Sumário:

              No processo de divórcio religioso entre judeus, não existe uma sentença de divórcio. Existe, sim, um documento de divórcio (guet), emitido por ditado do marido e entregue por este à mulher, que, se for aceite pela mulher, consumará o divórcio. Pelo que, a ocorrerem estes dois actos, há um divorcio por mútuo consentimento, que ocorreu num processo de divórcio religioso, dirigido pelo tribunal rabínico e que foi registado e certificado pelo tribunal rabínico, tendo para tal competência reconhecida pelo Estado de Israel. [Pelo que pode ser objecto de um processo de revisão].

              A 19/04/2024, A, natural e residente em Eliat, Estado de Israel, intentou a “presente acção especial de revisão e confirmação de sentença estrangeira de reconhecimento de divórcio” contra R, natural e residente em Eliat, Estado de Israel, alegando, entre o mais, que: o Tribunal de Família em Eliat, Estado de Israel, proferiu sentença de validação do acordo de divórcio relativamente ao casamento entre requerente e requerida, em 20/11/2000, conforme a Lei sobre Relações Financeiras entre Cônjuges de 1973, a Lei de Formação Jurídica e Tutela de 1962, e a Lei sobre Alterações das Leis de Família (Pensão de Alimentos) de 1959, conforme resulta do doc. 2, que se junta; o Tribunal Rabínico Regional de Beer Sheva, Estado de Israel, em 26/03/2001, decretou por sentença o divórcio de requerente e requerida, como resulta do doc.3, que se junta; o divórcio tornou-se definitivo nesse dia e considera-se inscrito nos Tribunais Religiosos do Estado de Israel desde o dia 27/03/2001, com certificado n.º 504257.

              Por despacho de 23/04/2024, fez-se a seguinte análise dos documentos que foram juntos [entre parenteses rectos acrescentam-se agora mais dados para uma melhor compreensão dos documentos]: são, aparentemente, apenas (a) [o doc.2, apostilado] um acordo entre os cônjuges [sobre: a concessão do divórcio pelo marido à mulher, o acordo da mulher em divorciar-se, a custódia dos filhos (à guarda da mãe), o pagamento de alimentos para os filhos, a propriedade e posse de bens, o pagamento de dívidas, a partilha dos bens], de [14/11/]2000, e uma sentença [de um juiz do tribunal de família em Eilat] de validação desse acordo também de [20/11/]2000, da qual decorre que não se trata de um divórcio nem de um processo de divórcio, visto que se diz que a aprovação e organização do divórcio está na autoridade do tribunal rabínico; (b) [parte inicial doc.3, também apostilado] uma aprovação do divórcio [pelo] tribunal rabínico de 13/02/2024 que refere que o divórcio ocorreu a 26/03/2021 [e que é definitivo e irrevogável], pelo que também não é a sentença de divórcio; (c) [segunda parte do doc.3] uma certidão de divórcio [do Estado de Israel – Tribunais religiosos], que apenas certifica o divórcio [registado no Tribunal rabínico a 27/03/2021, onde se diz que o certificado tem efeitos para registo de divórcio] não sendo uma sentença de divórcio; (d) [parte final do doc.3] uma certidão de um acto do tribunal [rabínico – não datada] que diz que o casal se divorciou, pelo que também não é uma sentença ou decisão de divórcio.

              Por isso foi dito que “não há, para já, uma sentença de divórcio, ou uma qualquer decisão de divórcio em relação à qual este tribunal competente para a revisão e confirmação possa fazer um juízo da conformidade do resultado, tendo também em conta o fundamento, do decidido com a ordem pública internacional do Estado Português (art. 980/-f do CPC).”

              E acrescentou-se: “o requerente terá de juntar aos autos tal sentença (ou decisão) através da qual ocorreu, de facto, o divórcio e, à cautela, desde já, deverá ainda indicar a existência e conteúdo do direito com base no qual o divórcio tiver sido proferido/decretado (art. 348 do CC), identificando-o, com a respectiva tradução.

              Por outro lado, falta ainda a transcrição no registo nacional (português) do casamento celebrado no estrangeiro, constituindo essa transcrição “pressuposto da revisão da sentença de divórcio que dissolveu o mesmo”, pelo que aquela falta “obsta à procedência do respectivo pedido de revisão.” (ac. do TRE de 08/11/2012, 75/11.7YREVR), pelo que esse registo também terá de ser junto.”

              A 03/05/2024, o requerente veio dizer (transcreve-se na parte útil):

         O requerente juntou aos autos […]: doc.2, correspondente à sentença de homologação do acordo de divórcio, no âmbito do Tribunal de Família, o qual corresponde a um ponto prévio necessário à sentença do tribunal rabínico; doc.3, correspondente a uma certidão (emitida a 13/02/2024) da sentença proferida pelo tribunal rabínico, no dia 26/03/2001 […], a decretar o divórcio de requerente e requerida; […] No que concerne ao doc.3, as folhas 2 e 3 […] correspondem à certidão que certifica que o divórcio foi decretado, de forma definitiva e irrevogável, pelo tribunal competente, o tribunal rabínico, sendo que a folha 5, na qual se encontra o título “acto do Tribunal”, corresponde à sentença propriamente dita, a qual, na designação daquele tribunal rabínico é considerada como “acto do Tribunal”, constando dessa sentença a data já referida (26/03/2001, na designação adoptada pelo tribunal em causa), os nomes das partes, das testemunhas e do Juiz que proferiu a sentença. Deste modo, […] o documento junto como doc.3 aos autos é a sentença através da qual se consumou o divórcio […] Quanto à ausência da transcrição no registo português do casamento celebrado no estrangeiro, apenas alertado para tal pelo despacho o requerente apercebeu-se dessa situação, pelo que já deu entrada, na presente data, de requerimento para transcrição de casamento celebrado no estrangeiro, conforme resulta do doc. 1, que se junta […]. Pelo que se requer, […] que [seja] conced[ido] prazo de 30 dias para que o requerente venha juntar aos autos o assento de nascimento com a transcrição do casamento em falta.”

                                                                 *

              Posto isto,

           Num trabalho publicado em Colóquios do STJ, 1.º Colóquio de direito da família, STJ/CDF, Dez2023, Questões em torno da revisão e confirmação de sentença estrangeira em matéria de direito matrimonial, por contraposição ao seu reconhecimento automático, sem mais formalidades, decorrente da aplicação dos regulamentos (UE), páginas 91-92, Luís Espírito Santo, lembra a posição de Anabela Susana de Sousa Gonçalves em Matérias Matrimoniais e Responsabilidades Parentais na União Europeia (o Regulamento (UE) 2019/1111)”, Editora D´ideias, Fevereiro de 2023, a páginas 45 a 46, que diz “que continua a existir alguma indefinição em relação aos divórcios puramente privados, em que não há intervenção de qualquer autoridade pública” e que, segundo a autora não estarão abrangidos pelo Regulamento.” E acrescenta: “autora que dá como exemplos, o divórcio [religioso] judaico por entrega do guet (ghet)”. E o autor esclarece que se trata de divórcio que resulta da mera declaração dos interessados, perante duas testemunhas e um escriba, sendo escrito à mão e lido por um rabino (ou um tribunal de três rabinos). E ainda lembra que aquela autora refere em apoio dessa posição o disposto no Considerando 14 [do Regulamento 2019/2011], onde se pode ler: “O presente Regulamento não deverá permitir a livre circulação de simples acordos privados. No entanto, os acordos que não sejam nem uma decisão nem um acto autêntico, mas que tenham sido registados por uma autoridade pública competente para o fazer deverão circular. Estas autoridades públicas podem incluir os notários que efectuam o registo dos acordos, mesmo quando estes exercem uma profissão liberal”.

              Importa assim apurar, sumariamente para já e sem prejuízo do que vier a ser defendido numa eventual oposição da requerida, o que é que se passa no divórcio judaico.

              No sítio  https://pt.chabad.org/library/article_cdo/aid/1597062/jewish/Divrcio-Guet.htm consta o seguinte:

         “Pergunta: Por que a mulher casada deve receber o guet, documento judaico que atesta sua separação, antes de poder casar-se novamente? O que ocorre se não for feito? […]

         Resposta: No casamento judaico, ao dar a aliança a sua noiva, o noivo a consagra para si, unindo-se os dois numa única alma. A partir de então, a noiva passa a pertencer ao noivo, sendo completamente proibida para outro homem. A cerimônia religiosa do casamento é chamada kidushin (consagração), não se resumindo apenas em união de corpos, mas a união de duas almas pelo matrimônio através da santificação de D’us, não estando isto ao alcance do ser humano. Para dissolver esta união Divina, somente D’us tem o poder, e Ele nos instruiu na Torá, Seu Código de Leis, exatamente como fazê-lo. Isto ocorre através de um guet (documento emitido para a efectivação de um divórcio judaico).

         Segundo a Torá, o guet tem muitos detalhes e somente um rabino que conhece a fundo estas leis, com muita experiência, temente a D’us e, logicamente, cumpridor das leis da Torá, tem condições de realizá-lo junto de um escriba credenciado que escreve letra por letra, à mão, com uma pena e tinta especiais sobre pergaminho, perante duas testemunhas aptas. Um guet escrito sem todos estes requisitos não tem valor perante a Lei Judaica; a mulher que o recebeu é considerada ainda casada.

         Enquanto a mulher não receber o guet, mesmo estando, de fato, separada do marido por muito tempo, ainda é considerada casada. Ao se casar ou manter relações com outro homem, este casamento não tem valor e estará cometendo o grave pecado de adultério. Tanto lhe é proibido voltar ao primeiro marido, como casar com o adúltero, mesmo após realizar o guet correto. Caso tenha filhos com um outro homem antes de receber o guet, estes são considerados mamzerim, bastardos, sendo proibidos, no futuro, de casar com um parceiro judeu de nascença. O homem que não fez o guet também não pode casar-se novamente; esta é uma proibição de ordem rabínica.

         Após a realização correta do guet, a mulher está livre para se casar com qualquer judeu que desejar, com exceção de um cohen. O cohen foi separado de todas as tribos de Israel para fazer o serviço Divino no Templo Sagrado. […]

         […]”

              Num outro texto publicado no mesmo sítio, com o título “Guet: Divórcio Judaico é Importante?” pelo Rabino Ilan Stiefelmann – Lubavitch Copacabana, donde terá sido retirado o texto anterior, acrescenta-se:

         “Enquanto a cerimônia do divórcio judaico (guet) não for realizada as almas continuam “casadas” e esta conexão espiritual interfere e atrapalha de várias formas ambos os lados. […]

         Muitos têm a impressão que o guet é uma cerimônia humilhante e envolve um custo altíssimo. Mas isto não passa de um mito! A cerimônia é rápida, basta o homem entregar um documento (guet) nas mãos da mulher. E se for necessário pode-se inclusive pedir a alguém que leve o documento sem ser necessário que os dois se encontrem.

         […]

         O custo é bastante razoável e uma forma de pagar pelo tempo do escriba (o guet é feito num pergaminho assim como uma mezuzá), o rabino e testemunhas.

         Como devo proceder?

         Procure se informar em sua cidade de um tribunal rabínico sério e reconhecido por todos, inclusive pelo Rabinato de Israel, afim de evitar problemas no futuro ou ter que refazer.”

              No sítio https://www.rabinatorio.com/divorcio-judaico consta o seguinte texto:

         Divórcio

         Marcar hora no Rabinato do Rio de Janeiro, para realizar o processo de divórcio de acordo com a lei da Torá. 

         […]

         A esposa judia não alcança o status de mulher divorciada enquanto seu marido não lhe der o guet (uma carta de divórcio).

         […]

         Se um divórcio se torna inevitável, a Torá ordena ao homem judeu dar o guet à sua mulher, ou seja, um documento escrito que ateste o divórcio.

         Da mesma forma que o casamento judeu só é válido se os Kidushin e a Ahupa forem realizados pela autoridade rabínica competente e autorizada, o divórcio exige um guet, redigido por um escriba (Sofer) cujo texto exato responde a numerosas especificações da lei da Torá (a Alaha). A menor alteração no procedimento do divórcio religioso que requer uma Corte rabínica (um Bet Din) e também a menor alteração na formulação do texto requerida pela lei da Torá (Alaha) invalida o guet.

         Se um guet é inválido (não for realizado conforme a lei da Torá determina), a mulher divorciada mantém sua condição de mulher casada. Um novo casamento constitui um adultério e os filhos nascidos de uma nova união é um mamzer. Ele é proibido de casar-se com uma judia nata.  Para salvaguardar as gerações futuras da baderna geral na comunidade e de danos irreparáveis nas famílias particulares, é fundamental que, no caso de divórcio iminente, o judeu entre em contato com um rabino ortodoxo capacitado e autorizado pela Corte rabínica para proceder ao divórcio e emitir o guet de acordo com a Lei da Torá (Alaha). […]

         O guet protege a santidade do casamento. A cerimônia do divórcio é realizada em público e perante testemunhas. O longo procedimento do divórcio e os numerosos detalhes de lei (Alaha) necessários para a redação do guet impedem um divórcio precipitado movido pela raiva.

         […]

         Aguna

         Caso em que o homem se divorcia no civil ou se separa da Mulher e se recusa a dar o guet para a ex-mulher: Ela é uma Aguna.

 No sítio https://sinagogashaarei.org/o-divorcio-ponto-de-vista-judaica/https://legalsaber.com.br/divorcio-no-judaismo/ consta o seguinte texto:

         O DIVÓRCIO, PONTO DE VISTA JUDAICO

         Desvendando o divórcio – Rabino Y. David Weitman (São Paulo) responde – 

         No judaísmo, o divórcio é uma forma de D’us manifestar a Sua compreensão.

         Existe o divórcio no judaísmo? O que fazer quando um casal não vive em paz e resolve se separar?

         Neste caso, existe sim, dentro do judaísmo, a possibilidade do divórcio. E este procedimento é denominado guerushin, “se-paração”, ou simplesmente guet, que é o nome do documento do divórcio. O divórcio é um dos preceitos positivos da Torá. Em caso de separação, o marido deve escrever um sefer-critut (um documento de rompimento) entre ele e a sua esposa, conforme consta na Torá, no livro Deuteronômio (Devarim), XXIV. […]

         […]

         A obrigação do rabino é se esforçar ao máximo para fazer a paz entre o casal. Quando eles chegam ao rabino com a intenção de se separar, este vai tentar restabelecer a antiga harmonia. Se não conseguir, mesmo após várias tentativas, a solução para o caso poderá ser o divórcio.

         […] existem casos onde o Beit Din, o tribunal rabínico competente para realizar divórcios, poderá apressá-los.

         Em casos claros de infidelidade, por exemplo. Ou quando o marido quiser mudar de país ou tiver de ir para a guerra (para não deixar a sua esposa “condenada” ao casamento – na situação de aguná, como veremos adiante), ou quando um dos dois não se comportar de acordo, faltando com o devido respeito.

         A Halachá menciona, por exemplo, um marido que expulsa repetidamente a esposa de casa e que está constantemente irado, descontrolado e assim por diante. Existem casos em que, sem dúvida, o divórcio será recomendado e até apressado pelos rabinos. Porque a Torá não recomenda, de jeito algum, que o casal siga convivendo, se já pensa seriamente em separação. Isto não seria saudável.

         É verdade que é permitido um casal separar-se sem o consentimento da esposa?

         Isto não é permitido. É simplesmente impossível.

         Existe uma takaná do Rabino Guershon, Meor HaGolá, do século XI, que proibiu ao marido divorciar-se de sua esposa sem obter o seu consentimento. Ou seja, precisa haver a aprovação de ambas as partes, em sã e plena consciência, para pedir ou aceitar o divórcio.

         Por isso, a Lei diz claramente que se a esposa se tornou mentalmente perturbada, D’us nos livre, e não mais possui condições intelectuais para aceitar o divórcio, o marido não pode divorciar-se dela e ficará em uma situação de “cativo”, atado pelo casamento até que ela fique novamente saudável e consciente. Ou vice-versa. (Existem eventualmente outras saídas haláchicas para esta situação, somente implementadas após consulta à autoridade competente.)

         Realmente, hoje não é possível se divorciar (do marido ou da esposa) sem a anuência da outra parte. Por esta razão temos, em Israel e também nos EUA, associações de esposas revoltadas contra maridos que não lhes concedem o divórcio.

         São mulheres desgostosas, que não conseguem reconstruir as suas vidas. Da mesma forma, existem associações de maridos cujas esposas não querem aceitar o divórcio.

         Tais maridos estão de mãos atadas e não conseguem refazer as suas vidas. Infelizmente, são as tragédias dos casamentos mal-sucedidos, nos quais o casal segue sempre em litígio, obviamente prejudicando os filhos.

         O que acontece quando o casal se separa sem fazer o divórcio religioso?

         Enquanto não houver um guet, é totalmente proibido ao marido e à esposa contrair outro matrimônio, pois, de acordo com a lei judaica, eles ainda continuam casados e unidos perante D’us.

         A mulher que não tiver um guet (decreto de divorcio) e se unir a outro homem estará cometendo adultério. […] O mesmo se aplica à mulher que possuir um divórcio inválido. Por isto, é extremamente importante que aquelas separações inevitáveis, D’us nos livre, sejam feitas de forma correta e precisa para que ambos possam reconstruir suas vidas sem maiores traumas e complicações.

         Como fica a situação da mulher divorciada?

         Uma vez divorciada, a mulher deverá aguardar 90 dias antes de contrair outro matrimônio para que, em caso de gravidez, seja possível reconhecer o pai da criança, seja o ex-marido ou o atual. Conforme a lei da Torá, a mulher divorciada fica proibida de se casar com um Cohen, um sacerdote. Se ela não chegou a se casar novamente, e, portanto, não houve outra chupá e kidushin, poderá voltar a se casar com o primeiro marido; isto é chamado “machzir grushatô”. Tal casamento deve ser celebrado normalmente, com as sete bênçãos. Isto tudo será válido apenas e tão somente se este ex-marido não for um Cohen.

         Qual é a posição da Halachá sobre a guarda dos filhos, indenizações, etc.?

         A ketubá (contrato de casamento) prevê a possibilidade do divórcio. Nela consta uma quantia que o marido entrega à esposa a título de indenização, em caso de separação. A guarda dos filhos, se forem crianças, será, na maioria dos casos, da esposa, pois é ela quem cuida de sua educação.

         O judaísmo, como sempre, leva em conta a natureza humana. Podem ocorrer exceções. Normalmente os pagamentos de indenizações e pensões são tratadas pela lei civil e não pela lei religiosa. Mesmo assim, há no Shulchan Aruch disposições a respeito.

         Qual o significado do guet?

         De acordo com a lei da Torá, bastaria que o marido escrevesse um documento de separação para a esposa, estabelecendo que ela passa a ser livre perante outro homem. Os sábios, porém, vendo as inúmeras dúvidas e suspeitas que adviriam de um tal procedimento, obrigaram também a inclusão da data, do local, das assinaturas de testemunhas e dos nomes do marido e da esposa no documento.

         A preparação do guet está repleta de pormenores: a tinta, o pergaminho, a utilização de uma pena de ave ou caule de bambu; o sofer (escriba) especializado e com expressa intenção de escrevê-lo para aquele marido e aquela esposa, etc. Existem vários detalhes e, é claro, não é qualquer pessoa que os conhece. Este documento chama-se guet porque o valor numérico deste termo é equivalente a 12, o total de linhas que contém.

         Outra explicação é que em todo o Tanach (Bíblia judaica) não é possível encontrar as letras guimel e taf juntas, uma ao lado da outra, indicando que o guet é realmente uma separação entre pessoas unidas.

         Quem está habilitado a fazer o guet?

         Fazer um guet envolve muitos detalhes: conhecer os nomes corretos das partes, pois se estiverem incorretos todo o guet fica invalidado; inserir inclusive os apelidos; o sofer e as testemunhas devem ouvir do marido que ele quer dar o guet; o guet deve ser entregue nas mãos da esposa na presença de testemunhas aptas, e assim por diante. Por isto, apenas um rabino habilitado, que possua semichá e experiência pode oficiar um guet. Já o casamento é algo mais simples, apesar de hoje em dia ser necessário um rabino habilitado para oficiá-lo.

         Com o divórcio, porém, basta que seja feito por alguém que não conhece as suas leis para que surja o risco de conseqüências nefastas para o casal. Por tudo isto, apenas rabinos competentes e autorizados podem lidar com o guet. É necessário um Beit Din, tribunal rabínico, que saiba fazer um guet, principalmente hoje em dia (quando por vezes um shaliach (emissário) é usado para entregar ou receber o guet). O divórcio judaico exige um vasto conhecimento talmúdico e haláchico.

         Aliás, após a conclusão do guet, este documento não é entregue ao casal; somente uma autorização é outorgada, permitindo a eles casarem-se novamente. O guet em si é rasgado e arquivado com o beit din para que não haja difamações que tal guet foi escrito de forma errônea.

         O que é uma aguná?

         Aguná é uma mulher cujo marido desapareceu. Ela não é viúva, pois não há testemunhas de que ele tenha morrido, nem é divorciada, pois não recebeu o guet. Por este motivo, ela não poderá casar-se com ninguém. A Aguná fica “presa” e, de fato, trata-se de uma situação desastrosa.

         […]

         Ritos de passagem Judaicos

         – O casamento (qidushin) – é uma instituição muito importante no judaísmo.

         […]

         Tradicionalmente esta cerimônia celebrava-se sem qualquer necessidade de um celebrante e podia ter lugar em casa ou mesmo ao ar livre. Era celebrado debaixo de um pálio conhecido por chuppah, costume que se mantem ainda nos nossos dias. Este chuppah tinha/tem tal força simbólica que, falar em qidushin ou huppah, é falar do mesmo acontecimento: o casamento judaico.

         Há neste cerimonial uma imensidão de pormenores e de práticas, umas mais seguidas do que outras. Não pode haver chuppah sem ketubah, ou seja, sem que antes seja elaborado um documento sobre o mesmo, especificando a hora, data e lugar em que ele se vai realizar.

         Na ketubah tem de constar o registo da aceitação do marido das suas obrigações para com a esposa, bem como a quantia que ele lhe deverá pagar caso se venha a divorciar dela. O Judaísmo Reformado aceita uma cerimônia de casamento recíproca e um ketubah igual. Este documento legal é tradicionalmente redigido em aramaico e é muito ilustrado. É assinado apenas pelos esposos.

         Mikveh (banho ritual da mulher – […]

         […]

         O Gett (Divócio judaico) – Porque é que o divórcio desencorajado?

         […]

         Porque é que uma mulher não pode iniciar/ pedir o gett (divórcio)?

         R: O livro do Deuteronômio 24:1, refere que somente o homem pode iniciar o processo de divórcio. É na base desta citação sagrada que a lei do divórcio foi redigida entre os judeus. Há um milênio atrás, Rabbenu Gershom ben Yehuda (965-1028), uma alta autoridade rabínica, decidiu que a mulher devia também poder opinar, dar o seu consentimento ou não para o divórcio. Esta takana (decisão) foi aceite e é, desde então, seguida na Europa. Os judeus ortodoxos não a seguem.

         Porque é que o divórcio tem de ser registado por escrito e em aramaico?

         R: O aramaico era a língua das massas nos países fora da Palestina, particularmente na Babilônia, onde muitos judeus viveram deportados. Assim, muitos documentos legais foram escritos nesta língua, tal como o gett, nos períodos mishnaico e talmúdico. Guardou-se a tradição. [http://ritosdepassagemjudaicos.weebly.com/mikveh-banho-ritual-qidushin-noivado-nissuin-casamento-gett-divoacutercio.html]

  Fontes: Revista Morashá,  Edição 26 – Dezembro de 1999: http://www.morasha.com.br/sabedoria-judaica/desvendando-o-divorcio.html

         Coordenador: Saul Stuart Gefter

  Muitos outros textos, de muitos outros sítios – como, por exemplo, https://en.wikipedia.org/wiki/Get_(divorce_document), https://www.consistoire.org/pdf/wizo_guide_du_divorce.pdf, https://vaad.fr/services-rabbiniques/divorce-religieux/deroulement-de-la-procedure/, https://vaad.fr/services-rabbiniques/divorce-religieux/a-reception-de-la-demande/, https://pt.wikipedia.org/wiki/Guet, https://es.wikipedia.org/wiki/Get, dão do processo de divórcio judaico a mesma descrição, acrescentando, de útil, aquilo que se passará a descrever a seguir àqueles que vão ser mencionados.

        Num sítio de um escritório de advogados em Israel – https://www.international-divorce.com/divorce-law-israel.htm, https://www.international-divorce.com/divorce-based-newyork-israel.htm, http://www.family-laws.co/divorce-jewish-couples-divorce-process.html

         Jewish divorce is carried out by the writing of the divorce document which must be given to the wife by the husband – with both the giving and acceptance being by consent and free will.

          It does not matter if the parties agreed to divorce – or whether the rabbinical court passed a divorce judgment after being satisfied that one of the parties had proved that grounds existed for ending the marriage under Jewish law. The procedure is the same in both cases.

         […] 

         The husband gives instructions to the scribe for the handwritten drafting of the divorce document ‘ in his name, in her name and in the name of the get’ using a quill pen . This is done under the supervision of the rabbinical court to prevent or minimize errors which could lead to the disqualification of the ‘get’. […]

         Once the get is written and is signed by witnesses, the husband gives it to the wife who must accept it […] Once the process is completed properly, the couple are divorced.

         […]

         […] There is no need for a wife to receive the ‘get’ from her husband in person. Jewish law permits the use of messengers in the divorce ceremony. Two types of messenger are recognized in this context – the ‘sending’ messenger, and the ‘receiving’ messenger.

         […]

         Until the ‘get’ is actually received properly according to Jewish law, the wife is still married.

         […]

         If there is a mistake in the ‘get’, it renders it void according to Jewish Law (Din Torah). This has grave consequences for the woman. If the mistake is only discovered after the divorce ceremony, then a woman, who thought she was divorced would actually be still regarded as married. If she had remarried before the mistake was discovered, it is likely that she will have to leave her second husband and any children they had together will be bastards (‘’Mamzer’im’ ). The solution would be to make a new ‘get’ which corrected the mistakes, and to conduct the divorce ceremony again, to end the marriage properly

         […]

         Question: If my spouse finally agrees to sign a divorce agreement how can this actually be enforced so that I will be divorced under Jewish law?

         Answer: For Jews often the most problematic area of a divorce agreement for Jews concerns the divorce itself. Firstly, if they submit the signed divorce agreement covering issues such as child custody, maintenance and property , for authorisation at the family court all the other issues can be incorporated into a judgment, given them full legal validity, but the paragraph(s) relating to the divorce itself cannot be touched. Divorce between Jews is under the exclusive jurisdiction of the rabbinical court. Therefore, the part of the divorce agreement relating to divorce can only be authorised by a rabbinical court, where a divorce judgment can be given. Some parties authorise the whole agreement at the rabbinical court.

        Secondly, although mutual consent is a ground for divorce under Jewish law the actual agreement to divorce cannot be enforced because this could interfere with the ‘get’ process. A ‘get’ (Jewish divorce deed) must be given and accepted with full consent and out of free choice.

           In exceptional circumstances, use is made of sanctions against a husband who refuses to give his wife a divorce but only a ‘get’ given with full consent and out of free choice has legal validity.

=>

            O divórcio judaico é realizado através da redacção do documento de divórcio que deve ser entregue à esposa pelo marido – sendo tanto a entrega quanto a aceitação por consentimento e livre vontade.

         Não importa se as partes concordaram em divorciar-se – ou se o tribunal rabínico proferiu um julgamento de divórcio depois de se certificar de que uma das partes tinha provado que existiam motivos para terminar o casamento ao abrigo da lei judaica. O procedimento é o mesmo em ambos os casos.

            […]

       O marido dá instruções ao escriba para a lavratura manuscrita do documento de divórcio ‘em nome dele, em nome dela e em nome do guet’ usando uma caneta de pena. Isto é feito sob a supervisão do tribunal rabínico para prevenir ou minimizar erros que poderiam levar à desqualificação do ‘guet’. […]

        Uma vez redigido o documento e assinado pelas testemunhas, o marido o entrega à esposa que deve aceitá-lo […] Uma vez concluído o processo correctamente, o casal se divorcia.

       […]

  […] Não há necessidade de a esposa receber pessoalmente o ‘guet’ do marido. A lei judaica permite o uso de mensageiros na cerimónia de divórcio. Dois tipos de mensageiros são reconhecidos neste contexto – o mensageiro “enviador” e o mensageiro “recebedor”.

  […]

  Até que o ‘guet’ seja realmente recebido adequadamente de acordo com a lei judaica, a esposa ainda é casada.

  […]

  Se houver um erro no ‘guet’, ele será invalidado de acordo com a Lei Judaica (Din Torá). Isto tem graves consequências para a mulher. Se o erro só for descoberto após a cerimónia de divórcio, então uma mulher que pensasse que estava divorciada ainda seria considerada casada. Se ela tivesse se casado novamente antes do erro ser descoberto, é provável que ela tenha que deixar o segundo marido e todos os filhos que tiveram juntos serão bastardos (”Mamzer’im’). A solução seria fazer um novo ‘guet’ que corrigisse os erros, e realizar novamente a cerimónia de divórcio, para terminar o casamento de maneira adequada

        […]

     Pergunta: Se o meu cônjuge finalmente concordar em assinar um acordo de divórcio, como isso pode realmente ser aplicado para que eu me divorcie sob a lei judaica?

      Resposta: Para os judeus, muitas vezes a área mais problemática de um acordo de divórcio diz respeito ao próprio divórcio. Em primeiro lugar, se submeterem o acordo de divórcio assinado que abrange questões como guarda dos filhos, alimentos e bens, para autorização do tribunal de família, todas as outras questões podem ser incorporadas numa sentença, dada a sua plena validade jurídica, mas o(s) parágrafo(s) relativo(s) ao divórcio em si não pode ser tocado. O divórcio entre judeus está sob a jurisdição exclusiva do tribunal rabínico. Portanto, a parte do acordo de divórcio relativa ao divórcio só pode ser autorizada por um tribunal rabínico, onde um julgamento de divórcio pode ser proferido. Algumas partes autorizam todo o acordo no tribunal rabínico.

Em segundo lugar, embora o consentimento mútuo seja uma base para o divórcio ao abrigo da lei judaica, o acordo real para o divórcio não pode ser aplicado porque poderia interferir com o processo de guet. Um guet (escritura de divórcio judaico) deve ser dado e aceito com pleno consentimento e por livre escolha.

Em circunstâncias excepcionais, são utilizadas sanções contra um marido que se recusa a dar o divórcio à sua esposa, mas apenas um guet dado com pleno consentimento e por livre escolha tem validade jurídica.

              Noutro sítio de advogados em Israel –  https://www.pereslaw.co.il/en/the-property-relations-between-spouses-law-1973/:

         […] Pursuant to the Property Relations Law, an obligatory deferred right to balance assets on the date of the termination of the marriage is conferred on each of the spouses. The date of the termination of the marriage is defined in the Law as the actual divorce or demise of a spouse. […]

         Only upon the termination of the marriage will each of the spouses be entitled to one half of the value of the couple’s assets, apart from the assets which they had prior to the marriage, or which they received as a gift or inheritance during the marriage, or a pension received by one of the spouses by the National Insurance Institute, or a pension or compensation awarded or payable to one of the spouses due to bodily damage or death, and apart from assets in respect of which the parties had agreed in writing that the value thereof would not be balanced between them.

         […]

         […] As aforesaid, the Law provides that the actual date of the balancing of resources and distribution of the property will take place upon the termination of the marriage due to divorce […]

         Due to the deferred date provided in the Property Relations Law, an opportunity for extortion is created, allowing the application of pressure which is reflected in economic concessions.Normally, the strong party, in whose name the lion’s share of the property is registered, having the economic capability to conduct a lengthy litigation, takes advantage of this to subdue the weak party and thus leads him/her to make financial concessions, in order to break free from the bond of marriage.

          =>

        […] Nos termos da Lei das Relações Patrimoniais, é conferido a cada um dos cônjuges um direito diferido obrigatório ao equilíbrio patrimonial na data da dissolução do casamento. A data da dissolução do casamento é definida na lei como o divórcio efectivo ou falecimento do cônjuge. […]

      Só após a dissolução do casamento é que cada um dos cônjuges terá direito a metade do valor dos bens do casal, além dos bens que possuíam antes do casamento, ou que receberam em doação ou herança durante o casamento, ou uma pensão recebida por um dos cônjuges pelo Instituto Nacional de Seguros, ou uma pensão ou indemnização atribuída ou a pagar a um dos cônjuges por lesão corporal ou morte, e além dos bens relativamente aos quais as partes tenham acordado por escrito que o valor disso não seria equilibrado entre eles.

         […]

         […] Conforme referido, a Lei prevê que a data efectiva da compensação dos recursos e da distribuição dos bens ocorrerá no momento da dissolução do casamento por divórcio […]

         Devido ao diferimento da data prevista na Lei das Relações Patrimoniais, cria-se uma oportunidade de extorsão, permitindo a aplicação de pressões que se reflectem em concessões económicas. Normalmente, a parte forte, em cujo nome está registada a maior parte da propriedade, tem a capacidade económica para conduzir um litígio demorado, aproveita-se disso para subjugar a parte fraca e assim leva-a a fazer concessões financeiras, a fim de se libertar do vínculo do casamento.

   Noutro sítio de um outro escritório de advogados em Israel – https://www.avivitmoskovich.co.il/en/service/financial-relationships-between-spouses-law/:

         The Financial Relationships between Spouses Law: Amendment from 2008 – dividing property prior to awarding of the get [Jewish divorce] […] resulted in a problem that created difficulties for many women in the process of divorcing. The Law stated that division of property should occur only after […] the woman received a Jewish divorce and the marriage ended in accordance with Jewish halacha. This requirement led to many cases in which the husband profited from the possibility of extorting his wife—by refusing to grant a Jewish divorce and thus delaying not only the divorce, but also the division of property. In such cases the woman was forced to ‘pay’ the husband to grant a Jewish divorce by foregoing claims on property and rights. In the meantime, the husband had been holding the property up to that time; therefore the woman had no resources of her own so long as she wasn’t granted a Jewish divorce. For these reasons she was in an inferior position in relation to the man. In response to the above problem an amendment to the Law was enacted, stating that property may be divided even prior to the divorce, thus severing the link that existed between nullity of the marriage and division of property. […]

         =>

       A lei das relações patrimoniais entre cônjuges: emenda de 2008 – divisão de bens antes da concessão do guet [divórcio judeu] […] resultou num problema que criou dificuldades para muitas mulheres no processo de divórcio. A Lei [de 1973 – acrescento deste TRL] estabelecia que a divisão de bens deveria ocorrer somente […] depois que a mulher recebesse o divórcio judaico e o casamento terminasse de acordo com a halacha judaica. Esta exigência levou a muitos casos em que o marido lucrava com a possibilidade de extorquir a esposa – recusando-se a conceder o divórcio judaico e atrasando assim não só o divórcio, mas também a divisão da propriedade. Nesses casos, a mulher era forçada a “pagar” ao marido para conceder o divórcio judeu, renunciando às reivindicações de propriedade e direitos. Entretanto, o marido detinha a propriedade até então; portanto, a mulher não tinha recursos próprios enquanto não lhe fosse concedido o divórcio judaico. Por estas razões ela estava numa posição inferior em relação ao homem. Em resposta ao problema acima foi promulgada uma alteração à Lei, estabelecendo que os bens podem ser divididos mesmo antes do divórcio, cortando assim a ligação que existia entre a nulidade do casamento e a divisão de bens. […].

              No sítio https://www.chabad.org.br/biblioteca/artigos/guet_divorcio/home.html:

         […]

         A Lei Judaica tradicional (Halachá) exige que um casal obtenha um divórcio judaico (guet) para pôr fim ao casamento judaico. Esta posição é compartilhada pelos Rabinatos Ortodoxo e Conservador, sendo a política oficial do Estado de Israel. […]

         O processo

         1 – Cada parte declara estar ciente do que está para acontecer e que age livremente, sem coerção.

         2 – O marido autoriza o escriba a escrever o documento.

         3 – O documento de doze linhas é escrito pelo escriba e assinado pelas testemunhas. A escrita e assinatura do documento geralmente leva de 30 a 45 minutos, e não exige sessões adicionais.

         4 – O documento assinado é apresentado à esposa pelo marido ou pelo procurador, na presença de testemunhas. No minuto em que ela o aceita, o divórcio passa a valer imediatamente e é definitivo.

         5 – O documento em si permanece nos arquivos do rabino oficiante. É cortado pelo rabino, portanto jamais pode ser usado ou apresentado novamente. O rabino em seguida emite um certificado de prova (p’tur) a ambas as partes, atestando o fato de que um guet foi adequadamente escrito, entregue e aceito, e que cada uma das partes está livre para casar-se novamente.

         […]

              Luciana Julião Dias O CASAMENTO JUDAICO E SUAS SIMBOLOGIAS NA ATUALIDADE Artigo apresentado ao Bacharelado Interdisciplinar em Ciências Humanas, da Universidade Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel (Trabalho de Conclusão de Curso). Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Portella. (https://www2.ufjf.br/bach//files/2016/10/LUCIANA-JULIAO-DIAS.pdf)

         […]

        1. DIVÓRCIO

         O judaísmo, embora considere o casamento como idealmente permanente, não o considera indissolúvel. Contudo, a religião desencoraja o divórcio e lamenta sua ocorrência (GOLDBERG; RAYNER, 1989).

         […]

         Além disso, deve-se frisar que o divórcio também é desencorajado pelo fato de que o marido deve devolver as propriedades recebidas quando se casou para o pai de sua esposa, caso haja divórcio. Ademais, o divórcio também envolve, além de um ano de pensão, uma considerável perda de capital ou de bens imóveis (NEUSNER, 2004).

         Inicialmente, destaque-se que o divórcio é concedido pelo marido à esposa e ocorre através de um documento chamado gett. A esposa, no entanto, não possui o poder de divorciar-se do marido.

         Contudo, caso uma mulher possua motivos para querer divorciar-se, pode dirigir-se a um tribunal judaico (bet din) ou a um rabino e exigir que o marido se divorcie dela. Nesse caso, se o bet din concordar que as razões da esposa são legítimas, pode ordenar que o marido lhe conceda o divórcio, sob pena de excomunhão, caso necessário (ASHERI, 1995).

         É importante destacar que todos os divórcios judaicos ocorrem por consentimento mútuo. Assim, um homem não pode divorciar-se sem o consentimento da mulher, excepto em caso de adultério por parte dela. Como consequência, um homem não pode se divorciar de uma esposa que fique insana, já que ela está incapaz de dar seu consentimento (ASHERI, 1995).

         Entretanto, há uma maneira pela qual um homem casado com uma mulher insana sem esperanças de cura pode se casar novamente enquanto ela ainda estiver viva: é necessário que um tribunal rabínico lhe conceda uma “isenção” do cherem de Rabbenu Gershom que proíbe a poligamia e, assim, ele poderá ter uma segunda esposa. Frise-se que teoricamente o homem terá duas esposas, embora só possa viver com a segunda (ASHERI, 1995).

         […]

              https://geom-ufu.medium.com/giro-cultural-tradi%C3%A7%C3%B5es-do-casamento-judaico-746e078edbf9

         […]

         O divórcio é tido para o judaísmo como algo totalmente negativo, que os rabinos devem desencorajar e adiar o máximo possível. De acordo com a lei judaica, o casamento termina apenas após a morte de um dos cônjuges ou pelo gett (divórcio judaico). As leis que se referem à preparação do gett são rebuscadas: a esposa não tem o poder de divorciar-se do marido. Se a mulher tiver razões para solicitar o divórcio, pode se dirigir a um tribunal judaico chamado bet din, e exigir que o marido se divorcie dela (ASHERI, 1995).

         Todo gett pelo bet din é concebido quando há consentimento mútuo, ou seja, um homem para se divorciar da mulher, precisa do consentimento dela. Uma exceção seria caso de insanidade por parte da esposa sem cura iminente. Outro caso interessante é o adultério da mulher com outro homem, com o qual se tornaria proibida de casar após seu divórcio (ASHERI, 1995).

              No sítio do https://fr.timesofisrael.com/le-guet-nest-vraiment-pas-quune-affaire-de-femmes/ – sob o título Le guet n’est – vraiment – pas qu’une affaire de femmes… , AVIGAÏL FISCHMAN, 11/11/2019:

         […]

         En vertu de la loi juive, un mariage est contracté par une ketouba, un acte de mariage. Ce dernier devient nul et non avenu et le mariage dissous dès lors qu’un guet, un acte de divorce est remis par le mari et accepté par la femme.

         A l’époque de la Bible, ce document assurait la protection des femmes et leur garantissait de ne pas se retrouver démunies si leur conjoint décidait unilatéralement de les répudier.

         Le Talmud précise que cet acte de divorce doit être remis par le mari, et ce, de son plein gré. Et c’est précisément là que le bât blesse. Si les textes juridiques juifs évoquent certaines méthodes coercitives, incitatives et autres pressions, aucun tribunal rabbinique ne peut obliger un homme à remettre le guet. Contrairement au droit civil, ce n’est pas le tribunal rabbinique qui prononce le divorce, il ne fait que le constater.

         Et force est de constater que dans les divorces litigieux, les maris récalcitrants sont nombreux à se servir du guet comme levier de pression, tel une monnaie d’échange pour harceler leur ex-épouse et leur infliger d’importantes violences morales et psychologiques.

         Tant qu’une femme n’a pas reçu son guet, elle ne peut pas, au regard de la loi juive, se remarier. Si elle entretient des rapports sexuels avec un autre homme, et que naissent des enfants, ils auraient alors le statut de mamzer (enfant illégitime), un statut hautement compliqué du point de vue de la Halakha (loi juive).

         Il est important de souligner que si le guet était initialement un acte unilatéral, qui, s’il protégeait les femmes, était décidé par le mari, il est véritablement devenu un acte réciproque impliquant pleinement les deux parties du couple.

         Depuis le décret de Rabénou Guershom (11e siècle), un guet ne peut être donné sans le consentement de la femme. Ce décret fut accepté dans le monde ashkénaze avant de l’être dans l’ensemble du monde juif. Lors de la cérémonie du guet, réglée comme du papier à musique, la femme doit physiquement signifier qu’elle accepte l’acte de divorce.

         […]

         =>

         […]

         Segundo a lei judaica, o casamento é celebrado por meio de uma ketubá, uma certidão de casamento. Este último torna-se nulo e o casamento dissolve-se assim que for obtido um guet, acto de divórcio, é apresentado pelo marido e aceite pela esposa.

         Na época da Bíblia, este documento assegurava a proteção das mulheres e garantia-lhes que não ficariam desamparadas caso o cônjuge decidisse unilateralmente divorciar-se delas.

         O Talmud especifica que este acto de divórcio deve ser apresentado pelo marido, por sua livre vontade. E é precisamente aí que reside o problema. Se os textos legais judaicos mencionam certos métodos coercivos, de incentivo e outros métodos de pressão, nenhum tribunal rabínico pode forçar um homem a entregar o guet. Ao contrário do direito civil, não é o tribunal rabínico que pronuncia o divórcio, apenas o constata.

         E é claro que, em divórcios contenciosos, muitos maridos recalcitrantes servem-se do guet como alavanca de pressão, como moeda de troca para assediar as suas ex-mulheres e infligir-lhes violência moral e psicológica significativas.

         Enquanto uma mulher não receber o seu guet, ela não pode, sob a lei judaica, casar novamente. Se ela tiver relações sexuais com outro homem e nascerem filhos, então eles teriam o status de mamzer (filho ilegítimo), um status altamente complicado do ponto de vista da Halachá (lei judaica).

         É importante ressaltar que se o guet era inicialmente um ato unilateral, que embora protegesse a mulher, era decidido pelo marido, tornou-se verdadeiramente um acto recíproco envolvendo plenamente ambas as partes do casal.

         Desde o decreto de Rabénou Gershom (século XI), o get não pode ser concedido sem o consentimento da mulher. Este decreto foi aceite no mundo Ashkenazi antes de ser aceite em todo o mundo judaico. Durante a cerimónia do guet, regulada como um relógio, a mulher deve manifestar fisicamente que aceita o acto do divórcio.

  […]

              Em França, o acórdão do Cour de Cassation, Chambre civile 2, 28/02/2013, recurso 12-18.856, em  https://www.legifrance.gouv.fr/juri/id/JURITEXT000027131175, ECLI:FR:CCASS:2013:C200347, cassou e anulou, por razões processuais, parte do acórdão do Cour d’appel de Versailles, de 16/02/2012, que tinha condenado o marido numa indemnização por danos morais por abuso do direito de se recusar a remeter à ex-mulher (depois de um divórcio civil em França) o guet (para a libertar do casamento religioso). O acórdão do CA de Versailles, tem uma  anotação favorável sob o título LE REFUS DE DÉLIVRER LE GUET SANCTIONNÉ PAR LES JUGES, Commentaire par Hisquin Jean-Marie, na RDLF 2013, chron. n°10).

              Outro acórdão francês trata da situação, com condenação do marido; é acórdão de 06/10/2022 do Cour d’appel de Paris
RG n° 18/27736, Pôle 4 – Chambre 10 –  https://www.courdecassation.fr/decision/633fc333e633183e2ee17ae2 Neste acórdão lembra-se, entre o mais, que:

         Au regard de la loi juive, la femme qui n’a pas obtenu le «guet» est toujours considérée comme mariée, dès lors toute relation avec un autre homme sera adultère; elle ne pourra se remarier religieusement. Une femme peut refuser de recevoir le guet mais dans cette hypothèse l’homme qui a une relation avec une autre femme célibataire ne commet pas l’adultère. Il résulte par ailleurs du «guide du divorce religieux (guet) en France», préfacé par le Grand Rabbin [Z] [M] que seul le mari peut délivrer le guet à sa femme, en présence de deux témoins accrédités par le tribunal rabbinique. Il doit le donner de son plein gré.

         =>

         Segundo a lei judaica, uma mulher que não obteve o guet ainda é considerada casada, portanto qualquer relacionamento com outro homem será adúltero; ela não poderá se casar novamente religiosamente. Uma mulher pode recusar-se a receber o guet, mas neste caso o homem que se relaciona com outra mulher solteira não comete adultério. Resulta também do “guia para o divórcio religioso (guet) em França”, prefaciado pelo Rabino Chefe [Z] [M] que só o marido pode emitir o guet para a sua esposa, na presença de duas testemunhas credenciadas pelo rabínico tribunal. Ele deve dá-lo por sua própria vontade.

         Dr. Tzvi Szajnbrum, Advogado, |num artigo de 17/07/2017, Direito de FamíliaDireito PenalDivórcio, Separaçãohttps://voleh.org/pt-br/tribunal-rabinico-quer-ajudar-policia-nao-faz/ sob o título Quando o Tribunal Rabínico quer ajudar e a polícia não faz nada, conta:

         “[…] um divórcio “judaico” só pode ser executado por meio de um tribunal rabínico. O Estado de Israel deu muito poder às cortes do Rabinato, incluindo a competência para punir severamente quem se recusa a conceder um “guet” (permissão do marido à mulher para obter o divórcio). Depois que o tribunal rabínico determina que o cônjuge deve conceder o guet, os juízes rabínicos possuem o poder de impor severas restrições e medidas coercitivas para forçá-lo a abdicar de sua reivindicação sobre o status marital de sua esposa.

         Em janeiro de 2014, o Tribunal Rabínico de Tel Aviv decidiu que um marido deveria conceder o guet a sua esposa. Esse caso tratava de um marido obstinado que não compareceu a todas as audiências a que foi convocado, e, quando veio, vociferou e mentiu para os juízes sem reservas.

         No total, foram-se mais de 20 audiências para convencer o marido a dar o guet mas ele continuava recusando. Os juízes o proibiram de deixar o país, confiscaram sua carteira de motorista e seu passaporte, congelaram suas contas bancárias e ainda assim ele continuava rejeitando a ordem. Um ano após a decisão da corte, os juízes, após tentar de todas as outras formas, expediram um mandado de prisão do marido por sete dias. Contudo, a polícia não executou a ordem e o marido continuou livre. Sua esposa continuava sendo considerada uma “aguná”, uma mulher a quem foi recusado o guet, estando assim impedida de casar-se novamente e até mesmo começar um novo relacionamento.

         Depois da segunda rodada de audiências em 2015, o marido continuava recusando, mas nesse momento disse que concordaria caso a pensão alimentícia para os três filhos fosse reduzida pela corte. Nesse ponto os juízes decidiram impor uma multa de 5,000 NIS e ordenar dez dias de prisão. Dessa fez, em sua decisão, os juízes disseram que a polícia deveria levar a ordem a sério e prendê-lo.

         Algumas semanas atrás, após outra audiência, foi descoberto que a polícia não havia feito nada mesmo depois que um terceiro mandado de prisão foi expedido por 21 dias. Dessa forma, os juízes expediram um quarto mandado, dessa vez por 30 dias.

         Além disso, num acto dramático de frustração, eles remeteram cópias da decisão ao Procurador-Geral e ao Presidente da Suprema Corte, com a esperança de que isso faria com que a polícia obedecesse às ordens e colocasse o marido atrás das grades.

         […]”

              https://fr.wikipedia.org/wiki/Guet_(acte_de_divorce)

         Le guet […e]ntraînant la résiliation des règles matrimoniales entre les époux, il ne consiste pas en une répudiation mais en une libération de la femme, désormais « permise à tout homme » sans que s’appliquent à elle les lois de l’adultère et jouissant à nouveau des droits que son mari avait assumés en son nom pendant le mariage.

         […]

         Le judaïsme admet la séparation à condition que les deux époux y aient consenti. Le principe est donc le divorce par consentement mutuel.

         Le refus du conjoint place dès lors celui qui voudrait sortir du lien marital dans une situation le consacrant comme enchaîné, ancré dans cette union. On parle du terme d’agounim et surtout d’agounah (la procédure de libération étant plus facile pour un homme) pour qualifier une personne souhaitant divorcer mais ne le pouvant pas matériellement, faute d’accord du conjoint.

         […]

         La loi juive envisage l’éventualité du refus ou de l’impossibilité du conjoint (homme ou femme) à exprimer son consentement à la séparation (démence, mutisme…). En pareil cas, la doctrine envisage bon nombre de possibilités.

         Le refus émanant de la femme

         Le judaïsme ashkénaze, proscrivant la polygamie depuis le xie siècle (Guershom ben Yehouda de Mayence), a été obligé d’imaginer une solution permettant de «libérer» le mari de son engagement en cas de refus ou de démence de son épouse.

         Il ressort qu’en pareil cas, l’époux doit requérir l’autorisation de prendre une autre épouse auprès de cent rabbins (heter meah rabanim) et donc contrevenir à l’interdiction de polygamie (punie d’excommunication).

         […]

         Le refus émanant de l’époux

         Le guet doit être exprimé de manière libre et éclairée par l’époux, c’est-à-dire sans contrainte. Il est souvent perçu comme une répudiation ou comme un avantage excessif donné au mari dans la mesure où il est remis par ce dernier. Afin de remédier à cette situation, bon nombre d’époux, notamment chez les Massortis, signent une entente prénuptiale établissant que l’épouse pourra obtenir le guet si les circonstances l’exigent.

         Le problème des effets de la non obtention du guet: Agounah et Mamzeroute

         La disparité de situations entre l’homme et la femme semble faire apparaître une certaine injustice.

         L’hypothèse d’un refus du mari ou d’une impossibilité d’exprimer son accord à la séparation par voie de guet interdit toute possibilité de remariage à la femme considérée comme encore mariée. Celle-ci ne peut en aucun cas avoir recours à la même démarche qu’un homme (heter meah rabanim) pour prendre un autre mari, la polygamie bien qu’interdite peut être tolérée de manière exceptionnelle chez les hommes mais jamais chez les femmes et une telle situation est perçue comme un adultère pur et simple.

         Par conséquent, l’enfant qui naîtrait d’une femme n’ayant pas été libérée (n’ayant pas reçu le guet) serait considéré comme mamzer (illégitimité, bâtardise issue d’un adultère).

         On observe que si la polygamie est interdite chez les hommes, les effets attachés à ce comportement sont, en pratique, moins graves, même si le mari est sévèrement puni faute de consentement de sa femme au divorce et au remariage: la faute n’entache pas le statut de l’enfant issu de cette seconde union, ce dernier serait légitime.

         La femme est donc condamnée à attendre la remise du guett par le mari. En pratique, il peut arriver que la remise du guet soit l’enjeu de tractations qui permettent au mari de s’extraire de ses responsabilités maritales (prestations compensatoires par exemple) voire de s’enrichir.

         […]

         Il existe une réelle controverse doctrinale en matière de refus de donner le guet. Ainsi, certains auteurs considèrent que certaines situations (envisagées limitativement, mais incluant des cas de maladie, stérilité, violence…) exigent qu’on force l’époux à donner le guett à sa femme dès lors que la situation rend la cohabitation impossible2.

         D’autres (notamment issus de la tradition séfarade) considèrent que le guett doit être donné dès que la femme le réclame.

         La loi juive s’interroge sur les possibilités de contraindre l’époux qui refuserait d’accorder le guet à son épouse la rendant ainsi agounah. Il existe de nombreuses mesures d’incitations ou de contraintes envisagées par la loi juive pour inciter l’époux à libérer sa femme, parmi lesquelles la mise au ban de la communauté, les condamnations et pressions financières, voire la violence.

         Le droit civil

         Par delà la loi juive, la question du don du guett concerne de nombreux pays où les communautés juives sont implantées tels qu’Israël, les États-Unis, le Canada et la France. On observe qu’il existe nombre de solutions qui ont été adoptées pour faire face à cette situation, chacune en accord avec sa philosophie du droit de la famille et des contrats.

         Des solutions tirées du droit anglo-saxon

         Le droit anglo-saxon et droit civil israélien envisagent la contrainte avant contractualisation du mariage par le biais d’un arrangement prénuptial incluant certaines clauses conditionnant le mariage et l’occurrence du divorce (recours à un tribunal arbitral, clause pénales…). Cette solution est difficilement recevable en droit français qui est réticent à la totale liberté contractuelle en matière matrimoniale et impose des règles d’ordre générales difficilement dérogeable.

         Le refus d’octroi du guett comme faute sur le fondement de la responsabilité civile

         Le droit français (et israélien) envisage l’octroi de dommages et intérêts sur le fondement de la responsabilité civile. Cette solution présente l’avantage d’écarter l’argument de la remise du guet sous contrainte dans la mesure où le mari pourra toujours refuser, mais son refus entraînera une faute civile qui pourra le condamner au paiement d’une somme.

         Cette solution n’est effective comme pour toute question civile que si le mari est solvable.

         =>

         O guet que conduz à extinção das regras matrimoniais entre os cônjuges, não consiste num repúdio, mas sim numa libertação da mulher, doravante “admissível a qualquer homem” sem que lhe sejam aplicadas as leis do adultério e gozando de novos direitos que o seu marido assumiu em seu nome durante o casamento.

         […]

         O judaísmo aceita a separação desde que ambos os cônjuges tenham consentido. O princípio é, portanto, o divórcio por consentimento mútuo.

         A recusa do cônjuge coloca, portanto, aquele que deseja abandonar o vínculo conjugal numa situação que o consagra como acorrentado, ancorado nesta união. Falamos do termo agounim e especialmente agounah (sendo o procedimento de libertação mais fácil para um homem) para descrever uma pessoa que deseja divorciar-se, mas não pode fazê-lo materialmente, por falta de acordo do cônjuge.

         […]

         A lei judaica contempla a possibilidade de recusa ou impossibilidade do cônjuge (homem ou mulher) manifestar consentimento à separação (demência, mudez, etc.). Nesse caso, a doutrina considera uma série de possibilidades.

         Recusa da mulher

         O judaísmo ashkenazi, proibindo a poligamia desde o século XI (Guershom ben Yehuda de Mainz), foi obrigado a imaginar uma solução que permitisse ao marido ser “libertado” do seu compromisso em caso de recusa ou insanidade da sua esposa.

         Parece que, em tal caso, o marido deve solicitar autorização para tomar outra esposa a cem rabinos (heter meah rabanim) e, portanto, violar a proibição da poligamia (punível com excomunhão).

         […]

         Recusa do marido

         O guet deve ser expresso de forma livre e informada pelo cônjuge, ou seja, sem constrangimentos. Muitas vezes é percebido como um repúdio ou como uma vantagem excessiva dada ao marido na medida em que é entregue por este. Para remediar esta situação, muitos cônjuges, especialmente entre os Masorti, assinam um acordo pré-nupcial estabelecendo que a esposa poderá obter o benefício se as circunstâncias o exigirem.

         O problema dos efeitos da não obtenção do guet: Agounah e Mamzeroute

          A disparidade de situação entre homens e mulheres parece revelar uma certa injustiça.

         A hipótese de recusa do marido ou de impossibilidade de manifestar a sua concordância com a separação por meio do guet, proíbe qualquer possibilidade de novo casamento à mulher considerada ainda casada. Ela não pode, em caso algum, recorrer ao mesmo procedimento que um homem (heter meah rabanim) para arranjar outro marido; a poligamia, embora proibida, pode ser tolerada excepcionalmente entre os homens, mas nunca entre as mulheres, e tal situação é considerada puro e simples adultério.

         Consequentemente, o filho nascido de mulher que não foi libertada (não tendo recebido o guet) seria considerado mamzer (ilegitimidade, bastardia resultante de adultério).

         Observamos que se a poligamia é proibida entre os homens, os efeitos associados a este comportamento são, na prática, menos graves, mesmo que o marido seja severamente punido pela falta de consentimento da esposa para o divórcio e novo casamento: a culpa não mancha o estatuto do filho resultante desta segunda união, este último será legítimo.

         A mulher está, portanto, condenada a esperar que o marido entregue o guet. Na prática, pode acontecer que a entrega do guet seja objecto de negociações que permitam ao marido escapar às suas responsabilidades conjugais (prestações compensatórias, por exemplo) ou mesmo enriquecer.

         […]

         Há uma verdadeira controvérsia doutrinária a respeito da recusa de dar o guet. Assim, certos autores consideram que determinadas situações (consideradas de forma restritiva, mas que incluem casos de doença, esterilidade, violência, etc.) exigem que o marido seja obrigado a dar o guet, quando a situação torna a coabitação impossível.

         Outros (particularmente da tradição sefardita) consideram que o guett deve ser dado assim que a mulher o solicitar.

         A lei judaica questiona-se sobre as possibilidades de forçar um marido que se recusa a conceder o guett à sua esposa, tornando-a assim agounah. Existem inúmeras medidas de incentivo ou restrição previstas pela lei judaica para encorajar o marido a libertar a sua esposa, incluindo o ostracismo da comunidade, condenações e pressão financeira, e até violência.

         Lei civil

         Além da lei judaica, a questão da entrega do guett diz respeito a muitos países onde as comunidades judaicas estão estabelecidas, como Israel, os Estados Unidos, o Canadá e a França. Observamos que há uma série de soluções que têm sido adotadas para lidar com esta situação, cada uma de acordo com a sua filosofia de direito de família e contratos.

         Soluções extraídas da lei anglo-saxônica

         O direito anglo-saxónico e o direito civil israelita prevêem a coacção antes da contratualização do casamento através de um acordo pré-nupcial, incluindo certas cláusulas que condicionam o casamento e a ocorrência do divórcio (recurso a um tribunal arbitral, cláusulas penais, etc.). Esta solução é difícil de aceitar no direito francês, que reluta em ter total liberdade contratual em matéria matrimonial e impõe regras gerais das quais é difícil desviar-se.

         Quanto à recusa de concessão do guett como culpa com base na responsabilidade civil

         A legislação francesa (e israelita) prevê a concessão de indemnizações com base na responsabilidade civil. Esta solução tem a vantagem de afastar o argumento da entrega sob coação, na medida em que o marido pode sempre recusar, mas a sua recusa resultará numa culpa civil que poderá condená-lo ao pagamento de uma quantia.

         Esta solução só é eficaz, como acontece com qualquer questão civil, se o marido estiver solvente.

              Num sítio de advogados norte-americanos – https://www.seidenfamilylaw.com/post/the-battle-between-jewish-law-and-secular-courts:

         […] an agunah cannot get remarried, which essentially prevents her from pursuing any romantic relationships or having children under Jewish law. This causes social, emotional and psychological trauma and in worst case scenarios, empowers the husband to engage in coercive controlling behaviors, including but not limited to, complete financial control and physical and/or sexual abuse.

         Not only does the husband have to provide the Get, but the wife has to accept the Get. While it is very rare, a woman may refuse to accept the Get while the civil divorce is pending in an effort to ensure that the Husband is reasonable in the civil divorce proceedings. Though rare, there is a potential remedy for husbands to remarry even if their wife refuses to accept a Get. The prohibition against bigamy was instituted by rabbanim, or a host of prominent rabbis, and not the Torah. Therefore, a man whose wife refuses to accept a Get may petition a Beis Din to issue a heter meah rabbanim, wherein, the Beis Din receives the consent of one hundred (100) rabbis, from three countries, to allow the husband to remarry even though his wife has refused to accept a Get. The issuance of a heter meah rabbanim is extremely rare. Nevertheless, same is not available to a woman because according to the Torah, a woman may not be married to more than one man. Therefore, in extremely rare circumstances, a husband may be able to remarry without his wife accepting a Get, which remedy is simply not available to women.

         =>

         […] uma agunah não pode se casar novamente, o que essencialmente a impede de ter qualquer relacionamento romântico ou de ter filhos sob a lei judaica. Isto causa traumas sociais, emocionais e psicológicos e, no pior dos cenários, capacita o marido a envolver-se em comportamentos de controlo coercivos, incluindo, mas não limitado a, controlo financeiro completo e abuso físico e/ou sexual.

         Não apenas o marido tem que fornecer o Guet, mas a esposa tem que aceitá-lo. Embora seja muito raro, uma mulher pode recusar-se a aceitar o Guet enquanto o divórcio civil estiver pendente, num esforço para garantir que o marido seja razoável no processo de divórcio civil. Embora raro, existe uma solução potencial para os maridos se casarem novamente, mesmo que a esposa se recuse a aceitar um Guet. A proibição contra a bigamia foi instituída por rabanins, ou uma série de rabinos proeminentes, e não pela Torá. Portanto, um homem cuja esposa se recusa a aceitar um Guet pode solicitar a um Beis Din a emissão de um heter meah rabanim, por meio do qual o Beis Din recebe o consentimento de cem (100) rabinos, de três países, para permitir que o marido se case novamente, mesmo embora sua esposa tenha se recusado a aceitar um Guet. A emissão de um heter meah rabbaanim é extremamente rara. No entanto, o mesmo não está disponível para uma mulher porque, de acordo com a Torá, uma mulher não pode ser casada com mais de um homem. Portanto, em circunstâncias extremamente raras, um marido pode conseguir casar-se novamente sem que a sua esposa aceite um Guet, solução que simplesmente não está disponível para as mulheres.

              No sítio https://k-larevue.com/divorcer-le-get-entre-droit-civil-et-commandements-religieux/ Astrid von Busekist [professeur de théorie politique à Sciences Po. Elle dirige la revue Raisons Politiques. Dernier ouvrage paru ‘La Religion au Tribunal. Essai sur le délibéralisme’, Paris, Albin Michel, 2023], em 27/09/2023, escreve o seguinte:

         “[…]

         Nous sommes en Israël, en 2014, et cela fait 14 ans qu’elle attend d’être libérée. Après la découverte de la relation homosexuelle de son mari, elle avait immédiatement demandé le divorce auprès d’un tribunal rabbinique à Jérusalem. Celui-ci met six ans pour examiner la requête, décide finalement qu’elle est justifiée, et ordonne au mari de donner le get. Le mari refuse d’obtempérer. La femme reste enchaînée. Elle l’est pour six années encore: c’est le temps qu’il faut au tribunal rabbinique pour condamner le mari à une peine de prison. La femme avait entretemps porté plainte auprès d’une cour civile pour dommages financiers et détresse émotionnelle. Depuis sa cellule le mari refuse toujours de la libérer. Les enchères montent: il exige désormais que la plainte au civil soit retirée, sinon pas de get. Le président de la Cour suprême rabbinique n’est pas insensible à ce chantage, et, désireux de résoudre enfin cette histoire, menace d’ordonner la mise en liberté de l’homme si la plainte au civil n’est pas levée.

         L’épouse, épaulée par une association de défense des agunot, Mavoi Satum, saisit alors la Cour suprême [L’article 176 du Code pénal criminalise la bigamie et la polygamie, mais l’article 179 spécifie que cette disposition ne s’applique pas au second mariage des hommes juifs qui ont reçu d’un tribunal rabbinique la permission de se remarier.] Celle-ci considère qu’un tribunal rabbinique n’est pas habilité à exiger le retrait d’une plainte. Elle ordonne le maintien en prison du mari. Le tribunal rabbinique propose alors à la femme de renoncer à sa part de l’appartement (valeur estimée: 300.000 NIS). Il se trouve que le mari lui devait déjà environ 1,5 millions de NIS en pension alimentaire [Dans une décision importante, la Cour suprême, sous la présidence d’Aharon Barak, a imposé en 1994 la règle de l’égalité en matière de répartition des biens. Alors que le tribunal rabbinique avait décidé de priver une femme de la moitié des acquêts du mariage sous prétexte que la loi juive ne reconnaît pas la «présomption de coopération», la Cour a jugé qu’une femme ne peut être expropriée lors de la dissolution du mariage.] Contrevenant à la décision de la Cour suprême, le tribunal rabbinique supérieur fait relâcher le mari. Retour à Jérusalem. À la suite des pressions de Mavoi Satum, la femme est entendue à nouveau quelques mois plus tard. Cette fois-ci le Grand rabbin Lau fait partie des dayanim et réussit à convaincre l’homme de renoncer à son chantage et d’accorder le get à sa femme.

         […].

         Les histoires de get sont avant tout des histoires de femmes. Il y a certes des cas où ce sont elles qui sont incriminées, elles qui négocient des avantages, elles qui empêchent leurs maris de divorcer, mais ils sont rares. La sanction n’est de toute façon pas comparable, on le sait. Sans get préalable, contrairement au remariage de l’homme, toute union nouvelle a un caractère adultérin pour la femme et s’apparente à un crime capital; les enfants issus de la nouvelle union sont considérés comme illégitimes, eux aussi adultérins (mamzerim) à la différence des enfants issus d’une nouvelle union de l’homme. Ces enfants ne peuvent contracter de mariage avec un Juif ou une Juive, ils ne peuvent épouser que leurs semblables. Et le stigmate leur survit : ils demeurent mamzerim au-delà de la « dixième génération » (Deutéronome, 23, 2) [C’est ainsi que l’on décrit généralement le statut du mamzer, qui est à la fois une insulte et un stigmate, notamment lorsqu’on traduit, de manière erronée, le terme par « bâtard ». Selon la halakha, ce statut est réservé aux enfants nés d’unions interdites avec une femme «qu’il n’est pas possible d’épouser» pour des raisons diverses qui ne concernent pas seulement le get].

         Dans la tradition talmudique, le divorce en lui-même n’est pourtant associé à aucun stigmate; la ketubah est un document qui contient toutes sortes de dispositions et d’arrangements pragmatiques entre époux, notamment les provisions en vue d’une dissolution éventuelle du mariage. Dans Kiddushin (2 a-b) on apprend comment «acquérir» une femme, dans Ketubot (63b, 77a) les bonnes raisons de demander le divorce (les furoncles ou l’incompatibilité sexuelle, l’apostasie). Si le pouvoir de répudiation du mari est presque absolu (Yevamot, 112b, Gittin 90a-b), et les dispositions encadrant le get très strictes, leur caractère prosaïque montre qu’il s’agit d’arrangements de type contractuel. C’est encore pour des raisons pragmatiques que les règles ont été modifiées au XIe siècle sous l’égide du rabbin Gershom de Mayence. Opposé à la polygamie et à l’unilatéralité du divorce, il introduit une disposition qui s’apparente au consentement mutuel entre époux. Ce qui apparaît comme une mesure progressiste signe en vérité la fin du modèle contractuel et prive les époux de règles claires: sans compensations financières, chacun est désormais dépendant du consentement de l’autre et doit négocier les termes pratiques du divorce. Et, en pratique justement, la négociation se fait rarement au détriment de l’homme.

         Reprenons. Le get doit être donné volontairement, il ne peut être extorqué, il est définitif et se fait en conformité avec les lois de Moïse et d’Israël («[…] Je te libère et te mets de côté pour que tu puisses avoir la permission et l’autorité sur toi-même et marier quelque homme que tu désires. Personne ne peut t’empêcher de ce jour et tu es permise à chaque homme. Ceci est un écrit de dissolution, et un document de liberté en conformité avec les lois de Moïse et d’Israël»). Le billet de divorce est «échangé» devant un tribunal rabbinique qui comprend trois juges.

         […]

         D’autres jugements sont moins délicats dans leur représentation du mariage juif: «Les principes de la loi juive ne sont pas conçus pour promouvoir un équilibre de pouvoir égal entre les parties qui dissolvent leur relation. La loi juive orthodoxe, en accordant au mari une allocation inégale du pouvoir de mettre fin au mariage, permet au mari d’exiger des conditions économiques favorables comme prix du divorce […]. Le mariage en tant qu’institution devrait promouvoir l’égalité plutôt que l’esclavage».

         […]”

         =>

         Estamos em Israel, em 2014, e ela espera há 14 anos para ser libertada. Depois de descobrir a relação homossexual do seu marido, ela imediatamente pediu o divórcio num tribunal rabínico em Jerusalém. Este leva seis anos para examinar o pedido, finalmente decide que é justificado e ordena ao marido que dê o guet. O marido recusa-se a obedecer. A mulher permanece acorrentada. Ela fica lá por mais seis anos: esse é o tempo que leva para o tribunal rabínico condenar o marido a uma pena de prisão. A mulher, entretanto, apresentou uma queixa num tribunal civil por danos financeiros e sofrimento emocional. Da cela, o marido ainda se recusa a libertá-la. O que está em jogo aumenta: ele agora exige que a queixa civil seja retirada, caso contrário, senão não há guet. O presidente do Supremo Tribunal Rabínico não é insensível a esta chantagem e, desejando finalmente resolver esta questão, ameaça ordenar a libertação do homem se a queixa civil não for levantada.

         A esposa, apoiada por uma associação de defesa das agunot, Mavoi Satum, apelou então para o Supremo Tribunal [o artigo 176.º do Código Penal criminaliza a bigamia e a poligamia, mas o artigo 179.º especifica que esta disposição não se aplica ao segundo casamento de homens judeus que tenham recebeu permissão de um tribunal rabínico para se casar novamente.] O Supremo Tribunal considera que um tribunal rabínico não está autorizado a exigir a retirada de uma queixa. O Supremo ordena que o marido seja mantido na prisão. O tribunal rabínico sugeriu então que a mulher desistisse da sua parte do apartamento (valor estimado: 300.000 NIS). Acontece que o marido já lhe devia cerca de NIS 1,5 milhões em pensão alimentícia [Numa decisão importante, o Supremo Tribunal, sob a presidência de Aharon Barak, impôs em 1994 a regra da igualdade em questões de distribuição de bens alimentares. Embora o tribunal rabínico tenha decidido privar uma mulher de metade dos bens do casamento sob o pretexto de que a lei judaica não reconhece a “presunção de cooperação”, o Supremo Tribunal decidiu que uma mulher não pode ser expropriada durante a dissolução do casamento.] Ao contrário do que diz. Indo contra a decisão da Supremo Tribunal, o tribunal rabínico superior libertou o marido. Retorno a Jerusalém. Após pressão de Mavoi Satum, a mulher foi ouvida novamente alguns meses depois. Desta vez, o Rabino Chefe Lau é um dos dayanim e consegue convencer o homem a desistir da chantagem e conceder o benefício à sua esposa.

         […].

         As histórias de Guet são sobretudo histórias de mulheres. Há certamente casos em que são elas que são incriminadas, são elas que negociam benefícios, são elas que impedem os seus maridos de se divorciarem, mas estes são raros. A sanção, em qualquer caso, não é comparável, sabemos disso. Sem guet prévio, ao contrário do novo casamento do homem, qualquer nova união da mulher tem carácter adúltero e equivale a crime capital; os filhos resultantes da nova união são considerados ilegítimos, também adúlteros (mamzerim) ao contrário dos filhos resultantes de uma nova união do homem. Estas crianças não podem casar-se com um judeu ou com uma judia; só podem casar com os seus pares. E o estigma lhes sobrevive: permanecem mamzerim além da “décima geração” (Deuteronômio, 23, 2) [É assim que geralmente se descreve o status do mamzerim, o que é ao mesmo tempo um insulto e um estigma, especialmente quando o termo é incorretamente traduzido como “bastardo”. Segundo a halakha, este estatuto é reservado aos filhos nascidos de uniões proibidas com uma mulher “com quem não é possível casar” por diversas razões que não dizem respeito apenas ao guet].

         Na tradição talmúdica, o divórcio em si não está associado a nenhum estigma; a ketubah é um documento que contém todos os tipos de disposições e acordos pragmáticos entre os cônjuges, incluindo disposições para uma possível dissolução do casamento. Em Kiddushin (2 a-b) aprendemos como “adquirir” uma esposa, em Ketubot (63b, 77a) as boas razões para pedir o divórcio (furúnculos ou incompatibilidade sexual, apostasia). Se o poder de repúdio do marido é quase absoluto (Yevamot, 112b, Gittin 90a-b), e as disposições que regem o guet são muito rigorosas, a sua natureza prosaica mostra que se trata de acordos de tipo contratual. Foi novamente por razões pragmáticas que as regras foram modificadas no século XI sob a égide do Rabino Gershom de Mainz. Opondo-se à poligamia e à unilateralidade do divórcio, introduz uma disposição semelhante ao consentimento mútuo entre os cônjuges. O que parece ser uma medida progressiva assinala na verdade o fim do modelo contratual e priva os cônjuges de regras claras: sem compensação financeira, cada um passa a depender do consentimento do outro e deve negociar os termos práticos do divórcio. E, na prática, raramente a negociação é feita em detrimento do homem.

         Retomando. O guet deve ser dado voluntariamente, não pode ser extorquido, é definitivo e é feito de acordo com as leis de Moisés e de Israel (“[…] eu te libero e te coloco de lado para que você tenha permissão e autoridade sobre si mesma e case-se com qualquer homem que você desejar. Ninguém pode impedi-la a partir de hoje e você tem permissão para todos os homens. Este é um escrito de dissolução e um documento de liberdade de acordo com as leis de Moisés e de Israel). O bilhete de divórcio é “trocado” perante um tribunal rabínico que inclui três juízes.

         […]

         Outras decisões são menos delicadas na sua descrição do casamento judaico: “Os princípios da lei judaica não foram concebidos para promover um equilíbrio igual de poder entre as partes que dissolvem a sua relação. A lei judaica ortodoxa, ao conceder ao marido uma atribuição desigual de poder para pôr fim ao casamento, permite ao marido exigir condições económicas favoráveis ​​como preço do divórcio […].”

              No sítio https://www.womenslaw.org/es/leyes/religious/ley-judia-del-get/informacion-basica-sobre-la-ley-de-divorcio-judia

         Un get es un divorcio religioso conforme a la ley judía (halacha) que solo puede conceder un esposo a una esposa. La palabra también puede referirse al papel que oficialmente concede un get. Esto es un sefer k’ritot (pergamino de separación). El sefer k’ritot es un documento de “no culpabilidad” y no detalla ninguna razón específica para el divorcio. Un sofer (escribano) lo redacta específicamente para una pareja.

   No mesmo sítio https://www.womenslaw.org/es/leyes/religious/ley-judia-del-get-ley-de-divorcio/como-una-persona-obtiene-un-get#node-69614

          ¿Puede una mujer iniciar el proceso para el “get”? Tradicionalmente, solo el esposo puede iniciar el proceso para el “get”. Sin embargo, actualmente algunas corrientes del judaísmo permiten que las mujeres le soliciten a un/a rabino/a o a un tribunal rabínico iniciar el proceso para el get y convencer al esposo de que lo conceda. […]

                                          *

          Notícia publicada em https://www.bbc.com › portuguese › geral-58319135, “Meu marido se recusou a me dar o divórcio por nove anos”: ‘as mulheres acorrentadas’ da comunidade judaica ortodoxa, de Sima Kotecha e Ellie Jacobs, Newsnight, de 26/08/2021, conta-se:

         […] mais de 100 mulheres da comunidade judaica Charedi continuam presas a casamentos religiosos no Reino Unido, segundo o deputado Jonathan Mendelsohn, que integra uma comissão parlamentar formada para ajudá-las.

         […]

         Sob a lei do judaismo ortodoxo, o marido precisa dar à esposa um documento chamado get, que autorize o divórcio.

         Sem isso, para os membros da comunidade, ela permanece casada mesmo sendo divorciada legalmente.

         As mulheres presas a esses casamentos religiosos são conhecidas como agunot ou “esposas acorrentadas”.

         Meyer diz que, sem o get, não poderia ter outro parceiro. “Você está presa. Eu não poderia pensar em encontrar outra pessoa, namorar ou seguir em frente com a minha vida.”

         […]

         O que acontece se o divórcio é recusado pelo marido?

         A mulher fica proibida de se casar de novo, porque isso seria considerado adultério.

         Ela não pode ter filhos com mais ninguém. Se tiver, a criança é chamada de mamzar, sendo excluída da comunidade.

         A Corte Judaica, chamada de Beth Din, pode anular o divórcio se considerar que o homem foi pressionado a assinar o documento.

         Uma emenda à legislação sobre violência doméstica do Reino Unido agora prevê que a recusa a conceder o divórcio religioso seja considerada uma forma de abuso doméstico.

         Ou seja, não dar o get, agora é enquadrado como comportamento coercitivo e controlador, e o homem pode ser processado e até preso, se for condenado.

         A expectativa é que as mulheres tenham mais poder para denunciar seus ex-maridos se eles não estiverem aceitando dar o divórcio religioso.

         Mas a Federação de Sinagogas, um grupo que representa judeus ortodoxos, diz que qualquer documento de divórcio “concedido sob pressão, seja devido a ameaças físicas, económicas ou de prisão, é absolutamente inválido” sob a lei judaica.

         “O casal continuará casado, apesar da concessão do documento”, diz a carta.

[…]

              Em Israel, pena maior a marido que nega divórcio. Homens que se recusarem a conceder separação podem ficar presos por até 20 anos. Daniela Kresch, especial para O GLOBO Newsletters.               De 03/03/20140 / Atualizado em 04/03/2014

         TEL AVIV – Quando um não quer, dois não se divorciam. Mas e se quem decide pela separação oficial é apenas o homem e a mulher fica à mercê de seu veredicto? O fenômeno é conhecido em Israel, já que pela religião judaica, é o marido que concede o chamado guet (documento de divórcio) à mulher. Alguns homens, no entanto, se recusam a fazê-lo, mantendo as esposas como reféns, numa espécie de limbo jurídico, sem que possam reconstruir a vida com outros companheiros. Para tentar diminuir a quantidade crescente de maridos recalcitrantes, o Parlamento israelense aprovou em primeira instância uma lei que aumenta a pena máxima de prisão de dez para 20 anos para quem se recusa a conceder o guet.

         Segundo um estudo de a ONG israelense Mavoi Satum (beco sem saída), uma em cada cinco mulheres em Israel têm dificuldades em abandonar o casamento. As que não recebem o guet dos maridos são chamadas de agunot (acorrentadas). Anualmente, há 17 mil casos de divórcio em Israel. Em 3 mil deles, os maridos recusam a separação. Há casos de mulheres que estão há décadas separadas informalmente, mas continuam formalmente casadas com homens que estão presos, moram no exterior ou em outras cidades com outras famílias. Em termos religiosos, os homens podem se casar de novo mesmo sem ter se divorciado.

         Tolerância das cortes rabínicas

         As agunot enfrentam um estigma social (principalmente em comunidades mais tradicionais) e enfrentam problemas práticos, como dificuldade para abrir contas bancárias, registrar os filhos na escola e até mesmo obter financiamento para compra de casas, já que tudo isso requer a assinatura dos maridos. Alguns homens usam a recusa de conceder divórcio como forma de exigir o pagamento de menos pensão alimentícia, uma separação de bens mais vantajosa ou simplesmente uma quantia de dinheiro em troca do guet. Outros querem apenas punir as mulheres.

         […]

              Numa outra notícia, publicado pelo Sindicato dos oficiais de registo civil de Minas Gerais, em Recivil, https://recivil.com.br/corte-israelense-pune-americano-por-seu-filho-ter-negado-divorcio/ consta:

         Corte israelense pune americano por seu filho ter negado divórcio

         Publicado em 8 de novembro de 2016

         JERUSALÉM — Em uma primeira decisão do tipo, autoridades rabínicas confiscaram o passaporte de um homem de negócios americano e o impediram de deixar Israel por mais de um ano — alegando que ele é responsável pela recusa do seu filho em conceder o divórcio a sua esposa.

         Na secular lei judaica, uma mulher precisa da aprovação de seu marido para se divorciar. Em Israel, onde todos os matrimónios estão sujeitos à lei religiosa, esta regra deixa milhares de mulheres em um limbo legal por conta de homens que se recusam a conceder a separação.

         Nas últimas décadas, as cortes rabínicas ganharam a autoridade para impor várias sanções contra maridos que resistem ao divórcio. Mas especialistas em direito dizem que nunca antes elas puniram o pai de um marido — no caso em questão, argumentando que o pai está ajudando o seu filho a ter uma vida de luxo nos Estados Unidos enquanto deixa sua esposa definhando em Israel.

         — É realmente vergonhoso que esta seja a única forma de resolver esta terrível situação para esta mulher miserável, ao encarcerar ou confiscar o passaporte de um sogro. Definitivamente, deveria haver alguma solução alternativa — opina Ruth Halperin-Kaddari, fundadora do Centro Rackman para o Avanço do Status da Mulher na Universidade Israelense de Bar-Ilan.

         O poder rabínico, sancionado pelo Estado, monitora vários aspectos da vida cotidiana para a maioria judaica, incluindo o casamento e o divórcio. Não há casamentos civis, o que significa que casais devem se unir ou se separar de acordo com a lei religiosa — ou viajar para ter uma cerimónia civil. Organizações que representam os direitos das mulheres argumentam que as leis religiosas decorrem de uma tradição patriarcal que as coloca em desvantagem. Cristãos e muçulmanos se casam de acordo com seus próprios costumes religiosos.

         Um dos ritos judaicos mais restritivos é aquele que concede ao homem um poder desproporcional no divórcio. As mulheres que têm a separação negada por seus maridos frequentemente são forçadas a abrir mão de seus direitos de custódia das crianças ou de pensões alimentícias como forma de convencê-los a mudar de ideia.

         Juízes rabínicos têm o poder de usar sanções contra maridos que se recusam a conceder um “gett”, o termo judaico para divórcio. A corte rabínica já congelou contas bancárias e cancelou carteiras de motoristas como forma de pressionar os homens, mas aqueles fora do país costumam estar bem fora de seu alcance.

         Defensoras dos direitos das mulheres afirmam que as sanções são usadas apenas em uma pequena parcela dos casos, e que deveriam ser aplicadas mais vezes. Shai Daron, um representante das cortes rabínicas, afirma, porém, que os juízes usam “todas as ferramentas ao seu alcance” para resolver estes casos.

         A corte afirma ainda que o caso em questão é “um dos mais difíceis” nos últimos tempos para uma mulher, que sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC) e teve uma paralisação parcial pouco tempo antes de requerer o divórcio, há dez anos.

         Segundo documentos do processo, a esposa sofreu o AVC em uma visita a Israel com o marido em 2005. Pouco tempo depois, ele voltou aos Estados Unidos, onde permanece. Sua esposa e seus dois filhos permanecerem em Israel, e ela se tornou uma cidadã israelense. A corte afirma que ele descumpriu a determinação para conceder o divórcio e uma pensão alimentícia.

         Ainda de acordo com os documentos, o pai punido tem idade na faixa de 60 anos e é um rico membro da comunidade hassídica de Nova York — um segmento do judaismo ortodoxo —, além de proprietário de uma empresa imobiliária. Ele estava em Israel em uma visita à família quando foi convocado ao tribunal e teve o seu passaporte, assim como o de sua esposa, confiscado. Além disso, ele ficou um mês na prisão.

         A corte rabínica argumenta que, ao dar a seu filho um trabalho e uma mesada, o pai é responsável pela intransigência do marido. Seus advogados, no entanto, afirmam que vão apelar à suprema corte do país. “Um dos princípios mais básicos da Justiça é que uma pessoa carregue seus próprios pecados e não seja punida pelos pecados de outros. O pai não tem controle sobre o seu filho”, afirma uma declaração dos advogados. Ainda de acordo com a defesa do americano, o pai tem se esforçado para fazer o filho mudar de ideia, inclusive demitindo-o, mas os dois têm uma relação distante no momento.

         Osnat Sharon, a advogada da esposa, afirmou que sua cliente passa por um intensivo processo de reabilitação que não será finalizado até que ela tenha a permissão para seguir em frente.

         — Ela não tem ainda 40 anos, tem sua vida inteira pela frente. Parte de sua reabilitação inclui encontrar um novo relacionamento, mas ela não consegue fazer isso — afirma a advogada, que também é uma consultora legal do Yad L’Isha, um centro de assistência a mulheres que têm divórcios negados.

         Apesar de não ter atendido a telefonemas da imprensa, o marido afirmou ao canal de televisão Channel 2 TV, em agosto, que ele concederia o divórcio se seus filhos voltassem para os Estados Unidos.

         Em documentos obtidos pela Associated Press, a corte rejeitou um requerimento da Embaixada dos Estados Unidos para obter novamente os passaportes, afirmando que o envolvimento da embaixada no caso era “inaceitável e intolerável”. A embaixada afirmou que tem dado assistência ao pai punido, mas se recusou a fazer outros comentários.

         A Organização para Resolução de Agunot, baseada em Nova York, que auxilia na resolução de disputas por divórcio judaicas, tem acompanhado o caso. O rabino Jeremy Stern, diretor executivo da organização, afirmou que o marido cujo pai foi punido tem uma namorada e divide seu tempo entre uma casa do Brooklyn e um “apartamento requintado” em uma residência de luxo em Miami — ambos de propriedade de seus pais.

         — Tudo o que sabemos indica que seus pais estão diretamente apoiando e possibilitando a resistência do marido. Deixe-o [o pai] chutá-lo para a rua e faze-lo saber que ele não pode viver [em suas casas] até que ele tenha o “gett” — aponta Stern.

                                                                 *

              Do que antecede resulta, no que ao caso importa, o seguinte:

              Em Israel, entre judeus, não há casamento nem divórcio civil. Há apenas o casamento e o divórcio religioso.

              O processo de divórcio religioso apenas pode ser iniciado, livremente, pelo marido. Em casos excepcionais, a mulher pode pedir ao tribunal judaico, que o processo seja iniciado. Não se trata aqui, pois, de um início livre, mas sujeito a autorização.

              Só o marido pode conceder o guet.

              O fim do processo só ocorre se o marido se dignar conceder o guet (ou gueth), à mulher e se a mulher aceitar o guet. Se o processo não se concluir com a entrega e a aceitação do guet, só o marido pode, mesmo assim, em determinados casos, casar-se novamente.

              Do ponto de vista da ordem pública internacional do Estado Português é, por isso, um processo violador do princípio da igualdade, pois que discriminatório em razão do sexo (art. 13 da CRP).

              Isto poderia levantar problemas ao nível da aplicação da lei, se o juiz português tivesse que aplicar, num determinado processo, o direito judaico.

              No entanto, o que está em causa nos autos, é um pedido de revisão e confirmação de uma sentença estrangeira.

              A este nível, os problemas são outros.

              Desde logo, não existe uma sentença de divórcio. Há, no momento final, a conjugação de dois actos dos cônjuges: a entrega do guet pelo marido e a aceitação dele pela mulher. O divórcio não é decretado pelo tribunal rabínico/judaico, resulta sim da prática de actos pelos dois cônjuges.

              Apesar disso, não se vê qualquer óbice à revisão do divórcio.

              O divórcio, produto de actos dos cônjuges, ocorreu no decurso de um processo religioso conduzido e controlado por uma autoridade religiosa, que também (também, porque este controlo, nesta parte, pode ser feito pelo tribunal civil de família), pode ir controlando a conformidade com a lei civil dos acordos dos cônjuges quanto aos efeitos do divórcio – relativamente aos filhos (normalmente confiados à mãe), aos bens e aos “alimentos” da mulher – depois permite que aqueles actos (entregue e aceitação do guet) dos cônjuges ocorram e, por fim, regista e certifica esse acto. E o processo, conduzido por esta autoridade, é reconhecido pelo Estado em que ele ocorre, ficando os cônjuges divorciados perante a Comunidade.   

              Pelo que, pode-se falar de um divórcio privado (mas não puramente privado), que resulta de uma decisão, particular dos dois cônjuges que pode ser objecto deste processo de revisão, ou seja, que pode ser revista e confirmada.

              Pois que, como vinha a ser dito a propósito das escrituras públicas declaratórias de união estável brasileiras, “o processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira dos arts. 978 e seguintes do CPC é aplicável também a actos relativos a direitos privados resultantes de um procedimento da ordem jurídica estrangeira em que esteja prevista uma qualquer intervenção de uma autoridade não jurisdicional (por exemplo, uma entidade administrativa ou religiosa), como a tomada ou a aceitação das declarações dos interessados (caso das escrituras públicas brasileiras declaratórias do divórcio, dos divórcios acordados perante os notários colombianos ou aceites e registados pelos presidentes de câmara  japoneses ou das escrituras públicas brasileiras declaratórias das uniões estáveis) [assim, por exemplo, o ac. do TRL de 21/11/2019 – proc.1429/19.6YRLSB].

              O que pode ser visto de outra perspectiva: o art. 46 do Regulamento Bruxelas II bis [e a Convenção de Haia relativa à mesma matéria] abrange o reconhecimento de divórcios privados formalizados num documento autêntico originário de um Estado-Membro vinculado pelo Regulamento [: “Os actos autênticos exarados e com força executória num Estado-Membro, bem como os acordos entre partes com força executória no Estado-Membro em que foram celebrados, são reconhecidos e declarados executórios nas mesmas condições que as decisões.”: no guia prático para a aplicação do regulamento escreve-se: “Tais actos, que devem ser reconhecidos e declarados executórios noutros Estados-Membros nas mesmas condições que uma decisão, incluem, por exemplo, documentos redigidos por notários, bem como documentos inscritos em registos públicos” e na nota 19 escreve-se: Para uma orientação geral sobre o significado de «acto autêntico», que descreve a sua natureza e efeitos, ver o acórdão do TJUE de 17 de Junho de 1999, Unibank, no processo C- 260/97, Colet. 1999, p. I-3715; actualmente, pode igualmente encontrar-se uma definição no artigo 2.º, n.º 3, do regulamento relativo às obrigações de alimentos [3. ‘Acto autêntico’: a) Um documento em matéria de obrigações alimentares que tenha sido formalmente redigido ou registado como autêntico no Estado-Membro de origem e cuja autenticidade: i) esteja associada à assinatura e ao conteúdo do instrumento; e ii) tenha sido estabelecida por uma autoridade pública ou outra autoridade competente para o fazer; ou b) Um pacto em matéria de obrigações alimentares, celebrado perante autoridades administrativas do Estado-Membro de origem ou por elas autenticado; […]].

              Entendimento que é extensamente desenvolvido, por exemplo, por João Gomes de Almeida, O divórcio em DIP, Almedina, 2017, págs. 49-60, sem deixar dúvidas de que é o correcto e o que é aceite pela maioria da doutrina, quer no que se refere ao Regulamente Bruxelas II quer no que se refere à Convenção de Haia [e daí que este autor também o defenda em relação ao regime interno, do processos dos arts. 978 e segs do CPC].

              Apenas como exemplo, vejam-se as seguintes passagens dessa obra:

         “É controverso na doutrina se o modo como intervém a autoridade não juris­dicional no processo de divórcio é ou não relevante para efeitos da sua inclusão no conceito de tribunal. Alguns autores exigem que a intervenção do órgão não jurisdicional seja constitutiva, entendendo que apenas neste caso o processo de divórcio é abrangido pelo âmbito de aplicação do Regulamento Bruxelas II bis. Para estes autores o mero registo por uma autoridade não jurisdicional de um divórcio puramente privado, previamente efectuado, não é suficiente para incluir essa autoridade no conceito de tribunal. É necessário que o divórcio só possa ser obtido mediante a participação de uma autoridade.

         Em sentido contrário pode argumentar-se que o Regulamento Bruxelas II bis não distingue consoante o modo de intervenção da autoridade não jurisdicional, pelo que não deve o intérprete ou o órgão aplicador do direito distinguir. Para além disso, argumenta-se que o princípio da certeza jurídica depõe em favor da não distinção, pois, por vezes, a distinção não será sempre evidente. Por fim, argumenta-se que a distinção pode suscitar dificuldades quando confrontada com processos jurisdicionais em que o tribunal tem poderes limitados.

         Entende-se, à luz das definições constantes dos Regulamentos Bruxelas II bis e Roma III, que não são relevantes quais os efectivos poderes que a autoridade não jurisdicional tem no processo de divórcio. Existem, actualmente, nalguns Estados-Membros, processos jurisdicionais em que o tribunal não pode inquirir sobre as razoes que fundamentam o divórcio e também Estados-Membros em que o tribunal tem de decretar o divórcio com fundamento no mero pedido de um ou ambos os cônjuges.

         Não obstante, é determinante que o divórcio só possa ser obtido mediante uma (qualquer) intervenção da autoridade não jurisdicional. Retomando o exemplo dos processos judiciais de divórcio a pedido, não é suficiente para os cônjuges se divorciarem que um deles comunique o pedido do divórcio ao outro em acção […] E neste sentido, advoga-se, que se deve entender que a intervenção da autoridade não jurisdicional é constitutiva. Sem a participação dela no processo, o casamento não é dissolvido.

         […]

         Na Convenção da Haia de 1970, são reconhecidos os divórcios obtidos desde que tenham sido proferidos na sequência de um processo judicial ou outro ofi­cialmente reconhecido no Estado Contratante de origem.

         Deste modo, são abrangidas não só as decisões judiciais de divórcio, mas também aque1as que resultem de processos administrativos ou religiosos. A existência de um processo pressupõe um conjunto mínimo de actos ordena­dos, conducentes a um determinado objectivo e prescritos por uma regulamentação, os quais devem ser realizados por uma autoridade ou pelo menos com a intervenção ou perante uma autoridade. Tal significa que o critério deci­sivo, no que respeita a autoridade, não são os seus maiores ou menores pode­res, mas a sua participação ou não no processo conducente a dissolução do casamento.

         Desta análise resulta que, na Convenção da Haia de 1970, os divórcios obti­dos na sequência de um processo em que participou uma autoridade não juris­dicional são abrangidos pelo seu âmbito de aplicação material.

         […]”

              Neste sentido, Luís Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, vol. III, Almedina, 2002, páginas 325-326, ≈ DIP, vol. III, tomo II, 3.ª edição refundida, 2019, AAFDL, páginas 176-179, explica:

         “A Convenção da Haia sobre o Reconhecimento dos Divórcios e Separações de Pessoas […] aplica-se ao reconhecimento de divórcios e separações de pessoas obtidos noutro Estado contratante na sequência de um processo judicial ou de um processo não-judicial oficialmente reconhecido neste Estado e que aí produza efeitos jurídicos (art. 1.º/1).

         Tanto pode tratar-se de uma decisão judicial como de uma decisão administrativa ou religiosa. Tem é de resultar de um processo oficialmente reconhecido no Estado em que é proferida. […] A repudiação de Direito hebraico e a repudiação de Direito muçulmano cairão no âmbito de aplicação da convenção contanto que haja um processo oficialmente reconhecido em que intervenha uma autoridade (pública ou religiosa).

         A exigência de um “processo oficialmente reconhecido” comporta dois elementos distintos. Por um lado, um processo, i.e., um mínimo de actos prescritos por uma regulamentação e realizados por uma autoridade ou, pelo menos, com a sua intervenção ou na sua presença. Por outro lado. um reconhecimento oficial deste processo, que se verifica quando o Estado de origem prescreve ou autoriza a utilização do processo para a obtenção do divórcio ou da separação de pessoas.”

              (citou-se, no essencial, através da decisão singular do TRL de 07/04/2020, proc. 405/19.3YRLSB-2, que também se pode ver aqui)

              Embora esta Convenção não se aplique ao caso, porque Israel não é parte na mesma, as ideias expostas têm sido aceites para efeitos da interpretação do art. 978 do CPC e das Convenções europeias.

              O que se confirma actualmente pelo que é dito quanto ao Regulamento Bruxelas ter, ou de outra perspectiva, quanto aos divórcios privados europeus, por João Gomes de Almeida, Âmbito de aplicação, definições e relações com outros actos do Regulamento Bruxelas ter, pág. 17, revista Julgar, nº. 47, Maio-Agosto de 2022, pág. 17:

         “Assinala-se que, acompanhando um processo de “desjudicializa-ção” do divórcio na União Europeia, o Regulamento Bruxelas II ter admite o reconhecimento de actos autênticos e acordos em matéria de divórcio e separação judicial. O âmbito de aplicação material do Regulamento Bruxelas II ter abrange assim divórcios privados, definidos por alguma doutrina como aqueles em que não há uma intervenção constitutiva de uma autoridade. Pela nossa parte preferimos distinguir recorrendo ao conceito de autoridade. No âmbito de aplicação material do Regulamento Bruxelas II ter incluem-se agora, adicionalmente, divórcios e separações judiciais em que há uma intervenção de uma autoridade (seja ela constitutiva ou não); os divórcios puramente privados, isto é, os divórcios efectuados sem necessidade da presença de qualquer autoridade, continuam excluídos do âmbito de aplicação material do Regulamento.”) [cita-se através da Decisão singular do TRL de 22/09/2022 – proc. 2286/22.0YRLSB].

              Pelo que, se o divórcio tivesse sido emitido dentro da UE não haveria qualquer problema com a “circulação” do divórcio, porque o divórcio foi registado por uma autoridade religiosa competente segundo a lei do Estado respectivo.

              Assim, repete-se, “o processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira dos artigos 978 e seguintes do CPC é aplicável também a actos relativos a direitos privados resultantes de um procedimento da ordem jurídica estrangeira em que esteja prevista uma qualquer intervenção de uma autoridade não jurisdicional (por exemplo, uma entidade administrativa ou religiosa), como a tomada ou a aceitação das declarações dos interessados.” Para mais se o divórcio daí resultante é registado pela autoridade religiosa, reconhecida como competente para o efeito pelo Estado respectivo.

                                                                 *   

              Um outro problema que se pode levantar é o da falta de motivos ou de fundamentos conhecidos do divórcio, pois que eles não constam do guet (do documento de divórcio emitido por promoção do marido e aceite pela mulher). E isto poderia levantar o problema da verificação da conformidade dos fundamentos da decisão com a ordem pública internacional do Estado Português. Para mais, o guet, como documento, tem sido visto tradicionalmente como uma carta de repúdio da mulher pelo marido, o que seria inaceitável como fundamento de divórcio perante a nossa ordem pública internacional.

              No entanto, da descrição feita acima, resulta que o divórcio judaico é um divórcio obtido por mútuo consentimento, consubstanciado na entrega do guet pelo marido aceite pela mulher (pelo que, de uma perspectiva diferente da referida acima, tem sido visto como uma carta de libertação da mulher).

              Compreende-se assim o que é dito por Luis Lima Pinheiro, DIP, pág. 345: “Em substância o repúdio do Direito hebraico não é muito afastado do nosso divórcio por mútuo consentimento, uma vez que pressupõe a aceitação da carta de repúdio [gueth] pela mulher. […]”

              De outra perspectiva, mesmo que se esteja perante um repúdio sem aceitação, como se verifica na lei musulmana, tem-se admitido, que a aquiescência inequívoca do cônjuge demandado ao processo ou à decisão de divórcio, autoriza o reconhecimento, ou seja, a aquiescência apaga o vício da contrariedade à ordem pública – Droit de la famille, 8e Édition, sous la direction de Pierre Murat, Dalloz, 2019, páginas 1914-1915 (cabendo a prova dessa aquiescência inequívoca cabe ao requerente do reconhecimento. O não exercício do direito de recurso não equivale a essa aquiescência inequívoca; a conclusão pode ser diferente para o caso da desistência do recurso. O facto de o cônjuge demandado ter aceitado, depois do processo, que lhe sejam pagas as pensões decididas pelo juiz não equivale, também, à aquiescência inequívoca. Esta resultará, provavelmente, do casamento posterior de tal cônjuge).

              É certo que o consentimento de qualquer deles – dir-se-ia que principalmente o consentimento da mulher – pode estar viciado. Ou seja, que o processo de formação da vontade de consentir de qualquer deles pode estar viciado. Mas isso é uma questão que terá de ser levantada pela contraparte demandada no processo de revisão e confirmação da decisão estrangeira de divórcio, se quiser deduzir uma objecção ao reconhecimento. Não é uma questão de conhecimento oficioso, nem os factos correspondentes poderiam aparecer logo à vista no requerimento de revisão e confirmação.

              Portanto, acaba por não se colocar o problema da falta de conhecimento dos fundamentos do divórcio, pois que, enquanto a falta de consentimento não for posta em causa pela requerida, o tipo de divórcio em causa terá resultado da aceitação do guet pela mulher.

              Tudo isto visto, embora resulte do estudo do problema que o processo de divórcio judaico levanta uma série de graves questões – principalmente para as mulheres (e filhos da mulher) a quem o marido se recuse a dar o guet – eles não se colocam, em princípio, num processo de revisão e confirmação do divórcio em causa, porque quando é pedida a revisão é porque o guet foi dado pelo marido e aceite pela mulher (ou, pelo menos, quando assim acontecer). Pelo que, estaremos perante um divórcio obtido por mútuo consentimento.

              (as traduções supra foram feitas informalmente com uso da ferramente de tradução da google, com adaptações mínimas pelo signatário)

                                                                 *

              Em suma, embora, ao contrário do que diz o requerente, não exista uma sentença de divórcio do tribunal rabínico, o divórcio, no caso, presume-se ter sido obtido por mútuo consentimento e pode ser revisto, pelo que o processo poderá prosseguir se e quando for junta a certidão do averbamento do casamento no registo civil de nascimento do requerente, para o que se defere o prazo pedido pelo requerente.

              Lisboa, 30/05/2024

              Pedro Martins