Processo do Juízo de Família e Menores de Torres Vedras
Sumário:
I – Verifica-se a nulidade da falta de notificação – equiparável, neste caso, a uma falta de citação -, de conhecimento oficioso, quando um incidente de incumprimento do regime de visitas é decidido sem prévia notificação do requerido.
II – Esta nulidade não fica sanada com a notificação das alegações do recurso do MP que contém a transcrição da sentença, se a carta para notificação destas alegações foi enviada para uma morada onde o requerido nunca tinha sido citado/notificado e a carta nem sequer foi entregue a ele.
III – O regime de incumprimento do art. 41 do RGPTC também se aplica ao incumprimento pelo progenitor não residente do regime de visitas e convívio estabelecido em acordo homologado.
A 02/06/2023, M veio dizer aos autos que P não visita nem convive com F, filha de ambos [nascida a 24/05/2017 – certidão de nascimento no processo principal], e não paga a pensão de alimentos, com excepção de Julho de 2023, em que pagou 80€, tudo em incumprimento da regulação do exercício das responsabilidades parentais, fixado por acordo homologado na acta de conferência de progenitores no dia 03/02/2023 [nesse acordo/acta consta, entre o mais, que o pai, poderá ver, estar e ter a menor consigo, sempre que desejar, mediante prévio acordo com a mãe […]; poderá ainda estar e ter consigo a menor aos fins-de-semana, de 15 em 15 dias, […]; caso o pai esteja ao serviço na noite de sábado para domingo, que coincida os fins-de-semana que tem aos cuidados a menor, os convívios e fins-de-semana alternado, passam para os fins de semana seguintes, alternando a partir daí; as férias escolares da menor, correspondentes ao período do Natal e da Páscoa, a menor passará uma semana com o progenitor […]; os períodos festivos de natal serão passados alternadamente com cada um dos progenitores, […]; No dia de aniversário da menor, esta tomará uma refeição com cada um dos progenitores, alternando nos anos subsequentes. A menor passará o dia do pai e o de dia do aniversário do pai com o progenitor […]].
A 10/07/2023, o Ministério Público promoveu que se notificasse o requerido para, querendo, dizer o que tiver por conveniente.
Depois de, a 20/09/2023, a requerente ter complementado o requerimento inicial, o MP veio dizer, a 26/09/2023, que “da análise dos requerimentos apresentados pela progenitora resulta que o progenitor não visita e convive com a criança e não paga a pensão de alimentos […] Estando em incumprimento o regime de convívios fixado a favor da criança, promovo que se designe data para conferência de pais.”
A 02/10/2023, foi proferida sentença em que se diz, entre o mais, que “notificado o requerido, não só não comprovou o pagamento de tais mensalidades, como nada disse” e acrescentou-se que “face à ausência de impugnação, por parte do requerido, mostram-se confessados os factos alegados no requerimento inicial e, em consequência, importa julgar verificado o incumprimento da pensão de alimentos nos precisos termos em que é apresentado pela requerente.” Depois, proferiu-se decisão em que, por um lado, se julgou verificado o incumprimento do requerido quanto às prestações da pensão de alimentos referentes aos meses e, por outro lado, julgou-se não verificado o invocado incumprimento do regime de vistas, dele absolvendo o requerido do pedido. Condenou-se ainda o requerido nas custas do incidente de incumprimento.
Só 17 dias depois, a 19/10/2023, foi providenciada a notificação da sentença ao MP e à requerente e ao requerido, nesse caso através de carta registada simples.
A 22/10/2022 o MP veio interpor recurso da sentença – para que fosse revogada e substituída por outra decisão que determine o cumprimento do disposto no artigo 41/3 do RGPTC, designadamente convocando os pais para uma conferência -, isto com o fundamento, em síntese, de que também há incumprimento quando o progenitor não residente não visita nem convive com o filho. Nas alegações transcreveu-se, na íntegra, toda a sentença recorrida.
A 07/11/2023 veio devolvida (como objecto não reclamado) a carta para notificação da sentença ao requerido (tinha sido enviada para […] a morada que constava do processo principal, onde o requerido tinha sido convocado para a conferência de pais onde esteve presente).
A 15/02/2024 o MP veio requerer que fosse admitido o recurso (já com 4 meses).
A 18/02/2024, determinou-se a notificação dos progenitores para contra-alegarem.
