Embargos de executado – Juízo de Execução de Loures
Sumário:
Só quando um documento é essencial para o prosseguimento da acção é que, se ele não for apresentado (e se não estiver já no processo), o processo deve ser suspenso e julgado deserto findo o prazo da deserção (artigos 281/1 e 590/3 parte final, ambos do CPC).
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:
A 01/07/2019, I e M, representados por advogado, deduziram embargos a uma oposição que lhes era movida por um Condomínio.
No artigo 1.º da petição diziam que a execução não pode proceder em relação à executada, já que a mesma não é dona ou co-titular de qualquer fracção no prédio indicado pelo exequente. Por outro lado, o seu estado civil é de divorciada há pelo menos 8 anos, não sendo, no período referido, 2013 a 2018, titular ou co-titular de qualquer prédio ou fracção e não lhe podendo ser atribuído qualquer débito como o alegado pelo exequente.
A 09/12/2019, o Condomínio contestou, dizendo o seguinte, na parte que importa:
I. Quanto à suposta ilegitimidade da executada
3. Os presentes autos deram entrada em juízo no dia 09/04/2019.
4. No dia 04/04/2019, foi obtida, junto da competente Conservatória do Registo Predial, uma certidão permanente da fracção autónoma B, onde, sob a ap. 108, de 08/01/1998, a executada consta como proprietária da mencionada fracção – conforme documento 1 que se junta e se dá por integralmente reproduzido.
5. Se a comunhão conjugal entre os dois executados cessou, em que data e se, consequentemente, fizeram partilhas do seu património comum, a exequente não tem obrigação de saber, uma vez que os executados não procederam ao competente registo em sede própria, como era sua obrigação, nem tampouco disso fizeram agora prova.
6. Pelo que, a excepção invocada não pode proceder.
A certidão permanente junto pelo exequente tem o conteúdo por ele referido, ou seja, tem a data de 04/04/2019, é uma certidão da informação em vigor, e a executada consta, com o seu marido, como tendo adquirido a propriedade da fracção B do edifício, por arrematação em 08/01/1998.
A 30/06/2020, foi proferido o seguinte despacho:
Atento ao alegado no artigo 1 da PI de embargos, notifique os embargantes para juntarem aos autos certidão do registo predial actualizada da fracção em causa.
Notificados de tal despacho por carta elaborada a 01/07/2020, quer o exequente quer os executados nada fizeram.
A 04/12/2020 foi proferido o seguinte despacho:
Reitera-se o despacho que antecede.
Notifique.
Notificados de tal despacho por carta elaborada a 09/12/2020, quer o exequente quer os executados nada fizeram.
A 24/04/2021, foi proferido o seguinte despacho:
Aguardem os autos o impulso processual dos embargantes, sem prejuízo do disposto no artigo 281 do Código de Processo Civil.
Notifique.
Notificados de tal despacho por carta elaborada a 26/04/2021, quer o exequente quer os executados nada fizeram.
A 18/01/2022 foi proferido o seguinte despacho:
Os autos encontram-se sem impulso processual há mais de seis meses, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 281 do CPC, julga-se extinta a instância, por deserção.
Custas pela embargante. [sic]
Registe, notifique e comunique.
Os executados vieram recorrer desse despacho – para que seja anulado e substituído por outro, que julgando a causa controvertida, decida o mérito da causa em termos substantivos, […e] seja impedida a execução enquanto não haja uma decisão final, transitada em julgado, sobre os embargos dos executados -, terminando as suas alegações com o seguinte resumo [sic], que se transcreve na parte que interessa:
5. No dever de gestão processual inscrito no art. 6 do CPC está inscrita a obrigação do juízo judicial ter em consideração a verdade material e a prevalência da substância sobre a forma, o que não se vislumbra na sentença aqui em recurso.
6. Nos termos do artigo 268 nºs 3 e 4 da CRP, os cidadãos têm direito a ser efectivamente notificados das questões que lhes digam respeito e bem assim a ter uma decisão célere e justa sobre o mérito da causa, não podendo ser prejudicados por esquemas formais que não respeitam a verdade material.
7. A falta de entrega de uma certidão do registo predial solicitada, não pode impedir um tribunal de avaliar, desde 01/07/2019, data da entrega dos embargos de executados, a verdade material subjacente à questão controvertida.
8. A decisão ora sindicada tem permitido ao exequente, ainda sem o trânsito em julgado da sentença em causa, cobrar dinheiro penhorado, segundo info recebida de um Banco, bem como tentar junto da SegSocial penhorar a reforma do executado.
O exequente contra-alegou, no sentido de ser mantido o despacho recorrido, dizendo, em síntese e na parte que importa, que:
Os executados alegaram a ilegitimidade da executada por a mesma se encontrar divorciada do executado e, nessa medida, não ser proprietária da fracção autónoma sobre a qual impende a dívida em discussão nos autos. Não fizeram prova do alegado. O Sr. juiz a quo notificou-os para que juntassem aos autos certidão do registo predial actualizada. Os executados não o fizeram.
À data em que a acção executiva deu entrada em tribunal, foi, pelo exequente, obtida uma certidão permanente da fracção em causa, na qual ambos os executados constavam como proprietários da mesma. Motivo pelo qual, a execução foi legitimamente movida contra ambos. Se a comunhão conjugal entre os eles os dois cessou, em que data e se, consequentemente, fizeram partilhas do seu património comum, o exequente não tem obrigação de saber, uma vez que os executados não procederam ao competente registo em sede própria, como era sua obrigação, nem tampouco disso fizeram prova quando convidados a fazê-lo. Convite que lhe foi dirigido em 30/06/2020!
A parte que alega factos que interessam à sua pretensão tem o ónus de os provar – art. 342/1 do CC – pelos meios mais adequados, mormente documentais, quando se trata de prova vinculada a tal forma probatória, vendo naufragar a sua pretensão caso o não faça.
A deserção da instância depende da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: a) A inércia de qualquer das partes em promover o andamento do processo, imputável a título de negligência; b) A paragem do processo por tempo superior a seis meses, a contar do momento em que a parte devia ter promovido esse andamento. A falta de impulso processual pressupõe, desde logo, que as partes não praticaram, durante aquele período de tempo, acto (processual) que condicionava ou do qual dependia o andamento do processo, isto é, na acepção de que sem ele o processo não poderia prosseguir os seus ulteriores trâmites legais. Tal vicissitude processual radica no princípio da auto-responsabilidade das partes, na medida em que lhes incumba o impulso processual aferível à luz do disposto na directriz geral do artigo 6/1 do CPC.
No caso concreto, o prazo de paragem do processo foi largamente superior a seis meses… Se os executados se arrogam do direito em exigir uma decisão célere e justa, também não se podem esquecer que sobre eles impende o dever de cooperação e da boa-fé processual – ex vide art. 417 do CPC.
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Questão que importa decidir: se os embargos não deviam ter sido julgados extintos por deserção.
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Os factos que importam para esta decisão são os que constam do relatório que antecede.
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O art. 281/1 do CPC, dispõe que “Sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.”
Lebre de Freitas [Da nulidade da declaração de deserção da instância sem precedência de advertência à parte, ROA 2018/I-II, páginas 191-199, especificamente páginas 197-198] ensina que:
“A norma do art. 281.º-1, CPC, tem assim sete requisitos, dos quais seis evidenciados na letra do seu texto e o último decorrente da sua interpretação à luz dos referidos princípios gerais:
1. Que lei especial, ou o tribunal por despacho de adequação formal do processo, imponha à parte um ónus de impulso processual subsequente;
2. Que o ato que a parte deva praticar seja por ela omitido;
3. Que o processo fique parado em consequência dessa omissão;
4. Que a omissão se prolongue durante mais de seis meses;
5. Que o processo se mantenha, por isso, parado durante este período de tempo;
6. Que a omissão seja imputável à parte, por dolo ou negligência;
7. Que o juiz alerte a parte onerada para a deserção da instância que ocorrerá se o ato não for praticado (segundo a corrente mais exigente, só a partir da notificação deste despacho de advertência se contando os seis meses).”
Independentemente da divergência que há relativamente ao 7.º requisito, nos termos em que ele é tido por existente e de modo absoluto, requisito que, de qualquer modo, se verifica, por constar do despacho a referência ao art. 281/1 do CPC, e da divergência quanto a um outro, que é o da prévia audição da parte (exigido por Miguel Teixeira de Sousa, anotações 5 a 7 ao art. 280 do CPC online, art. 259.º a 310.º, versão de 2022.03 e que no caso não se verifica), esta síntese corresponde ao que normalmente se diz na decisão deste tipo de casos.
No caso importa atentar no 1.º requisito, que é o de um ónus de impulso processual que, parafraseando Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, I, Almedina, 4.ª edição, 2021, pág. 507, se pode dizer que desde a reforma de 1995/96 do CPC só existe quando lei especial (ou o juiz nos termos referidos por Lebre de Freitas) o imponha, em derrogação da regra segundo a qual cabe ao juiz providenciar pelo andamento do processo (art. 6 do CPC).
Ora, no caso não há qualquer norma legal que imponha aos embargantes a prova documental imediata dos factos que alegaram para concluir que a executada não está abrangida pelo título executivo, nem o despacho proferido pelo tribunal a 30/06/2020 se assume como, ou é, um despacho de adequação formal do processo que tivesse por efeito a imposição de um ónus de impulso processual.
Portanto, falta desde logo um dos requisitos da deserção da instância.
A falta de verificação deste requisito pode ser vista ainda de outra perspectiva: se, como regra geral, incumbe ao juiz dirigir activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célebre, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da lide (art. 6/1 do CPC), então a instância só deve ser considerada deserta se ela só pode prosseguir os seus termos com a prática de um dado acto pela parte (ac. do TRL de 11/07/2019 – proc. 112635/15.6YIPRT, relatado pelo relator do actual) e não quando, face à omissão de um acto da parte, deve ter lugar outra consequência (exemplo, citado, por aqueles autores, na obra citada, pág. 573, do ac. do TRE de 24/01/2018, proc. 1393/12), ou o processo deve prosseguir (exemplo, citado por aqueles autores, obra e local citados, do TRC de 06/03/2018, proc. 349/14).
Ora, os embargos, para prosseguirem, não precisavam da certidão predial pedida pelo juiz, desde logo porque ela já existia (o que se tivesse passado de 04/04/2019 até à data do despacho era irrelevante, pois que a afirmação da parte não respeitava a esse período).
Mas também porque ela não era necessária para que os autos pudessem prosseguir.
O tribunal não disse, em nenhum dos quatro despachos que proferiu sobre o assunto, qual o fim que visava com a junção da certidão.
Podem-se imaginar duas hipóteses:
O tribunal tinha em vista permitir a apreciação da excepção dilatória ou o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador (art. 590/2-b do CPC); Ou tinha em vista suprir a falta de apresentação de documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa (art. 590/3 do CPC).
Ora, só quanto à última hipótese – que já se viu que não se verifica – é que se podia dizer que se justificava a suspensão da instância até que a parte apresentasse a certidão em causa (autores e obra citada, 2.º vol, 3.ª edição, Almedina, 2017, páginas 631 e 633), com a consequente deserção findo o prazo desta.
Todas as outras hipóteses (do art. 590/3 ou do art. 590/2-b do CPC) deviam levar a, caso os embargantes não apresentassem a certidão, uma decisão de outro tipo (os autores, obra e local citados falam em todas elas, como no caso, por exemplo e eventualmente, a da improcedência da excepção da ilegitimidade), que não de suspensão e subsequente deserção da instância.
Assim, se é certo que os executados actuaram com manifesta negligência – durante 18 meses não deram cumprimento aos despachos do tribunal, nem se dignaram justificar o facto ou dizer ao tribunal que a certidão já lá estava (mas acrescente-se que também se pode dizer o mesmo do exequente, que há muito podia ter dito ao tribunal que estava em erro ao exigir uma certidão que já estava no processo ou que, mesmo sem cumprimento dos despachos pelos executados, o processo devia prosseguir), daí não se pode tirar qualquer consequência visto que, face à não apresentação da certidão, o tribunal devia ter prosseguido com o processo, tirando as consequências devidas dessa falta.
Assim, não obstante a impertinência de quase todos os argumentos dos executados e da falta de legitimidade para se mostrarem inconformados com a paragem do processo, quando durante mais de 18 meses nada fizeram para que o processo andasse, e da total falta de fundamento para as pretensões formuladas no recurso (que se decida o mérito da causa e que seja impedida a execução…), a decisão de deserção deve ser revogada.
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Os executados juntaram, com o recurso, dois documentos: a certidão em falta e um documento que tem a ver com os factos alegados na PI e nada tem a ver com a deserção.
É manifesto que não era esse o momento para o fazerem, mesmo quanto à certidão, que deviam ter junto antes do recurso e no tribunal recorrido, cumprindo atempadamente os despachos do tribunal.
Assim, devem ser condenados na multa respectiva e os documentos devem ser desentranhados (arts. 651, 425 e 443 do CPC e 27/1 do RCP).
Se os quiserem apresentar nos embargos, terão de o requerer no tribunal recorrido e terá que ser este a apreciar a oportunidade de o fazerem só então.
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Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se o despacho recorrido, devendo os embargos prosseguir os seus normais termos.
Custas do recurso, na vertente de custas de parte (não existem outras) pelo exequente (que perde o recurso).
Os executados vão condenados em 1 UC de multa pela junção dos documentos com o recurso. Desentranhe os documentos e oculte-os electronicamente no processo electrónico).
Lisboa, 28/04/2022
Pedro Martins
1.º Adjunto
2.º Adjunto