Processo do Juízo Local Cível de Ponta Delgada – Juiz 4

              Sumário:

              I – O caso julgado produzido no processo declarativo cobre não só as excepções deduzidas, mas também as dedutíveis, que tenham por base factos anteriores à contestação ou a um articulado superveniente que pudesse ter sido deduzido na acção declarativa, cujo direito de arguição preclude.

              II – Não pode, por isso, aquele que é executado com base numa sentença judicial, pôr em causa a regularidade do mandato forense ou a capacidade jurídica do autor, com base em factos que já se verificavam no processo declarativo ou sem alegar que o seu conhecimento desses factos é posterior ao momento em que aqueles factos podiam ter sido alegados naquele processo.

              III – Se o recorrente vem dizer que aqueles vícios têm a ver com uma procuração junta com o requerimento executivo, que não existe, para poder pôr em causa o despacho de indeferimento dos embargos que tinha por pressuposto a procuração junta com a petição da acção declarativa, está a litigar de má-fé e deve ser condenado como tal.

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

              Em 14/08/2014, A intentou uma acção com processo especial de prestação de contas contra B e C.

              Fê-lo pela mão da sua advogada, tal como resulta da procuração com poderes forenses gerais de 26/09/2013 que apresentou com a petição inicial.

              B contestou, sem levantar qualquer questão relativa à procuração.

              Por sentença de 19/02/2015, os réus foram condenados a prestar contas à autora.

              A 21/02/2019 foi proferida sentença, entre o mais condenando os réus a pagar à autora o saldo das contas apurado a favor da autora, reportado a 18/10/2016, no valor total de USD 103.037,36, que, à taxa de câmbio então vigente de 1,0993, corresponde a 93.729,97 €.

              B interpôs recurso, no qual não foi levantada qualquer questão quanto à procuração.

              O recurso foi julgado improcedente, por acórdão de 09/07/2020, transitado em julgado.

              A 16/01/2021, a autora veio requerer a execução da sentença de 21/02/2019 nos próprios autos, pela mão da advogada que já a estava a representar.

              A 17/05/2021, depois de penhorados vários prédios aos executados, estes foram notificados, para além do mais, da penhora e para deduzirem, querendo, oposição à execução ou à penhora.

             A 14/06/2021, o executado B veio deduzir oposição à execução com os seguintes fundamentos (segue-se a síntese feita pelo tribunal recorrido): nos autos principais que culminaram na prolação da sentença que ora foi dada à execução, a procuração outorgada é nula, por dela não constar a menção a qualquer documento identificativo da mandante e a assinatura aposta não se encontra reconhecida notarialmente, o que gera a nulidade da mesma, por força do disposto nos artigos 44, 46 e 70 do Código do Notariado; a outorgante não possuía capacidade cognitiva e/ou discernimento que lhe permitisse visualizar e alcançar os efeitos da procuração forense por si, alegadamente, outorgada, o que determina igualmente a nulidade da procuração, por violação do disposto no artigo 72/2 do CN; no ano de 2017, em território português, em casa da executada, a exequente perdoou a dívida aos executados, pelo que a quantia exequenda se extinguiu por remida a título de liberalidade, nos termos previstos no artigo 863/2 do CC; considera que estes fundamentos integram os pressupostos previstos no artigo 729/-a-c do CPC.

             Por despacho de 29/06/2021, estes embargos foram rejeitados, “por os fundamentos invocados não se ajustarem ao título executivo (art. 732/1-b do CPC) ”. A fundamentação completa de tal despacho foi a seguinte (excluindo a síntese dos embargos já transcrita acima):

         “Antes de mais, importa referir ser perfeitamente pacífico que o título dado à execução consiste numa decisão judicial transitada em julgado em 30/09/2020.

         A este respeito, o art. 729/-a-c do CPC veio restringir fortemente os fundamentos de admissibilidade da oposição à execução fundada em sentença, visto que na mesma já existiu uma fase declarativa prévia em que as partes tiveram a possibilidade de discutir o mérito da causa.

         O art. 729/-a do CPC consagra como fundamento a inexistência ou inexequibilidade do título executivo; no primeiro caso (inexistência) enquadram-se as situações em que não seja apresentado qualquer título executivo ou em que exista uma contradição entre o pedido e o título executivo, quando o documento apresentado não se enquadra no elenco dos títulos executivos legalmente admissíveis ou quando o executado não figura como devedor no documento dado à execução (Marco Carvalho Gonçalves, 2016, Lições de Processo Executivo, Almedina, página 199); por seu turno, no segundo caso (inexequibilidade) relevam somente os vícios formais desse título (designadamente, se nele constam identificados o exequente e o executado, bem como a prestação que este se mostra obrigado a prestar àquele), já não os eventuais vícios de mérito da decisão judicial, os quais se pressupõe terem sido discutidos na acção declarativa onde tal decisão judicial foi proferida e transitou (cfr. o acórdão do TRE de 31/01/2019, proc. 571/16.0T8STC-C.E1).

         O art. 729/-c do CPC consagra como fundamento de oposição à execução a falta de qualquer pressuposto processual de que dependa a regularidade da instância executiva, sem prejuízo do seu suprimento; enquadram-se neste fundamento a falta de personalidade/capacidade judiciária, patrocínio judiciário obrigatório, cumulação indevida de execuções, incompetência absoluta do tribunal, etc.

         Posto isto, fácil se torna ver que os motivos invocados não preenchem nenhum dos fundamentos de oposição à execução.

         Em primeiro lugar, a irregularidade da procuração outorgada deveria ter sido discutida no processo de declaração, atendendo até ao princípio da concentração da defesa (art. 573/1 do CPC), não constituindo nenhum fundamento de inexistência ou de inexequibilidade do título na medida em que o título existe, é-lhe reconhecida força executiva, as partes figuram nele como exequente e executado e o mesmo não padece de quaisquer vícios formais (art. 729/-a do CPC).

         Em segundo lugar, na decorrência do exposto, os factos alegados não constituem nenhum pressuposto processual de que dependa a regularidade a instância executiva, pelo que não preenche o fundamento previsto no art. 729/-c do CPC.

         Em terceiro lugar, o mesmo se diga dos demais fundamentos invocados (vício da vontade na outorga da procuração e remissão da dívida antes do trânsito em julgado da sentença), os quais deveriam ter sido invocados no processo de declaração e não preenchem os pressupostos dos fundamentos de oposição à execução invocados (artigos 573/1 e 729/-a-c do CPC).”

              O executado B recorre deste despacho – para que seja revogado -, concluindo o seu recurso com as seguintes conclusões:

         1) O recorrente deduziu embargos de executado nos quais suscitou a invalidade – formal e material – da procuração que sustenta o requerimento executivo.

         2) E propugnou a extinção da instância executiva por falta dos pressupostos processuais de que depende a regularidade da instância executiva, sem prejuízo do seu suprimento.

         3) A decisão recorrida entendeu que esta matéria deveria ter sido invocada em sede declarativa e, por isso o seu conhecimento por extemporâneo e não enquadrável nos fundamentos dos embargos de execução fundada em decisão judicial.

         4) Com o devido respeito, ocorreu por parte do julgador um manifesto equivoco pois que [o que] foi impugnado não foi a regularidade da procuração que sustentou a acção declarativa antes sim, a regularidade da procuração forense que sustenta o requerimento executivo pelo que,

         5) Por erro na apreciação da matéria de direito ao caso aplicável, in casu, o disposto no aludido art. 729/-c do CPC, deverá a decisão recorrida ser revogada e, substituída por outra que admita os embargos de executado oportunamente apresentados.

              A exequente contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso.

                                                                 *

         Por despacho de 09/11/2021, as partes foram notificadas da intenção do relator propor a condenação do executado/embargante como litigante de má-fé, por ter invocado, como base do recurso, uma procuração na execução que não existe (a questão foi desenvolvida, no essencial, nos termos que serão referidos abaixo).