A 19/02/2024 foi enviada carta registada simples para o efeito (para uma morada obtida pela informação da GNR de 13/11/2023, fornecida em contacto telefónico com o mesmo […em] Vila Real; no sítio dos CTT da internet consta como tendo sido entregue a “RPD”).
A 17/04/2024 foi admitido o recurso – quase 6 meses depois de ter sido interposto, 6,5 meses depois da sentença.
A 23/04/2024 foi enviada carta para notificação da admissão do recurso à requerente e ao requerido, ambas devolvidas (a do requerido, enviada para Vila Real, com a indicação de que se tinha mudado).
Apenas a 07/06/2024 foi remetido o recurso a este TLR, apenas recebido a 11/06/2022, quase 8,5 meses depois de ter sido proferida a sentença recorrida.
O recurso subiu nos termos (nos próprios autos – a requerente veio dizer, entretanto, que os alimentos estavam regularizados) e com o efeito (meramente devolutivo) devidos.
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Questões a resolver: para além de uma questão prévia, oficiosa – qual seja, a da falta de observância mínima do contraditório -, ainda a de saber se se verifica o incumprimento do acordado para efeitos do art. 141 do RGPTC.
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Questão prévia:
A sentença foi proferida contra o requerido sem que este tivesse tido sequer conhecimento do incidente. Verifica-se, assim, a nulidade da falta de notificação – notificação que, no caso, é para garantir os direitos de defesa e que por isso deve ter os efeitos de uma falta de citação (artigos 187/-1 e 188/1-a do CPC – neste sentido, por exemplo, o ac. do TRP de 30/01/2014, proc. 3907/10.3TBSTS.P1 (com referências doutrinárias), do TRL de 18/01/2018, proc. 2546/16.0T8LSB.L1-2; e do TRL de 05/03/2020, proc. 194/12.2TBSRQ.L1-A; e para uma situação com algumas semelhanças ainda o ac. do TRL de 14/09/2023, proc. 9647/22.3T8LRS-A.L1-2; todos relatados pelo signatário do actual), falta que é de conhecimento oficioso (art. 196 do CPC).
Poderia dizer-se, no entanto, que a nulidade se encontra sanada (art. 199/1 do CPC), visto que o requerido terá sido notificado do recurso interposto pelo MP, no qual é transcrita a sentença na íntegra, podendo entender-se que tomaria então conhecimento da nulidade (de a questão ter sido decidida sem o seu conhecimento apesar de ele ser requerido no processo): quem toma conhecimento da existência de uma decisão proferida contra si num processo em que se é parte formal (por a pretensão ser dirigida contra si) e apesar disso não tem conhecimento do processo, sabe, logicamente, que não foi citado para ele. Ora, o requerido não teria arguido a nulidade da falta de citação no prazo geral de 10 dias (art. 149/1 do CPC), pelo que ela estaria sanada e já não poderia ser conhecida (art. 196 do CPC).
No entanto, a notificação ao requerido das alegações do recurso do MP foi feita através de uma carta registada simples dirigida para uma morada na qual ele não tinha sido citado, nem antes tinha sido nela notificado.
Ora, as decisões finais são notificadas às pessoas singulares que não constituíram mandatário, através de carta registada, dirigida para a sua residência ou para o domicílio escolhido para o efeito de as receber, presumindo-se, nestes casos, feita mesmo que a carta seja devolvida (art. 249 do CPC), no pressuposto de que essa pessoa foi antes citada no processo e a carta para notificação foi enviada para a morada onde ele foi citado. Ora, uma primeira carta enviada para notificação de uma pessoa singular, num incidente ocorrido depois da sentença final proferida no processo principal, já findo, numa morada onde ele não tinha sido citado, não observa este pressuposto. Não há, pois, razão para presumir que o requerido teve conhecimento da carta registada simples para notificação das alegações do MP, com a transcrição da sentença (carta aliás essa que foi entregue a outrem que não a ele, ou seja, a um tal “RPD”).
Em suma, não se considera sanada a nulidade decorrente da falta da citação do requerido para o processo.
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Para evitar que se veja nesta decisão o aproveitamento de uma nulidade para evitar o conhecimento da questão que o recurso levantava, diga-se, de qualquer modo, ainda o seguinte:
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Os factos provados constariam da decisão recorrida: o requerido não cumpre o regime de visitas e de convívio com a filha fixado no acordo que foi homologado judicialmente no processo principal.
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A fundamentação da decisão recorrida foi a seguinte, em síntese:
“O alegado para fundar incumprimento do regime de visitas, podendo configurar eventual causa de pedir para acção de alteração da regulação das responsabilidades parentais, não tem virtualidade para fundar incumprimento, pelo que, a pretensão da requerente tem de naufragar.”
Só “haveria incumprimento se o requerido não tivesse entregado a menor à mãe […]. Na verdade, os mecanismos do incidente de incumprimento do regime de visitas e contactos destinam-se a permitir que o progenitor não residente contacte e conviva efectivamente com o filho, nos casos em que o progenitor residente impede ou dificulta tais contactos. Já na situação inversa, tais mecanismos não têm a virtualidade de obrigar o progenitor não residente a contactar mais com o filho e estar com ele em determinados períodos, como parece pretender a requerente.”
O Ministério Público contrapõe a isto o seguinte (transcrevem-se apenas algumas das muitas conclusões):
I – O artigo 1878/1 do Código Civil consagra que “compete aos pais, no interesse dos filhos velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens”.
II – As responsabilidades parentais configuram-se como um conjunto de poderes-deveres ou poderes funcionais atribuídos legalmente aos progenitores no interesse dos filhos e para a prossecução dos interesses pessoais e patrimoniais do filho menor, maxime em ordem a assegurar convenientemente o seu sustento, saúde, segurança e educação – artigos 1878 e 1905 do CC.
[…]
V – Toda a criança tem o direito fundamental à convivência familiar – artigo 9.º da Convenção sobre os Direitos da Criança – e uma relação de proximidade com ambos os pais, mesmo no caso de ruptura da relação entre os progenitores, é, em regra, benéfica para o seu desenvolvimento integral, visando consolidar o vínculo que se perpetua entre pais e filhos.
VI – O artigo 1882 do CC refere que “Os pais não podem renunciar às responsabilidades parentais nem a qualquer dos direitos que ele especialmente lhes confere […]
[…]
VIII – O direito de visitas assumindo a natureza jurídica de um direito/dever, é estabelecido no interesse da criança, por forma a promover a manutenção de laços de afectividade com o progenitor não residente e a salvaguardar as suas referências parentais, indispensáveis ao seu crescimento e desenvolvimento salutar e harmonioso – artigo 24/3 da Carta dos Direitos Fundamentais, artigo 36/6 da Constituição da República Portuguesa e artigo 1906/5 do CC, devendo ser visto numa perspectiva de satisfação do interesse real do filho […]
IX – O incumprimento desse direito, pode ocorrer de três situações: o incumprimento do progenitor residente, que impede o convívio da criança com o progenitor não residente, o incumprimento do progenitor não residente de entrega da criança no fim do período fixado e a terceira causa, o desinteresse do progenitor não residente na manutenção dos convívios com o filho, sendo a mais difícil de gerir uma vez que pode colocar em risco os laços afectivos entre o filho e o pai e causar danos irreversíveis na criança de abandono e de rejeição, que importa evitar.
XI – O incumprimento das responsabilidades parentais tem lugar quando o acordo ou a decisão não seja cumprido por um dos progenitores em qualquer das suas vertentes – destino, convívios ou alimentos.
XII – Sucede que o progenitor não tem cumprido o regime previsto de contactos e visitas à filha, estando em causa a violação das cláusulas 4 e 5 do regime em vigor e importa regularizar a situação de forma a assegurar à criança todos os cuidados necessários ao seu crescimento e desenvolvimento.
XIII – Neste caso, o incidente visava repor o cumprimento fixado do regime de convivência entre a criança e o pai de forma a assegurar o desenvolvimento saudável e harmonioso da criança.
[…]
XIX – O mecanismo para proteger a criança, evitar a ruptura definitiva dos laços afectivos e os traumas inexplicáveis de abandono e rejeição é o previsto no artigo 41.º do RGPTC, onde poderão ser adoptadas providências coercivas, directas ou indirectas, ao cumprimento dos convívios, cuja natureza e extensão dependerá, sempre, do caso concreto, podendo-se se recorrer a medidas de aproximação através de convívios supervisionados por técnicos especialistas em terapia familiar ou mediação, chamando-se a intervir outras entidades como a Segurança Social ou um Centro de Apoio Familiar e Aconselhamento Parental – CAFAP prevista no artigo 40/2 aplicável ex vi artigo 41/7, ambos do RGPTC.
[…]
Posto isto,
O art. 41/1 do Regime geral do processo tutela cível, com a epígrafe de ‘incumprimento’, prevê que, “[s]e, relativamente à situação da criança, um dos pais […] não cumprir com o que tiver sido acordado ou decidido […].
Portanto, a previsão da norma exige tão só o incumprimento do que tiver sido acordado, sem fazer distinções entre qual dos progenitores não cumpriu, se o residente se o não residente (neste sentido, por exemplo, o ac. do TRL de 21/06/2007, proc. 5145/2007-6: 1. O incumprimento do acordado em matéria de regulação de poder paternal, com o simultâneo desrespeito pela decisão proferida pelo Tribunal, tem uma sanção específica estatuída na lei, nos termos do art. 181º, nº 1, da OTM. 2. Tendo sido igualmente objecto de regulação o direito de visita, com as respectivas visitas acordadas entre os progenitores, o incumprimento desse direito de visita por parte de um dos progenitores enquadra-se, em abstracto, na referida norma. 3. Com efeito, assumindo o direito de visita a natureza jurídica de um direito/dever, constitui ele próprio a essência dos direitos parentais para o progenitor não guardião do menor, funcionando, neste sentido, como um meio desse progenitor, não guardião do menor, manifestar a sua afectividade para com o filho, estreitando laços, partilhando emoções e ideias, e transmitindo-lhe valores, sentimentos de todo indispensáveis ao real crescimento do menor e ao seu desenvolvimento harmonioso do ponto de vista psicológico. 4. Por isso, o afastamento de um dos pais da vida da criança é uma situação que se configura, em si mesma, como contrária aos interesses da própria criança e, por conseguinte, urge salvaguardar, com vista à manutenção das relações pessoais e fortalecimento dos laços afectivos entre pais e filhos. […].)”
Depois a norma (da 2.ª parte do art. 41/1] estabelece uma variedade de possibilidades de consequências, adaptáveis ao preenchimento da previsão: “pode o tribunal, oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou do outro progenitor, requerer, […] as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até vinte unidades de conta e, verificando-se os respectivos pressupostos, em indemnização a favor da criança, do progenitor requerente ou de ambos.”
A isto segue-se necessariamente a convocação, pelo juiz, dos pais para uma conferência ou, excepcionalmente, da notificação do requerido para, no prazo de cinco dias, alegar o que tiver por conveniente (art. 41/3 do RGPTC).
No caso dos autos é evidente que se verifica o preenchimento da previsão da norma: o pai deixou de cumprir o regime de visitas e de convívio com a filha.
Pelo que, o juiz tinha necessariamente de convocar a conferência ou determinar a notificação do pai para, no prazo de 5 dias, alegar o que tivesse por conveniente.
É certo que, por exemplo, o art. 41/6 do RGPTC parece só se dirigir à situação em que o progenitor residente não entrega o filho para efeitos de cumprimento pelo regime de visitas e de convívio do progenitor não residente com o filho.
Mas essa norma, está inserida no contexto das normas dos nºs anteriores e dos posteriores, das quais decorre que esse incumprimento é também para a situação contrária e as normas são suficientemente flexíveis para que as consequências do incumprimento possam ser aplicadas a ambas as situações.
Em suma, a decisão recorrida teria de ser revogada, com o fundamento aduzido pelo MP, se não fosse o caso de se entender que ela deve antes ser anulada por força da nulidade verificada.
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Pelo exposto, julgo verificada a falta de notificação do incidente ao requerido, com a consequente nulidade de todo o processado depois do requerimento inicial da requerente de 02/06/2023, incluindo, por isso (por arrastamento), a nulidade da sentença recorrida. Em consequência deverá ser dada a devida sequência a tal requerimento (art. 41, n.ºs 3 a 8, do RGPTC), para já com a convocação dos progenitores para uma conferência ou, excepcionalmente, com a notificação do requerido para, no prazo de cinco dias, alegar o que tiver por conveniente (devendo ter-se o cuidado de averiguar a actual residência do requerido, que pode ser a inicial, ou outro, sendo que existe, na informação prestada pela GNR, o n.º de telemóvel do requerido).
Sem custas do recurso, porque a nulidade tem origem no tribunal recorrido.
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Dado o tempo já decorrido desde o requerimento inicial da requerente, mais de um 14 meses, sem se ter dado sequência ao mesmo apesar de ele dizer respeito à falta de contactos entre um pai e uma filha, declaro a urgência do processo e que, por isso, ele deve correr em férias (art. 13 do RGPTC).
Lisboa, 06/08/2024
Pedro Martins