Processo do Juízo Central Cível de Almada – J1

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados

            Os réus recorrem contra o ac. do TRL de 19/12/2025, arguindo no recurso nulidades do acórdão pelas seguintes razões, em síntese:

                i\ a sentença condenou a autora a pagar uma indemnização aos réus com o limite de 2500€/mensais e o acórdão deste TLR, a pretexto de correcção de erro material, diminuiu o limite para 500€/mensais sem que tal lhe tivesse sido pedido (nem sequer consta das conclusões do recurso da autora que apenas se insurge quanto à sua condenação, não quanto ao valor da liquidação), pelo que não era questão que lhe competisse decidir; e fê-lo sem contraditório, o que conduz a uma decisão-surpresa (art. 615/1-d, 2.ª parte do CPC).

                ii\ o acórdão do TRL acrescentou à condenação dos réus os juros e uma data da citação a partir da qual eles se vencem, sem que que lhe tivesse sido pedido no recurso e sem observância do contraditório, o que conduz a uma decisão surpresa (art. 615/1-d, 2.ª parte do CPC).

                iii\ o acórdão do TRL, na condenação da autora, não acrescentou juros, apesar de os réus os terem pedido; não conheceu, pois, tal como a 1.ª instância, de questão que lhe cabia conhecer e, para além disso, tratou os réus de forma desigual em relação à autora.

                iv\ o acórdão do TRL não liquidou a condenação da autora, apesar de ter liquidado a condenação dos réus, o que é igualmente violador do princípio da igualdade das partes.

              A autora defende a improcedência da arguição de nulidades.

              Apreciação:

              Quanto a i\

              O objecto de um recurso não são as questões colocadas pelas conclusões das alegações de um recurso. Estas apenas servem para delimitar, dentro das decisões proferidas, as que são objecto do recurso. Daí o disposto no art. 635/2 do CPC: Se a parte dispositiva da sentença contiver decisões distintas, é […] lícito ao recorrente restringir o recurso a qualquer delas, uma vez que especifique no requerimento a decisão de que recorre.

               “O objecto do recurso é a decisão recorrida, que se vai ver se foi aquela que ex lege devia ter sido proferida […] compara[ndo] a decisão com os dados que o juiz decidinte possuía.” (Castro Mendes, Recursos, AAFDL, 1980, páginas 24-25; no mesmo sentido, com desenvolvimentos, Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, vol. II, AAFDL/CIDP, 2022, páginas 129-130).

              No caso, estando em causa – por força do recurso da autora – a sua condenação a pagar uma indemnização aos réus, o que importava saber era se ela tinha sido bem condenada, considerando todos os elementos constantes do processo e em que o juiz decidente se podia basear, entre eles um despacho de 30/06/2022, transitado em julgado, que declarava ter o pedido dos réus sido limitado ao valor de 500€ por mês, despacho que a sentença recorrida só por manifesto lapso não tinha considerado (a referência art. 616 do CPC foi feita para explicação do facto de se ter utilizado a expressão ‘manifesto lapso’).

              O tribunal de recurso não vai ver se a decisão é correcta ou não considerando apenas os elementos constantes do processo para os quais os recorrentes chamam a atenção.

              Por fim, para conhecer do objecto do recurso, o tribunal de recurso não tem de cumprir o disposto no art. 665/2 do CPC. A aplicação do art. 665 do CPC não estava aqui em causa. Ou seja, este TRL não actuou, no caso, como tribunal de substituição.

              Pelo que não se verifica nenhum dos dois fundamentos da 1.ª nulidade apontada.

                                                                 *

              Quanto a ii\

              Vale aqui o que se disse quanto a i\. A autora tinha pedido a condenação dos réus em juros, o que implicava uma data para o início da contagem deles. Na decisão recorrida referente à condenação dos réus nada consta quanto aos juros. Logo, estava errada e tinha que ser corrigida. O recurso tinha posto em causa a decisão, pelo que a falta de condenação em juros e o acrescento da data a partir da qual se venciam era uma parte do objecto do recurso.

              Pelo que também aqui não se verifica nenhum dos dois fundamentos da 1.ª nulidade apontada.

                                                                 *

              Quanto a iii\:

              Os réus não recorreram da sentença na parte em que esta condenou a autora sem a condenar também nos juros pedidos. Apenas recorreram da sua (réus) condenação no pedido feita pela autora. Pelo que a decisão, naquela parte, transitou em julgado. O tribunal de recurso não pode conhecer de uma condenação transitada: art. 635/5 do CPC: Os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso nem pela anulação do processo.

              Não há, nisto, qualquer nulidade do acórdão recorrido. Nem há aqui qualquer violação do princípio da igualdade: num caso há recurso, noutro não há. Os réus só deles se podem queixar.

                                                                       *

              Quanto a iv\:

              Primeiro, não se trata de matéria de nulidade.

              Segundo, vale aqui o que se disse quanto a iii\: os réus não recorreram da condenação ilíquida da autora.

                                                                 *

              Pelo exposto, não se verificam as nulidades arguidas.

              Remeta os autos ao STJ sem mais (a revista já foi admitida a 21/03/2025)

              Lisboa, 27/03/2025

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto

Nota posterior, de outra perspectiva

Do objecto do recurso

              O facto de uma questão não constar daquelas que importa decidir tendo em conta as conclusões de um recurso, não é obstáculo à sua apreciação; revela antes que o entendimento corrente das conclusões de um recurso como sendo, na prática, as questões a decidir, é redutor. O objecto do recurso é muito mais amplo e exigente.

              O objecto de um recurso são as decisões proferidas; as conclusões de um recurso o que fazem é delimitar quais as decisões que são objecto do recurso: se a parte dispositiva da sentença tem partes distintas e o corpo das alegações, tal como as conclusões, não se referem a uma dessas partes, nem a alteração da matéria de facto tem reflexos necessários e imediatos no decidido nessa parte, ela não é objecto do recurso (artigos 635/2-3 e 639/1 do CPC). Mas dentro de cada decisão recorrida não há partes ou pressupostos não recorridos. É toda a decisão que é recorrida, não apenas parte dela. Uma causa de pedir não se pode dividir, para estes efeitos, em várias partes, umas já transitadas em julgado e outras não. Delimitado o objecto do recurso à decisão principal do processo, o objecto do recurso é essa decisão que decidiu o pedido com base na respectiva causa de pedir, no seu todo e não apenas quanto a alguns dos factos constitutivos da pretensão deduzida.

              Assim, Lebre de Freitas / Ribeiro Mendes / Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 3.º, 3.ª edição, Almedina, 2022, páginas 68-69, dizem: “Note-se que a restrição só é admissível no plano da decisão e não no plano da fundamentação, como bem mostra o pressuposto das ‘decisões distintas’, só a decisão constituindo o objecto do recurso […], sem prejuízo de o recorrente poder renunciar aos fundamentos que não são de conhecimento oficioso (causa de pedir e excepção peremptória que só a parte pode invocar), como mostra o art. 636-1. […]”).

              Havendo uma só causa de pedir, ela tem de ser apreciada na sua totalidade, e não apenas quanto a um dos elementos constitutivos dela, embora, naturalmente, não tendo havido discussão sobre um ou outro desses elementos e ele/s não suscite/m dúvidas, a sua apreciação pode dispensar a discussão no acórdão.

              Por exemplo, um recurso que tem por objecto uma decisão que julga procedente um pedido de declaração da existência da servidão de vistas constituída por usucapião, não pode levar a que se considere insusceptível de discussão o decurso do prazo de 15 anos desde a data da constituição da situação de facto, mesmo que esse prazo não tenha sido objecto de conclusões no recurso (ac. do STJ de 10/09/2019, proc. 882/13.6TVLSB.L1.S1:

         “[…T]endo em consideração o disposto no art. 635º, nº 2 do CPC: é permitida a delimitação objectiva do recurso, mas apenas quando a parte dispositiva da sentença contiver decisões distintas.

         Estas decisões distintas serão “os vários julgados” que a sentença pode conter [Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, vol. III, 3ª ed., 228], decidindo as questões submetidas à apreciação do tribunal (art. 608º, nº 2, do CPC). Estas questões não se identificam, necessariamente, com o efeito jurídico que se pretende obter com a acção, uma vez que este efeito pode implicar a decisão de várias questões; mas, por outro lado, também não se confundem com as razões, fundamentos ou juízos de valor invocados em apoio da pretensão deduzida ou em vista daquele efeito jurídico, e apreciados na fundamentação da sentença ou acórdão [cf. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 2.º, 3ª ed., 713; entre outros, o Acórdão do STJ de 16/10/2018, proc. 2033/16.6T8CTB.C1.S1)].

         Como tem sido afirmado, o objecto do recurso é a decisão desfavorável ao recorrente; não os respectivos fundamentos [Abrantes Geraldes; Paulo Pimenta e Pires de Sousa, CPC anotado, Vol. I, 762].

         “Se a decisão é una, o recurso não pode ser restrito quanto ao objecto: tem de abranger toda a decisão; a restrição admitida pelo art. 685º (actual 635º) só pode funcionar quando a decisão é múltipla, isto é, quando a sentença contém várias decisões” [Alberto dos Reis, CPC, Vol. V, 306. Também, com interesse, Antunes Varela, RLJ 122-109 e segs. Cf. os acórdãos do STJ de 23.02.1978, BMJ 274-191, de 25/02/1987, BMJ 364-783, de 14/10/2010 (P. 105/2000.P1.S1) e de 16/03/2017 (P. 11/06.2TBVPA.G1.S1)].

         […]

         Por outro lado, a Relação, ao constatar a falta de prova de factos que interessariam à usucapião (se e quando ocorreu o tempo de posse suficiente para tal), limitou-se a formular um puro juízo de facto. Todavia, a ilação que depois daí retirou de, por falta dessa prova, negar a existência do direito invocado pelos autores, já constitui uma verdadeira questão de aplicação do direito, área em que o Tribunal não estava sujeito à alegação das partes (art. 5º, nº 3, do CPC) [Como afirma Antunes Varela (Ob. Cit., 115), “Para julgar a questão, o tribunal de recurso não podia deixar de averiguar a verificação dos pressupostos de facto destacados nas normas substantivas em que o autor fundou o seu pedido. A verificação ou não desses pressupostos, em face da matéria de facto dada como provada nos autos, é uma questão de direito cujo conhecimento não poderia ser interditado ao tribunal superior”.])

         […]

         Tendo sido interposto recurso de apelação da sentença, sem qualquer restrição quanto ao objecto, incumbia à Relação rever ou reponderar a decisão recorrida para aferir se esta era “aquela que ex lege devia ter sido proferida” [Ribeiro Mendes, Recursos em Processo civil, 2ª ed., 137.]”

              Também o artigo 636 do CPC demonstra que é errada a prática habitual de pegar nas conclusões de um recurso e formular através delas as questões a resolver. Pois que tal deixa de lado inúmeras outras questões que podem ter que ser conhecidas também e que decorrem do objecto do processo tal como vem da petição inicial e eventualmente da reconvenção (ou de outros articulados; em suma, de todo o processo).

              Veja-se:

              O art. 636/1 do CPC dispõe que: No caso de pluralidade de fundamentos da acção ou da defesa, o tribunal de recurso conhece do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respectiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação.

              Fundamento do pedido de ampliação, previsto no art. 636/1 do CPC, é, pois, desde logo, que a parte vencedora tenha decaído num fundamento. Pelo que é necessário que este fundamento tenha sido considerado na decisão recorrida.

              Como explicam, Lebre de Freitas / Ribeiro Mendes / Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 3.º, 3.ª edição, Almedina, 2022, páginas 73-74: “[…O] preceito só se aplica quando o tribunal recorrido tenha efectivamente conhecido o fundamento em causa, julgando-o improcedente: a parte vencedora há de ter nele decaído. Se, ao invés, tal fundamento, invocado pela parte em 1.ª instância, não tiver chegado a ser apreciado (designadamente, por ser subsidiário e proceder o fundamento principal, ou por proceder um dos fundamentos em alternativa), o tribunal de recurso não deixará de o conhecer, sem necessidade de requerimento de ampliação, se julgar improcedente o pedido tido como procedente pelo tribunal recorrido.”

              Assim, um fundamento alternativo do pedido do autor, que não foi apreciado pelo tribunal recorrido, deve ser conhecido pelo tribunal de recurso, mesmo que o autor, que ganhou a acção, com outro fundamento, e que agora é contraparte no recurso posto pelo réu, não tenha recorrido nem requerido a ampliação do âmbito do recurso. E, portanto, a respectiva matéria não figura nas conclusões do recurso (que é apenas do réu) e o tribunal de recurso não se aperceberá desta questão se não tiver feito uma análise da petição inicial (e de todo os restantes articulados, e do processo…) e estiver apenas atento às conclusões do recurso.

              E não se diga que esta é uma tese isolada de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre. O mesmo é dito por Miguel Teixeira de Sousa, Manual de processo civil, vol. II, AAFDL/CIDP, 2022, pág. 233-b a propósito do pedido subsidiário.

              Vejam-se as passagens deste autor:

          “(b) A hipótese em que o autor formula um pedido principal e um pedido subsidiário e em que o tribunal a quo reconhece o pedido principal (deixando, por isso, de conhecer do pedido subsidiário) levanta o seguinte problema: se a apelação interposta pelo réu vier a ser considerada procedente, cabe perguntar se a Relação pode conhecer do pedido subsidiário formulado pelo autor (e não conhecido pela 1ª instância).

          Não se encontra na lei nenhuma imposição ao recorrido do ónus de suscitar a apreciação do pedido subsidiário, nomeadamente porque o art. 636.º, n.º 1, só se aplica a fundamentos em que o recorrido tenha decaído. Sendo assim, há que concluir que a Relação pode apreciar o pedido subsidiário nos termos gerais do art. 665.º, n.º 2, ou seja, desde que possua os elementos suficientes para proceder a essa apreciação.”

              Ou seja, o pedido subsidiário tem de ser apreciado pela Relação, no caso de o recurso, apenas do réu, ser procedente quanto ao pedido principal do autor – e isso apesar de nem o réu nem o autor terem dito alguma coisa sobre esse pedido e de, portanto, nada disso constar das conclusões do recurso.