              Nenhuma das partes se pronunciou sobre a litigância de má-fé.

                                                                 *

              Questão que importa decidir: se eventuais vícios relativos à procuração são fundamento válido para os embargos deduzidos e se, por isso, eles não deviam ter sido rejeitados; a da litigância de má-fé.

              A sentença conheceu de um outro fundamento dos embargos, qual seja, o da remissão da dívida. Mas os fundamentos de embargos são autónomos. Pelo que, a falta de referência, no recurso, a este outro fundamento (remissão), significa que o embargante restringiu o recurso ao único fundamento cuja inadmissibilidade invoca: o dos vícios formais e substantivos da procuração (artigos 635/3-4 e 639/1 do CPC).

              Estando restringido o objecto do processo, excluindo-se pois a questão da remissão, não interessa a discussão desta.

                                                                 *

              Apreciando:

              A argumentação do embargante parte de um pressuposto que não corresponde aos factos: não há nenhuma procuração junta ao requerimento executivo, seja como cópia ou como original.

              A procuração foi junta com a petição de prestação de contas e depois disso foi proferida sentença exequenda, transitada em julgado. Com o caso julgado dessa sentença, precludiram-se todos os meios de defesa que tivessem a ver com essa procuração, como diz a sentença recorrida.

              (Lebre de Freitas, A acção executiva, 7.ª edição, pág. 217 e nota 62 da pág. 219-220 [se “não se pode repetir a causa com a falta do mesmo pressuposto processual” (CPC anotado [de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre], I, n.º 2 da anotação ao art. 279 [pág. 566], e II, n.º 4 da anotação ao art. 620 [pág. 754] [e 2.º§ da anotação 7 ao art. 581, pág. 600]) porque a decisão sobre pressupostos processuais tem força de caso julgado [seguindo esta posição, veja-se o ac. do TRL de 13/07/20217, proc. 2702/06.9TBALM-2], a falta de dedução de factos relativos a excepções sobre pressupostos processuais, derivada de factos que à data já existiam, preclude a possibilidade de os invocar mais tarde] e 68 da pág. 222, bem como nota 18 da pág. 201 e nota 20 da pág. 202 [da Acção executiva]: o caso julgado [produzido no processo declarativo] “cobre não só as excepções deduzidas mas também as dedutíveis, cujo direito de arguição preclude com a contestação (ou, quando constituído posteriormente, no prazo do art. 588/3)” e páginas 566-568 e 595 do vol. II do citado CPC anotado [com o caso julgado “precludem, em caso de condenação no pedido, as excepções, invocadas ou invocáveis, contra o pedido deduzido […]”)

              Ou seja, dizendo de outro modo para não repetir a sentença, se o embargante não levantou nenhuma questão quando à irregularidade formal da procuração junta com a petição inicial (art. 48 do CPC), não pode estar a levantá-la agora em que se trata de executar a sentença transitada proferida no processo. Os vícios não nasceram entretanto, já existiam, pelo que, querendo que eles fossem apreciados tinha de os ter invocado na acção declarativa, na contestação ou num articulado superveniente, ou, constando eles dos factos que pudessem ser adquiridos no processo, no recurso da sentença, pois que a excepção dilatória decorrente daquela irregularidade seria de conhecimento oficioso.

              Isto vale de igual modo para os vícios substanciais que poderiam afectar a procuração e mandato forense, por falta de capacidade jurídica do embargado/exequente/autor (artigos 15, 17, 23 e 27, todos do CPC e Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 1.º, Almedina, 2021, reimpressão de 2017, anotação 5 da página 69, anotação 7 da pág. 74, anotação 3 das páginas 78-79 e páginas 81-82 e 87, e Castro Mendes, Direito Processual Civil, II, AAFDL, 1980, págs. 64-65, 69, 72 e 73-74). Existindo eles à data da procuração e tendo o executado conhecimento deles antes da sentença, tinha de ter alegado os respectivos factos ou na contestação ou em articulado superveniente antes da sentença (arts. 573 e 588 do CPC), como já referido. Ele só poderia invocar tais vícios, na oposição à execução, se simultaneamente dissesse que só tinha tido conhecimento deles posteriormente à sentença, o que não fez (e como facto essencial principal desta excepção não poderia ser convidado a fazê-lo).

              Reconhecendo implicitamente que a sentença tem razão, o embargante, para poder recorrer dela, resolve fazer de conta que existe uma procuração, de que só poderia ter conhecimento posteriormente à sentença de condenação, pois que só teria sido junta depois disso.

              Ora, não havendo nova procuração, tem de naufragar, sem mais, a pretensão do embargante.

                                                                 *

                                              Da litigância de má-fé

               Nos embargos o executado levantou questões relativas à procuração passada pela exequente à sua advogada, referindo-se a uma cópia da procuração junta à execução.

              Depois de o tribunal rejeitar os embargos dizendo, entre o mais, que a irregularidade da procuração outorgada deveria ter sido discutida no processo de declaração, o executado vem recorrer de tal decisão, falando agora numa “procuração forense junta ao requerimento executivo” e desenvolve o assunto dizendo: “Cotejado o requerimento executivo interposto a 13/01/2021 temos que a procuração junta […]. […E]sta concreta procuração forense em que se alicerça o requerimento executivo […] não pode […] instruir o requerimento executivo embargado. Escrito de outra forma: o recorrente […] colocou em crise […] a validade […] da procuração que instruiu o requerimento executivo.” E na conclusão 4 do recurso diz mesmo que “ocorreu por parte do julgador um manifesto equivoco pois que [o que] foi impugnado não foi a regularidade da procuração que sustentou a acção declarativa antes sim, a regularidade da procuração forense que sustenta o requerimento executivo […]”

              Ou seja, o executado, para (poder) pôr em causa a decisão recorrida, diz expressamente que existe uma procuração que sustenta a acção declarativa e uma outra que sustenta o requerimento executivo.

              Ora, a sentença exequenda está a ser executada nos próprios autos e só existe uma procuração, junta, já em 2014, aquando da petição inicial do processo (não existindo qualquer outra, tal como não existe nenhuma cópia junta à execução).

              O executado, estando a falar de uma execução existente no processo, teve que a consultar, pelo que sabe necessariamente que ela não foi junta com o requerimento executivo, como original ou como cópia, mas sim com a petição de prestação de contas, antes da sentença.

              Assim sendo, ao dizer que ela foi junta com o requerimento executivo, ele está a deduzir, neste recurso, uma pretensão cuja falta de fundamento não pode ignorar, alterando para tal a verdade dos factos, visando ainda o efeito lateral de, com o recurso, protelar o trânsito em julgado da decisão, ou seja, está a litigar de má-fé, pela qual deve ser condenado em multa (art. 542/1-2-a-b-d do CPC).

                                                                 *

             Essa multa deve ser fixada entre 2 UC e 100 UC (art. 27/3 do Regulamento de Custas Processuais), tendo em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correcta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste (art. 27/4 do RCP).

              Com o recurso apresentado, o embargante está, sabendo que não tem razão, a apresentar mais um obstáculo processual à efectivação do direito da embargante, que ela tenta realizar processualmente há mais de 7 anos; e está a obrigar ao dispêndio injustificado e inútil de recursos públicos (trabalho da secção de processos e do juiz) que podiam e deviam ser aproveitados para outros processos.

              Não há dados no processo quanto à situação económica do embargante, mas este não está numa situação de insuficiência económica determinante da necessidade de apoio judiciário.

              Não há o mínimo de razões para supor que a aplicação de uma multa de 3 UC, perto do limite mínimo daquela moldura, adequada a esta conduta processual, se mostre susceptível de implicar repercussão significativa no património do embargante.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente e condena-se o embargante/recorrente como litigante de má-fé na multa de 3 UC.

              Custas, na vertente de custas de parte (não existem outras), pelo recorrente (que é quem perde o recurso).

              Lisboa, 16/12/2021

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto