Processo do Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz 11
Sumário:
I – Um recurso não é um meio para suprir a falta de contestação, isto é, para suprir os efeitos da revelia previstos no artigo 567/1 do CPC (consideram-se confessados os factos articulados pelo autor). Pelo que nele não se podem impugnar factos, nem invocar excepções que não sejam de conhecimento oficioso (preclusão: artigo 573 do CPC) ou que não estejam baseadas em factos provados.
II – Os honorários fixados pelos advogados (segundo os critérios do art. 105/3 do EOA) são líquidos e vencem juros de mora desde a data em que o cliente foi interpelado para os pagar (arts. 804, 805/1 e 806/1, todos do CC).
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados
F-Sociedade de Advogados, RL, intentou contra S acção comum, pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe 32.077,17€, com IVA incluído, acrescida dos juros vencidos e vincendos, à taxa legal, até integral pagamento, sendo que se encontram já vencidos juros no valor de 426,66€.
Alegou para o efeito que:
1º A ré contratou a autora na pessoa da sua sócia e administradora, advogada, titular da cédula profissional…, para a patrocinar no âmbito de um processo do foro criminal, que correu os seus trâmites, nesta comarca, no Tribunal Central Criminal de Lisboa – Juiz 7, sob o nº 213/18.9PWLSB, enquanto ofendida e assistente.
2º Nesse sentido e visando o desiderato pretendido pela ré, a Sr.ª advogada acima mencionada, no cumprimento do mandato conferido e no interesse da ré, estudou e concretizou um conjunto de actos e diligências entre 22/03/2018 e 22/05/2020 que se passam a descriminar da seguinte forma:
3º 1 – Reunião com a ré no dia 22/03/2018 entre as 18h, no sentido de se inteirar de toda a situação; 2 – Consulta do processo no DIAP; 3 – Estudo de todo o processo na fase de inquérito; 4 – Deslocação, no dia 23/03/2018, com a constituinte ao Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa J3, acompanhando-a nas declarações prestadas para memória futura; 5 – Elaboração, no dia 30/03/2018 e envio de requerimento reportando a circunstância da ré não reunir condições para ser ouvida como testemunha; 6 – Elaboração, no dia 17/04/2018, de requerimento de constituição de assistente; 7 – Análise do teor do despacho de acusação, cuja notificação ocorreu no dia 07/08/2018, quando do mesmo foi a mandatária notificada; 8 – Dedução, por parte da assistente da acusação e remessa da mesma a Juízo, no dia 20/08/2018; 9 – No mesmo dia, elaboração de requerimento com fotos dos equipamentos danificados pelo arguido; 10 – No dia 30/08/2018, dedução e envio de demanda cível, com um pedido de indemnização de 200.000€; 11 – No dia 19/09/2018, elaboração e envio de um requerimento solicitando que fosse constituído um tribunal de júri; 12 – Estudo do Relatório Social do arguido, em 21/11/2018, data da notificação do mesmo à mandatária da ofendida; 13 – Entre os dias 28/11/2018 e 23/07/2019, presença nas 12 sessões da audiência de discussão e julgamento, desde a 1ª sessão até à 12ª sessão, altura em que ocorreu a leitura do acórdão; 14 – Na pendência do julgamento, a 01/07/2019, receção e estudo do relatório de perícia psicológica para avaliação do estado do arguido; 15 – Preparação das alegações para a respetiva sessão de julgamento, a 11ª, que ocorreu a 04/07/2019; 16 – Inerente à audiência de discussão e julgamento, estudo dos inúmeros relatórios das perícias médico-legais psiquiátricas elaborados quer por médicos psiquiátricos quer pelo INMLCF; 17 – Elaboração, no dia 16/03/2020, de requerimento para pedido de certidão do acórdão; 18 – Estudo do regime de proteção às vítimas e elaboração, no dia 05/05/2020, de requerimento a solicitar um pedido de indemnização a ser suportada pelo Estado, no sentido de reparar danos causados a ofendidas vítimas de crimes violentos, requerimento devidamente instruído com documentação comprovativa do alegado; 19 – Elaboração de resposta, no dia 22/09/2020, às questões levantadas pela Comissão de Proteção às Vítimas de Crime no quadro do processo 103/2020; 20 – Várias reuniões param preparação da reunião deliberativa da Comissão de Proteção às Vítimas do crime, com psicóloga forense.
