Processo do Juízo Central Cível de Sintra

              Sumário

              I – Se um pedido reconvencional não for deduzido “de forma clara, de modo separado na contestação e com indicação do seu valor”, a consequência não é uma absolvição da instância (implícita), mas a necessidade de um despacho de aperfeiçoamento (artigos 590/3 e 583/2, ambos do CPC).

              II – Se a autora alega um estado de necessidade subsumível à previsão do negócio usurário (art. 282 do CC) e o réu, sem mais, a faz equivaler ou implicar a um estado de incapacidade, e com base nisso faz um pedido de invalidade de actos praticados pela autora, verifica-se, por um lado, nulidade do pedido por ineptidão derivada da falta de causa de pedir e, por outro lado, uma falta de legitimidade processual activa para tal pedido, visto que o réu não tem o direito de pedir a anulabilidade do acto da autora por falta de capacidade desta.

              III – Uma perícia não pode suprir – nem é um meio de suprir – a falta de alegações de factos.

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

              A intentou uma acção declarativa com processo comum contra R, pedindo, entre o mais, que seja anulado o contrato de arrendamento, referido no art. 35º da petição, por erro na declaração por parte da autora, bem como por dolo do réu e ainda por constituir um negócio usurário.

              Descreve para tanto, com pormenor, as suas condições socioeconómicas e culturais e o seu estado de saúde física e mental à data da celebração do contrato, para concluir pela sua situação de inferioridade, inexperiência e dependência de terceiros, do conhecimento do réu e explorada por este nos termos do art. 282 do CC.

              O réu contestou, aceitando alguns destes factos, e dizendo que, se for como a autora diz, a mesma também não teria capacidade cognitiva suficiente para exercer o direito de preferência, apresentar acções judiciais e os demais actos a que, legalmente tem direito. Depois requer que se proceda a exame pericial médico-legal da autora, para aferir se a mesma reúne as condições necessárias para se representar em juízo na presente acção, assim como se possui capacidade cognitiva para se reger a si própria e aos seus bens, nomeadamente na celebração de negócios e efectiva gestão dos mesmos, conquanto, se assim não for, qualquer acto praticado pela mesma no seio de toda e qualquer relação contratual, não terá qualquer validade jurídica, inclusive o exercício do direito de preferência. Termina a contestação, nesta parte, requerendo que se declare improcedente o pedido de anulabilidade do referido contrato de arrendamento, por não provado qualquer vício inerente ao mesmo, máxime pelo eventual comportamento do réu que, alegadamente, possa traduzir a existência de um negócio usurário; na eventualidade de se demonstrar que a autora não se encontra numa situação que lhe permita exercer os seus direitos pessoais de forma plena, consciente e cabal, [deve] declarar-se a invalidade e, portanto, reconhecer-se a anulabilidade do exercício do direito de preferência realizado pela autora e, em consequência, declarar-se a invalidade do alegado exercício do direito de execução específica, por ser o mesmo exercido por pessoa que carece de capacidade jurídica para o efeito.

              Em despacho de 31/01/2024, depois de se transcrever a forma como o réu finalizou a contestação, diz-se o seguinte: “O assim requerido consubstancia um pedido reconvencional subsidiário a apreciar pelo tribunal caso procedesse o peticionado pela autora. O pedido reconvencional, mesmo que subsidiário, para ser admitido tem de ser deduzido de forma clara, de modo separado na contestação e com indicação do seu valor. Uma vez que o réu não afirma estar a deduzir pedido reconvencional, não cumprindo quaisquer dos requisitos para a sua dedução, o tribunal não se pronunciará quanto ao requerido pelo réu, mesmo que venha a julgar procedente o peticionado pela autora, o que desde já se consigna.”

              O réu recorre deste despacho – para que seja revogado e substituído por outro que convide ao aperfeiçoamento do articulado -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

         3\ A decisão recorrida consubstancia uma violação do princípio da primazia da materialidade subjacente.

         4\ O tribunal a quo recusa conhecer do pedido formulado pelo réu com base numa irregularidade meramente formal – pelo que cai em nulidade por omissão e violação do princípio da cooperação e do dever de gestão processual, impostos pelos artigos 6/2-3-4 do CPC.

         5\ Ao detectar uma irregularidade no articulado, cabia ao tribunal a quo convidar o réu a suprir as deficiências apuradas.

         6\ Atente-se ao teor do artigo 590/3-4 do CPC.

         7\ Da leitura do despacho recorrido é claro que o tribunal a quo não tem dúvidas de estar perante um pedido reconvencional subsidiário.

         8\ E é claro que a recusa de pronúncia se deve a requisitos de forma.

         9\ Os vícios detectados pelo juiz a quo não se pretendem com factos essenciais alegados pelas partes, mas tão somente com a forma do pedido reconvencional.

         10\ Estamos, assim, perante uma irregularidade facilmente suprível pelas partes.

         […]

         13\ Neste sentido, vejam-se os acórdãos do TRC de 06/12/2016, processo 1556/15.9T8LRA.C1, e do TRE de 13/01/2021, processo 20/19.1T8LGA-E.E1-A.

              A autora renunciou ao direito de contra-alegar.

                                                                 *

              Questão que importa decidir: se o tribunal recorrido não devia ter decidido que não se pronunciaria quanto ao requerido pelo réu, mesmo que viesse a julgar procedente o peticionado pela autora; e consequências a tirar da solução adoptada.

