado por referência a cada um dos orçamentos, se apurasse que o valor total de trabalhos realizados correspondia a 68.294,56€ (cf. facto 14), foi o de atender ao levantamento efectuado pela arquitecta Cláudia Tavares e Castro, que prestou o seu depoimento no decurso da audiência de forma que se nos afigurou sincera e credível, procedendo-se à comparação com a tabela junta pela ré que se refere a essa avaliação e a contraria parcialmente.
Conforme resulta da análise atenta de cada um destes documentos-resumo, a diferença entre os trabalhos realizados apurados pela arquitecta na sua avaliação e pela ré na tabela resumo por si efectuada, com referência aos orçamentos que ambos consideraram, não foi, na realidade, acentuada, sendo as divergências de carácter pontual e até interpretativa, chegando a avaliação da arquitecta a considerar valores que a ré não inclui na sua tabela mas que se entendeu deverem-se a diferenças de critérios sobre os trabalhos incluídos na respectiva descrição. Assim, por ex., no orçamento 35/A, no ponto (viii), referente à casa de banho, a arquitecta contabilizou 1/3 de execução pela montagem da canalização, enquanto a ré terá entendido que essa descrição não incluiria essa montagem, pelo que nada se contabilizou a esse respeito.
Assim, em termos de critério, e não tendo as partes correspondido ao convite formulado pelo tribunal de procederam por acordo a uma análise comparativa desses dois documentos-síntese, procedeu o tribunal a essa tarefa, discriminando a propósito de cada um dos orçamentos cada um dos valores parciais e global dos trabalhos que considerou ter ficado demonstrado terem sido realizados, tendo, em resumo e para o efeito da formação da sua convicção, seguido os seguintes critérios:
a) atendeu-se preferencialmente à avaliação realizada pela arquitecta C uma vez que, não obstante ter sido contratada pela autora e ter sido quem acabou por acompanhar a obra até à sua conclusão, prestou o seu depoimento de forma que nos pareceu suficientemente isenta e profissional, esclarecendo o trabalho de levantamento por si realizado, o respectivo contexto e critérios técnicos seguidos, tendo sido a pessoa que, após a paragem dos trabalhos em curso pela ré, foi primeiro efectuar o levantamento das necessidades relativas à conclusão da obra;
b) o depoimento em causa foi, ainda que de forma mais genérica e sem o mesmo rigor técnico, confirmado no que se refere aos trabalhos que foi preciso finalizar, pelo novo empreiteiro, no caso, a testemunha CC, que depôs a respeito dos trabalhos que executou, após ter sido contratado pela autora, e sob a orientação da mencionada arquitecta;
c) a prova realizada pela ré a respeito dos trabalhos realizados, para além do conhecimento que a 3.ª ré demonstrou nas suas declarações de parte ser indirecto, limitou-se ao depoimento da testemunha EL que, sem prejuízo de ser arquitecto e ter analisado os orçamentos por forma a ser dada resposta à avaliação da arquitecta, admitiu nunca ter ido à obra e ter-se apenas baseado nos orçamentos e facturas que lhe foram entregues pela parte, não tendo, assim, conhecimento directo dos trabalhos realizados;
d) a restante prova testemunhal produzida, nomeadamente, as testemunhas da autora que terão tido contacto com a obra enquanto esta era executada pela ré, nomeadamente, as testemunhas JR, fornecedor de janelas, SN, fornecedora de pavimentos que nada sabia sobre os factos, e FL, vizinho da autora que visitava a obra, nada adiantaram de relevante a respeito dos trabalhos efectivamente realizados, não tendo o seu depoimento servido para formar a convicção do tribunal a respeito desta matéria;
e) apesar do tribunal ter partido da avaliação efectuada pela arquitecta, nem todos os valores aí apresentados, nomeadamente, certas reduções de valores relativos ao fornecimento de gesso cartonado, foram consideradas pelo tribunal, uma vez que se entendeu que, não tendo a acção por causa de pedir a existência de defeitos mas antes a não realização total dos trabalhos adjudicados, não poderiam ser consideradas as reduções operadas pela arquitecta fundadas em correcções que, alegadamente, teriam tido de ser efectuadas. Nessa medida, e até por sendo caso de haver defeitos, teria de ter sido dada a possibilidade à ré de os corrigir, não considerou o tribunal as reduções percentuais efectuadas pela arquitecta com base em supostos defeitos (por ex., nos orçamentos A/% e A/12), dando-se antes como provada a realização desses trabalhos, nos termos e com as percentagens, indicadas pela 1.ª ré na sua tabela-resumo. Com base neste critério, e até por não se entender ser imputável à ré ou constituir um trabalho não executado, igualmente se desconsiderou a redução feita na avaliação realizada pela arquitecta em tudo o que se refere ao gesso cartonado que foi fornecido e deixado na obra e que se terá estragado pelo decurso do tempo, valorando-se, nesta parte, a percentagem indicada pela ré na sua tabela (cf. orçamento 35/A, pontos (iii), (iv), (vi), (vii), (x)).
Sem prejuízo destas diferenças entre os trabalhos realizados indicados por cada uma das partes, quando tendo por base os mesmos orçamentos, não serem significativas, foi o montante apurado distinto do alegado pela autora em grande medida por se ter considerado, para efeitos dos trabalhos realizados, o orçamento A/4 apresentado pela ré e adjudicado pela autora, mas que não foi tido em consideração na avaliação da arquitecta junta como doc.8 com a PI. A este respeito, e com relevo para tal apuramento, resultou, efectivamente, demonstrado no decurso da audiência, para além da divergência acerca dos orçamentos A/10 e A/11 serem complementares ou ter o último substituído o primeiro – conforme se entende ter sido o caso, até por tal não prejudicar a autora por os trabalhos terem sido apurados pela arquitecta com base em ambos e não vir a ré alegar ter feito trabalhos com base no orçamento substituído –, que foram ainda adjudicados os trabalhos referidos no mencionado orçamento A/4 que se referia a trabalhos no exterior e que incluíam o fornecimento, preparação e montagem da fossa séptica “Tricel”.
A prova produzida no decurso da audiência permitiu concluir que no trabalho de avaliação efectuado pela mencionada arquitecta não foram incluídos os trabalhos objecto do mencionado orçamento que a autora, em sede de declarações de declarações de parte admitiu terem sido adjudicadas, tendo sido inquirida pelo tribunal sobre os trabalhos descriminados nesse orçamento que teriam sido efectivamente realizados.
Assim, na ausência da mencionada avaliação da arquitecta, atendeu o tribunal às declarações de parte da autora e procedeu ao confronto com os trabalhos que a ré na tabela resumo por si junta como doc.20 com a contestação alegou como tendo sido parcialmente realizados, considerando o tribunal que, na sua maior parte, os trabalhos em causa alegados como tendo sido feitos foram admitidos pela própria autora, até por a ré na 4.ª coluna da tabela, sob a designação “percentagem” apenas invocar ter realizado parte desses trabalhos.
As divergências em causa referiram-se, no essencial, à autora nas suas declarações se ter referido aos trabalhos terem sido mal feitos (cf. linha 3 do orçamento), o que, pelas razões acima referidas, e por se tratar da alegação de defeitos, não foi considerado para efeitos de redução, sendo que relativamente a linhas que a autora declarou não terem sido realizados os trabalhos e por a ré não ter feito prova convincente da sua execução não se deram estes como realizados (cf. linhas 10, 12 e 13), o que determinou que, a respeito do orçamento A/4, tenha o tribunal dado como provados os valores parciais indicados na matéria de facto, os quais apenas incluem 8 das 13 rubricas desse orçamento.
Atentos os referidos critérios e ponderando, nomeadamente, que não foi produzida prova bastante da realização de outros trabalhos que excedam o valor total apurado de 68.294,56€, com IVA, entendeu o tribunal que em relação ao valor total recebido pela ré, de 81.022,03€, na data da interrupção dos trabalhos, se encontrariam por executar trabalhos em valor correspondente a 12.727,47€ (e não o valor alegado pela autora, cf. facto não provado I), sendo certo que, atento o sistema de facturação adoptado pelas partes, não se pode concluir que tivesse havido aceitação ou admissão dos trabalhos realizados em função do facturado.
No decurso da audiência foi produzida prova a este respeito, tendo ficado claro, nomeadamente, a partir das declarações de parte da autora e da 3.ª ré, e do depoimento da testemunha IG, responsável pela execução da contabilidade da 1.ª ré e que, inclusive, auxiliou na elaboração da troca de correspondência que consta dos autos, que o método de facturação não se encontrava, em rigor, dependente da execução ou aceitação dos trabalhos.
Assim, conforme consta dos orçamentos e da descrição das facturas juntas aos autos, o escalonamento da facturação não obedecia a qualquer sistema equivalente à elaboração de autos de medição, sendo as facturas emitidas faseadamente, segundo referiu a 3.ª ré, por acordo entre o réu seu marido e a autora, não sendo tal, contudo, suficiente para levar a que o tribunal pudesse entender que a circunstância dos trabalhos terem sido facturados equivalesse à sua execução ou ao reconhecimento da sua realização.
Na verdade, conforme esclareceu a mencionada IG, as facturas foram emitidas de acordo com diferentes programas de facturação adequados a empresas de construção civil, de acordo com um critério que atendia a percentagens dos valores orçamentados, não tendo correspondência com qualquer elemento ou documento que traduzisse o estado efectivo de execução da empreitada.
Assim, e não permitindo os documentos juntos pela ré relativos à facturação, concluir quais os trabalhos a que correspondiam (até por terem uma descrição genérica que não concretiza os trabalhos realizados), apenas se pôde o tribunal socorrer da prova já acima indicada para dar como provados os trabalhos realizados e não ao que resulta da contabilidade, apurando-se, no seu conjunto e com as limitações próprias do juízo probatório em causa, um valor de facturação e de recebimento pela 1.ª ré, superior ao que ficou demonstrado corresponderem a trabalhos efectivamente realizados.
A autora entende que os factos 9, 11 e 14 saem contrariados com o alegado na resposta [a autora quer escrever contestação] à PI, porquanto no artigo 313 a ré escreveu:
Conforme o alegado nos artigos 140 a 144 , podemos dizer em suma que, do valor orçamentado de 164.035,78€ o qual corresponde à soma dos orçamentos devidamente descriminados naqueles artigos e que aqui se dão por reproduzidos, apurou-se que valor das obras adjudicadas ascendeu a 81.322,03€, o valor efectivamente liquidado pela autora (conforme facturas/recibos juntos) ascendeu a 81.022,03€, o valor das obras realizadas conforme também o devidamente descriminado ascenderam a 82.427,36€.
Este excerto deita por terra o facto provado de que foram adjudicados orçamentos no valor de 164.035,70€, quando na realidade só foram adjudicados orçamentos no valor de 81.322,03€. Não há qualquer prejuízo da ré no valor de 76.781,46€, porquanto tal valor nunca foi sequer adjudicado.
O mesmo deriva das declarações de parte do réu enquanto tal e enquanto representante da 1.ª ré:
Juiz: Quanto é que pagou?
Réu: 82.427,36€, exactamente. Isto foi, era o valor do, dos, dos orçamentos que lhe foram apresentados.
Juiz: Mas é o valor que foi pago pela autora?
Réu: Sim, pagou esse valor.
Entre o cotejo da reconvenção e esta afirmação, vê-se que nunca foram adjudicados orçamentos no valor de 164.035,70€.
Como não é verdade que devem contabilizar o orçamento A4 no valor de 44.629,26€, quando na realidade ele foi reduzido para 12.000€ pelas mesmas declarações de parte:
Advogado: A próxima questão de esclarecimento era relativamente ao orçamento A4. Portanto, aqui o réu referiu que conseguiu baixar o orçamento de 44 para 12.000€. A pergunta que faço é, o que é que justificou esta redução do preço?
Juiz: Eu percebi, eu depois tive essa dúvida também, pareceu-me que era só na peça. Mas… mas pode explicar um bocadinho melhor a questão do … do … da proposta inicial era 44 depois passou para 12.000€, dizia respeito ao quê? A todo o orçamento A4 ou …? Pode explicar, nós não estamos a …
Réu: Portanto, eu tentei contactar um fornecedor português que me pedia o valor de 44.000€ pela fossa Tricel e depois eu, através dos meus contactos em França, consegui reduzir o preço. Portanto, a primeira fossa … o fornecedor português que eu contactei na altura, deu-me um valor para uma fossa, que não era uma fossa Tricel de 44.000€. E depois, eu entrei em contacto com … com as pessoas que eu conheci em França e consegui obter uma fossa Tricel …, por 12.000€. E não é uma fossa, é … é uma micro estação. E é por isso que tem uma instalação muito específica.”
Vide depoimento de testemunha IG, disse ter sido contabilista da 1ª ré; no decorrer do seu depoimento, a testemunha foi confrontada com o doc.87 da contestação (e-mail de 23/Set).
03:50:5: Advogado: Então, diga-me como é que, como é que isto funcionava, eles iam fazendo as obras, facturavam, sabe… imperceptível…
03:58:7: T: Sei iam facturando de acordo com, com o evoluir da empreitada, era feito emitido um orçamento era discutido primeiro com a cliente, os trabalhos que queria fazer, era emitido o, o respectivo orçamento dos trabalhos a executar e obviamente que eles só avançavam com o aval dela, dela cliente, seja ela qualquer outro, era o procedimento da empresa.
00:04:25:3: Advogado: Esses orçamentos eram assinados pelo cliente, não eram assinados, eram só mandados?
A obra avançava com o envio e assinatura dos orçamentos por parte da autora. Pelo que só pagou 81.022,03€, não podem ser considerados orçamento no valor de 164.035,70€.
Porque esses orçamentos não foram adjudicados, não existe qualquer prejuízo para a empresa.
Vide depoimento de autora, prestado em 20/09/2023,
00:13:20.1: Juiz: Os orçamentos que foram contratados, que foram combinados, há algum que tenha sido substituído um pelo outro?
00:13:29.7: autora – Da mesma … da mesma empresa, não é?
00:13:37.7 Juiz Sim.
00:13:39.5 autora – Sim. Houve alterações de … de orçamentos. Sim.
Esses orçamentos não foram adjudicados, portanto não podiam ser contabilizados.
O facto provado 9 está em contradição com os factos provados 12 e 13, pois estes dois estão inteiramente correctos porque só estes foram adjudicados.
Da omissão de pronúncia: a autora transcreve os artigos 49 a 72 da PI; depois diz que estes artigos têm relação com o pedido (a) e acrescenta: A discriminação dos trabalhos imperfeitos ou realizados apenas parcialmente não foram alvo do tribunal, o tribunal só descreveu um anexo/tabela entregue pelos réus, não tendo destes itens dados como provados ou não provados os itens descritos na PI, havendo assim uma clara omissão de pronuncia.
Por fim: do cotejo da prova supra elencada deve o tribunal substituir os pontos 9, 11 e 14 da seguinte forma:
9\ A autora adjudicou os seguintes trabalhos à sociedade ré: [transcreve a seguir os artigos 49 a 72 da PI].
A alínea que refere como adjudicado o orçamento A4 no valor de 44.629,26€, deve ler-se que “As partes na adjudicação do orçamento A4, reduziram o valor de 44.629,26€ para 12.000€.
Os réus, aqui como de seguida, aderem à fundamentação da sentença recorrida (e, por isso, não se falará mais das contra-alegações).
Apreciação
A 1.ª questão posta é a questão da adjudicação. Grosso modo, os factos 9, 11 e 14 referem a adjudicação pela autora à ré de obras no valor de 164.035,70€, o que a autora diz não corresponder à realidade.
Antes de mais, note-se que a ‘adjudicação’ é um conceito mais próprio do direito público, mais precisamente do Código dos Contratos Públicos, cujo artigo 73/1 dá dela a seguinte noção: A adjudicação é o acto pelo qual o órgão competente para a decisão de contratar aceita a única proposta apresentada ou escolhe uma de entre as propostas apresentadas.
No CC a expressão só é utilizada uma vez, no art. 826 (Adjudicação e remição): As disposições dos artigos antecedentes relativos à venda [em execução] são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à adjudicação e à remição. No CPC, a expressão é utilizada principalmente para se referir a uma forma de pagamento de créditos. Ou seja, no direito privado, a adjudicação não tem nada a ver com a aceitação de propostas.
Ora, no caso dos autos, as partes usaram, normalmente, o termo adjudicação como aceitação da proposta.
Por outro lado, para além dos erros que se apontam a seguir, note-se que a autora apresentou nos autos um amontado de orçamentos: orçamentos aceites, orçamentos rascunhos (de 27/07/2019 a 13/08/2019), orçamentos em duplicado e no original, vários deles por 2 vezes. E no meio de tudo isto não juntou dois deles: os orçamentos eram, como a autora aceitou no início da audiência final, o 035/A/2, A/3, A/4, A/5, A/9, A/11, A/12, A/13 e A/14. Ora, a autora não apresentou o A/3 nem o A/5. Por outro lado, apresentou o orçamento A/10 que não consta daqueles que no início da audiência final aceitou como sendo os que estavam em causa.
Mais ainda: pediu a uma arquitecta que avaliasse o trabalho realizado pela 1.ª ré, mas não lhe terá enviado o orçamento A/4 – apesar de o ter apresentado nos autos, inclusive com a sua assinatura lá aposta – e enviou-lhe o A/10 que não devia ser considerado.
E depois, a autora transcreve no artigo 65 da PI – com 24 páginas, a avaliação da arquitecta, que tinha um mapa com apenas 5 páginas -, tudo aquilo que constava desse mapa, convertendo uma tabela num texto de uma forma só trabalhosamente compreensível, obviamente sem fazer constar dele todos os trabalhos do orçamento 4 e com a lista de trabalhos do orçamento 10 que tinha sido substituído.
Os réus, por sua vez, também não apresentaram todos os orçamentos: faltou o 14. E, daqueles que juntaram, embora o A/3 tivesse várias páginas, só juntaram a 1.ª. E não apresentaram as facturas 15 e 17.
Posto isto,
No art. 64 da PI, a autora escreve […] a arquitecta [contratada pela autora] elaborou um relatório/mapa onde fez reflectir as obras adjudicadas [à 1.ª ré], concretizadas, as que não foram feitas ou as que foram feitas de forma deficiente e imperfeita.
Na avaliação elaborada pela arquitecta consta – embora com falta do orçamento 4 e com o excesso do orçamento 10 – os trabalhos dos orçamentos. Ou seja, é como se partisse do princípio que eles tinham sido adjudicados, como lhe sugeria o envio deles pela autora.
No email transcrito no art. 91 da PI, a autora, entre o mais, escreve, o seguinte, em 02/07/2020, relativo ao assunto ‘Obras realizadas’ […]: 11 – V. Exa abandonou a Obra em finais de Setembro de 2019/Outubro de 2019, recusando realizar e executar os respectivos trabalhos orçados, mas já com os valores pagos pela minha constituinte e por vós recebidos.
Logo, a própria autora considerava que os trabalhos orçamentados eram os trabalhos adjudicados.
Os réus dizem nos artigos 16 e 18 da contestação que: Tal adjudicação à 1.ª ré ocorreu em 18/06/2019, com a emissão do 1.º orçamento das obras a realizar, tendo a 1.ª ré apresentado e remetido para a autora em 19/06/2019 a 1.ª factura (n.º 1 relativa ao citado 1.º orçamento). Com a emissão do 1.º orçamento a autora liquidou em 28/06/2019 40% do valor do mesmo, e, em cada um dos orçamentos apresentados e aceites pela autora esta pagava sempre inicialmente 40% do valor do orçamento.
E nos artigos 115 e 122 da contestação dizem: Com efeito, após a aceitação da obra (que teve de aguardar o seu início mais de um mês desde adjudicação, pois a ré tinha um outro trabalho em curso já orçamentada em Julho/2019 […]) e os “orçamentos foram apresentados (em francês) à autora que os aceitou e foi liquidando à medida que lhe eram remetidas as respectivas facturas.”
E no art. 138 da contestação escrevem: Como se extrai de todos os orçamentos é sempre prevista uma adjudicação de 40% do total do valor orçamentado e posteriormente apresentada a facturação respectiva dos trabalhos efectivamente realizados e liquidado pela autora.
A primeira parte está errada: a adjudicação agora já não significa aceitação. A última parte também está obviamente errada: as facturas representavam o trabalho que ia ser realizado, não o trabalho já realizado. Erro que é repetido no art. 151 da contestação, onde os réus escrevem: A 1.ª ré limitou-se a receber e a facturar o valor das obras efectivamente realizadas para a autora.
Nos artigos 139 e 140 os réus escrevem: Junta-se sob o doc.78 uma tabela de todos os valores em causa. Assim, conforme resulta dos documentos juntos: valor orçamentado: 164.035,78€: correspondendo à soma dos orçamentos: […]. Valor das obras adjudicadas: 81.322,03€ […].
Aqui, segundo os réus, adjudicados não são os trabalhos que foram orçamentados e aceites, mas sim aqueles que foram facturados.
No art. 157 da contestação os réus transcrevem um email do réu, em nome da 1.ª ré, de 29/08/2019, para a autora, em que está escrito: “… claramente não posso iniciar o exterior da estimativa A/4 sem a remoção das árvores. Para poder iniciar estes trabalhos na segunda feira, preciso do orçamento assinado e do depósito, não começarei antes do depósito ser pago” e acrescenta “… Obrigado por me [manter] informa[do] amanhã 30/98/2029 para que [eu] possa tomar as minhas decisões e organizar-me para a URGENTE SEXTA FEIRA”.
Esta transcrição representa uma má tradução de uma pequena parte do email escrito em francês: escreve ‘estimativa’ para traduzir ‘devis’, mas mais à frente já traduz a mesma palavra por orçamento.
Para além disso, como a autora diz, os réus ainda escrevem, no art. 313 da contestação, que o valor das obras adjudicadas ascendeu a 81.322,03€.
No email de 18/06/2019 – doc.5/1 da PI – a ré diz enviar o orçamento rectificado a 18/06/2019. E acrescenta: Dá-me o teu acordo na volta para fazer amanhã a factura do depósito.
No email da ré de 23/07/2019 – doc.5/1 da PI – a ré escreve: Na sequência aos dois orçamentos assinados, envio-te os depósitos [facturas – TRL] correspondentes aos orçamentos – quanto ao orçamento A/4 para a micro estação dá-me o teu acordo por email de retorno. E agradece ter recebido um pagamento/regularização.
No email da autora de 25/07/2019 – doc.5/1 da PI – dá-se conhecimento da transferência de 10.000€ – para as facturas a/8 e a/9 [para 40% dos orçamentos A/3 e A/5 – TRL] e anuncia-se outro de 10.000€ amanhã e, para depois de amanhã, o pagamento da diferença restante para as duas facturas.
No email da autora de 29/07/2019 – doc.5/1 da PI – fala-se no 3.º pagamento para a factura a/9 e de um pagamento para a factura a/5 em 26/07/2019.
No email da ré de 31/07/2019 – doc.5/1 da PI – faz-se um relato entre o mais do seguinte: só tomamos o estaleiro em 17/06/2019. Encomendámos as janelas a 09/07/2019. Fala em 4 orçamentos assinados e facturas de depósitos. Diz que todos os outros orçamentos são a validar e sobretudo dizer se os devemos planificar.
No email da ré de 31/07/2019 às 12h34 – doc.5/1 da PI – esta queixa-se da falta do depósito relativo à factura a/11. E envia-a de novo.
No email da autora de 31/07/2019 das 12h54 – doc.5/1 da PI – a autora responde: muito bem para as janelas; hoje fiz um pagamento de 10.000€ para a factura a/11.
No email de 29/08/2019 – sobre a reunião desse dia – a ré diz enviar as 2.ªs facturas de depósito a/12 e a/14 de 29/08/2019 e pede à autora que lhe envie o comprovativo do pagamento. Diz enviar-lhe igualmente o orçamento A/10 de 29/08/2019 para execução do orçamento A/4 de 24/06/2019 (doc.5/3 da PI).
No email de 02/09/2019 a ré diz enviar os orçamentos A/11 e A/12. Refere acordo dado oralmente nessa manhã. Pede à autora que lhos devolva assinados para que ela possa fazer a factura de depósito. Quanto ao orçamento A/4 (linha bennes) será deduzido de 5565€ – 742€ = 4823€. Serão facturados 4 bennes (doc.5/3 da PI).
No email de 02/02/2019 a ré diz: envio-te o orçamento A/13, conduta da chaminé que estava no orçamento do comble. Pede que a autora dê o acordo por escrito se estiver de acordo para a execução. Diz que não pode começar sem o orçamento assinado. E pergunta-lhe se fez o resto do pagamento/transferência (doc.5/3 da PI).
No email de 04/09/2019, a ré diz enviar a factura a/15 e o orçamento A/14 que é o complemento do A/11, mais o envio da factura a/16 do A/11 e a factura a/18 do orçamento A/12. Pede-lhe para fazer o pagamento do conjunto das 3 facturas 16 [40% do A/11], 17 [40% do orçamento A/14 que é o complemento do A/11] e 18 [40% do A/18] para dar o sinal verde ao réu para ir comprar o conjunto dos materiais. E para lhe enviar o comprovativo (doc.5/3 da PI).
A 05/09/2019, a ré diz que recebeu o pagamento de 3.578,34€ para as 3 facturas [16, 17 e 18] que dava o total 3.878,34 pelo que faltam 500€ [há óbvio erro de contas, a diferença é de 300€ e não 500€ – TRL] (doc.5/3 da PI).
Isto entre outros emails no mesmo sentido.
Anote-se, por fim, que todas as facturas se limitam a referir a que orçamento se referem e ao valor de 40% do mesmo, excepto dois casos (um deles, o A/4, inicialmente logo de 50%, e um outro, relativo ao A/3, de 50% mas já depois de ter havido um outro de 40%), nenhuma delas fazendo outra discriminação dos trabalhos em causa.
De tudo isto decorre, sem qualquer dúvida, apesar dos vários erros de descrição das coisas em que a autora e os réus incorrem, que a 1.ª ré elaborava (pela mão do réu) os orçamentos de cada conjunto de trabalhos de acordo com as ideias da autora e enviava-lhos (por email da 3.ª ré) para assinatura, por vezes já depois de ter enviado rascunhos dos mesmos. Se a autora estava de acordo com eles, assinava-os e devolvia-os à 1.ª ré. Então a 1.ª ré enviava à autora as facturas [as datas das facturas constam do facto 12 e este TRL acrescentou-lhe as referências aos orçamentos a que dizem respeito, de acordo com o que consta das facturas, que a autora não pôs em causa, tanto que as pagou todas e quer aproveitar o facto 12], com 40% do valor dos orçamentos aceites (com as duas excepções assinaladas), obviamente dos trabalhos a realizar (daí que a tradutora tenha traduzido a expressão ‘factures de acomptes’, por facturas de antecipação) e não dos trabalhos realizados (como pretendem os réus). A autora fazia o depósito (acompte), ou regularização (règlement) ou transferência (virement) dos valores das facturas. A ré emitia o recibo e iniciava (ou continuava no caso A/3) então os trabalhos dos orçamentos.
Assim sendo, a “adjudicação” dava-se com a aceitação do orçamento, normalmente representada por uma assinatura da autora; o pagamento (depósito, regularização ou transferência) das facturas com percentagens dos valores dos trabalhos a realizar representava apenas uma garantia para a 1.ª ré de que os trabalhos lhe seriam pagos, já que era feito (o pagamento) antes de os trabalhos se iniciarem.
Os factos provados devem ser a descrição daquilo que aconteceu, sem recurso, se possível, a conceitos de direito, pelo que, estando os factos provados, na sentença, correctos, prefere-se a descrição deles de forma mais factual e, nessa medida, e apenas nessa medida, corrige-se a redacção deles, embora com o uso da expressão ‘aceitação’, entendida de acordo com o uso comum dela. Mantém-se a referência aos documentos que neles constam, porque ajuda a perceber o raciocínio do tribunal recorrido e aquilo a que se está a referir.
Assim, o facto 9 passa a ter a redacção que já foi transcrita acima, o facto 11 é eliminado porque é uma repetição do que passa a constar de 9 e do facto 14 elimina-se a referência à adjudicação.
Note-se que, da argumentação da autora, apenas tem conteúdo útil a transcrição do art. 313 da contestação dos réus. Quanto ao mais: a discussão do valor do prejuízo deve ocorrer na parte de direito, não parte da impugnação de facto. A transcrição da passagem das declarações de parte do réu não tem qualquer valor por ser obvio que as expressões utilizadas pelo réu não estão correctas no contexto em causa. A transcrição de passagens do depoimento da testemunha IG não põe minimamente em causa as conclusões a que se chegou aqui. O resto da argumentação é incoerente: diz a autora: “A obra avançava com o envio e assinatura dos orçamentos por parte da autora. Pelo que só pagou 81.022,03€, não podem ser considerados orçamento no valor de 164.035,70€.” Isto não tem qualquer sequência lógica, nem coerência com o defendido. A transcrição da passagem do depoimento da autora tem ainda menos sentido. Mesmo que se pressuponha que a autora a quer aproveitar para a questão que ela levanta relativa ao orçamento A/4, a simples afirmação não prova nada do que ela afirma. E é evidente que não há nenhuma contradição do facto 9 com os factos 12 e 13. A pretensão de dar como provado os artigos 49 a 72 da PI, que são a transcrição do mapa da avaliação da arquitecta, que não contém o orçamento 4 e contém um orçamento 10 substituído não tem sentido, tanto mais quanto a autora aceitou, no início da audiência, como não podia deixar de ser, que o documento 20 tem o resumo correcto de todas as obras contratadas.
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A 2.ª questão que esta impugnação levanta é a do orçamento A/4. A autora entende que ele foi reduzido para 12.000€ como resultaria das declarações de parte, nas passagens que ela transcreve.
Mas a autora esquece que no orçamento A/4 só consta um valor da fossa, com entrega, que é de 13.431,25€ e não de 44.000€. Pelo que o réu, logicamente, não se pode estar a referir à fase subsequente ao orçamento. Relembre-se que a própria autora juntou com a PI o orçamento A/4 com a sua assinatura (doc.5/4.ª parte da PI, páginas 9 e 10) e pagou 50% desse orçamento depois da factura a/11 de 24/07/2019 ter sido emitida (estando 10.000€ referidos no email da autora das 12h54 de 31/07/2019).
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A 3.ª questão que a impugnação levanta é a da omissão de pronúncia. A autora entende que o tribunal se devia ter pronunciado sobre o que ela alegou nos artigos 49 a 72 da PI e que o tribunal não o terá feito.
Os artigos 49 a 72 da PI são a reprodução parcial do mapa da avaliação efectuada pela Sr.ª arquitecta contratada pela autora. Ou seja, tal como no artigo 65 da PI substituída (com 23 páginas), a autora nestes artigos (com 13 páginas) reproduz, desta vez parcialmente (a reprodução integral vai, desta vez, da página 9 a 39, ou seja, 31 páginas), o mapa em que se traduziu a avaliação feita pela Sr.ª arquitecta contratada pela autora, mantendo aliás o erro de não abranger os trabalhos do orçamento 4 e abranger os trabalhos do orçamento 10 que foi substituído pelo 11.
Todos e cada um destes trabalhos – com a excepção do que se dirá a seguir – constam do doc.20 da contestação dos réus a propósito da qual, já se viu, no início da audiência final, o Sr. juiz consignou em acta estarem as partes de acordo em que os orçamentos referentes à empreitada em causa nos autos correspondem ao resumo traduzido para português junto pelos réus como documento 20 da sua contestação [= ao documento junto em audiência a 15/11/2023 com anotações a cores].
E foi sobre este documento que o Sr. juiz se pronunciou no facto 14, aceitando ou não cada um dos trabalhos e valores que ali estavam em causa e explicando porque o fazia, fazendo-o de forma clara. Pelo que a autora não pode deixar de saber que o facto 14 representa a pronúncia sobre todos e cada um dos trabalhos que estavam em causa nos 9 orçamentos que ela própria aceitou, pagando 40%, ou mais, de todos eles.
A excepção são os trabalhos do orçamento 10, o que corre a favor da autora (visto que, retirando-o, porque substituído pelo 11, são menos trabalhos que os réus dizem estar em causa; dito de outro modo: a autora falava nos orçamentos 10 e 11 e os réus até esclarecem, a favor da autora, que não contaram com o 10).
E, acrescente-se, o facto 14 abrange mais os trabalhos do orçamento 4, mas, repare-se, não é isto que está em causa nesta impugnação. O que estava em causa era se o juiz se pronunciou sobre todos os trabalhos que a autora elencou nos artigos 49 a 72 da PI corrigida e não há dúvida nenhuma que o faz, para além de ser ter pronunciado sobre outros (os do orçamento 4, que a autora alias só impugnou da forma irrelevante já vista).
Não há, pois, qualquer omissão de pronúncia.
Para melhor esclarecimento do que se diz, registe-se que o tal documento 20, com cores no documento mais tarde junto a audiência, tem 178 linhas de trabalhos e o facto 14 pronuncia-se, por remissão para ele, com a referência a valores, sobre cada uma dessas linhas de trabalhos.
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Ainda da omissão de pronúncia
No corpo das alegações a autora tem ainda dois §§ desgarrados (na página 36) em que diz que “estes itens [tinha acabado de transcrever os artigos 49 a 72 da PI] têm relação com o pedido (a) e transcreve esse pedido, acrescentando, sem mais: “artigos 50-99”. E depois ainda diz: “A discriminação dos trabalhos imperfeitos ou realizados apenas parcialmente não foram alvo do tribunal, o tribunal só descreveu um anexo/tabela entregue pelos réus, não tendo destes itens dados como provados ou não provados os itens descritos na PI, havendo assim uma clara omissão de pronúncia.”
Não tem absolutamente mais nada sobre a matéria, no corpo das alegações, onde se perde na repetição de páginas; por exemplo: os artigos 49 a 72 são transcritos 2 vezes no corpo das alegações: primeiro das páginas 23 a 36 e depois das páginas 49 a 63. Repetição que também se verifica nas conclusões: a conclusão 25 repete literalmente a 9 e as 27 a 31 repetem literalmente as 11 e 15.
Apreciação
De boa vontade, diga-se que, depois de tudo o que já se viu acima, se consegue perceber que a autora se está a referir ao que escreveu nos artigos 77 a 99 [e não, agora, aos artigos 49 a 72, nem aos artigos 50 a 99] da PI corrigida relativamente a trabalhos não realizados e realizados parcialmente (páginas 24 a 39)
Ou seja, está-se a referir à transcrição que tinha feito da avaliação da Sr.ª arquitecta, desta vez só relativamente àquela parte dos trabalhos.
E trata-se não de uma impugnação, mas de uma acusação de omissão de pronúncia sobre a lista de trabalhos, desta vez dos não realizados.
Mas como já se disse que o tribunal recorrido se pronunciou, no facto 14, um a um sobre todos os 178 trabalhos listados, dizendo quais deles tinham sido realizados, por exclusão de partes sabe-se, como é evidente, quais é que o tribunal não considerou realizados.
Pelo que, também esta omissão de pronúncia não se verifica.
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Em suma, com excepção de pormenores de redacção quanto aos factos 9, 11 e 14, improcede a impugnação deduzida contra tais factos.
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A autora entende que o que consta do facto 20 deve ser reduzido para:
“Devido a um desentendimento ocorrido a 1.ª ré não deu seguimento aos trabalhos, tendo retirado todos os seus instrumentos de trabalho do local da obra.”
A fundamentação para tal é a seguinte:
A testemunha AS – casado, 56 anos, motorista, com domicílio em […] – assistiu à discussão, embora não valorizado pelo tribunal; descreveu que o senhor quis sair e levou tudo consigo referindo que não voltava; esta parte deveria ter sido valorada pelo tribunal e não foi.
Aos costumes disse conhecer a autora e a situação em causa nos autos, tendo assistido a uma divergência entre a autora e o empreiteiro que executava umas obras em casa daquela:
O tom era desadequadíssimo (7:25-7:45); depois dessa discussão o homem saiu exaltado, com os braços no ar tinha pessoal a trabalhar, disse para levarem tudo, mandou tudo arrumar as ferramentas na carrinha, a começar a arrumar tudo na carrinha e foi embora.” (8:00 – 8.31).
A fundamentação do tribunal para dar o facto como provado foi a seguinte:
[… No] que se refere ao desentendimento ocorrido entre as partes, em meados de Setembro de 2019, e subsequente não continuação da execução dos trabalhos e ulterior substituição da ré por outra empreiteira que veio a terminar a obra (cf. factos 16 a 22), atendeu o tribunal ao conjunto da prova produzida, decorrendo já dos articulados ter, nessa altura, deixado a ré de executar quaisquer trabalhos, ocorrendo a ruptura das relações entre as partes. Com efeito, e conforme decorre dos depoimentos e declarações de parte prestadas no decurso da audiência, e se encontra corroborado por documentos juntos aos autos, no decurso da execução da empreitada e, apesar da mesma ter apenas durado alguns meses, a relação entre as partes foi-se deteriorando. […]
O desentendimento final, que teve origem em questões relacionadas com a empreitada, porém, deu-se apenas aquando da descarga da fossa Tricel, na obra, que a autora, datou como tendo correspondido ao dia 13/09/2019, altura em que a autora e o réu tiveram uma discussão que ambos admitiram ter sido intensa, a qual, pela sua gravidade, deu, inclusive, lugar à mencionada ruptura de relações. […]
No decurso das respectivas declarações de parte referiram-se, nomeadamente, a autora às circunstâncias em que tal desentendimento se verificou, sem que, contudo, tenha sido produzida prova convincente e isenta do concretamente ocorrido nessa altura, sendo certo que, conforme ficou patente no decurso da audiência, o depoimento tardio da testemunha AS que a tal se referiu como sendo uma testemunha presencial, não se revelou merecedor de qualquer credibilidade.
A testemunha em causa, ainda que tenha procurado convencer o tribunal da versão por si apresentada, nomeadamente, no que se refere à discussão mantida e demonstração do abandono pela ré da obra – conceito que, por ter um sentido jurídico, o tribunal não utilizou na matéria de facto, antes tendo descrito, em termos factuais, o ocorrido na ocasião de acordo com a prova que foi produzida – não foi minimamente credível. Assim, afirmou que a discussão entre a autora e o réu a que teria assistido se teria passado em português quando, conforme ficou evidenciado a partir de toda a demais prova produzida, os contactos entre as partes eram mantidos em francês que, por maioria de razão numa discussão, seria a língua utilizada pelas partes por ser o seu primeiro idioma. No mais, o depoimento desta testemunha, notoriamente próxima da autora por a esta ter prestado serviços relacionados com o imóvel, e por ter sempre evidenciado uma atitude teatral e pouco verosímil, foi desconsiderado pelo tribunal, não servindo, pois, para auxiliar o tribunal na formação da sua convicção a este respeito.
Restou, assim, atender às mencionadas declarações das partes envolvidas, sendo que a 3.ª ré, apesar de apenas ter conhecimento indirecto, confirmou ter sabido do desentendimento entre a autora e o réu, seu marido, e da ruptura que se seguiu, evidenciada pelos emails que se seguiram e que se encontram dados como provados, enquanto a autora detalhou, ainda que de forma notoriamente parcial, o sucedido. No mais, em sede de audiência de julgamento, consignou-se o que a autora admitiu no decurso da audiência a respeito de ter mudado as fechaduras do portão de acesso à obra, nos termos e para os efeitos do art. 5/2-b do CPC, tendo as partes tido a possibilidade de exercerem o contraditório a este respeito.
De acordo com a referida prova, entendeu o tribunal que, sendo certo que na altura se encontrava por liquidar a factura a/19, cuja emissão já tinha ocorrido e não havia sido paga, e igualmente por adjudicar a obra na parte referente à electricidade, no seguimento da discussão, não deu a ré continuidade aos trabalhos, retirando os seus instrumentos de trabalho do local, o que se deu como provado. Não confessou, porém, o réu que tivesse deixado a obra com intenção de não a terminar, sustentando que os trabalhos pararam por ser necessário que o electricista entrasse no imóvel para dar continuidade, por um lado, à ligação da fossa que tinha um sistema eléctrico, e por outro, aos trabalhos no interior da casa que faltavam terminar, o que entendeu o tribunal corresponder a uma explicação verosímil e compatível com a não admissão de abandono da obra, ainda que tenha resultado evidente a ruptura das relações entre as partes.
Para dar como provados estes factos, atendeu igualmente o tribunal ao que resulta da correspondência anterior e ulteriormente trocada entre as partes (cf. factos provados subsequentes), tendo sido junta aos autos a factura a/19 e a respectiva nota de crédito que a anulou, com a menção do respectivo motivo (cf. docs. 10 e 11 juntos com a PI). Para além disso, valorou o tribunal o email remetido pelo réu à autora, logo em Julho de 2019, referente a um orçamento apresentado por um electricista por si sugerido e que não foi aceite pela autora que, conforme resultou da prova produzida em julgamento, não havia, até Setembro, apresentado alternativa para a parte relativa à electricidade (cf. docs.19 e 20 juntos com a contestação, complementado pelo mail da ré para a autora, datado de 29/08/2019, traduzido e junto como doc.18 com a contestação).
De resto, ficou demonstrado que, não obstante a autora ter alegado que essa responsabilidade seria da 1.ª ré, conforme decorre dos orçamentos juntos aos autos, não foi adjudicada pela autora à ré a realização de quaisquer trabalhos de electricidade, pelo que, efectivamente, ficou o tribunal convencido que tal contratação era da responsabilidade da autora (cf. facto não provado J), tendo sido esta advertida para a necessidade de ser contratado um electricista por a ré não realizar esses trabalhos, sem que tal, na altura da ruptura das relações, se encontrasse assegurado.
Apreciação
A autora invoca umas passagens do depoimento de uma testemunha com o fim de retirar do facto provado uma parte do mesmo, que são outras razões para que a 1.ª ré (pela mão do réu) não tenha dado seguimento aos trabalhos e tenha retirado os seus instrumentos do trabalho. É esse o fim da impugnação e não o de dar como provado o que a testemunha diz ter ocorrido. Ou seja, a autora não diz que a testemunha se tenha pronunciado sobre a parte que pretende eliminar, nem que o que a testemunha diz é incompatível com essa parte. Ora, por um lado, pelas razões dados pela sentença recorrida, contra as quais a autora não contra-argumenta, a testemunha não merece credibilidade. E, por outro lado, aquelas razões estão baseadas em elementos de prova invocados pelo tribunal contra os quais a autora não diz ter produzido prova de modo a torná-las duvidosas (art. 346 do CC). Pelo que não há razões para alterar o facto.
*
A autora entende que:
As divergências existentes, conjugadas com a retirada de todo o equipamento criaram na autora a convicção de que o réu quisesse continuar a obra e na troca de cartas, emails, e prova testemunhal, em momento algum é dito pela ré que pretende continuar a obra [sic].
A fundamentação desta afirmação é a seguinte:
Vide fundamentação da sentença: […]
Vide doc.7 junto com a PI, onde foram exigidos autos de medição, as facturas nunca enviadas, porque pelo menos os autos nunca foram executados. A 1.ª ré refere a obrigatoriedade de um projecto e de um engenheiro responsável, mas a verdade é que realizou parte das obras, de forma imperfeita, ou não realizou uma parte, mas nunca fez essa exigência. Ou seja, criou obstáculos e aproveitou-se das circunstâncias para dar uma aparência de querer continuar a obra quando o objectivo nunca foi querer continuar. Aliás vide doc.7 onde refere email de 14/09/2019, onde refere “Eu não sou a sua secretária administrativa”, em língua francesa.
Apreciação:
De uma forma implícita e obscura, a autora invoca, por um lado, regras da experiência comum para prova da sua confiança em que a 1.ª ré tinha abandonado a obra, regra da experiência que não enuncia, nem existe nenhuma que possa aplicada ao simples facto da retirada do equipamento para dele se concluir pelo abandono. Por outro lado, o facto de a ré nunca ter mencionado que pretendia continuar a obra não prova que ela a tenha abandonado. De resto, a própria autora diz o contrário quanto a seguir invoca o doc.7 e diz que com ele a ré “criou obstáculos e aproveitou-se das circunstâncias para dar uma aparência de querer continuar a obra […].” Seja como for, não é possível, mesmo com recurso a regras da experiência, dizer que do texto do doc.7 se pode retirar a conclusão de que a ré criou confiança na autora de que pretendia abandonar a obra. Pelo que, esta impugnação é manifestamente improcedente. Aliás, mais do que uma impugnação, o que havia era a invocação de um facto sem qualquer prova para o efeito.
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No corpo das alegações a autora tem uma parte que se inicia com a epígrafe ‘das nulidades’ em que diz:
A – Do Erro notório na apreciação da prova:
Assim, o erro notório na apreciação da prova consiste num vício de apuramento da matéria de facto, que prescinde da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum.
Verifica-se o erro notório na apreciação da prova quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.
Dispõe o art. 615/1-c do CPC que É nula a sentença quando: (…) c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.”
Entre a fundamentação da sentença e a decisão não pode haver contradição lógica, isto é, a fundamentação fáctico-jurídica tem de ser coerente, não se poderá partir de uma premissa e concluir pelo seu contrário.
Esta situação é diversa daquela que poderá resultar do erro na subsunção jurídica, ou do erro na interpretação, que conduzem ao erro de julgamento, a qual constitui um erro no julgamento de facto, porquanto na tese da Autora a prova obtida à materialidade impugnada conduziria à obtenção de diferentes respostas.
Violou-se assim o artigo 205 da CRP em confronto com o artigo 607/4 do CPC, que impõe o dever de fundamentação da decisão. Pois, tendo em conta a complexidade da causa, a fundamentação da matéria de facto é deficiente.
O dever de fundamentação da decisão proferida em sede de matéria de facto – imposto pelo art. 607/4 do CPC – não se mostra cumprido com um simples resumo das afirmações proferidas por cada uma das testemunhas e depoentes, por uma identificação de cada um dos documentos juntos aos autos e se tal exposição não se encontrar acompanhada da explicitação, relativamente a cada um dos factos ou matérias em causa, de quais, de entre esses meios de prova ou alguns deles, foram relevantes, por que deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros, julgou relevantes ou irrelevantes certas conclusões dos peritos ou achou satisfatória ou não a prova resultante de documentos.
Assim não está cumprido o ónus, devendo em consequência ser o processo reenviado para o tribunal para corrigir o vício.
Assim deverá o tribunal ad quem anular a decisão proferida em 1ª instância, a fim de o tribunal a quo fundamentar devidamente a decisão por si proferida.
[…]”
Apreciação:
Nada disto faz qualquer sentido.
A autora mistura nulidades (não diz se processuais ou da sentença), erros notórios na apreciação da prova, que nada têm a ver com nulidades, nulidades da sentença, e falta de fundamentação da decisão de facto que não tem nada a ver com nulidades da sentença por falta de fundamentação. E fá-lo apenas com considerações retóricas, sem qualquer ligação com o caso concreto. A autora podia repetir estes §§ em qualquer outro recurso.
Não há, pois, qualquer matéria de nulidades a conhecer, pois que não cabe num recurso a função de estar a ver se considerações retóricas estão ou não certas.
*
Do recurso sobre matéria de direito:
A fundamentação da sentença recorrida é, na parte de direito, a seguinte, em síntese feita por este TRL e na parte que ainda importa (e a partir daqui só está em causa a ré sociedade, pelo que, quando se escrever ré, está-se a referir apenas a ré sociedade ou 1.ª ré):
A acção visa, por um lado, a condenação da ré, na qualidade de empreiteira, a reembolsar a autora dos valores por esta entregues para execução de trabalhos que não foram realizados […].
Em contrapartida, nos termos da reconvenção admitida nos autos, visa a ré a condenação da autora no pagamento do valor dos trabalhos por si realizados e não liquidados com referência à mesma empreitada, bem como no pagamento de uma indemnização pelos prejuízos sofridos com a não conclusão da obra acordada.
[…]
Em causa nos autos está uma relação jurídica correspondente ao contrato nominado e típico de empreitada, o qual se encontra definido no art. 1207 do CC, nos seguintes termos: “Empreitada é o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço.”
[…]
Como resulta do regime jurídico da empreitada, ao dono da obra incumbe pagar o preço, enquanto, por sua vez, ao empreiteiro cabe o dever de realizar a obra – cf. artigos 1207 e 1211 do CC.
No caso presente, resulta dos factos provados ter a autora, na qualidade de dona da obra, e a ré, na qualidade de empreiteira, celebrado, a partir de Junho de 2019, diversos contratos de empreitada tendo por objecto a realização de trabalhos de construção civil na moradia adquirida pela autora […].
Tais contratos de empreitada, sem prejuízo de não sujeitos a forma legal (cfr. Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, volume III, Almedina, 5.ª edição, pág. 509), foram, no que se refere aos trabalhos a realizar e respectivo preço, objecto de acordo entre as partes, nos termos que constam dos nove orçamentos dados como provados […].
Ficou também provado que o valor total dos trabalhos adjudicados pela autora à mencionada ré, com base nos referidos orçamentos, ascendeu a 164.035,70€, com IVA incluído, e que os valores constantes de cada orçamento, seriam liquidados pela autora à ré, em três momentos distintos, no caso, 40% com a adjudicação, 50% no decorrer da intervenção e 10% com a conclusão dos trabalhos.
Finalmente, apurou-se que a autora, do valor total de 81.332,03€, com IVA incluído, facturado pela ré com referência aos mencionados orçamentos, procedeu à liquidação de 81.022,03€, com IVA incluído […].
[…]
Para efeitos de apreciação d[…]as recíprocas pretensões, fundadas no direito à diferença entre os trabalhos cujo valor foi liquidado e os trabalhos efectivamente realizados (em excesso no entender da autora, em falta na perspectiva da ré empreiteira), importa começar por delimitar e enquadrar o fundamento para os mencionados pedidos.
Para tal, terá o tribunal que apreciar e subsumir, em termos jurídicos, estas pretensões por referência ao regime geral do direito das obrigações e, em particular, ao regime da cessação da empreitada, naquilo que se mostrar específico desta relação contratual (cf. Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, Almedina, 2.ª edição, em particular a respeito da empreitada, págs. 553 e ss.).
Ora, as mencionadas pretensões radicam, rectius, apenas poderão radicar, numa situação de cessação do contrato que, conforme é sabido, nos termos abrangentes que deve ser dado à referida forma de extinção das relações obrigacionais, pode ter origem em diversos e distintos institutos jurídicos, nem sempre objecto de correcta identificação ou utilização terminológica.
Assim, conforme refere a doutrina: “Independentemente do cumprimento das respectivas prestações ou de outras causas com idêntico efeito, as relações obrigacionais extinguem-se por via da resolução, da revogação e da denúncia. A resolução e a denúncia conduzem à cessação do vínculo por declaração unilateral de uma das partes dirigida à contraparte. A revogação pressupõe a existência de um consenso das partes com vista à cessação do vínculo. A esta tríade importa acrescentar a caducidade que determina a extinção do vínculo em virtude de facto superveniente.” (cf. autor e ob. cits, pág. 24).
Como tal, e na medida em que os pedidos relativos ao reembolso ou ao pagamento do valor da diferença entre o valor liquidado e os trabalhos efectivamente realizados, não resultam de qualquer situação de cumprimento ou de um cumprimento defeituoso (não sendo, nos termos da causa de pedir, objecto da acção quaisquer defeitos da obra, nos termos dos artigos 1218 e ss. do CC), importa verificar, em termos sucintos, em que forma de extinção do contrato se pode fundar cada uma das mencionadas pretensões.
O tribunal, atenta a matéria de facto provada, nomeadamente no que se refere à demonstração de uma ruptura das relações pessoais e profissionais sem que tenha havido continuidade dos trabalhos, equacionou a possibilidade de convocar o regime da revogação do contrato.
A revogação corresponde a um acto bilateral mediante o qual as partes decidem, por assentimento mútuo, fazer cessar a relação contratual, decorrendo tal possibilidade de dissolução do art. 406 do CC, não carecendo de qualquer justificação por assentar num acordo das partes, sendo tal por vezes também denominado de distrate (cf. autor e ob. cits, pág. 50).
A revogação, como é a regra nas declarações negociais (cf. art. 217 do CC), pode ser expressa ou tácita, pelo que “apesar de usualmente o acordo de revogação ser explícito, manifestando as partes a sua intenção de fazer cessar o contrato, pode resultar de declarações de vontade que possam ser interpretadas o sentido de o vínculo ser distratado” (cf. autor e ob. cits, pág. 52).
Simplesmente, tal forma de extinção por revogação não só não corresponde às pretensões formuladas na acção, cujos direitos radicam antes na invocação de uma situação de incumprimento, como a matéria de facto provada afigura-se-nos insuficiente para permitir concluir pela existência de declarações negociais visando a revogação do contrato, ainda que tacitamente expressas.
[…]
[…] ainda que da factualidade provada possam resultar elementos de facto que indiciem que as partes, por ocasião e no seguimento da discussão mantida em obra, não teriam mais a intenção de manutenção da sua relação contratual, não se pode concluir que tenham celebrado um verdadeiro acordo a esse respeito, nomeadamente, que traduzisse a extinção consensual dos contratos de empreitada e que efeitos tal teria, nomeadamente, em relação aos trabalhos realizados e pagamentos a mais ou em dívida, porquanto nada ficou acordado a esse respeito.
Afastada a subsunção dos factos a esta forma de cessação da relação contratual, poderia equacionar-se ter ocorrido uma desistência da obra por parte da autora enquanto dona da obra, nos termos do art. 1229 do CC, a qual corresponde a uma forma de denúncia, prevendo a letra da lei que: “O dono da obra pode desistir da empreitada a todo o tempo, ainda que tenha sido iniciada a sua execução, contanto que indemnize o empreiteiro dos seus gastos e trabalho e do proveito que poderia tirar da obra.”
A desistência da obra por parte do dono da obra é uma faculdade discricionária, não depende da existência ou invocação de um fundamento, apresenta-se como insusceptível de apreciação judicial e não carece de qualquer pré-aviso, nem de forma especial, tendo eficácia ex nunc (cf. autor e ob. cits, pág. 566).
Na desistência da obra, admite-se a extinção do contrato por determinação apenas de uma das partes, em derrogação do art. 406, não deixando de existir uma obrigação de indemnizar a outra parte pelo interesse contratual positivo, sendo assim o dono da obra responsabilizado como se tivesse incumprido o contrato, ainda que se trate de uma responsabilidade civil por factos lícitos ou pelo sacrifício (cf. Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, volume III, Almedina, 5.ª edição, pág. 561).
À semelhança do referido a respeito da revogação, “a desistência da obra pode resultar tacitamente de determinados comportamentos do dono da obra, implicando a consequente obrigação de pagar o preço do trabalho efectuado” (cf. acórdão do STJ de 29/11/2006, proc. 06A3796).
No caso presente, sem prejuízo da similitude dos seus efeitos com os do incumprimento, entende-se que, atentas as pretensões formuladas pela autora na presente acção, na medida em que esta visa o reembolso de valores que entende terem sido liquidados em excesso, susten[tan]do tal direito numa situação de abandono da obra por parte da ré empreiteira e recusando o pagamento de qualquer indemnização à ré pela não continuação dos trabalhos, não será este o fundamento para a cessação do contrato de empreitada visado exercer na acção.
Nesse sentido, mesmo que se possa surpreender ou reconduzir a conduta da autora, ao mudar as fechaduras de acesso à obra, sem intenção de que a ré tivesse acesso ao local ou prosseguisse os trabalhos, e indo contratar uma nova empreiteira, mesmo antes de formalizar qualquer resolução do contrato, como indiciando a vontade de desistir da empreitada, não sendo esta a via de cessação invocada e não se dispondo a autora a indemnizar a ré empreiteira dos encargos e proveitos que poderia tirar da obra, nos termos do art. 1229 do CC, forçoso será igualmente afastar esta forma de cessação do contrato para efeitos de subsunção jurídica.
Resta, assim, apreciar se a extinção da relação contratual em causa ocorreu por resolução, a qual, como é sabido, nos termos do art. 432 do CC, carece de ser fundada na lei ou no contrato, ou seja, depende da invocação e prova dos respectivos fundamentos, bem como da sua comunicação, nos termos do art. 436 do CC.
Com efeito, a resolução é um meio de extinção do vínculo contratual por declaração unilateral e encontra-se condicionada por um motivo previsto na lei ou dependente de convenção entre as partes, sendo certo que, em regra, a resolução relaciona-se com o incumprimento das prestações contratuais (cf. Pedro Romano Martinez, ob. cit., págs. 67 e 68).
A noção de incumprimento não consta do CC, afirmando a doutrina que o incumprimento – definitivo – corresponderá “à não realização da prestação debitória” (cf. Catarina Monteiro Pires, Contratos – Perturbações na Execução, Almedina, pág. 71, citando Ribeiro de Faria), ou à “não realização da prestação nos seus devidos termos” (cf. Nuno Pinto Oliveira, Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra Editora, pág. 401), sendo regulado nos arts. 798 a 808 do CC quando ocorra violação de deveres de prestação imputáveis ao devedor (por contraponto aos não imputáveis ao devedor previstos nos arts. 790 a 797 do CC), e inclui as situações de não vinculação ao plano contratual, nomeadamente, no que se refere ao cumprimento dos deveres primários ou principais de prestação.
No caso presente, a autora reconduz a situação de incumprimento como imputável à ré com base na violação do dever de execução da obra (cf. arts. 406, 1207 e 1208 do CC), invocando ter havido o abandono da obra em Setembro de 2019 por parte da empreiteira, ainda que só posteriormente, e cerca 10 meses após a discussão mantida entre as partes e à retirada dos instrumentos de trabalho do local, tenha aludido a essa situação e fixado prazo para considerar verificado o incumprimento definitivo, conforme veio a declarar por comunicação de 21/10/2020.
A propósito do que deve entender-se como abandono da obra, socorremo-nos da fundamentação do ac. do STJ de 14/01/2021, proc. 2209/14.0TBBRG.G3.S1:
“O abandono da obra é um conceito que há muito foi adoptado no universo da gíria jurídica e que traduz o comportamento do empreiteiro que, após ter iniciado a execução dos trabalhos de realização da obra a que se vinculou, por iniciativa unilateral, cessa essa execução de um modo e/ou durante um período de tempo revelador, de forma concludente, que é sua intenção firme não retomar aqueles trabalhos, deixando a obra inacabada. Com esta configuração, o abandono da obra, tem sido qualificado pela jurisprudência, e pela doutrina como um comportamento significante da recusa do empreiteiro a cumprir integralmente a prestação a que se obrigou, dotada das características que justificam a sua equiparação a um incumprimento parcial definitivo da obrigação de realizar a obra contratada. Note-se que (…) o abandono da obra não é um facto que se possa retirar, através de um raciocínio presuntivo da factualidade que se encontra provada, mas sim uma qualificação jurídica de um comportamento cuja descrição deve constar do acervo dos factos provados. Sendo a prestação de realização da obra, típica do contrato de empreitada, uma prestação duradoura e, no tipo de obra aqui em causa, de execução contínua, o abandono da obra, enquanto comportamento de recusa a cumprir, apresenta a especificidade de não consistir numa recusa antecipada, mas sim numa recusa em prosseguir a execução de uma prestação já iniciada. Essa conduta, essencialmente omissiva, mas podendo ser precedida de acções que a anunciam (v.g. retirada de materiais e máquinas), para ser significante de um propósito definitivo de não conclusão do acto de realização da obra, deve ser aparente, categórica e unívoca.”
No caso presente, importa, pois, avaliar se o fundamento para a cessação do contrato e reembolso dos montantes alegadamente liquidados em excesso, invocado pela autora com base numa situação de abandono da obra justificativa da resolução do contrato com base em incumprimento da ré empreiteira, se encontra devidamente demonstrado nos autos.
Na verdade, sendo tal um facto constitutivo da pretensão formulada na acção, cabe aferir se, no caso concreto e face aos factos concretamente provados, ocorreu uma situação de abandono da obra pela ré, por forma a poder concluir por uma situação de incumprimento definitivo.
Ora, a matéria de facto provada e a descrição da conduta da ré empreiteira, no contexto em que se deram os factos, no caso, no seguimento de um desentendimento verificado entre a autora e o réu, que era também um dos seus representantes legais, que levou à ruptura das respectivas relações pessoais e profissionais, e a que se seguiu a retirada pela ré dos instrumentos de trabalho do local da obra, afigura-se-nos como insuficiente para se considerar demonstrado ter havido uma recusa de cumprimento com o propósito definitivo de não realização da prestação correspondente à realização da obra que possa ser tida como categórica e unívoca.
Com efeito, ficou igualmente provado que, na altura, encontrava-se a ser reclamada pela ré empreiteira o pagamento de uma factura (a/19, no valor de 12.669€) já emitida referente a obras incluídas num dos orçamentos adjudicados, cujo pagamento já havia sido exigido, recusando-se a dona da obra a liquidar esse montante, pelo que, independentemente do apuramento a que na presente sentença se procedeu dos trabalhos efectivamente realizados, tal retirada de materiais deverá ser enquadrada numa situação subsumível no instituto da excepção de não cumprimento, regulado no art. 428 do CC.
Acresce que, para além da reclamação desse valor em falta que, por sua vez, constitui um incumprimento pela autora, dona da obra, da obrigação de liquidar o preço nos termos convencionados (cf. arts. 1207 e 1211/2 do CC), provou-se igualmente que, previamente à retirada dos instrumentos de trabalho da obra, e não obstante as diligências efectuadas pela ré no sentido de apresentar um terceiro que realizasse os trabalhos de electricidade, não havia ainda a autora adjudicado essa outra empreitada a qual era necessária ao prosseguimento da obra pela ré.
A factualidade em causa permite, pois, considerar que havendo um prévio incumprimento pela autora de prestações, principais e acessórias, necessárias à concretização da prestação da ré empreiteira, podia esta recusar-se a realizar a sua prestação correspondente a continuação dos trabalhos adjudicados, havendo, por isso, uma situação de excepção de não cumprimento, que afasta, desde logo, a possibilidade de se entender ter havido um incumprimento definitivo, uma vez que no art. 428 do CC, estando em causa um contrato bilateral, da sua invocação apenas decorre a suspensão da prestação.
[…]
Conclui-se, pois, que a retirada pela ré dos instrumentos de trabalho do local da obra e a não continuação da execução dos trabalhos, ocorrida no seguimento e devido ao desentendimento ocorrido entre a autora e o réu e a encontrar-se em falta o pagamento de uma factura (cujo valor, não sendo irrisório, não pode ser entendido como uma invocação abusiva da excepção de não cumprimento), e em especial por não estarem reunidas as condições para o prosseguimento da obra devido a não se encontrar contratado o electricista necessário para o efeito, não deve ser considerado como sendo uma situação de abandono da obra.
De resto, conforme se escreve no sumário do ac. do STJ de 12/10/2023, proc. 1823/19.2T8FNC.L1.S1, “(…) o abandono da obra, só por si, não só não significa impossibilidade de prestação, como, também, suspender ou parar uma obra não é o mesmo que abandoná-la, correspondendo às diversas situações efeitos jurídicos diferentes”, sendo, ao invés, necessário que se demonstre “uma atitude susceptível de revelar aquela intenção firme e definitiva de não cumprir a obrigação contratual de concluir a obra”.
Ora, no caso presente, atentos os factos concretamente provados, entende-se não ter tal atitude inequívoca ficado cabalmente demonstrada pela autora, conforme lhe competia (cf. art. 342 do CC), sendo a demonstração desse incumprimento definitivo pressuposto necessário à validade da resolução do contrato, nos termos do art. 432 e ss do CC.
Por conseguinte, não tendo a autora logrado demonstrar os factos constitutivos da situação de abandono da obra, enquanto fundamento para a resolução contratual assente no incumprimento definitivo imputável à ré, não pode ser reconhecido, por esta via, o direito reclamado na acção enquanto consequência da retroactividade da resolução, nos termos dos artigos 434 e 289 do CC.
Já no que se refere à pretensão reconvencional formulada pela ré, ficou provado ter a autora, no seguimento do desentendimento ocorrido com o réu, logo na semana seguinte, procedido à mudança das fechaduras de acesso à obra, inviabilizado, pois, a possibilidade de a ré empreiteira poder vir a retomar os trabalhos.
Ficou ainda provado que com a mudança dessa fechadura, não teve a autora mais a intenção de que a ré sociedade tivesse acesso ao local ou prosseguisse a obra, tendo, ainda nesse trimestre do ano de 2019, contratado uma nova sociedade tendo em vista a continuação dos trabalhos, tendo sido esta a concluir as obras.
Tal consubstancia uma conduta geradora de uma situação de impossibilidade de cumprimento, que determina a cessação da relação contratual por facto imputável à autora dona da obra, porquanto, procedendo a autora à substituição da empreiteira, sem fundamento para tal e socorrendo-se de terceiros para a conclusão dos trabalhos, em termos objectivos, inviabilizou que a ré empreiteira realizasse integralmente a sua prestação (cf. art. 790 do CC).
Nesse sentido, a pretensão reconvencional formulada nos presentes autos, que assenta, por um lado, no incumprimento parcial da obrigação de liquidação de parte dos trabalhos realizados, e por outro, na impossibilidade de cumprimento da sua prestação por a autora ter-se socorrido de terceiros para a finalização da obra, devem ser subsumidas no regime do incumprimento imputável à autora.
As consequências dessa impossibilidade imputável ao credor determinam, nos termos do art. 795/2 do CC, que a autora não fica desobrigada da contraprestação, a qual corresponderia à obrigação de liquidação do preço que seria devido a final pelos trabalhos realizados, sendo certo, porém, que a este valor sempre haverá que descontar o benefício que, para o devedor deriva a exoneração do cumprimento.
No caso, o benefício para a ré com a exoneração corresponderá, por um lado, à circunstância de não ter, efectivamente, de realizar a totalidade dos trabalhos acordados, ou seja, o facto de não ter, no futuro, de incluir na obra o material e a mão de obra que se encontrava orçamentada, havendo, pois, que descontar na contraprestação que seria devida a título de preço estas componentes, ficando assim o seu crédito limitado ao que será, grosso modo, o seu prejuízo efectivo com a não execução integral do contrato.
Nesse desconto, entende-se dever ser ainda considerado o valor dos trabalhos facturados e cujo preço foi já recebido, sem que tenham, porém, correspondido a trabalhos efectivamente realizados, e que no decurso dos autos se apurou corresponderem a 12.727,47€ (ou seja, à diferença entre o valor recebido pela ré de 81.022,03€, e valor dos trabalhos efectivamente realizados de 68.294,56€).
Com efeito, dispondo o art. 795/2 do CC que, ao direito à contraprestação que se mantém e que corresponde à obrigação de liquidação integral do preço, deve ser descontado algum benefício que o devedor tiver com a exoneração, deve compreender-se como integrando este benefício tudo o que a ré recebeu a mais, impondo-se, pois, que seja abatido ao direito à contraprestação o valor dos trabalhos já recebido mas não realizado de 12.727,47€, apurado no decurso do julgamento.
Na realidade, em relação a estes trabalhos não realizados mas pelos quais a ré recebeu já um valor que não tem correspondência com o cumprimento da prestação a que se encontrava obrigada, considera-se que, não fora a impossibilidade a que deu causa a autora, sempre teria a ré empreiteira que os realizar. Assim, a circunstância de, por efeito da exoneração, já não ser obrigado à sua efectiva realização corresponde a um benefício que deve ser igualmente abatido, nos termos e para os efeitos do disposto do mencionado art. 795/2 do CC.
Sendo, assim, concluiu-se ser parcialmente procedente a pretensão reconvencional deduzida nos autos, uma vez que a cessação do contrato ocorreu por uma impossibilidade imputável à autora, credora da realização dos trabalhos, não podendo, contudo, a medida do ressarcimento em causa corresponder à totalidade do valor dos trabalhos adjudicados mas não realizados (ou seja, a 76.781,46€), mas apenas a esse valor descontado daquilo que, em termos de mão de obra e materiais orçamentados, não poderia ser incluído na obra por esta já se encontrar finalizada por terceiros, bem como aquilo que foi recebido em excesso mas não realizado (ou seja, 12.727,47€), ficando afastada a necessidade de recorrer ao instituto do enriquecimento sem causa, deduzido subsidiariamente, para proceder à sua quantificação (o que implica que a apreciação da segunda questão decidenda enunciada fique prejudicado, nos termos do art. 608/2 do CPC).
Tal cômputo do valor devido pela autora à ré pela cessação do contrato por causa imputável à credora, não será muito diferente do que seria a obrigação de indemnização decorrente de se entender existir um incumprimento culposo pela autora das suas obrigações contratuais, nos termos do art. 798 do CC, uma vez que se está perante um contrato bilateral, com obrigações recíprocas.
Com efeito, a medida de indemnização nesse caso será a do prejuízo causado, o qual, estando em causa um pedido de ressarcimento de danos que pode entender-se corresponderem ao interesse contratual positivo, ou seja, destinados a colocar o credor na situação que estaria se o contrato tivesse sido efectivamente cumprido, corresponderão à vantagem que para a ré empreiteira resultaria do cumprimento integral dos contratos de empreitada adjudicados, ou seja, aquilo que receberia como acréscimo patrimonial após a realização da sua prestação e descontada dos custos e encargos suportados para a sua concretização, acrescido do abatimento do que já teria recebido antecipadamente.
Tal solução é, ainda, coerente com o regime próprio da empreitada a que acima já se fez referência, que, no art. 1229 do CC, consagra a possibilidade do dono da obra se desvincular unilateral e imotivadamente do contrato, impondo-lhe, contudo, que “indemnize o empreiteiro dos seus gastos e trabalho e do proveito que poderia tirar da obra.”
Será, pois, nestes termos e com estas balizas que deverá ser calculado o valor a que a ré terá direito pela cessação do contrato, por causa imputável à autora que a substituiu e impossibilitou de concluir a empreitada, sendo certo que, não reunindo os autos os elementos necessários para calcular esse montante, cumpre relegar tal determinação para incidente declarativo de liquidação, nos termos dos arts. 358/2 e 609/2 do CPC.
O pedido reconvencional, no que se refere ao segmento relativo aos prejuízos sofridos com a não conclusão dos trabalhos será, pois, julgado procedente por provado, relegando-se, porém, a sua determinação para liquidação ulterior, por forma a apurar o direito efectivo à contraprestação deduzido do benefício decorrente da exoneração, ou, se se preferir, o efectivo dano sofrido.
Tal implicará que ao valor total reclamado de 76.781,46€ neste segmento do pedido reconvencional, se abata o benefício para a ré que se relacione com custos e encargos com mão-de-obra e material que não chegaram a ser incorporados na obra mas que haviam sido adjudicados nos termos dos orçamentos dados como provados, bem como o que tenha constituído um benefício decorrente de ter já recebido o valor de 12.727,47€ por trabalhos que não foram efectivamente realizados.
Já quanto ao restante segmento correspondente ao valor de 1.405,33€, respeitante a trabalhos alegadamente realizados, mas não liquidados, uma vez que, conforme decorre dos trabalhos concretamente realizados apurados na matéria de facto que o valor total de execução não ascendeu a montante superior ao já liquidado, por não ter ficado provado que tivesse a ré direito ao respectivo pagamento, em coerência com o decidido no segmento anterior, será a reconvenção nessa parte julgada improcedente.
Contra isto, a autora diz o seguinte, em síntese e com simplificações, mantendo-se embora inúmeras repetições (as aspas que se seguem já existiam e a autora não diz de onde as passagens citadas foram retiradas):
Ao contrato de empreitada aplicam-se, em primeira linha, as regras especiais dos artigos 1207 e seguintes do CC e, também, as normas gerais relativas aos contratos e que com aquelas se compatibilizem.
«Se o empreiteiro deixa de efectuar a sua prestação em termos adequados, dá-se o inadimplemento da obrigação, com a consequente responsabilidade».
“Se a obra não foi atempadamente realizada e já não puder vir a sê-lo, na medida em que, entretanto, se tornou impossível a sua execução por causa não imputável ao empreiteiro, a situação é legalmente equiparada ao incumprimento definitivo (art. 801/2).”
Em princípio, o dono da obra só pode resolver o contrato e exigir uma indemnização (art. 801/2 do CC) se o empreiteiro não ultimar a obra dentro daquele outro prazo que, razoavelmente, lhe for fixado pelo dono da obra (art. 808/1, 2ª parte, do CC).
Não obstante, tem-se entendido que, se o empreiteiro declarar expressamente que já não vai realizar a obra ou se ele tiver uma conduta reveladora de uma intenção firme e definitiva no sentido de não cumprir a obrigação contratual de concluir a respectiva obra, ainda que anterior ao termo do prazo convencionado para a execução desta, está-se perante uma situação de incumprimento definitivo imputável ao empreiteiro, pelo que cabe ao dono da obra resolver o contrato e exigir uma indemnização.
A retirada de todos os instrumentos da obra traduz-se na impossibilidade de continuar a obra. E traduz-se na possibilidade de a ré continuar trabalhos noutros locais, pelo que não se pode traduzir-se num prejuízo de 76.781,46€.
Ou seja, a ré abandonou a obra, não querendo continuar tal obra, tal mostrou-se na retirada de todos os instrumentos de trabalho. Não se tratou de uma mera suspensão ou paragem dos trabalhos. A ré já não pretendia regressar pelo desentendimento ocorrido.
Foi o que aconteceu inequivocamente; devido às divergências a ré não quis continuar a obra.
Uma das atitudes do empreiteiro susceptível de revelar essa sua intenção firme e definitiva de não cumprir a sua obrigação contratual de concluir a obra é, precisamente, o abandono da obra.
“Perante o incumprimento definitivo imputável ao empreiteiro, cabe ao dono da obra resolver o contrato e exigir uma indemnização (art. 801/2).”
Os factos apurados demonstram que houve rescisão contratual pela banda da autora.
Apreciação:
A autora insiste na conclusão de que a ré abandonou a obra, mas a sentença já demonstrou que, perante os factos provados, é impossível concluir que a ré abandonou a obra (e a autora não tem uma linha de argumentação contra o que é dito pela sentença).
E isto mesmo que se considerasse no recurso sobre matéria de direito a parte final da impugnação da decisão da matéria de facto, pois que, como já aí se disse não existe nenhuma regra da experiência comum das coisas com o uso da qual se possa retirar a conclusão do abandono (ou de que a ré criou confiança na autora de que pretendia abandonar a obra) apenas do simples facto da retirada do equipamento (ou do facto de a ré não ter mencionado que pretendia continuar a obra, sendo que a própria autora diz que a ré dava aparência de querer continuar a obra), para mais nas circunstâncias em causa, como o explicou a sentença recorrida.
Note-se, em reforço da argumentação da sentença recorrida, que as facturas da ré se referiam a trabalhos a realizar e não a trabalhos já realizados (como agora está expressamente referido no facto 9, mas já resultava, por exemplo, da comparação das datas dos orçamentos A/35, A/11, A/12, A/13 e A/14 que constam do facto 9, com as datas das facturas a/1, a/16, a/18, a/15 e a/17 que constam do facto 12, já que, sendo do dia ou 2.º dia a seguir ou do próprio dia, não podiam dizer respeito a trabalhos já realizados), pelo que, apesar de, dos factos provados, resultar que, à data em que a factura a/19 foi exigida, a autora já tinha pago mais do que o valor correspondente à mesma, esse valor a mais referia-se a outros trabalhos orçamentados, pelo que a exigência da factura a/9 estava na lógica do acordado entre as partes (facturas de antecipação, do trabalho a realizar).
Posto isto,
O objecto de um recurso não são as conclusões do mesmo. “O objecto do recurso é a decisão recorrida, que se vai ver se foi aquela que ex lege devia ter sido proferida.” (Castro Mendes, Recursos, AAFDL, 1980, pág. 24; no mesmo sentido, com desenvolvimentos, Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, vol. II, AAFDL/CIDP, 2022, páginas 129-130).
No caso, a decisão recorrida é, no que importa, a condenação da autora a pagar à ré um dado valor a título de prejuízos da ré, a liquidar de um modo fixado na sentença.
Concorda-se com quase toda a fundamentação da sentença recorrida. A parte com a qual não se concorda é a escolha do regime da impossibilidade da prestação quando, no caso, se verifica, claramente, face aos factos 21 e 22 um caso de desistência por parte da dona da obra, modo específico de cessação do contrato de empreitada.
Note-se que é a própria sentença que reconhece que se pode reconduzir a conduta da autora à desistência da empreitada por parte da dona da obra, o que afasta apenas porque a autora não teria baseado nela a sua pretensão. Mas a pretensão da ré é a indemnização pela impossibilidade da realização da prestação, por ter sido contratada nova empreiteira para concluir os trabalhos, pelo que a causa de pedir abrange os factos da desistência, embora a ré não a qualifique assim, pelo que, quanto à reconvenção, o argumento da sentença não pode ser aplicado.
Ou seja, nos próprios termos da sentença recorrida, o que se passou foi que a autora desistiu da empreitada ao mudar a fechadura de acesso à obra, não tendo mais intenção de que a 1.ª ré tivesse acesso ao local ou prosseguisse a obra (facto 21) e contratando nova empreiteira para acabar a obra (tendo sido esta a concluir a obra – facto 22), com isso tornando a prestação impossível.
Ora, se o dono da obra desiste da empreitada, contratando uma outra entidade para acabar a obra e esta a acaba de facto, tal impossibilita a prestação da 1.ª empreiteira por causa imputável ao dono da obra. Ou seja, a desistência confunde-se, no caso, com a impossibilidade. Mas a desistência é uma forma específica da extinção do contrato de empreitada. Logo, a prestação deixa de ser possível porque o contrato se extinguiu. Sendo assim o regime a aplicar é o da desistência (que se verifica primeiro e tem um regime próprio), não o da impossibilidade.
Neste sentido, o ac. do STJ de 08/09/2009, proc. 3743/04.6TBMTS.S1, vê na contratação de outra empreitada uma desistência tácita da empreitada. E, apesar da impossibilidade decorrente dessa contratação, aplicou o regime da desistência e não o da impossibilidade por causa imputável ao credor.
Veja-se:
III – Face à recusa de ultimação da obra por parte da empreiteira, com a constituição desta em mora, poderiam os credores pedir, em razão dela, uma indemnização por perdas e danos. Como a mora não extinguiu a obrigação, a devedora continuou adstrita a satisfazer a obrigação em atraso. A simples mora por parte da empreiteira não dava aos donos da obra o direito de resolver o contrato (não está em causa in casu o chamado “negócio fixo absoluto” em que o termo é essencial). A mora da empreiteira dava sim, ensejo aos credores de procederem à interpelação admonitória e então, verificando-se os respectivos pressupostos, considerar definitivamente não cumprida a obrigação.
IV – Ao não procederem da forma preconizada (não pedindo uma indemnização da empreiteira por perdas e danos, nem fazendo a interpelação admonitória), procedendo, logo depois do início da mora da outra parte, à entrega da ultimação da obra a terceiros, os donos da obra tornaram impossível a prestação (integral) da contraparte.
V – Com a entrega da obra a outra entidade, os donos da obra, para além de tornarem impossível a prestação da empreiteira, extinguiram o contrato de empreitada que celebraram, através da desistência (tácita) dele, pelo que, nos termos do art. 1229 do CC, terão de indemnizar a empreiteira pelos danos emergentes e lucros cessantes.
Este acórdão e escolha do regime é referenciado por Brandão Proença (nas Lições de Cumprimento e não cumprimento das obrigações, 2.ª edição, 2017, UCE/Porto, pág. 245, nota 739), sem crítica, dizendo, a seguir, o seguinte:
Nas condutas jurídicas [impossibilitantes do cumprimento ou da recepção/utilização da prestação], e alguns exemplos já o demonstram, há que incluir um conjunto de hipóteses em que o legislador permite ao credor desvincular-se livremente (por exemplo, por desinteresse) do contrato, impossibilitando que o devedor continue adstrito à sua prestação, mas cominando, ao mesmo tempo, consequências compensatórias específicas a cargo do mesmo credor.” [pensamos nos artigos (…) 1229 (desistência do dono da obra) (…)].
Por outro lado, a sentença recorrida diz que os dois regimes não conduzem a soluções muito diferentes, sugerindo com isso a irrelevância do regime a seguir. A sentença terá razão na questão da semelhança do resultado e a decisão que dela consta a fixar o modo de cálculo do valor a pagar vai nesse sentido.
Pois que, da aplicação do disposto no art. 1229 do CC, aquilo que o empreiteiro acaba por receber, para além do pagamento de gastos que teve com os materiais e mão-de-obra, é o proveito/lucro que previa obter na obra, Ora, da aplicação do art. 795/2 do CC, pode também ser esse o resultado final para o empreiteiro. Daí que Pires de Lima e Antunes Varela digam que “a contraprestação deve, portanto, ficar reduzida ao lucro […]” (último § da pág. 49 do CC anotado, vol. II, 4.ª edição, Coimbra Editora, 1997).
Mas o caminho para lá chegar é diferente e por isso pode acabar por conduzir a resultados muito diferentes: é que, enquanto no caso do art. 1229 do CC, é ao empreiteiro que caberá provar os factores que podem aumentar o valor daquilo que lhe deve ser pago em consequência da desistência, no caso do art. 795/2 do CC, é ao dono da obra que cabe provar os factores que podem diminuir o valor daquilo que terá de pagar (e como esses factores dizem respeito à esfera do empreiteiro, o dono da obra dificilmente o conseguirá fazer bem).
Ou seja, o resultado do jogo das regras do ónus da alegação e da prova pode ser, em concreto, muito diferente: no caso do art. 1229 do CC, o empreiteiro tem de alegar e provar, para poderem ser tidos em conta, os gastos e trabalho a indemnizar e o proveito que poderia tirar da obra. No âmbito do art. 795/2 do CC, é o credor (no caso o dono da obra) que tornou impossível a prestação que tem de alegar algum benefício que o devedor (no caso a empreiteira) tenha com a exoneração, para que o valor dele seja descontado na contraprestação (neste sentido, para a norma do art. 1229 do CC, veja-se Menezes Cordeiro, Tratado de direito civil,, vol. XII, Almedina, 2020, pág. 990; e para a norma do art. 795/2 do CC, por exemplo, Catarina Monteiro Pires, Impossibilidade da prestação, Almedina, 2017, págs. 764-765: “[…] o credor terá de reunir informação sobre o valor a abater, o que nem sempre será fácil […].”)
Assim, a condenação terá de ser alterada, para a pôr de acordo com o art. 1229 do CC.
Deste modo, a autora “terá de pagar ao empreiteiro, a soma das despesas com a aquisição de materiais, transporte, etc., acrescida do valor do trabalho incorporado na obra, em que se inclui o trabalho do empreiteiro e o daqueles que trabalharam com ele […]. Às despesas e ao trabalho, será aduzido o proveito que o empreiteiro poderia retirar da obra com a execução da obra; entenda-se da obra completa e não daquela que efectivamente se realizou.” Assim, o proveito será determinado pela subtracção, ao preço total fixado […] do custo global da obra (Pedro Romano Martinez, Contrato de empreitada, AAFDL, 1991, no 3.º vol. do Direito das obrigações, coord. de Menezes Cordeiro, pág. 517, ≈ páginas 466-468 Da cessação do contrato, 2.ª edição, Almedina, 2006 ≈ 849-851 do Comentário ao CC, Direito das Obrigações, Contratos em especial, UCE/FD/UCP, 2023; no mesmo sentido, Pedro de Albuquerque e Miguel Assis Raimundo, Direito das Obrigações, Contratos em especial, contrato de empreitada, 2012, vol. II, Almedina, páginas 496 e 495.)
E, como se trata de uma desistência parcial, quando as obras já estavam parcialmente realizadas, ao resultado alcançado (por todas as empreitadas) terá de ser descontado aquilo que a autora já pagou por elas.
Assim:
A 1.ª operação é a soma das despesas com a aquisição de materiais, transporte, etc., acrescida do valor do trabalho incorporado na obra, em que se inclui o trabalho do empreiteiro e o daqueles que trabalharam com ele.
A 2.ª operação é o apuramento do proveito que a 1.ª ré poderia retirar da execução da obra completa. Este apura-se pela subtracção ao preço total fixado – que é de 164.035,70€, com IVA incluído, como resulta da parte final do facto 9 – do custo global da obra (que terá de ser apurado).
A 3.ª operação é a soma do resultado da primeira com o da 2.ª
A 4.ª operação é a dedução ao resultado da 3.ª de tudo aquilo que a autora já pagou, ou seja, 81.022,03€, com IVA incluído, como resulta do facto 13.
O resultado da 4.º operação não poderá ser superior ao valor pedido pela 1.ª ré: 76.781,46€ [que tem o IVA incluído].
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Quanto às custas.
Na condenação nas custas há um evidente lapso já que as custas pela reconvenção foram fixadas em ¼ pelos réus e ¼ pela autora, o que dá 2/4 ou 50% e não 100%. Como se trata de uma condenação num valor ilíquido, a sentença ainda não sabia a proporção em que cada uma das partes iria ser condenada, pelo que o que ela quis escrever foi que as custas eram suportadas em partes iguais pela autora e pela ré. Isto obviamente sem prejuízo do que vier a ser decidido na liquidação, pelo que tal repartição é provisória. Tudo isto será precisado na parte final deste acórdão. Imprecisão que também se terá de reflectir nas custas do recurso, visto que não é possível concretizar o valor da improcedência de cada uma das partes no recurso: o recurso é parcialmente procedente, conseguindo a autora a alteração da decisão, mas não se sabe se tal se traduzirá num benefício efectivo para ela e em que medida, nem se saberá mais tarde, pois que não será feita uma liquidação com o critério da sentença recorrida para comparação.
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Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, alterando a decisão recorrida para o seguinte: condena-se a autora a indemnizar a 1.ª ré daquilo que se vier a liquidar como sendo o valor dos seus gastos e trabalho e do proveito que poderia tirar da obra, a descontar de tudo o que a autora já pagou à ré. Tudo com o limite do pedido: 76.781,46€ [que já tem o IVA incluído].
Mantêm-se as absolvições.
As custas, na vertente das custas de parte, da reconvenção são repartidas provisoriamente em partes iguais pela autora e pela 1.ª ré, e repartição poderá ser alterada em consequência do valor da indemnização que vier a ser liquidado mais tarde.
As custas, na vertente das custas de parte, do recurso são a repartir em partes iguais pela autora e pela 1.ª ré.
Lisboa, 27/02/2025
Pedro Martins
1.º Adjunto
2.º Adjunto