4º Todos os serviços acima discriminados, foram concretizados pela Sr.ª Dr.ª sem que tenha ocorrido inicialmente ou na pendência do processo, algum pagamento a título de provisão para honorários ou despesas;
5º Findo o processo e, tendo o acórdão transitado arbitrado uma indemnização à ré, a autora remeteu à mesma a nota de honorários e despesas que ora se anexa, remessa feita por vai de email datado de 07/09/2021 [25.506€ de honorários + 573€ de despesas + 5.998,17€ de IVA].
6º Rececionada a mencionada nota, até ao momento, a verba em causa seja a título de honorários sejas a título de despesas não foi liquidada.
7º A mencionada nota de honorários não comtempla qualquer dos pressupostos ou critérios que ex lege (artigo 105/3 do Estatuto da Ordem dos Advogados) o advogado deve seguir na elaboração da respetiva nota de honorários, com exceção daquele que se reporta ao tempo despendido.
8º A nota de honorários em causa não levou em consideração a dificuldade do tema, a maturação intelectual sobre as questões suscitadas ou o resultado obtido.
9º Atendeu apenas às horas gastas em todo este trabalho, omitindo todo o trabalho despendido integrado nos acima referidos critérios, fixando um valor/hora de 120€.
10º Valor que é abaixo do que se pratica na comarca de Lisboa o qual ultrapassa, por vezes os 200€ à hora.
11º Desta forma, atendendo às horas despendidas, o valor de honorários, mostra-se inserido na prática forense da comarca, in casu, de Lisboa.
12º Ao valor de honorários acresce as despesas suportadas, ao longo do processo, pela autora e que se cifram em 573€.
13º A ré foi interpelada para proceder ao pagamento da referida nota de honorários e despesas no dia 07/09/2021.
A ré não contestou.
Por isso, nos termos do artigo 567 do CPC, consideraram-se confessados os factos articulados pela autora e foi concedido prazo às partes para alegarem (de direito) por escrito, o que fizeram.
Depois foi proferida sentença, julgando a ação procedente, por provada, e condenando a ré a pagar à autora o pedido.
A ré recorre desta sentença – para que seja revogada e [na nova decisão] seja tido em conta o direito alegado pela ré e os honorários sejam fixados de acordo com os critérios legais em vigor -, terminando com conclusões que são, no essencial, reprodução do corpo das alegações e das alegações de direito que já tinha produzido na sequência da notificação do art. 567/2 do CPC.
Tirando a alegação de novos factos e o relato e síntese de actos processuais, a argumentação da ré é, em síntese, a seguinte (com numeração própria colocada por este acórdão; a indicação feita pela ré dos acórdãos do TRL e do TRP invocados por ela estava errada e teve que ser este TRL a identificá-los correctamente com as partes colocadas entre parenteses rectos: designadamente, em 12/11/2019, não existe, no TRL, qualquer acórdão sobre a questão ao contrário do escrito pela ré):
(i) A confissão dos factos, por força da não contestação, não implica a procedência da acção, pois que o art. 567/2 do CPC não consagra um efeito cominatório pleno.
(ii) O valor dos honorários foi apresentado sem qualquer suporte documental e respectivos comprovativos.
(iii) O art. 105/1 do EOA dispõe que os honorários devidos ao advogado estão sujeitos a um princípio geral de adequação. Tal adequação, deve ser temperada pela proporcionalidade, correspondendo a um exercício de concatenação dos serviços efectivamente prestados com o preço (honorários) cobrados por tais serviços; o art. 105/3 do EOA consagra critérios que o advogado deve atender na fixação dos honorários. Os honorários pedidos pela autora não cumprem com o estabelecido nestes preceitos, pois que os fixou tendo apenas como critério o tempo despendido / valor por hora. O tribunal deve fixar os honorários tendo em conta aquelas regras ou, em alternativa, com recurso à equidade conforme decorre do disposto nos artigos 4 e 1158/2 do CC (acórdãos do TRL de [26/09/2019, proc. 19543/17.0T8LSB.L1-2], do TRL de [11/12/2019, proc. 2677/08.0TVLSB-B.L1-2] e do TRP de 15/04/2013 [proc. 84/06.8TBTBC.P1].
(iv) A autora não tem direito a juros, pois que só seriam devidos a partir da data da sentença que fixasse o montante (cf. ac. do TRG de 29/09/2014, proc. 2259/07.3TBFAF-D.G1).
(v) Há uma decisão surpresa, porque o tribunal recorrido não considerou o direito alegado pela ré.
A autora apresentou contra-alegações, defendendo a improcedência do recurso.
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Questão que importa decidir: se os honorários da autora deviam ter sido fixados num valor inferior e se a autora não tem direito a juros desde a interpelação.
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Apreciação:
Antes de mais, diga-se que um recurso não é um meio para suprir a falta de contestação, isto é, para suprir os efeitos da revelia previstos no artigo 567/1 do CPC (consideram-se confessados os factos articulados pelo autor). Pelo que nele não se podem impugnar factos, nem invocar excepções que não sejam de conhecimento oficioso (preclusão: artigo 573 do CPC) ou que não estejam baseadas em factos provados. Com isto se justifica a desconsideração da multiplicidade de factos alegados pela ré nas alegações do recurso.
Posto isto:
Quanto a (i): a afirmação é exacta, mas é irrelevante, pois que, ao contrário do sugerido pela ré, o tribunal recorrido não julgou, sem mais, a acção procedente, tendo procedido à apreciação do mérito dela perante os factos confessados.
Quanto a (ii): a argumentação é irrelevante, nem que mais não seja porque a ré não pôs em causa que os serviços em causa, discriminados no facto 2, tenham sido prestados.
Quanto a (iii): dos factos narrados pela autora e confessados pela ré resulta que a autora não considerou quaisquer outros factores previstos no art. 105/3 do EOA para não encarecer os honorários. Ora, não pondo a ré em causa que o valor hora pelo tempo de trabalho despendido pela autora “é abaixo do que se pratica na comarca de Lisboa o qual ultrapassa, por vezes os 200€ à hora” e que o valor global, “atendendo às horas despendidas, […], mostra-se inserido na prática forense da comarca, in casu, de Lisboa”, não há razão para não concordar com a sentença recorrida no sentido de os critérios utilizados (utilizar o factor tempo despendido; não encarecer os honorários com a consideração de outros factores) serem razoáveis. Nenhum dos acórdãos invocados pela ré tem qualquer argumentação que dê suporte à crítica da ré ao valor fixado pela autora, tendo em conta que esta – não tendo os honorários sido fixados por acordo, nem tendo sido alegada a existência de tarifas profissionais ou usos para o caso (art.1158/2 do CC) – utilizou apenas um dos factores de equidade previstos no art. 105/3 do EOA, de modo a fixar um valor hora inserido na prática da comarca e substancialmente inferior (apenas 60%) ao valor que aí chega a atingir. Sendo que a ré também não pôs em causa o número de horas de trabalho que a autora alegou ter despendido e não alegou em tempo, na contestação, factos que pudessem ser considerados como factores que contribuíssem para a diminuição do valor dos honorários.
Quanto a (iv): como também diz a autora, o acórdão do TRG referido pela ré só tem em vista os casos em que o montante dos honorários é fixado pelo tribunal, não quando este aceita como justo o valor pedido pela autora, ou seja, quando este foi liquidado pela autora e não pelo tribunal. Os juros são por isso devidos desde a interpelação: artigos 804, 805/1 e 806/1 do CC (no mesmo sentido, veja-se o ac. do TRL de 09/02/2017, proc. 2440/11.0YXLSB-J.L1, relatado pelo relator do actual, com suficiente, ao que se crê, indicação de jurisprudência quer num quer noutro sentido; por último, veja-se também o ac. do TRL de 11/07/2019, proc. 10303/17.0T8SNT.L1-6).
Quanto a (v): não há qualquer decisão surpresa, pois que o tribunal proferiu a sentença depois de ter ouvido as duas partes sobre a questão (art. 3 do CPC) e até revelou, pelo que afirmou sobre a contestação, ter considerado as alegações de direito da ré.
Em suma: a argumentação da ré é manifestamente improcedente.
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas, na vertente de custas de parte, pela ré.
Lisboa, 12/10/2023
Pedro Martins
1.º Adjunto
2.º Adjunto