                                                                 *

              Apreciação:

              Os fundamentos invocados para a absolvição da instância implícita estão errados pois que, existindo, deviam ter dado lugar a um despacho de aperfeiçoamento (assim, por exemplo, Lebre de Freitas, A acção declarativa, 5.ª edição, Almedina, 2023, pág. 149, e Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, 2017, anotação ao art. 583, fim da nota 1 da pág. 602).

              Apesar disso não teria sentido deixar seguir a reconvenção, o que se decide em substituição do tribunal recorrido ao abrigo do art. 665/2 do CPC.

              A situação de inferioridade, inexperiência e dependência de terceiros, descrita pela autora para os efeitos do preenchimento da previsão do art. 282 do CC (negócios usurários), só por si não equivale nem implica de forma necessária a existência de uma incapacidade “cognitiva suficiente para exercer o direito de preferência, apresentar acções judiciais e os demais actos a que, legalmente tem Direito”. Como o réu, para concluir por tal incapacidade, nada acrescentou ao que a autora alegava, não se poderá nunca concluir pela mesma. E a falta dos factos necessários não pode ser suprida, porque o réu nada alegou no sentido de o estado da autora ser de incapacidade e não pode ser convidado a inventar agora factos nesse sentido. O réu limitava-se a pressupor que a situação descrita pela autora era equivalente ou implicava o estado de incapacidade.

              O pedido reconvencional subsidiário era, pois, inepto, por falta de causa de pedir (art. 186/1-2a do CPC).

              Não tendo sido alegados factos que permitissem concluir pela incapacidade e não podendo tal falta ser suprida, a perícia requerida pelo réu não serviria para nada. A perícia, como meio de prova que é, destina-se a provar as afirmações de facto feitas pelas partes, não a, eventualmente, descobrir factos que as partes não alegaram.

              Dito de outro modo: a instrução feita no decurso de um processo destina-se à prova das afirmações de facto feitas pelas partes, não à investigação de factos que permitam às partes fazer afirmações de facto (art. 341 do CC). A investigação de factos não se faz durante o processo. A instrução é uma investigação da verdade das afirmações de facto feitas pelas partes com base na investigação dos factos que estas fizeram ou deviam ter feito antes do processo.

              Neste sentido:

              Castro Mendes:

         “A investigação processual não é uma actividade de descoberta da verdade sobre certo evento ou complexo de eventos, mas uma actividade de confirmação ou prova de um certo número de afirmações previamente feitas sobre os mesmos eventos; não se destina à aquisição de conhecimentos novos, mas à demonstração da verdade de factos já alegados em juízo, e que só resta confirmar – à prova, em suma. O art. 2404 do Código Civil de 1867, numa definição que se pode considerar basicamente correcta, define prova como a ‘demonstração da verdade dos factos alegados em juízo’” (Direito Processual Civil, AAFDL, III, 1982, pág. 185).

              Lebre de Freitas, A acção declarativa comum, 5.ª edição, 2023, Gestlegal, pág. 245:

         “A produção dos meios de prova no processo visa demonstrar a realidade dos factos alegados pelas partes ou, em outra perspectiva, demonstrar a verdade da alegação por elas feita. […] […] a função probatória é precedida pela afirmação de que o facto ocorreu: a alegação precede a prova […].”

              Lebre de Freitas, Introdução ao processo civil, 5.ª edição, 2023, Gestlegal, pág. 234, diz:

         “O princípio do inquisitório (supra, n.º II.6.6) aponta já para uma concepção do processo civil, diversa da primitiva concepção liberal, em que a investigação da verdade é da responsabilidade do juiz. Na sua pureza, implicaria que a iniciativa do juiz não se limitasse ao plano da prova e, invadindo igualmente o da recolha do material a provar, se traduzisse na livre investigação judicial dos factos. Não é assim, porém, nos siste­mas processuais dos Estados democráticos de tipo ocidental (supra, n.º II.6 (35)), em que, dominando o princípio da controvérsia a recolha dos factos da causa, apenas no campo da prova tem também aplicação o princípio do inquisitório […]”

              Por outro lado, o réu não tem legitimidade para pedir a anulação de actos praticados pela autora por falta de capacidade; a falta de capacidade é um vício que pode levar à anulabilidade do acto (art. 257 do CC – “apesar da epígrafe da norma falar expressamente em ‘incapacidade acidental’ ela é aplicável quer a causa da incapacidade seja temporária quer seja permanente”: Maria de Fátima Ribeiro, nota 6/I ao art. 257 do C, pág. 621, no Comentário ao CC, Parte geral, UCP/FD/UCE, 2014) que só pode ser arguido pelas pessoas (ou seu representante, segundo lembra a autora acabada de citar) em cujo interesse a lei a estabelece (art. 287/1 do CC), sendo que entre essas pessoas não se conta, naturalmente, o declaratário ou o réu numa acção proposta pelo eventual incapacitado.   

              Pelo que o réu careceria de legitimidade processual activa para deduzir tal pedido contra a autora (art. 30/3 do CPC): a própria relação controvertida tal como configurada pelo réu não tem, no lado activo, o direito que o réu pretende exercer.

              A nulidade do pedido reconvencional e a falta de legitimidade são casos de absolvição da instância (art. 277/1-b-d do CPC).

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              Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se o despacho recorrido, mas, em substituição do tribunal recorrido, julga-se nulo o pedido reconvencional, por ineptidão derivada de falta de causa de pedir, para o qual, além disso, o réu não teria legitimidade, e, em consequência absolve-se a autora da instância reconvencional.

              Visto que é o réu ainda o prejudicado com a decisão final do acórdão, perde as suas custas de parte (sendo que não há outras pois que a autora não contra-alegou).

              Lisboa, 09/05/2024

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto