Processo do Juízo Central Cível de Lisboa

              Sumário

              I – A cláusula contratual posta em causa pela autora (art. 280/1 do CC) não é nula.

              II – Por força do art. 343/3 do CC, se o direito invocado pelo autor estiver sujeito a condição suspensiva, cabe a ele a prova de que a condição se verificou.

              III – O envio da carta de 12/04/2018 não correspondeu a proposta para se chegar a um acordo quanto ao valor da comissão potencial a pagar.

              IV – Nem foi a causa adequada de uma justificada confiança da autora que lhe permitisse fazer um investimento baseado nessa confiança, investimento que, aliás, não foi alegado nem foi dado como provado.

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

              A-Lda, intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Banco-SA, pedindo que este seja condenado a pagar-lhe o valor da sua factura 2/33 no montante de 48.821,10€, acrescido dos juros vencidos liquidados à taxa comercial desde a data do seu vencimento até 05/05/2021, no montante de 10.261,81€, e nos juros a liquidar à mesma taxa comercial desde 05/05/2021 até ao efectivo pagamento [este TRL emendou o erro de escrita do valor da factura que era de …821 e não …221€ e colocou o ano tendo em conta o valor dos juros pedidos].

              Alega para o efeito que entre a autora e o réu foi celebrado um protocolo comercial através do qual a autora poderia apresentar aos seus clientes a possibilidade de pagamento integral dos contratos de compra e venda e/ou de prestação de serviços consigo celebrados através de recurso ao financiamento do réu; nesse protocolo foram regulamentadas as condições a vigorar entre as partes no âmbito dessa relação comercial, designadamente as condições em que é remunerada a actividade de angariação da autora; nesse contexto rege a cláusula 5ª desse documento, onde se referem as condições em que serão pagas as comissões devidas à autora pela angariação e concretização dos contratos de financiamento. Estabeleceram ainda as partes no nº 2 dessa cláusula 5ª que “…através de um acordo comercial específico, poderão acordar no pagamento de outro tipo de comissões, nomeadamente comissões fixas por contrato ou comissões potenciais associadas a objectivos de produção”. Nessa sequência, ambas as partes celebraram um acordo comercial no que diz respeito à intermediação da autora nos contratos que apresentaria ao réu para financiamento, e que este efectivamente concedesse. Em 12/04/2018 o réu emitiu e enviou à autora a liquidação do montante referente a “comissões potenciais” dos contratos realizados com o réu no ano de 2017. Esse documento abrangia os contratos intermediados pela autora e que o réu financiou. O montante de comissões assim obtido foi de 48.821,20€. O réu solicitou ainda à autora que emitisse a correspondente factura indicando expressamente que o valor obtido fosse afecto a “comissões de negociação em contratos de crédito”. Nessa sequência, a autora emitiu em 07/05/2018 a sua factura 2/33, no montante de 48.821,20€, com vencimento na mesma data, que enviou para os serviços do réu a fim de ser paga. Mais de 6 meses após a emissão da factura, a autora recepcionou carta enviada pelo réu, onde este afirmava não pagar a factura. O motivo para tal foi o de que “…verifica-se que não estão reunidos os pressupostos para que ocorra o pagamento da comissão à qual corresponde a factura. Motivo precisado mais tarde, a pedido da autora: a autora não havia concretizado a percentagem mínima de montante de crédito com seguros, conforme previsto na cláusula 3 do acordo comercial.

              A autora entende que a carta de 12/04/2018 que lhe foi enviada pelo réu a fim de a autora emitir a correspondente factura é uma proposta de pagamento de comissões relativas aos contratos realizados com o réu no período do ano de 2017; recepcionada a proposta, a autora optou por a aceitar, por via da emissão da correspondente factura de 07/05/2018, tornando perfeita a proposta (art. 224/1 do CC), pelo que a proposta se tornou irrevogável nos termos do art. 230/1 do CC. Acresce que o fundamento para a recusa de pagamento colide com a informação ínsita na declaração de liquidação da comissão, onde se refere expressamente ‘comissões de negociação em contratos de crédito’ e não ‘comissões potenciais’ agregadas a qualquer objectivo, muito menos a objectivos de celebração de seguros associados a contratos de crédito automóvel.

              Por outro lado, a autora entende que, da conjugação das cláusulas 2/3-f e 4/1-2 do protocolo, resulta que a autora não podia prestar qualquer informação ou assistência aos clientes relativa à celebração ou execução de contratos de seguro associados aos produtos financeiros incluídos na oferta comercial, por não ser fosse mediadora de seguros reconhecida e registada pela Autoridade de supervisão de seguros e fundos de pensões; pelo que, a argumentação do réu, para o não pagamento, configura impor à autora o cumprimento de obrigações contra legem, não só aos olhos do contrato estabelecido entre ambos, como também da Lei 147/2015 de 09/09. E não se diga que no acordo comercial consta, de um asterisco da cláusula 3.1, que o pagamento da comissão potencial está sujeito à concretização de uma percentagem mínima de crédito com seguro de protecção completa ou completa mais de 22.5%”, porque essa cláusula é nula, sem prejuízo da validade das outras cláusulas inseridas nesse acordo.

              Acresce ainda, segundo a autora, que em todas as reuniões com os responsáveis do réu, em que foram discutidos pormenores e detalhes com a facturação e objectivos comerciais para a autora, jamais foi mencionado qualquer condicionamento de qualquer comissão à concretização de seguros agregados aos contratos de crédito intermediados pela autora, nem o poderia ser dada a impossibilidade legal de a autora intermediar de per si, ou através de outrem, qualquer associação de seguros à intermediação. O único condicionamento para o pagamento de comissões era o quantum de produção da intermediação contabilizado em euros como resulta de troca de e-mail entre a autora e o réu.

              O réu contestou, impugnando a parte dos factos que a autora mistura com o Direito, mas não os factos anteriores (apesar de o réu dizer que impugna tudo: factos e documentos, incluindo o protocolo, o acordo, as cartas, a factura, etc., de que depois se serve amplamente), e também as consequências que a autora extrai dos factos (de todos eles); no essencial, o réu diz que (i) a cláusula 3.1 do acordo não é nula, (ii) reafirma que a autora não logrou cumprir com a condição necessária à atribuição da “comissão potencial”, isto é, a concretização de uma percentagem mínima de montante de crédito com seguros de protecção completa ou completa mais de 22,50%, pelo que não tem direito a receber a quantia ora peticionada; e (iii) acrescenta que carece de fundamento a tese apresentada pela autora quanto à aplicação do disposto nos artigos 224 e 230 do Código Civil, quando é certo que o réu [o réu escreveu autora] não aceitou a factura, tendo mesmo procedido à sua devolução, não prevendo a lei um prazo para a não aceitação da factura, mas apenas para a sua emissão (artigo 36.º – CIVA).

              Seguiu-se um despacho e um articulado de aperfeiçoamento praticamente inúteis e a que o réu nem sequer respondeu.

              A 18/01/2023, a autora, depois do saneador, veio defender a inutilidade do julgamento visto que já estava provado tudo o necessário para a decisão final, já que os 39 contratos com PC e PC+ ultrapassavam os 22,25% exigidos, por aplicação da regra de três simples: se 159 contratos correspondem a 100%, 39 contratos correspondem a 24,52%, o que foi impugnado pelo réu e indeferido implicitamente por despacho de 28/03/2023.

              Depois de realizada a audiência final, foi proferida sentença julgando a acção procedente e, em consequência, condenando o réu a pagar à autora o valor de 48.221€, acrescido de juros de mora, à taxa de juros comercial [a parte sublinhada foi acrescentada depois da sentença a requerimento da autora, sem oposição da ré], contados desde a data de vencimento da factura e até integral pagamento.

              O réu recorre desta sentença, defendendo que não devia ter sido condenado.

              A autora contra-alegou, requerendo, a título subsidiário, a ampliação do âmbito do recurso (art. 636/1 do CPC), relativamente aos fundamentos da acção em que decaiu.

              O réu não respondeu à matéria da ampliação apesar de o poder fazer (art. 638/8 do CPC).

                                                                 *

              Questão que importa decidir: se a autora tem direito às comissões potenciais pedidas.

                                                                 *

              Foram dados como provados os seguintes factos:

              1\ Entre a autora e o réu foi celebrado, em 31/10/2016, o protocolo comercial junto a fls. 6 a 8 dos autos, através do qual a autor poderia “…apresentar a clientes finais os produtos incluídos na oferta comercial do Banco, incluindo eventuais seguros, com vista à celebração de contratos de financiamento nas suas mais diversas formas, nomeadamente, contratos de mútuo e contratos de locação financeira” (cf. cláusula 1.ª, n.º 2).

             2\ Na cláusula 5.ª, n.º 1, de tal protocolo ficou escrito que: “Como contrapartida da sua actividade de intermediação de crédito o parceiro poderá receber comissões previstas na oferta comercial.”

           3\ Estabeleceram ainda as partes no n.º 2 dessa cláusula 5.ª que “…através de um acordo comercial específico, poderão acordar no pagamento de outro tipo de comissões, nomeadamente comissões fixas por contrato ou comissões potenciais associadas a objectivos de produção.”

            4\ Nessa sequência, autora e réu celebraram o acordo comercial datado de 11/01/2017 junto a fls. 9/10.

           5\ De acordo com a cl. 1/4 “o presente acordo comercial suplementa e faz parte do protocolo comercial celebrado entre as partes, pelo que se aplicarão as disposições do protocolo comercial em tudo o que o presente acordo comercial for omisso. Em caso de divergência entre o protocolo comercial o presente acordo, aplicar-se-á o disposto neste acordo comercial.”

           6\ O acordo comercial tinha a duração de um ano, renovável, com início em 01/01/2017 (cf. cl. 4/1).

           7\ Em 12/04/2018, o réu emitiu e enviou à autora a missiva constante de fls. 10v/11, referente a “comissões potenciais” dos contratos realizados com o réu no período de 01/01/2017 a 31/12/2017.

             8\ Na missiva consta:

Tipo de financiamento N.º de contratos Valor de crédito (PVP – Entrada) Comissão potencial Iva Incluído nas comissões Comissão total
Produção do ano 159 2.619.510€
Produção elegível à data actual 148 2.441.060€ 48.821,20€ 0€ 48.821,20
Total de

comissões

48.821,20

              9\ O réu solicitava na referida missiva à autora que emitisse a correspondente factura.

          10\ Solicitou ainda que, para além de outras indicações, nessa factura fosse indicado expressamente que o valor obtido fosse afecto a “comissões de negociação em contratos de crédito.”

              11\ Nessa sequência, a autora emitiu em 07/05/2018 a sua factura 2/33, no montante de 48.821,20€, com vencimento na mesma data, que enviou para os serviços do réu a fim de ser paga.

              12\ Datada de 21/11/2018, o réu remeteu à autora a carta junta a fl. 12, onde afirmava que não aceitava a pagar a quantia referente à factura referida em 11.

              13\ O motivo de tal recusa foi o de [que] “…verifica-se que não estão reunidos os pressupostos para que ocorra o pagamento da comissão à qual corresponde a factura n.º 2/33”.

              14\ A autora solicitou ao réu, por carta datada de 04/12/2018, junta a fl. 12v, que informasse o fundamento, ou fundamentos, da recusa de pagamento da factura.

              15\ O réu respondeu à autora, por carta de 19/12/2018, onde refere que a autora não havia concretizado a percentagem mínima de montante de crédito com seguros, conforme previsto na cláusula 3 do acordo comercial de 11/Janeiro.

              16\ Prevê-se na al. f do n.º 3 da cláusula 2.ª do protocolo comercial (deveres e obrigações da autora relativamente à celebração dos contratos de financiamento), que a autora obriga-se a “Não prestar qualquer informação ou assistência aos clientes relativa à celebração ou execução de contratos de seguro associados aos produtos financeiros incluídos na oferta comercial do banco e encaminhar os pedidos de esclarecimento dos clientes para o n.º 800000000 da Seguros, salvo cumpra com o requisito referido no nº1 da cláusula 4”.

              17\ O n.º 1 da cláusula 4.ª prevê que “Nos termos da legislação aplicável ao acesso e ao exercício da actividade de mediação de seguros, a intermediação de seguros está reservada aos mediadores de seguros que se encontrem reconhecidos pela ASF – Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões. Acresce referir que as pessoas directamente envolvidas na actividade de mediação de seguros ligadas a mediadoras de seguros estão sujeitas a requisitos de qualificação junto da ASF.”

            18\ Dispõe o n.º 2 dessa mesma cláusula “Caso não se encontre registado para o efeito junto da ASF, o parceiro não poderá ter qualquer intervenção reconduzível à actividade de mediadores de seguros ou de pessoas envolvidas na mediação de seguros, sob pena das eventuais consequências legais.”

             19\ A autora não estava reconhecida pela ASF.

              20\ No acordo comercial de 11/01/2017 consta na sua cláusula 3 o seguinte:

             “Para além das comissões de intermediação de crédito previstas na oferta comercial, o presente acordo comercial estabelece adicionalmente os seguintes tipos de comissionamento:

               3.1 Comissão Fixa

            Por cada contrato intermediado pelo parceiro o réu pagará uma comissão fixa de 4% do montante de crédito solicitado (que corresponde ao PVP deduzido da entrada inicial).

            Comissão Potencial: dependendo do nível de cumprimento de objectivos de financiamento em cada período o Banco pagará uma comissão potencial”.

             21\ Da cláusula 3 consta um “asterisco” onde se lê: “O pagamento da comissão potencial está sujeito à concretização de uma percentagem mínima de crédito com seguro de protecção completa ou completa mais de 22,5%”.

               22\ Considerando-se:

               PS – Protecção simples (subscrição do seguro de vida);

             PC e PC+ – Protecção completa e protecção completa mais (inclui para além do seguro de vida outras coberturas adicionais como a protecção em caso de doença e/ou desemprego.

              23\ Na Cláusula 6.1 as partes declararam “Ter preparado, redigido e celebrado o presente acordo comercial com total e recíproca boa-fé, correspondendo as respectivas declarações negociais no sentido pelas mesmas efectivamente pretendido”.

           24\ A autora – na qualidade de intermediária de crédito – interveio em 159 contratos, dos quais: 116 foram contratos em que houve lugar à subscrição adicional de seguro PS e 39 considerados PC e PC+ [este TRL corrigiu o lapso de só constar a referência a PC+, já que ambas as partes estão de acordo com o facto de os 39 contratos em causa também englobaram os PC].

            Na sentença acrescentou-se: discutida a causa não se provou nenhum outro facto para além dos acima expostos.

                                                                 *

                                    Os factos não foram impugnados

              Antes de mais, esclareça-se que nem o réu nem a autora especificam, quer no corpo das alegações quer nas conclusões, concretos pontos de facto que considerem incorrectamente julgados, pelo que, a decisão da matéria de facto não foi impugnada (artigos 639/1, 640/1-a/3 e 636/2, todos do CPC). Assim, os factos que interessam à decisão da questão colocada são apenas os acima discriminados como provados nos termos do art. 607/3 do CPC e nenhuns outros.

                                                                 *

                           Do recurso (com ampliação) sobre matéria de direito

              Para mais fácil compreensão das questões e para evitar repetições, vai-se seguir a fundamentação da sentença, o que implica começar pelo apreciação dos argumentos da autora contra a sentença.

                                                                  I

              A sentença recorrida tem a seguinte fundamentação, em síntese:

                                 Da nulidade da cláusula contratual com o *

         A autora defende a nulidade desta cláusula –: “O pagamento da comissão potencial está sujeito à concretização de uma percentagem mínima de crédito com seguro de protecção completa ou completa mais de 22.5%” – que foi invocada pelo réu como fundamento para recusar o pagamento.

         Ora, no caso concreto, não podemos olvidar que a autora subscreveu o acordo em causa, assinando o contrato que lhe foi facultado, no qual estava incluída a cláusula, que pela sua clareza e simplicidade era facilmente compreensível pelo que deveria, usando da devida diligência, antes de o subscrever, tomar conhecimento do seu conteúdo.

         Na realidade, lendo a cláusula em causa e a simplicidade do contrato, verifica-se que não se reveste de qualquer complexidade, bem como o contrato celebrado, não se vislumbrando que algum dos seus aspectos justificasse alguma aclaração, por dificuldade de entendimento, o que, aliás, nem sequer vem questionado, e muito menos invocada qualquer recusa de esclarecimento.

         Assim, nestas circunstâncias, a autora teve toda a possibilidade de conhecimento completo e efectivo se tivesse usado da diligência comum.

         Face a tanto, não se verifica a apontada nulidade.

              Contra isto, a autora diz o seguinte:

         Está expressamente previsto no protocolo celebrado pelas partes que a autora não podia ter qualquer intervenção na elaboração de contratos de seguro associados à sua angariação, somente o podendo fazer se estivesse autorizada pela ASF. Ficou provado que o não estava. O protocolo está elaborado em conformidade com a lei vigente para o sector da angariação de seguros.

         No “asterisco” constante da cláusula 3 do acordo comercial está previsto que “O pagamento da comissão potencial está sujeito à concretização de uma percentagem mínima de crédito com seguro de protecção completa ou completa mais de 22.5%”.

         Ou seja, neste dispositivo, está prevista a “obrigação” de a autora ter como objectivo a angariação e concretização de contratos de seguro associados à sua angariação de contratos de crédito.

         Perante tal contradição entre articulados contratuais celebrados entre as partes, o que dizer?

         Parece-nos que aquela condição ínsita na cláusula 3 do acordo será contra legem, uma vez que condiciona, ou pretende condicionar, a actividade produtiva da recorrida a um objectivo contrário à lei.

         Assim, essa disposição deverá ser considerada não escrita e nula.

              Apreciação

              A nulidade da cláusula em causa resultava, segundo a autora, da contrariedade à lei.

              Isto tem a ver com o art. 280/1 do CC.

              A sentença trata a questão com argumentos que têm a ver com a exclusão de cláusulas contratuais gerais decorrentes da violação de deveres de comunicação e de informação (artigos 5, 6 e 8 do regime jurídico aprovado pelo DL 446/85, de 25/10).

              Como a via da solução achada pela sentença não tinha sido invocada pelas partes, não tendo nenhuma delas alegado quaisquer factos que tivessem a ver com o preenchimento da previsão daqueles artigos 5, 6 e 8 do RJCCG, ela tem de ser afastada.

              Apesar disso, a solução está certa.

              A cláusula em causa não é nula porque nem sequer tem o sentido que lhe é dado pela autora. Dessa cláusula não resulta para a autora qualquer obrigação, muito menos a de actuar fazendo algo que a lei não lhe permite. O que a cláusula diz é que se os contratos de crédito, celebrados pelo réu, viessem a ser concretizados com seguros com protecção completa ou completa+ numa percentagem mínima de 22,5% a autora teria direito à comissão potencial, caso contrário não. Ora, a lei não proíbe às partes o condicionamento dos negócios a um resultado alcançado pela actividade de uma delas (art. 270 do CC). Poderia, depois, discutir-se se o réu não teria conseguido chegar ao resultado em causa por ter actuado contra as regras da boa fé (art. 275/2 do CC), mas isso é outra questão.

                                                                 II

                                 Do pressuposto para o pagamento da comissão

              Diz a sentença:

         Importa apurar se está demonstrado nos autos este pressuposto, isto é, apurar se foram celebrados contratos na percentagem mínima de crédito com seguro de protecção completa ou completa mais de 22.5%.

         Ao contrário do alegado pela autora, o valor em causa não se retira do número de contratos celebrados, mas sim do correspondente valor em euros, dos mesmos.

         Como se alcança da cláusula, as partes sempre se referiram ao montante do crédito e não ao número de contratos, pelo que também neste caso o que releva é o montante, sob pena de incoerência.

         No entanto, desconhecemos o valor dos contratos de crédito com seguro celebrados de protecção completa e ou completa+. Sabemos apenas que foram celebrados 39 contratos que correspondem às apontadas categorias.

         Tal pressuposto tinha de ser demonstrado pela autora, atento o ónus da prova – artigo 342/1 do CC: compete àquele que invocar um direito fazer a prova dos respectivos factos constitutivos.

              Contra isto, a autora diz o seguinte:

         O réu veio excepcionar, na sua contestação, o não cumprimento da obrigação de pagamento dessa quantia, com a alegação de que não haviam sido cumpridos objectivos de concretização de seguros.

         A prova desta excepção do não cumprimento caberia ao réu. Não se trata de qualquer inversão do ónus da prova, mas sim do disposto quanto às regras da sua repartição constantes do art. 342/2 do CC: competia à autora provar o que alegou quanto à recepção da carta com a solicitação da correspondente factura, ao recebimento dessa factura, e nada mais. São elementos objectivos que constam do processo, não foram impugnados em circunstância alguma e foram de facto provados.

         Ao réu competia provar a matéria de excepção que invocou, designadamente que a autora não havia cumprido aquilo que denominou condição para o pagamento de comissões potenciais.

         Quanto a este aspecto, não ficou nada provado na acção, isto é, não ficou provado o quantum de percentagem de contratos de seguro que foi associado aos contratos de crédito realizados pela autora. E se esta ficou aquém do estabelecido.

         E, assim sendo, deveria improceder a excepção.

              Apreciação:

              A autora não tem em consideração a regra do art. 343/3 do CC: “Se o direito invocado pelo autor estiver sujeito a condição suspensiva ou a termo inicial, cabe-lhe a prova de que a condição se verificou ou o termo se venceu […].” Que, aliás, é uma regra especial que concretiza para este caso a regra geral do art. 342/1 do CC invocada pela sentença: Se o direito à comissão dependia da condição já referida, era à autora que cabia provar os factos que permitissem a conclusão do preenchimento da previsão da condição.

                                                                 III

                                             Da carta de 12/04/2018

              Diz a sentença:

         A autora defende que tem o direito a receber a comissão com base na carta do réu, onde é indicado que foram celebrados 159 contratos, no valor de 2.619.510€, dos quais são “elegíveis” 148, no valor de 2.441.060€, o que corresponde a uma comissão de 48.821,20€. Considera que a mesma é uma proposta que foi por si aceite, pelo que não pode ser retirada.

         Não acompanhamos o raciocínio da autora: a missiva em causa não contém nenhuma proposta contratual, não surgindo no âmbito de qualquer negociação contratual. É uma declaração que surge no âmbito da execução do contrato, com o conteúdo que consta dos factos provados.

         Desta forma, não se pode aplicar o regime do artigo 217 e seguintes do CC no que diz respeito às modalidades da declaração negocial e seu valor.

              Contra isto, a autora começa por invocar o depoimento de uma testemunha. Ora, como foi dito acima, as partes não impugnaram a decisão da matéria de facto e os factos a ter em consideração são só os factos provados. Para decidir esta questão, por isso, não interessa o que foi dito na produção de prova.

              A seguir a autora diz:

         Deste depoimento […] resulta que o montante ínsito na carta enviada pelo réu à autora foi resultante de um acordo feito fora do âmbito do protocolo e do acordo de colaboração celebrados entre as partes. Daí termos entendido não repugnar, antes ser de aplicar o regime do artigo 217 e seguintes do CC. E depois a autora repete o que consta do 1.º § do relatório deste acórdão em que se sintetizam as razões de direito da PI.

              Apreciação:

              A autora não só não impugnou a decisão da matéria de facto, como, agora, vem invocar um outro acordo como base da sua argumentação, acordo que não tinha alegado na petição inicial, o que seria suficiente para que não pudesse ser tomado em consideração (art. 5/1 do CPC).

              Quanto ao mais, aqui concorda-se com a sentença: o envio da carta em causa não corresponde a qualquer proposta para se chegar a um acordo quanto ao valor da comissão potencial a pagar, isto é, a qualquer manifestação de vontade do réu em chegar a um acordo sobre essa questão. O réu limita-se a dar elementos – que estão desconformes com a cláusula contratual já referida – para que que a autora lhe facture uma determinada prestação de serviço nos termos transmitidos para lhe poder pagar em conformidade. E quando se apercebe desse erro volta atrás.   

                                                                IV

                                                          Da boa fé

              A sentença diz o seguinte, em síntese:

         O abuso de direito encontra-se previsto no artigo 334 do CC, que estatui: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

         Uma das vertentes do abuso do direito é o designado venire contra factum proprium, no confronto com o princípio da tutela da confiança, como é o caso de ser exercido contra alguém que, com base em convincente conduta, positiva ou negativa, de quem o podia exercer, confiou e programou em conformidade a sua actividade.

         Cabia, pois, ao réu, no contexto de relacionamento comercial, não frustrar a confiança da contraparte na questão da comissão.

         O fundamento para a recusa de pagamento colide com a informação ínsita na declaração de liquidação da comissão, onde se refere expressamente que “… indicação na descrição da factura comissões de negociação em contratos de crédito.”

         O réu por carta de 21/11/2018, cerca de 6 meses após ter recepcionado a factura da autora, declinou o seu pagamento com a argumentação genérica e ambígua de que não estavam reunidos os pressupostos para o pagamento da referida comissão.

         Dos factos provados resulta que coube ao réu a indicação do valor da comissão em causa que a autora teria direito e depois recusou pagar.

         Ponderada a economia e os riscos do contrato, a disciplina convencional livremente adoptada pelas partes, e os legítimos interesses das mesmas, tal como as condutas adoptadas ao longo do tempo de execução contratual, entendemos que a recusa do réu constitui uma violação do princípio da boa fé, por abuso do direito, por se traduzir numa conduta clara e intoleravelmente ofensiva dos ditames da boa-fé.

         Desta forma, concluímos que a autora tem direito ao pagamento do valor peticionado.

              Contra isto, o réu diz o seguinte, em síntese:

         Não se percebe que o réu tenha incutido confiança à autora, no sentido de lhe ser devida a comissão potencial, porquanto, a autora conhecia claramente os requisitos / objectivos exigidos para o pagamento da mesma, que resultam do estipulado pelas partes nos documentos que ambas elaboraram e outorgaram e que regia a relação comercial entre ambas.

         Sendo este objectivo do conhecimento da autora, a recusa de pagamento por parte do réu não pode ser interpretada como abusiva, injustificada, ou lesiva da boa-fé.

         O que acontece é que a autora, aproveitando-se de um lapso dos serviços (informáticos) do réu, pretende obter um “benefício” a que não teria direito pelo negócio jurídico que celebrou. Tal carta não revela a forma de apuramento da “comissão potencial” acordada pelas partes. Tão pouco poderá ser tomada como uma declaração de vontade. Para além, de ser contrária ao contratualmente estipulado.

         Cabia à autora provar que atingiu os objectivos para beneficiar da comissão e é nesse sentido que a sentença se sustenta, pelo que não se entende a decisão que a mesma comporta.

         A confiança da autora nunca foi lograda, pois a mesma não realizou os necessários contratos de seguro. O réu não podia dar expectativas à autora pois esta não atingiu um dos objectivos. O não pagamento pelo réu é legitimo face ao convencionado pelas partes. O réu não violou o princípio da boa-fé.

              A autora contrapõe o seguinte:

         Analisados os factos provados e a restante matéria que deixamos supra expressa, acabamos por concordar com a visão da sentença quanto à conduta do réu, mas conseguimos ser mais concretos e objectivos.

         O réu sempre se negou a pagar a factura emitida pela autora, porquanto alegou que não foram cumpridos determinados objectivos que condicionavam o pagamento da “comissão potencial”.

         Convém não esconder, como pretendeu o réu nas suas alegações de recurso, que foi ele que “determinou” expressamente na sua carta de 12/04/2018 que a autora emitisse a factura e que lhe solicitou que a factura fosse afecta a comissões de negociação em contratos de crédito, não a comissões potenciais, estas sim, supostamente condicionadas à concretização de determinados objectivos.

         E o porquê do pedido de a factura ser emitida desta forma?

         Para nós é objectivamente claro, e resulta também de uma análise objectiva dos elementos do processo.

         As testemunhas do réu não conseguem concretizar o porquê… limitam-se a afirmar, em formato de “cartilha” que a carta foi emitida por engano…

         Ora, para a tal análise objectiva desta questão convocamos as declarações da testemunha A, já transcritas, onde se pode constatar que numa reunião referida por todos, e antes da emissão da carta/missiva, foram falados vários assuntos, entre eles a questão da concretização de seguros e chegaram a acordo sobre esta e outras questões, tendo mais tarde sido emitida a tal carta onde objectivamente a ré pede à autora que afecte o montante enviado a comissões de negociação em contratos de crédito.

         Coincidência? Obra e graça do Espírito Santo?

         Não cremos, trata-se de fato objectivo de onde se pode retirar conclusão segura de que essa instrução da ré foi a consequência do resultado daquela reunião e foi também sem qualquer reserva e/ou engano que tal carta/missiva foi enviada.

         Trata-se de uma presunção que contem todos os elementos das presunções legais, de um facto concreto retira-se uma conclusão segura dele decorrente.         

              Apreciação:

              A própria sentença esclarece que para o funcionamento do venire contra factum proprium se exige que o confiante na conduta da outra parte faça um investimento baseado nessa confiança, investimento esse que é o prejuízo que a concretização da proibição do abuso se destinaria, no caso, a reparar.

              Ora, na sequência do envio da carta de 12/04/2018 a autora não fez nada que se traduzisse nesse investimento, pois que a simples emissão da factura e o envio da mesma ao réu não pode ser considerado um investimento e o valor que foi facturado corresponde a uma actividade anterior ao factum proprium.

              A falta do pressuposto ‘investimento’ é suficiente para afastar a pretensão de obter o pagamento da factura a título de reparação por abuso de direito.

              De qualquer modo, constituindo a condição da atribuição das comissões potenciais o conteúdo de uma cláusula contratual, o envio de uma carta do réu com dados desconformes a tal cláusula contratual, não seria causa adequada de uma expectativa legítima da autora a que lhe fossem pagas tais comissões de modo a resolver fazer investimentos com a esperança de as receber.

              Tanto mais que a sentença esclareceu que a cláusula, “pela sua clareza e simplicidade era facilmente compreensível”, “não se reveste de qualquer complexidade”, “não se vislumbrando que algum dos seus aspectos justificasse alguma aclaração, por dificuldade de entendimento”, sendo certo, acrescenta-se aqui, que a autora não é um consumidor, mas uma sociedade comercial no exercício da sua actividade de intermediação de créditos.

              O que levaria também à falta dos outros pressupostos: ‘confiança’, ‘justificação’ e ‘imputação’.

              Veja-se:

              Menezes Cordeiro (CC comentado I, CIDP/Almedina, 2020, páginas 926, 933 e 934-935) explica, a propósito do venire contra factum proprium, que:

         “A concretização da confiança assenta num modelo que joga com quatro proposições: (1) uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa-fé subjectiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias; (2) uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objectivos capazes de, em abstracto, provocar uma crença plausível; (3) um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efectivo de actividades jurídicas sobre a crença consubstanciada; (4) a imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela protecção dada ao confiante: tal pessoa, por acção ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao factor objectivo que a tanto conduziu.

         As quatro proposições apontadas articulam-se de acordo com um sistema móvel: não há uma hierarquia entre elas e a presença de alguma ou algumas pode, no concreto, ser dispensada desde que as restantes assumam um peso suficiente para suportar a decisão.”

              Esta construção também é feita, no essencial, por Carneiro da Frada, quando (na Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Almedina, Janeiro 2004) fala nos vários pressupostos da responsabilidade pela confiança (também acrescentando que estes pressupostos se articulam entre si em sistema móvel – pág. 586) e a forma como descreve as quatro proposições contribui para se perceber melhor o alcance deles:

         Confiança – uma atitude de confiança alicerçada num facto apto a produzi-la – facto indutor de expectativas = tatbestand de confiança (págs. 632/633);

         Justificação de confiança – uma justificação objectiva para essa confiança (pois de ordinário a ligeireza ou a falta de cuidado não merecem ser atendidas);

         Investimento – um investimento de confiança, traduzido numa atitude ou actuação que o confiante tenha desenvolvido com base na sua convicção;

         Imputação da confiança – uma imputação de confiança a outrem, em termos que justifiquem no plano ético-jurídico a sua responsabilidade – págs. 585/586 e notas 617 e 618 – a imputação exigível para fazer alguém responder pela confiança tem de se ancorar simultaneamente na criação da situação de confiança e a na sua frustração – pág. 661.

              Quanto aos elementos invocados pela sentença para concluir pela existência do abuso de direito, diga-se que ela não explica em concreto qual o relevo que ‘a economia e os riscos do contrato e a disciplina convencional livremente adoptada pelas partes’ possam ter – tanto mais que a autora não podia ter qualquer actividade de prestação de qualquer informação ou assistência aos clientes relativa à celebração ou execução de contratos de seguro associados aos produtos financeiros incluídos na oferta comercial do banco como resulta dos factos 16 a 19 -; o mesmo se diga do elemento ‘legítimos interesses’ das partes – pois que o contrato estabelecia a condição para as comissões potenciais e ela não se mostra preenchida -; e o elemento das ‘condutas adoptadas ao longo do tempo de execução contratual’ não tem sentido, pois que a execução contratual em causa só ocorreu naquele mesmo ano (2017) a que as comissões diriam respeito.

              Por fim, o facto de a ré ter pedido na carta de 12/04/2018 que na factura fosse indicado expressamente que o valor obtido fosse afecto a “comissões de negociação em contratos de crédito.” (facto 10), não tem o relevo pretendido pela autora. Por um lado, esse pedido é feito na mesma carta em que se refere expressamente que o valor em causa era referente a “comissões potenciais” (facto 7). Por outro, uma coisa é o contrato prever quando é que uma parte tem direito a comissões potenciais, outra é aquilo que se faz constar numa factura que se reporta a serviços prestados e por isso a comissões a que já se tem direito e não comissões potenciais. Quanto ao relevo do que eventualmente tivesse sido acordado entre as partes antes do envio da carta de 12/04/2018, já se esclareceu acima que nenhuma das partes impugnou a decisão da matéria de facto, pelo que não lhes é legítimo invocar outros factos para além dos expressamente discriminados como provados.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se a sentença recorrida e, no lugar dela, julga-se a acção improcedente e absolve-se o réu do pedido.

              Custas, na vertente de custas de parte, quer da acção quer do recurso, pela autora (por perder ambos).

              Lisboa, 09/05/2024

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto